FUSÕES
FISCALMENTE NEUTRAS
ENTRE SOCIEDADES
DETIDAS PELO MESMO SÓCIO
UMA BREVE REFLEXÃO
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Hugo Sancho Carvalho
REVISOR OFICIAL DE CONTAS
Introdução1
O objectivo do presente artigo consiste, fundamentalmente, na
discussão da amplitude das alterações introduzidas ao Código do
Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), a vigorar
para os exercícios iniciados em ou após 1 de Janeiro de 2010, no que
se refere aos pressupostos e requisitos para a aplicabilidade do
comummente designado Regime de Neutralidade Fiscal 2(doravante
abreviadamente designado por RNF).
Com efeito, pretende-se antecipar se, no contexto da aprovação e
entrada em vigor do novo Sistema de Normalização Contabilística
(SNC), a legislação fiscal relevante sofreu alterações com o intuito
dar resposta a algumas das insuficiências que, em nosso entender,
o Regime de Neutralidade Fiscal padece presentemente.
Em concreto, partindo de um caso concreto, pretende-se suscitar a
discussão quanto aos requisitos para a aplicabilidade do RNF, previsto
nos actuais artigos 67.º e seguintes do Código do IRC – considerando
igualmente as alterações que entrarão em vigor a 1 de Janeiro de
2010 –, nomeadamente no que concerne à necessidade de aumento
de capital social na esfera da sociedade incorporante decorrente de
uma fusão por incorporação.
Neste contexto, analisar-se-ão as limitações aplicáveis quando uma
sociedade detém 100% do capital social de duas outras e pretende
levar a cabo, por motivos de simplificação/optimização operacional
e/ou outros economicamente válidos que conduzam a um aumento
da eficiência das organizações empresariais, uma operação de fusão
por incorporação de uma das participadas na outra.
Nos termos do Código do IRC, tanto na redacção actualmente em
vigor como na redacção que se prevê que venha a vigorar a partir
de 2010, com excepção do caso em que se assiste à incorporação
de sociedade totalmente pertencente a outra, o supramencionado
RNF apenas será aplicável ao caso em análise se a sociedade
incorporante proceder a um aumento de capital social e à
correspondente atribuição de novas partes de capital ao(s) sócio(s)
da sociedade incorporada.
O presente artigo procurará desenvolver, ainda que de uma forma
sucinta, o enquadramento societário vigente, a ratio legis depreendida
das normas aplicáveis, o racional para o afastamento do aludido
aumento de capital social e apresentar igualmente uma breve
perspectiva internacional sobre a matéria.
“(...) pretende-se antecipar se, no contexto da aprovação e entrada em vigor do novo
Sistema de Normalização Contabilística (SNC), a legislação fiscal relevante sofreu
alterações com o intuito dar resposta a algumas das insuficiências que, em nosso
entender, o Regime de Neutralidade Fiscal padece presentemente.(...)”
O porquê desta reflexão
Sendo claro que tanto a legislação fiscal como a legislação societária
não se mostram permissivas à realização de operações de fusão
similares à do caso em análise (i.e., sem o referido aumento de capital
social), importa perceber se existem argumentos para sustentar que
este caso devia merecer um tratamento de excepção no ordenamento
jurídico-tributário3 português, à semelhança do verificado, por
exemplo, para a fusão por incorporação de sociedade integralmente
detida (operação vulgarmente designada por “upstream merger”).
Com efeito, a realização do referido aumento de capital social no
caso em apreço consiste numa obrigação fiscal imposta à
contabilidade e à gestão dos agentes económicos, limitando as
escolhas e opções à disposição dos mesmos – nomeadamente no
que concerne às modalidades de fusão passíveis de concretização
–, em especial no contexto actual de forte necessidade de imprimir
dinamismo aos processos de reorganização empresarial.
Também o Professor Raúl Ventura questionou a necessidade de
existência de aumento de capital social na fusão de sociedades
integralmente detidas pelo mesmo sócio: “como afinal os dois
patrimónios sociais pertencem às mesmas pessoas, seria indiferente
que, no caso de incorporação de uma na outra [participadas], os
accionistas recebessem mais acções da incorporante, uma vez que as
acções que já nela possuem ficam a representar a soma desses
patrimónios”4 .
Não obstante, e em posição contrária à por nós preconizada, e apesar
de entender que a linha de raciocínio acima expendida constitui um
argumento válido no sentido de o aumento de capital social ser
dispensável, acabou por concluir que não havia necessidade de criar,
de um prisma de direito societário, um regime de excepção para o
caso, considerando que não detectava significativo interesse na
inexistência de tal aumento de capital5 e que tal solução permitiria
evitar a criação de “entorses ao sistema legal das fusões”.5
43
FISCALIDADE
Enquadramento societário
e tributário
As fusões são reguladas pelas disposições constantes dos artigos
97.º e seguintes do Código das Sociedades Comerciais (CSC).
A legislação societária em vigor prevê apenas três casos em que o
aumento de capital social e a correspondente atribuição de partes
de capital são dispensados:
· Quando a sociedade incorporante detenha participações na
sociedade incorporada (cfr. n.º3 do artigo 104.º do CSC), na medida
dessas partes de capital;
· Quando a sociedade incorporada detenha acções ou quotas próprias
(cfr. n.º3 do artigo 104.º do CSC), na medida dessas partes
de capital; e
· Quando a sociedade incorporante detenha a totalidade das partes
de capital da sociedade incorporada (cfr. artigo 116.º do CSC).
A este respeito, cumpre salientar que a redacção actualmente em
vigor do artigo 116.º do CSC, dada pelo Decreto-Lei nº 185/2009,
de 12 de Agosto, prevê que a operação societária comummente
designada por “fusão simplificada” poderá ser concretizada desde
que a sociedade incorporante detenha pelo menos 90% das partes
de capital da sociedade incorporada.
Não obstante, caso a referida participação não represente 100%
do capital social da sociedade incorporada, manter-se-á a
necessidade de proceder ao aumento de capital e atribuição de
partes de capital da sociedade incorporante, no sentido de manter
a situação patrimonial dos sócios minoritários da sociedade
incorporada ao nível da sociedade incorporante.
De um prisma fiscal, as fusões poderão beneficiar do RNF previsto
nos artigos 67.º e seguintes do Código do IRC, normativo baseado
nas disposições da Directiva n.º 90/434/CEE, de 23 de Julho –
comummente designada por Directiva das Reestruturações
Societárias.
Com efeito, nos termos da legislação vigente, o aludido RNF é
aplicável (apenas) às seguintes tipologias de operações de fusão6:
· Operações pelas quais se transmita o património global de uma
ou mais sociedades (sociedades fundidas) para outra sociedade
já existente (sociedade beneficiária) e ocorra a atribuição aos sócios
daquelas de partes representativas do capital social da beneficiária
e, eventualmente, de quantias em dinheiro que não excedam 10%
do valor nominal ou, na falta de valor nominal, do valor contabilístico
equivalente ao nominal das participações que lhes forem atribuídas7
; ou
· Operações pelas quais se constitua uma nova sociedade (sociedade
beneficiária) mediante a transmissão global do património de uma
ou mais sociedades (sociedades fundidas), sendo atribuídas aos
sócios daquelas partes representativas do capital social da sociedade
beneficiária e, eventualmente, quantias em dinheiro que não
excedam 10% do valor nominal ou, na falta de valor nominal, do
valor contabilístico equivalente ao nominal das participações que
lhes forem atribuídas; ou
· Operações pelas quais uma sociedade (sociedade fundida) transfere
o conjunto do activo e do passivo que integram o seu património
para a sociedade detentora da totalidade das partes representativas
do seu capital social (sociedade beneficiária).
Constata-se assim que, com excepção da operação em que uma
sociedade é incorporada pela sociedade que detém integralmente
as suas partes de capital, o supramencionado RNF apenas será
aplicável se a sociedade incorporante proceder a um aumento do
correspondente capital social e à consequente atribuição de novas
partes de capital ao sócio da sociedade incorporada (i.e., o legislador
fiscal não prescindiu do “elemento formal da atribuição de títulos”8).
A razão para que uma operação realizada com o modus operandi
relatado não beneficie do aludido RNF assenta primacialmente no
formalismo que integra a previsão do artigo 67.º, ou seja, a
necessidade de serem “atribuídas aos sócios [da sociedade incorporada]
partes representativas do capital social da sociedade beneficiária”.
Adicionalmente, importa salientar que, em termos genéricos, a
aplicabilidade do RNF está vinculada à existência de motivações
económicas válidas e não poderá ser invocado no caso de operações
concretizadas que tenham como objectivo principal a evasão fiscal,
o que se poderá entender verificado, nomeadamente, quando as
sociedades envolvidas não tenham a totalidade dos seus rendimentos
sujeitos ao mesmo regime de tributação em sede de IRC.
Ratio legis subjacente
ao aumento de capital social
A Terceira Directiva do Conselho – transposta para a generalidade
dos ordenamentos jurídicos europeus, incluindo o português –
confirma a motivação para a definição de regras para as fusões de
sociedades:
· “a protecção dos interesses dos sócios e de terceiros requer uma
coordenação das legislações dos Estados-membros a respeito da
fusão das sociedades anónimas (…)”;
· “os credores (…) das sociedades participantes na fusão devem ser
protegidos de modo a evitar que a realização da fusão os prejudique”.
“(...) Constata-se assim que, com excepção da operação em que uma sociedade é
incorporada pela sociedade que detém integralmente as suas partes de capital, o
supramencionado RNF apenas será aplicável se a sociedade incorporante proceder
a um aumento do correspondente capital social e à consequente atribuição de novas
partes de capital ao sócio da sociedade incorporada(...) “
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Hugo Sancho Carvalho | REVISOR OFICIAL DE CONTAS
FISCALIDADE
A este respeito, importa salientar que Portugal transpôs as
orientações comunitárias supra citadas não apenas para as
sociedades anónimas mas para qualquer tipo de sociedade, conforme
estatuído no CSC.
Neste sentido, entendemos que a ratio legis das normas jurídicas
que regulam as fusões se encontra em grande parte vinculada à
protecção dos interesses dos sócios, dos credores societários e de
outros terceiros, procurando regular as relações entre as partes de
modo a que não existam entidades prejudicadas ou, pelo menos,
sem possibilidade de se expressarem contra a realização da operação.
De facto, no contexto do ordenamento jurídico-societário português,
o aumento de capital assume-se como o método de eleição para
garantir os interesses legítimos das entidades referidas. Importa
clarificar se é o único.
Argumentos para a não
realização do aumento
de capital social
De acordo com a experiência adquirida, a realização do aumento de
capital social por parte da sociedade incorporante poderá apresentarse desnecessário e, em alguns casos, um entrave ao desenvolvimento
eficiente da sua actividade e objecto social.
RACIONAL ECONÓMICO
de negócio, considerando o estádio de desenvolvimento da actividade
da empresa.
Neste contexto, um capital social excessivo poderá, em termos
económico-financeiros, implicar uma redução da alavancagem da
sociedade, reduzindo a potencial rentabilidade dos capitais próprios
para níveis sub-óptimos.
Por outro lado, não é despiciendo considerar que o capital social
apresenta um nível de rigidez significativamente superior ao de
outras componentes dos capitais próprios, facto que poderá, em
determinadas condições, dificultar operações de reorganização
económico-financeira que permitam dinamizar a actividade das
entidades participantes no capital da sociedade, considerando uma
perspectiva de Grupo económico mais ampla.
Naturalmente, o nível de rigidez dos instrumentos de capital próprio
é substancialmente superior às componentes integrantes do passivo
das Empresas, facto que implica que um aumento de capital social
despolete uma estrutura financeira de médio-longo prazo menos
adaptável e com um maior volume de investimento “cristalizado”
por parte do sócio.
Adicionalmente, um nível de capitalização excessivo
para a actividade ou o negócio da sociedade incorporante pode
conduzir à necessidade de efectuar uma redução do mesmo
imediatamente após a fusão.
A concretização deste tipo de operações, ainda que de prática
corrente, representa significativos encargos para as entidades
envolvidas, tanto a nível monetário como burocrático, especialmente
quando poderiam ser evitadas.
Com efeito, a teoria económica tem vindo a entender que existe um
nível de alavancagem dos capitais próprios óptimo para cada ramo
45
FISCALIDADE
RACIONAL SOCIETÁRIO
Por fim, a realização de um aumento de capital social
desproporcionado para a realidade da sociedade incorporante poderá
suscitar a aplicabilidade das disposições previstas no artigo 35.º do
CSC (perda de metade do capital): “Considera-se estar perdida
metade do capital social quando o capital próprio da sociedade for
igual ou inferior a metade do capital social”.
Com efeito, um aumento do valor do capital social implicará,
necessariamente, que o valor mínimo dos capitais próprios que
afasta as consequências nefastas da aplicabilidade do aludido artigo
35.º do CSC será também superior.
Ora, tal constatação permite inferir que, ceteris paribus, o aumento
de capital social na sociedade incorporante poderá revelar-se menos
eficiente (para evitar a aplicação das disposições previstas no referido
artigo 35.º do CSC.), caso esta já se encontre numa situação de perda
de metade do capital, quando comparada com outras opções de
reforço dos capitais próprios (v.g., “reserva de fusão” equivalente ao
valor dos capitais próprios da sociedade incorporada, prestações
acessórias com a natureza de prestações suplementares existentes
na esfera da sociedade incorporada, etc.).
PROTECÇÃO DOS DIREITOS DOS SÓCIOS
E TERCEIROS
Assegurados que estejam os interesses dos sócios e dos terceiros,
entendemos que existem casos particulares em que o aumento de
capital social da sociedade incorporada poderia (e deveria) ser
dispensado.
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A este respeito, o Professor Raúl Ventura comenta que “Do ponto de
vista dos sócios das sociedades que se extinguem pela fusão, todo o
processo desta está organizado de modo que, ao fim e ao cabo, eles
se tornem sócios da sociedade incorporante ou da nova sociedade” 9.
Ora, do ponto de vista dos sócios, entendemos que os seus interesses
estarão assegurados quando não se verificar, pela realização da
operação de fusão, qualquer alteração do valor real das participações
detidas ou qualquer variação nos seus direitos de voto.
“(...) aumento de capital social na
sociedade incorporante poderá
revelar-se menos eficiente (...) caso
esta já se encontre numa situação de
perda de metade do capital, quando
comparada com outras opções de
reforço dos capitais próprios (...)”
Dependendo do caso em concreto, tal inexistência de alteração na
posição jurídica dos sócios poderá ocorrer mesmo que não se verifique
o aumento de capital social da sociedade incorporante.
De facto, no cenário em análise, o sócio comum da sociedade
incorporante e incorporada detém 100% de ambas, pelo que a sua
posição em nada se altera com concretização da operação sem haver
lugar a um aumento de capital social: o valor de mercado mantémse e os direitos de voto existentes permitem o controlo de toda
Hugo Sancho Carvalho | REVISOR OFICIAL DE CONTAS
FISCALIDADE
a actividade desenvolvida pelas duas sociedades (anteriormente de
forma segregada e após a operação de forma consolidada e agregada)10.
de fusão”12 , entendemos que não ocorrem alterações substantivas
nas garantias daqueles.
Adicionalmente, o Professor Raúl Ventura chama igualmente à
atenção que “No caso de fusão, os sócios não intervêm no processo
até lhes ser apresentado, para deliberação, o projecto de fusão”10, pelo
que, em última instância, competirá aos sócios decidir se os seus
interesses serão prejudicados ou não.
Por outro lado, importa mencionar que o Direito Societário tem como
dois dos seus princípios basilares a protecção dos interesses dos
credores societários e terceiros e a manutenção da segurança jurídica
das relações.
Não obstante, os credores dispõem ainda de mecanismos para se
oporem à operação de concentração a concretizar, nomeadamente
no que se refere aos seus termos, mediante a consulta do respectivo
projecto de fusão.
A este respeito, entendemos que a operação em análise não prejudica
igualmente os interesses dos credores societários e terceiros em
qualquer medida. A título de comparação, na fusão por incorporação
de sociedade totalmente detida, embora não exista aumento de
capital na sociedade incorporante, não foi prevista qualquer medida
legislativa adicional para protecção dos interesses dos credores
societários e terceiros.
Com efeito, os interesses dos credores da sociedade incorporada
encontram-se protegidos pelo disposto no artigo 112.º do CSC, o
qual dispõe que, no acto de inscrição definitiva da fusão no registo
comercial, todos os direitos e obrigações da sociedade incorporada
se transmitem para a esfera da sociedade incorporante.
Ainda que o capital social seja a expressão preferível para a protecção
dos interesses dos credores da sociedade (cfr. Professor Raúl Ventura
- “interesses dos credores, presentes e futuros, da sociedade incorporante
[…], os quais se situam na formação do capital social, sua única e fraca
garantia”11 ), atendendo ao regime jurídico das designadas “reservas
Paralelamente, os interesses dos credores dos sócios permanecem,
em nossa opinião, totalmente assegurados, pois a posição patrimonial
daqueles fica inalterada com a operação de fusão em análise, visto
que não surge uma diminuição nem é frustrado nenhum eventual
aumento do património daqueles, inexistindo assim interesse em
recorrer à acção sub-rogatória consagrada no artigo 606.º do Código
Civil.
Em conclusão, podendo existir constrangimentos financeiros e
económicos decorrentes da realização do aumento de capital social
na operação em análise e inexistindo implicações relevantes na
esfera dos sócios, credores ou terceiros, somos de opinião que o CSC
e o Código do IRC não deveriam impor, por requisito, que a realização
daquelas fusões e a aplicabilidade do RNF dependam, entre outros
aspectos, da concretização de um aumento de capital ao nível da
sociedade incorporante.
Tal opção legislativa discrimina negativamente a aplicabilidade do
RNF, em sede de IRC, em função do facto de não haver lugar ao
aumento de capital social na esfera da sociedade incorporante no
contexto de uma operação de reestruturação societária, quando
o resultado económico pretendido com a aludida operação é em
tudo idêntico, independentemente de ter ocorrido ou não tal reforço
do capital social 13.
“(...) CSC e o Código do IRC não deveriam impor, por requisito, que a realização
daquelas fusões e a aplicabilidade do RNF dependam, entre outros aspectos, da
concre-tização de um aumento de capital ao nível da sociedade incorporante.(...)“
Perspectiva internacional
Neste capítulo, procurámos perceber qual seria o enquadramento
societário e fiscal da situação em discussão em Espanha e na Holanda,
atendendo à reconhecida competitividade fiscal destes dois territórios
europeus.
Em Espanha, em contraposição com o caso português, a
Administração Tributária local já emitiu parecer favorável à aplicação
de um regime equivalente ao RNF consagrado no Código do IRC a
uma fusão “gemelar” (termo castelhano para a operação em análise).
Optámos por transcrever, ainda que parcialmente e em castelhano
(embora nos pareça clara a sua leitura e interpretação), uma parte
desse entendimento:
“No obstante, en este caso particular en donde las sociedades absorbidas
y absorbente están íntegramente participadas por el mismo socio de
forma directa, no parece absolutamente necesario que se produzca
tal atribución de títulos.
En efecto, aún cuando no se produzca esa atribución de valores de la
sociedad absorbente, al existir un único socio en todas las entidades
que participan en la operación, la situación patrimonial de éste no
varía sustancialmente ya que sigue participando en el mismo
patrimonio antes y después de la operación de fusión, con la
particularidad de que el valor de la participación en las absorbidas
incrementa el valor de la participación tenida en la sociedad absorbente
con posterioridad a la fusión, cumpliéndose así la neutralidad requerida
en el capítulo VIII del título VII del TRLIS para la aplicación del régimen
fiscal especial.
Por tanto, en un caso como el planteado de fusión entre sociedades
íntegramente participadas por una misma entidad, aunque no se
produzca una atribución de valores al socio de la entidad absorbida,
ni un aumento de capital en la sociedad absorbente, la operación
planteada podrá aplicar el régimen fiscal especial del capítulo VIII del
título VII del TRLIS, en la medida en que cumpla los requisitos
mercantiles necesarios para ello.” 14.
De igual modo, na Holanda, a operação em apreciação configura
uma denominada “fusão legal”, porquanto poderá beneficiar de um
regime similar ao RNF previsto no código do IRC, sem que tal dependa
da existência de aumento de capital por parte da sociedade
incorporante.
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FISCALIDADE
Conclusões
Como vimos, este é, aliás, o procedimento adoptado pelas legislações
espanhola e holandesa.
Em nosso entender, a operação de fusão em análise não beneficia
aparentemente de qualquer regime excepcional ao nível da legislação
societária actualmente em vigor (perspectiva reforçada pelos
comentários do Professor Raúl Ventura).
Com o objectivo de eliminar quaisquer obstáculos à promoção dos
processos de reorganização empresarial, em especial obstáculos de
natureza fiscal, designadamente os fenómenos de concentração
empresarial entre sociedades integralmente detidas pelo mesmo
sócio, e atendendo à discriminação negativa descrita supra, s.m.o.,
entendemos que as seguintes soluções legislativas poderão ser
futuramente equacionadas:
De igual modo, numa perspectiva estritamente fiscal, entendemos
que a operação em causa não seria de enquadrar em nenhuma das
operações taxativamente delimitadas no n.º 1 do artigo 67.° do
Código do IRC, norma que prevê o RNF em sede deste imposto, uma
vez que a emissão de partes de capital por parte da sociedade
incorporante é um requisito obrigatório para aproveitar do referido
regime favorável.
Estando assegurados os direitos e interesses de todos os
intervenientes no processo de fusão, entendemos que a legislação
societária não deveria impor obstáculos às escolhas e opções à
disposição dos agentes económicos, em especial no contexto actual
de forte necessidade de imprimir dinamismo nos processos de
reorganização empresarial.
Assim, por um lado, entendemos que a legislação comercial
portuguesa deveria conferir maior grau de autonomia e capacidade
decisória aos sócios, permitindo que fusões “atípicas” (v.g., fusões
invertidas, fusões com participadas integralmente detidas, fusões
entre participadas 100% detidas) sejam exequíveis do ponto de
vista societário, garantidos que estejam os interesses dos diversos
intervenientes.
“(...)somos da opinião que, tal como
sucede em outros regimes jurídicos
europeus, a legislação comercial deveria
ser alterada no sentido de alargar
os casos tipificados como fusões
e a legislação fiscal remeter, na íntegra,
a qualificação das operações elegíveis
para efeitos da aplicabilidade do RNF
para o normativo comercial.(...) “
· Alargamento das modalidades de fusão especificamente previstas
na legislação societária e alteração das disposições do Código do
IRC no sentido de fazer depender a aplicabilidade do RNF, quanto
aos tipos de operações abrangidas, exclusivamente do seu
enquadramento nos termos do CSC (conforme prática adoptada
em Espanha) – i.e., prevalência do CSC nas operações susceptíveis
de beneficiar do aludido RNF 17; ou
· Em alternativa, na esteira da opção seguida pelo legislador fiscal
português (i.e., o RNF, em sede de IRC, é apenas aplicável às
operações taxativamente delimitadas no n.º 1 do artigo 67.º do
Código do IRC), e assumindo que se manteriam intactos os traços
gerais do CSC no que a esta matéria diz respeito, entendemos que
poderiam ser introduzidas alterações ao Código do IRC, em particular
à norma enunciada, no sentido de adicionar a modalidade de fusão
em análise no presente artigo ao elenco das modalidades de fusão
aí descritas e relativamente às quais é possível aplicar o RNF,
passando assim a estar contemplada a previsão legal necessária
à aplicação do RNF à fusão entre sociedades detidas pelo mesmo
sócio.
Neste contexto, reflectindo sobre o cenário legislativo mais
equilibrado, somos da opinião que, tal como sucede em outros
regimes jurídicos europeus, a legislação comercial deveria ser alterada
no sentido de alargar os casos tipificados como fusões e a legislação
fiscal remeter, na íntegra, a qualificação das operações elegíveis para
efeitos da aplicabilidade do RNF para o normativo comercial.
Com efeito, as alterações legislativas supra propostas mostram-se
prementes com o intuito de melhor adaptar os normativos legais
vigentes às práticas empresariais existentes no mercado, mitigando
a incerteza jurídica gerada pela limitada previsão (ou regulação
específica) dos CSC e Código do IRC.
Por outro lado, entendemos igualmente que a legislação fiscal,
designadamente ao nível da arquitectura do RNF, deverá abarcar
todas as operações que, nos termos da legislação societária, se
possam qualificar e enquadrar como fusões, ainda que “atípicas”15.
Adicionalmente, entendemos que a legislação fiscal não deveria
impor qualquer tipo de limitação à forma ou natureza das fusões,
desde que se mantenha intocável o princípio basilar de existência
de motivações económicas (afastando as operações que tenham
como principal objectivo ou como um dos principais objectivos a
fraude ou a evasão fiscais)16, evitando discriminar negativamente
a aplicabilidade do RNF à modalidade da operação de fusão entre
sociedades participadas integralmente pelo mesmo sócio quando
não haja lugar à atribuição de novas partes de capital da sociedade
incorporante (orientação que se revela injustificável em face do
facto de se obter o mesmo resultado económico que numa operação
na qual ocorra um aumento de capital na esfera da sociedade
incorporante).
48
1
A exposição vertida no presente artigo resulta de uma análise autónoma do autor não
correspondendo necessariamente à opinião da Deloitte sobre a matéria em discussão.
Aproveito igualmente a oportunidade de agradecer o precioso auxílio dos meus colegas
Luís Marques e André Valente na materialização da presente reflexão.
2
O Código do IRC consagra um regime especial de neutralidade fiscal aplicável a
operações de reestruturação societária, nas quais se incluem, nomeadamente, as
operações de fusão, nos termos do qual não são apurados quaisquer ganhos, para efeitos
fiscais, na esfera das sociedades intervenientes na operação de fusão e dos sócios
daquelas sociedades, desde que respeitadas determinadas condições. Na ausência
deste regime, certamente que muitas das operações societárias de reorganização não
seriam concretizadas, considerando o ónus fiscal subjacente à sua realização.
3
Tomámos conhecimento de situações similares em que a Administração Tributária
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FISCALIDADE
questionou a aplicabilidade do RNF decorrente da inexistência de aumento de capital
social nominal, entendimento este que constituiu a principal fonte de motivação para
a presente reflexão. Neste contexto, embora tal não seja verdadeiro em todos os casos,
tal inaplicabilidade do RNF importará, provavelmente, a materialização tributária de
significativos ganhos, despoletando impactos fiscais que poderão ser inviabilizadores
da concretização da operação de reorganização. Por outro lado, entendemos que, caso
tal se coloque, a Administração Tributária poderá ainda vir a indeferir eventuais pedidos
de transmissibilidade de prejuízos fiscais reportáveis ao abrigo do artigo 69.º do Código
do IRC, causando, novamente, implicações fiscais nefastas, colocando, assim, num
segundo plano o incremento de eficiência económica que estes projectos de
reestruturação permitem alcançar. Apesar de não constituir objecto do presente artigo
(e que poderá merecer uma reflexão numa futura oportunidade), não queria deixar de
manifestar preocupação (e discordância) pela doutrina administrativa aparentemente
vigente em Portugal, nomeadamente no que diz respeito ao afastamento do RNF nas
fusões invertidas, nas fusões que envolva a transferência de um património negativo
e fusões em que as empresas envolvidas não possuam o mesmo período de tributação
em IRC, doutrina essa que entendemos não merecer acolhimento e credibilidade em
face da letra da lei fiscal vigente.
4
Cf. RAÚL VENTURA em Fusão, Cisão, Transformação de Sociedades – Comentário
ao Código das Sociedades Comerciais, pág. 274.
5
De facto, como veremos mais à frente, em nosso entender existem razões de índole
económica e fiscal (relacionadas com a inaplicabilidade do RNF ao caso de fusão em
análise) suficientemente válidas para justificar uma intervenção legislativa na
arquitectura jurídica das fusões.
6
De facto, o artigo 67.º enuncia, de uma forma expressa, quais as modalidades
de operações de fusão que poderão beneficiar do referido RNF.
7
A título exemplificativo, e não obstante se tratar de uma matéria controvertida em
face da posição adoptada pela Administração Tributária, somos da opinião que as fusões
invertidas estão abrangidas pelo actual artigo 67.º do Código do IRC, mais concretamente
na alínea a) do seu n.º1, porquanto neste tipo de operações também ocorre a atribuição
aos sócios da sociedade incorporada de partes representativas do capital social da
beneficiária.
8
Cf. J.L. SALDANHA SANCHES in Revista Fiscalidade – Revista de Direito e Gestão
Fiscal – “Fusão inversa e neutralidade (da administração) fiscal”, Edição 34 – Abril/Junho
2008.
9
Cf. RAÚL VENTURA em Fusão, Cisão, Transformação de Sociedades – Comentário ao
CSC, pág. 77.
10
Uma fusão pode ser vista genericamente como um negócio em que existe uma
relação de troca. Com efeito, do ponto de vista conceptual, se sociedade A incorpora a
sociedade B, o sócio de B (sociedade C) perde as partes de capital detidas em B (visto
que esta sociedade extingue-se) mas recebe, como contrapartida, partes de capital,
entretanto emitidas, de A. No caso em estudo, não será necessária a emissão de novas
partes de capital de A pois a sociedade C também é sócia única da sociedade A.
11
Cf. RAÚL VENTURA em Fusão, Cisão, Transformação de Sociedades – Comentário ao
CSC, pág. 78.
12
As quais ficam sujeitas ao regime da reserva legal previsto nos artigos 295.º e 296.º
do CSC.
13
Ainda a este respeito, importa salientar a opinião de J.L. SALDANHA SANCHES (in
Revista Fiscalidade – Revista de Direito e Gestão Fiscal – “Fusão inversa e neutralidade
(da administração) fiscal”, Edição 34 – Abril/Junho 2008) que, embora se refira a fusões
inversas, entendemos que poderá ser adaptada ao caso em análise: “Nessas operações
[fusões inversas], mas como em qualquer outra fusão, cisão, troca de participações ou
destaque de activos, podemos ter comportamentos abusivos que retirarão a possibilidade
de neutralidade fiscal se forem devidamente comprovados – mas não há qualquer razão,
nem sequer isso foi alegado, para presumir uma especial propensão para o abuso nas
fusões inversas”. Do mesmo modo, salienta também que a Administração Tributária
está dotada de um poder vasto, ao abrigo da Cláusula Específica Anti-Abuso prevista
no actual n.º 10 do artigo 67.º do Código do IRC: “Sempre que a operação não tenha
sido realizada por razões económicas válidas, a neutralidade acaba. Depois de demonstrar
que o fim empresarial não era obter maior eficiência por meio de reestruturação, a
Administração fiscal pode recusar a neutralidade da operação e tributar as mais-valias
realizadas”.
14
Cf. Consulta Vinculante V1659/2008 (Ref. NFC031228), Direccion General de Tributos,
12 de Setembro de 2008.
15
Embora, em nossa opinião, tal já suceda para as primeiras duas modalidades de fusões
atípicas, conforme o disposto nas alíneas a) e c) do n.º1 do artigo 67.º do Código do IRC,
respectivamente.
16
Aliás em consonância com a jurisprudência do TJCE no Caso C-28/95 (Leur-Bloem),
de 17/07/97 que reafirma que o regime previsto na Directiva das Reestruturações
Societárias se “aplica indistintamente a todas as operações de fusão, de cisão, […],
independentemente dos seus fundamentos, quer sejam financeiros, económicos ou
puramente fiscais”.
17
Solução que aliás foi acolhida no passado, antes da publicação da Directiva das
Reestruturações Societárias, pelo legislador fiscal português, partindo assim do sistema
legal de fusões estabelecido no CSC.
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