“Entrevista com o grupo HÓSPEDE”
Por Gustavo Motta (*)
O mais recente trabalho do Grupo Hóspede, Plano de Reconversão de Logradouros Culturais
(PRELOC) - 2009, se apresenta como uma revisão irônica dos “planos de reconversão urbana”
levados a cabo por grandes empresas do mercado imobiliário, no geral associadas diretamente
a um plano dos poderes estatais. Sob o olhar do Grupo estão esses “planos de reconversão”,
que se tornaram paradigmas da lógica urbanística/especulativa das cidades pós-modernas.
Os diversos trabalhos anteriores do Grupo podem ser encontrados – com fotos e descrições –
no site http://www.grupohospede.org. Parte de seus trabalhos recentes é apresentado no
blog da empresa fictícia de “reconversão de logradouros culturais” G.H. Associados
(http://ghassociados.blogspot.com).
***
Gustavo Motta – Me parece que desde os primeiros trabalhos, lá pelos idos de 2005, o
Hóspede tem em vista um diálogo com a arquitetura tomada em sua dimensão urbanística –
ou seja, como modo de organização da vivência da cidade, seja em termos políticos
abrangentes, seja na dimensão empírica individual ou cotidiana. O trabalho apresentado agora
no Paço das Artes faz parte de um programa maior, pautado no “Plano de Metas e Benefícios”,
que funciona como uma espécie de exposição irônica do jargão empresarial que normalmente
está associado a esse tipo de iniciativa de “reconversão urbana”. Qual a função da arquitetura
no presente trabalho?
Grupo Hóspede - A primeira apresentação do projeto, que se deu no mesmo Paço em
dezembro de 2008, trazia um projeto arquitetônico pensado pelo grupo. Era uma proposição
nossa que procurava ironizar a lógica megalomaníaca da arquitetura pós-moderna. Na nova
proposta, que em certo sentido segue a anterior, continuamos a trabalhar em cima dessa
história do plano de reconversão. Mas, agora, sem perda da experiência anterior, já não se
trata de pensar um desenho arquitetônico específico. A gente está pensando em fazer outras
coisas, meio na borda disso. Não pensar na arquitetura no sentido do desenho. Mas pensar
mais sobre a imposição que é feita. Pensar sobre essas escolhas que são feitas pelo capital e
que são geridas pelos governos, que acabam incidindo sobre a população de um jeito muito
foda. Onde ninguém sabe direito o que está acontecendo. “Opa! Demoliram!”
Nesse sentido, o trabalho tem ecos ou procura reformular abordagens que o grupo já utilizou
anteriormente, como no Laboratório Hotel (2007), onde vocês formaram um centro de estudo
e residência numa casa no Largo da Batata, em São Paulo. Esta área sofre atualmente um
plano de reformas urbanas análogo do ponto de vista da especulação imobiliária – ainda que
não em vista da função central que o campo da cultura exerce nas reconversões urbanas do
centro da cidade. Esses ecos tem relação, creio, com um pensamento sobre a cidade, como
lugar das relações sociais mais amplas. Ainda assim, a arquitetura se apresenta como o campo
material onde essas relações estão objetivadas em construções. Neste sentido, em ausência, a
arquitetura está muito presente nesta proposição dos tapumes e da criação ficcional de uma
reforma, não?
Claro que a solução apresentada agora dialoga com a arquitetura, mas sem procurar nada
específico – nem suas formas – nos mecanismos internos da atividade arquitetônica. O que o
trabalho vai falar de arquitetura é justamente sobre a finalidade dela. Não é o projeto – o
projeto no sentido formal mesmo, desenho do arquiteto – , mas é o tapume fechando a área
para construir. Um outdoor dizendo: “Obras”.
Mas tem uma diferença entre os projetos anteriores e o que o Grupo procura buscar agora,
não? No geral os trabalhos se desenvolviam a partir da idéia de site-especific – que, se não foi
abandonada, está agora servindo a uma idéia central mais ampla, ou que procura abordar os
problemas de forma mais geral.
Tem um pouco essa idéia de sair da história do site-especific, mas não se resume a isso. O
PRELOC procura ter uma linha mais abrangente. A partir dessa linha mais abrangente surgiu a
história de ter um plano-mestre que fosse compatível com várias situações.
E aí ocorre uma espécie de inversão: esse trabalho das reconversões coloca uma espécie de
narrativa que os outros não tinham. Os outros trabalhos partiam sempre de alguma espécie de
narrativa prévia, dada pelo lugar. Era a idéia “este lugar é assim, assim e assado” – e os
trabalhos procuravam intervir no que estava acontecendo. Agora é o contrário: impõe-se uma
narrativa maior. Parece que é uma tentativa de escapar dessa especificidade microcósmica e
anedótica do lugar, da história específica, para entender como os problemas que aparecem ali
funcionam sistematicamente. Inclusive porque reconsidera os problemas que tinham sido
levantados antes.
Agora surge a narrativa completamente ficcional do G.H. Associados, em que o ponto de vista
é do mais alto. Isso surgiu um pouco inconscientemente, naturalmente, ou a idéia partiu do
princípio de se colocar como uma empresa e tentar intervir a partir disso? Intervir no sentido
de acentuar os dados cômicos, acentuar o que tem de arbitrário, o que tem de bizarro e de
bizonho nessas coisas. Como surgiu isso?
Surgiu um pouco inconscientemente, mas foi se acentuando ao longo do tempo. Logo surgiu a
idéia de uns outdoors, ou então panfletos, que, ao invés da criação de um lugar onde estivesse
implicado o trânsito de cultura – como um centro cultural, uma biblioteca, ou um local de
discussão – , houvesse uma demolição ou uma reconstrução total, que afetasse a circulação
geral dos arredores, fosse em termos culturais, fosse em termos de tráfico de veículos mesmo.
O Grupo pensou o que se poderia fazer para que um trabalho como os que estava
desenvolvendo não virasse apenas uma denúncia de artista dentro de um espaço expositivo.
Daí veio a idéia de uma marca, um logotipo, uma empresa que vem de cima e se impõe.
De um lado dá para ver como nos outros trabalhos a narrativa estava posta pela realidade. E
agora é a ficção que tem uma tentativa de sistematizar os problemas, que se referem aos
problemas que o Grupo já estava tateando antes: função das reformas urbanas, realocação de
populações inteiras, forma e função da arquitetura. Por outro lado, tem uma coisa com relação
ao blog, a coisa da ironia, ou de sua enunciação, que parece mais clara agora em relação ao
trabalho apresentado em dezembro. Ou pelo menos mais claro para quem souber o que é o
Grupo Hóspede, ou estiver disposto a entender a rede de problemas que o Grupo comumente
aborda de diversos modos nos diferentes trabalhos… De toda forma, o texto que está no blog
agora, o G.H. Associados, se apresenta como um texto empresarial.
“Altamente qualificado em suas qualidades.” (risos)
O texto já começa a dar uma pista pelo exagero, pelo bizarro. Por um lado, eu acho que de fato
avança naquilo de uma mudança tanto do foco da narrativa quanto do narrador. Por outro
lado, continua tendo um problema de ironia no discurso, na narração que, ao mesmo tempo
em que expõe a bizonhice dos problemas que o Grupo já está mapeando faz tempo, entra
nela. Só que, ao mudar a voz, ela reflete ou se mistura com a ironia objetiva do fato. Em que
ponto vocês acham que essa “ironia ativa”, e que em certo sentido tenta demonstrar as
contradições do lugar, consegue ter voz junto a essa ironia objetiva do fato? O quanto esse
discurso empresarial vai gerar um sorriso de canto de boca, mas não vai de fato à exposição
das contradições da situação?
Ah, mas há outras coisas no trabalho onde essa questão da ironia deixa de ter centralidade. Ela
não é anulada, não fica de lado, mas ganha outra dimensão. Porque ao tentar pensar como as
intervenções no lugar vão estar, e como elas estão submetidas a esta narrativa geral da
reconversão, é possível que haja, ao mesmo tempo, um aprofundamento dessa narrativa e
uma relativização dela. O que o Grupo pensou na primeira exposição, de dezembro de 2008,
foi realmente trazer à vista o problema, expô-lo. Tratava-se da exposição que esses projetos
normalmente têm mediante a imagem, mediante a maquete.
Essa segunda exposição procura chamar a atenção para que as pessoas vejam aquilo como se
de fato o prédio fosse ser demolido. Apenas num segundo momento, pegar o folder e ler
aquele plano de metas absurdo e pensar realmente: “Nossa, isso está dentro dessa lógica, de
onde vem isso? Quem são essas pessoas que estão fazendo esse absurdo?”. Que é uma coisa
que se deveria pensar sempre quando se vê esse tipo de projeto. Quem falou que o Largo da
Batata é passível de ser totalmente destruído? De onde veio isso? Que pesquisas se fizeram
para chegar a essa conclusão? Quais são os interesses ali que fazem isso ser possível? Que não
fazem isso ser possível em outro lugar, porque ali é mais urgente agora? Então, pensar essa
urgência em cima desses centros culturais, que muitas pessoas nem sabem que existem.
Passam na frente do lugar e nem sabem que ele existe. Só vão saber que existe quando ele vai
ser destruído.
Dar visibilidade justamente pela placa de reforma, os tapumes.
Esse texto ou narrativa é importante por causa disso, mas ele é sempre um segundo momento.
O texto passa a ser uma espécie de segunda camada necessária, talvez, para a apreensão
completa da coisa. Mas eu não preciso saber exatamente a narrativa do Paço, saber que aquilo
é um lugar...
Aí tem um pouco da tal da ironia objetiva da situação, no texto.
Esse choque inicial é que vai propiciar uma leitura pensante do texto, onde aquele conforto vai
me desconfortar. E é ele que impõe ironicamente a mudança de voz da narração.
Uma inversão…
Uma coisa que comentaram é que antes o Grupo usava uma abordagem mais “nós somos seus
amigos, nós estamos aqui, somos seus vizinhos no laboratório, estamos pesquisando”, e agora
não, estamos usando essa voz vinda de cima, e aí?
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(*) Esta entrevista, realizada em março de 2009, faz parte do acompanhamento crítico do
trabalho do Grupo Hóspede, feito pelo crítico e artista Gustavo Motta, no contexto da
Temporada de Projetos 2009.
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