CIÊNCIA, TECNOLOGIA E CIENTISTA NA ESCOLA PÚBLICA: UM ESTUDO À LUZ DA TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO DE CIÊNCIAS NA AMAZÔNIA Ceane Andrade Simões Universidade do Estado do Amazonas Aderli Vasconcelos Simões Universidade do Estado do Amazonas RESUMO: Este trabalho é parte resultante de um estudo que está sendo realizado desde o ano de 2006 na Rede Pública Municipal de Ensino de Manaus, tendo como principais objetivos compreender quais as representações sociais sobre Ciência, Tecnologia e cientista são compartilhadas entre estudantes dos anos finais do Ensino Fundamental; e propor, executar e avaliar um projeto-piloto visando à popularização e divulgação científica junto aos sujeitos participantes da pesquisa. Pretendemos com o presente texto promover, a partir da Teoria das Representações Sociais e dos dados obtidos empiricamente, uma discussão relacionada ao campo da Ciência e da Tecnologia, que possa contribuir com a reflexão sobre o ensino de Ciências na Amazônia. PALAVRAS-CHAVE: Ciência & Tecnologia; Representações Sociais; Ensino de Ciências. 1. Introdução O interesse sobre como estudantes do Ensino Fundamental constroem o sentido de Ciência e Tecnologia no seu cotidiano, bem como sobre quais as oportunidades concretas de acesso e vivência aos processos científicos e tecnológicos estão sendo experimentadas no espaço da escola pública, foram as principais motivações que levaram ao desenvolvimento do estudo intitulado Representações Sociais da Ciência e Tecnologia do Público Infanto-Juvenil do Ensino Fundamental de Rede Pública de Manaus1, durante o biênio 2006-2008. Acreditamos que a compreensão sobre as representações sociais de ciência, tecnologia e cientista dos participantes desta pesquisa poderá contribuir no debate acerca do ensino de Ciências no contexto amazônico, destacando os saberes do senso comum, a partir dos quais poderão ser criados pretextos pedagógicos e contextos de aprendizagem vinculados de forma pertinente ao cotidiano destes estudantes. Coerente com este pensamento, Delizoicov, Angotti e Pernambuco (2002, p. 161) destacam no Brasil a existência pesquisas que demonstram a relevância dos conceitos alternativos, elaborados pelos estudantes, na interpretação e previsão de comportamentos de eventos e fenômenos trabalhados no âmbito do ensino de Ciências. Em síntese, estes estudos apontam para uma tentativa de superação de um trabalho didático-pedagógico orientado para uma ciência morta e para a promoção da compreensão da Ciência e da Tecnologia numa perspectiva sócio-histórica e, por isso mesmo, a partir de uma visão dialética. 2. O tema C&T e o ensino de Ciências As transformações históricas ocorridas no campo científico, assim como o avanço tecnológico e as mudanças sociais decorrentes ou promotoras destas, são temas fortemente presentes no cenário pedagógico, especialmente na área de ensino de Ciências. No debate corrente em torno de Ciência e Tecnologia, ganham notável evidência os seus efeitos positivos ou desejáveis sobre o modo de viver e pensar do homem - mediado pela sociedade de consumo - mas também são apontados, os preocupantes impactos da ação humana sobre o meio ambiente, conseqüentes destes processos. Tratar com seriedade estes temas, na base do percurso educativo, é revestir de caráter democrático e ético a formação de cidadãos para que tenham reais possibilidades de fazer uma adequada leitura de mundo e, entre outros aspectos, ampliar sua participação nos processos culturais, sociais e políticos. Na delicada, porém necessária, discussão sobre C&T como cultura, um posicionamento deve ser ressaltado. O de que: Juntamente com a meta de proporcionar o conhecimento científico e tecnológico à imensa maioria da população escolarizada, deve-se ressaltar que o trabalho docente precisa ser direcionado para sua apropriação crítica pelos alunos, de modo que efetivamente se incorpore no universo das representações sociais e se constitua como cultura. (DELIZOICOV, ANGOTTI e PERNAMBUCO, 2002, p. 34). Se analisarmos, ainda que superficialmente, o contexto da escola pública brasileira, notaremos que a incorporação de conhecimentos sobre C&T, como aspecto relevante da formação cultural dos estudantes, sofre grandes problemas, de algum modo atinentes ao processo de ensino e às dificuldades de promoção da Educação Científica, dentre as quais: (i) o desconhecimento quase geral do processo científico; (ii) a inadequação do ensino de Ciências e (iii) o abismo entre a "Ciência do cientista" e a "Ciência dos textos". (HENNIG, 1998, p.23). Nos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental, chamam a atenção os objetivos propostos para a área de Ciências Naturais, especialmente no que tange o acesso e a construção de conhecimentos no campo de C&T, dentre os quais: identificar relações entre conhecimento científico, produção de tecnologia e condições de vida, no mundo de hoje e em sua evolução histórica; saber utilizar conceitos científicos básicos, associados a energia, matéria, transformação, espaço, tempo, sistema, equilíbrio e vida; compreender a tecnologia como meio para suprir necessidades humanas, distinguindo usos corretos e necessários daqueles prejudiciais ao equilíbrio da natureza e ao homem. (Brasil, 1998, p. 33). Por isso mesmo, mais do que em qualquer outro momento, é preciso reconhecer que Ciência e Tecnologia são atividades humanas, imersas em um processo histórico e atreladas ao modo de produção capitalista, não podendo ser compreendidas como atividades neutras e desprovidas de intencionalidade. Tendo todos estes aspectos como perspectiva, consideramos que a investigação das práticas e sentidos construídos pelos estudantes, acerca do cientista e de ciência e tecnologia em seu cotidiano, poderá ser tomado como um interessante marco introdutório para a reflexão e ação educativas no ensino de ciências. Daí adotarmos o campo teórico das Representações Sociais como meio profícuo para a compreensão dos saberes que orientam a prática social dos sujeitos. 3. A noção de representações sociais e sua teoria O termo representações sociais designa ao mesmo tempo, um conjunto de fenômenos, o conceito que o engloba e a teoria que serve para explicá-lo (SÁ, 2002, p.29). Surgida na França, na década de 60, esta teoria ganha notoriedade por meio do movimento de Serge Moscovici, a partir de sua obra seminal La psychanalyse, son image et son public (1961), cuja reivindicação abarcava a ampliação do campo da Psicologia Social e apresentava a investigação científica das teorias construídas no âmbito do senso comum como legítimo. A Teoria das Representações Sociais (TRS) tem oferecido grande contribuição para o reconhecimento dos saberes e práticas socialmente partilhados no cotidiano como uma forma válida e importante de perceber, apreender e atuar sobre a realidade. Assim, cada vez mais esta teoria vem ganhando espaço nos campos de pesquisa por procurar se aproximar de um tipo de conhecimento, construído no universo consensual de um grupo específico de sujeitos, cujo objetivo prático é o de orientar suas ações e relações cotidianas e o modo de compreender uma realidade. Assim, a legitimidade das representações sociais como objeto de estudo, decorre de sua importância para a elucidação de processos cognitivos e de interações sociais (JODELET, 2001, p.22). As representações cumprem uma função dinâmica: a de tornar familiar o que nos é estranho, ao passo que também operam como uma forma de manutenção e equilíbrio (sócio-cognitivo) de uma identidade social. Nela está contida uma relação de simbolização e de interpretação em relação ao seu objeto. Ou seja, ela está no lugar de um objeto e lhe confere significado. Por seu turno, esta atividade é construção e expressão do sujeito pela interação entre processos cognitivos, intrapsíquicos e de pertença social e participação cultural. (JODELET, 2001, pp.27-28). Como campo teórico, as representações sociais apresentam uma abordagem explicativa originária denominada de a grande teoria, hoje, complementada por um sistema teórico de maior detalhamento dos seus processos, conhecido como Teoria do Núcleo Central. Esta teoria complementar, surgida de uma tradição metodológica experimental, apresenta como hipótese a organização específica de uma representação social sendo composta por um núcleo central, constituído por um ou mais elementos, que lhe conferem significado e dos elementos periféricos, que correspondem ao essencial do conteúdo de uma representação, ou seja, aos seus componentes mais acessíveis, vivos e concretos. Esta organização, em síntese, alude à estrutura de um sistema sociocognitivo. (ABRIC, 2002, pp. 30-32). 4. Aspectos metodológicos que acercaram a pesquisa e os seus resultados O presente trabalho de caráter quali-quantitativo, foi desenvolvido entre 527 alunos dos anos finais (6º ao 9º) do Ensino Fundamental de oito escolas públicas municipais de área urbana e rural de Manaus, com faixa etária entre 9 e 18 anos. Seu desenho metodológico abrangeu os estudos: (i) do perfil sócio-econômico e cultural dos sujeitos; (ii) da observação das condições pedagógicas e estruturais oferecidas pelas escolas para a discussão e vivência da atividade científica e tecnológica no seu âmbito e (iii) da caracterização das representações sociais dos estudantes sobre cientista, ciência e tecnologia. Para a coleta de dados foi realizada: 1) a aplicação de questionário sócio-econômicocultural com perguntas relacionadas à renda familiar; escolaridade dos pais; atividades de caráter científico e tecnológico realizadas na escola; participação em atividades científicas; espaços científicos e culturais acessados e meios de informação e comunicação utilizados; 2) aplicação do teste de associação livre de palavras, tendo como estímulos indutores as palavras “cientista”, “ciência” e “tecnologia”; 3) realização de uma atividade de grupo (um grupo de alunos de escola de área rural e outro de área urbana), que consistiu em uma oficina sobre os temas investigados; 4) realização de entrevista semi-estruturada com 37 alunos. A análise do conteúdo e da estrutura das representações sobre ciência, tecnologia e cientista foi realizada de acordo com a abordagem complementar da TRS – a Teoria do Núcleo Central – segundo Abric (1994) e Sá (1996). Para tratamento dos dados originados no teste de associação livre, foi adotado o software EVOC 2000 para o cruzamento analítico de freqüência e ordem de importância das evocações, resultando na elaboração do “quadro de quatro casas”. Em suma, parte-se do princípio que as palavras evocadas mais freqüentemente e colocadas em uma ordem de importância alta, após a hierarquização realizada pelos sujeitos, são prováveis cognições centrais, ou seja, aquelas que ocupam posição importante no esquema cognitivo dos sujeitos. Os resultados obtidos dão conta de que: (1) são estritas as oportunidade de inserção em espaços científicos-culturais pelos alunos participantes da pesquisa. Zoológicos e áreas de preservação ambiental são, segundo a maioria, os espaços científicos a que dizem ter acesso, embora não soubessem ao menos nomeá-los; (2) Consequentemente, observa-se certa distorção na compreensão do que seriam de fato espaços de natureza científica. Casas de shows, shoppings, cinema, igreja, parques de diversões, pontos turísticos e ‘lan house’ foram citados por 31% dos estudantes como pertencentes a esta categoria; (3) de modo geral, foi possível observar a dificuldade dos sujeitos em indicar com clareza o que seriam atividades de cunho científico e tecnológico realizadas escola. A maioria (59,6%) indicou que em sua escola não são desenvolvidas atividades com este caráter; (4) quanto às análises das representações sociais de C&T e do cientista entre os estudantes, podemos afirmar que: (a) Ciência, para estes, associa-se estritamente aos conteúdos curriculares básicos da área de Ciências Naturais. Assim, corpo-humano, doença, estudo e ser humano constam como cognições centrais, embora os alunos não deixem de compreendê-la como um processo de descoberta, conhecimento e aprendizado; (b) no tocante a tecnologia, as cognições centrais referem-se especialmente aos produtos tecnológicos de informação e comunicação como computador e televisão, mas indicam que a energia elétrica tem um papel fundamental no desenvolvimento da tecnologia em si; (c) já o cientista, é representado como o sujeito responsável por descobertas, inventos e desenvolvimento de pesquisas voltadas especialmente para a cura de doenças. Lamentavelmente, os dados oriundos do contexto do ensino básico traduzem nada mais que as dificuldades históricas percebidas no campo de formação docente e a ausência de um projeto de escola pública condizente com as necessidades locais, reforçados pelos parcos investimentos em C&T na região amazônica. O que em suma, na visão de SilvaForsberg (no prelo), refletem na pouca estrutura e recursos humanos para consolidar uma base técnico-científica, capaz de participar ativamente de um verdadeiro processo de desenvolvimento para a região. Aspecto este que julgamos necessário para importantes mudanças no campo educacional. 5. Considerações finais Os dados indicam que as oportunidades de acesso aos espaços caracteristicamente científicos pelos alunos são escassas e que, por outro lado, as escolas públicas municipais parecem não estar, em essência, desenvolvendo ações que configurem adequadamente o campo do saber científico e tecnológico para os alunos como ferramentas importantes para compreender e intervir no mundo. Assim, as oportunidades de vivência e reflexão relacionada à Ciência, Tecnologia e cientista tornam-se restritas no âmbito escolar, o que influencia sobremaneira na natureza dos saberes que orientam as práticas destes alunos enquanto grupo social. Assim, se pensarmos na indiscutível confluência entre Educação, Ciência e Tecnologia será necessário que os sistemas de ensino público atentem para a relevância de ações que propiciem um maior contato dos estudantes com instituições de ensino e pesquisa, bem como elaborarem junto às escolas políticas que visem à efetivação de programas de iniciação científica e de popularização e divulgação da ciência vinculados, necessariamente, ao projeto pedagógico das escolas. Acreditamos que ações neste sentido possam contribuir especialmente no desenvolvimento de condições que tornem possível a compreensão da ciência como um conjunto de conhecimentos desenvolvidos sistematicamente, bem como da tecnologia como processo de construção social e não apenas como produto acabado e pronto para o consumo. No processo formal de educação observam-se as grandes dificuldades enfrentadas no rompimento de um padrão meramente reprodutivista do ensino, levando os alunos a historicamente ter acesso aos resultados e produtos alcançados por meio da atividade científica sem, no entanto, proporcionar adequados meios e recursos para sua compreensão. Assim, acreditamos que a análise das representações sociais de alunos do Ensino Fundamental sobre Ciência, Tecnologia e cientista, possa gerar discussões capazes de fomentar ações que desmistifiquem o saber científico no espaço da escola pública e que tragam elementos de reflexão importantes para a melhoria dos processos de ensino de Ciências na Amazônia. Referências ABRIC, JC. A abordagem estrutural das Representações Sociais. In: MOREIRA, A. S. P e OLIVEIRA, D. C (Orgs.). Estudos interdisciplinares de representações sociais. Goiânia: AB, 2000. p. 27-38. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ciências Naturais. Brasília: MEC/SEF, 1998. FORSBERG. M. C. da S. Diretrizes para políticas públicas e investimentos em Ciência e Tecnologia: uma agenda para a várzea do rio Amazonas. No prelo. HENNIG, G. J. Metodologia do ensino de ciências. 3 ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998. JODELET, D. Representações sociais: um domínio em expansão. In: D, Jodelet (org.). As representações sociais. Rio de Janeiro: EdUERJ., 2001. p. 17-44. MOCOVICI, S. Representações Sociais: investigações em Psicologia Social. Petrópolis: Vozes, 2003.. SÁ, C. P. de. O Núcleo central das Representações Sociais. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996. 1 Pesquisa realizada com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas – FAPEAM e vinculada ao Programa de Gestão em Ciência e Tecnologia.