Literatura no Ensino Fundamental Faculdades do Centro do Paraná Docente: Hérica Elaine Barbosa Ruiz Contatos: [email protected] Menina Bonita do Laço de Fita Ana Maria Machado Era uma vez uma menina linda, linda. Os olhos dela pareciam duas azeitonas pretas, daquelas bem brilhantes. Os cabelos eram enroladinhos e bem negros, feito fiapos da noite. A pele era escura e lustrosa, que nem o pêlo da pantera negra quando pula na chuva. Ainda por cima, a mãe gostava de fazer trancinhas no cabelo dela e enfeitar com laço de fita colorida. Ela ficava parecendo uma Princesa das Terras da África ou uma Fada do reino do Luar. Do lado da casa dela, morava um coelho branco, de orelha cor-de-rosa, olhos vermelhos e focinho nervoso sempre tremelicando. O coelho achava a menina a pessoa mais linda que ele tinha visto na vida. E pensava: “Quando eu crescer, quero ter uma filha pretinha e linda como ela...” Por isso, um dia, ele foi até a casa da menina e perguntou: - Menina bonita do laço de fita, qual é teu segredo pra ser tão pretinha? A menina não sabia, mas inventou: - Ah, deve ser porque eu caí na tinta preta quando eu era pequenina... O coelho saiu dali, procurou um vidro de tinta preta e se jogou nele. Ficou bem negro, todo contente. Mas aí veio a chuva e lavou todo aquele pretume, ele ficou branco outra vez. Daí a alguns dias, voltou lá na casa da menina e perguntou: - Menina bonita do laço de fita, qual é teu segredo pra ser tão pretinha? A menina não sabia, mas inventou: -Ah, deve ser porque eu tomei muito café quando era pequenina... O coelho sai dali e tomou tanto café que perdeu o sono e passou a noite toda fazendo xixi. Mas não ficou nada preto. Por isso, daí a alguns dias, voltou lá e perguntou: - Menina bonita do laço de fita, qual é teu segredo pra ser tão pretinha? A menina não sabia, mas inventou: -Ah, deve ser porque eu comi muita jabuticaba quando eu era pequenina... O coelho saiu dali e se empanturrou de jabuticaba até ficar pesadão, sem conseguir nem sair do lugar. Mas não ficou nada preto, o máximo que conseguiu foi fazer muito cocozinho preto e redondo feito jabuticaba. Por isso, daí a alguns dias voltou lá e perguntou: -Menina bonita do laço de fita, qual é teu segredo de ser tão pretinha? A menina não sabia e já ia inventando uma história de feijoada quando a mãe dela, que era uma mulata linda e alegre, resolveu se meter, deu uma gargalhada e disse: - Artes de uma avó preta que ela tinha... Aí o coelho, que era meio bobo, mas não era bobo demais, viu que a mãe da menina devia estar dizendo a verdade, porque a gente se parece sempre é mesmo com os pais, os avós, os tios e até com uns parentes meio tortos. E se ele queria ter uma filha pretinha e linda como a menina, tinha que procurar uma coelha bem preta. Não precisou procurar muito Logo encontrou uma coelhinha da cor da noite que achava aquele coelho branco uma graça. Foram namorando, casando, e tiveram uma ninhada de filhos, que coelho quando desanda a ter filho não pára mais. Tinha coelho pra todo gosto: branco bem branco, branco meio cinza, branco malhado de preto, preto malhado de branco e até uma coelha bem pretinha. Já sabe, afilhada da menina que morava na casa ao lado. E quando ela saía de laço colorido no pescoço, sempre encontrava alguém que perguntava: - Coelha bonita do laço de fita, qual é teu segredo pra ser tão pretinha? E ela respondia: -Ah, foram os conselhos da mãe de minha madrinha... DIVERSIDADE (Tatiana Belinky) Um é feioso, outro é bonito. Um é certinho, outro esquisito Um é magrelo, outro é gordinho. Um é castanho, outro é ruivinho, Um é tranqüilo, outro é nervoso. Um é birrento, outro dengoso... Um é ligeiro, outro é mais lento. Um é branquelo, outro sardento Um é preguiçoso, outro animado. Um é falante, outro calado Um é molenga, outro é forçudo. Um é gaiato, outro é sisudo Um é moroso, outro é esperto. Um é fechado, outro aberto, Um carrancudo, outro, tristonho. Um divertido, outro enfadonho Um é enfezado, outro é pacato. Um é briguento, outro cordato De pele clara, de pele escura. Um, fala branda, o outro, dura Olho redondo, olho puxado. Nariz pontudo ou arrebitado Cabelo crespo, cabelo liso. Dente de leite, dente de siso Um é menino, outro é menina. (Pode ser grande ou pequenina) Um é bem jovem, outro, de idade. Nada é defeito ou qualidade Tudo é humano, bem diferente. Assim, assado... todos são gente Cada um na sua e não faz mal DI – VER – SI – DA – DE É que é legal... FÁBULA DA CONVIVÊNCIA (Lectícia Dansa e Salmo Dansa) Há muitos milhões de anos um frio fenomenal Envolveu parte da Terra Numa era glacial. Alguns animais morreram, ao frio não resistiram. Flores desapareceram, aves e peixes sumiram. Foi então que uma manada De porco-espinho surgiu. Sentindo-se congelada, pra se proteger, se uniu. Uns aos outros, bem juntinhos, Procurando se aquecer, iam os porcos-espinhos Tentando sobreviver. Aos amigos esquentando, questão de vida ou morte, Sua energia trocando, iam ficando mais fortes. Mas, vida ingrata, os espinhos. Feriam e magoavam. Agora estavam quentinhos, porém seus corpos sangravam. Quanto mais perto ficavam, Maior a dor que sentiam. Aqueles que mais amavam, Aqueles que mais sofriam. Magoados e feridos, As dores não suportando, apesar de tanto frio Acabaram se afastando. Finalmente separados, não conseguiram viver. Feridos e congelados, acabaram por morrer. Os poucos que não morreram, voltaram bem devagar, Uma lição aprenderam: os limites respeitar. Mantinham pouca distância, apenas suficiente, Somente prá tornar, o próprio corpo mais quente. Com muito amor e respeito, o forte inverno venceram. Encontrando o melhor jeito, ao frio sobreviveram... CONVIVENDO COM AS DIFERENÇAS Você quer a minha foto? Não gosto muito de passear. Prefiro ficar em casa para mexer no computador, ver televisão ou ler histórias em quadrinhos. Mas com minha tia Isabela a coisa é diferente. Quando estou com ela no parque, no museu ou nas lojas, a gente se diverte muito! Na semana passada, minha tia me levou ao zoológico. Logo de cara, fez várias palhaçadas para conseguir passar com minha cadeira de rodas entre a multidão de visitantes. - Sai da frente, gente fina, que eu vou passar com esta menina! – cantava ela bem alto em frente às jaulas dos chimpanzés, imitando o barulho de uma moto presa num engarrafamento. Foi muito engraçado! Todo mundo dava passagem sorrindo. De repente, um casal de turistas ficou irritado: _ Vocês não podem entrar na fila, como todo mundo? Fiquei vermelha. Mas minha tia, que leva tudo na brincadeira, fez todo mundo rir de novo: começou a imitar o barulho de carro obrigado a frear num sinal que acaba de fechar. Uma senhora chegou pertinho de mim e passou a mão em meus cabelos como se eu fosse um cachorro gordo e ainda disse: - Coitadinha! Que coisa triste! Mostrei a língua para ela e cocei debaixo do braço como se eu fosse um macaco. A minha tia sorriu, mas a mulher não! Depois, quando eu estava jogando amendoins para os macacos, uma menina ficou me olhando, como se eu fosse o animal mais estranho do zoológico! Olhei para ela com aquele olhar que minha tia chama de “matador”. Ela saiu correndo e ficou escondida na saia da mãe. Mas não parava de virar a cabeça para me olhar. - Pergunte se a senhorita quer uma foto sua – cochichou minha tia em meu ouvido. – Não, tenho uma idéia melhor! Vou tirar uma foto de vocês duas. Ela empurrou minha cadeira de rodas para perto da menina e tirou um monte de fotos. Aqui estão dois belos exemplos espécimes de horribulus enfantus com grandes marias-chiquinhas e vestidos vermelhos para seu álbum minha querida – disse ela em voz alta fazendo cara de grande repórter no meio do trabalho. . O gambá que não sabia sorrir (Rubem Alves) Era uma vez um gambazinho feliz que vivia numa árvore da floresta. O seu nome era Cheiroso. Os outros bichos o achavam diferente e todos diziam: - Como deve ser estranho o mundo de Cheiroso, todo de cabeça para baixo! Cheiroso também achava diferente o jeito dos outros bichos e pensava: -Como deve ser diferente seu mundo, todo de cabeça para baixo! Todos sorriam, cada um ao seu modo, e todos viviam felizes porque sabiam que cada um vê o mundo como pode e gosta, e ninguém tem nada com isto. Havia na cidade, pessoas que haviam ido à escola e tirado diploma em “Como Fazer os bichos Felizes”. - Os bichos são infelizes porque são ignorantes, eles diziam. - Eles não sabem o que é bom para eles. Mas nós sabemos. Portanto, se els fizerem o que mandamos, serão felizes. E assim partiram para floresta, à procura de bichos infelizes que pudessem ser transformados em bichos felizes. Viram o cheiroso pendurado na árvore e perguntaram: - Este gambá é feliz? Como não soubesse a resposta, abriram seu livros e encontraram: “Um gambá feliz é um gambá sorridente. Um gambá sorridente tem a boca em meia-lua com as pontas viradas para cima. Um gambá não sorridente tem a boca em meia-lua com as pontas para baixo”. Compararam as figuras do livro com a boca do Cheiroso e concluíram: - Este gambá não está feliz! Abriram então um grosso livro com o título: “Receita para fazer um gambá sorrir”. E lá encontraram a recita no. 1: “Leve seu gambá ao parque de diversões”. Como não era possível trazer o parque de diversões até a floresta, trataram de levar o Cheiroso, até ele. Mas a boca do cheiroso não se alterou. Eles então concluíram: - Ele continua infeliz! Passaram à receita no. 2: “Levem ambá para assistir a um bom programa de televisão. E a boca do Cheiroso continuou do mesmo jeito. - Ele continua infeliz! Exclamaram. Receita no. 3: “Lve o gambá para passear um fim de semana na praia”. Cheiroso não se alterou. Sua boca continuou do mesmo jeito. Procuraram a receita no. 4: “eve o gambá para uma parada (desfile cívico).” Os três já haviam perdido as esperanças quando viraram a página da última receita: “eve o gambá para fazer compras de Natal!”. - Veja! Vejam! Eles gritaram. - Conseguimos! Conseguimos! Ele está sorrindo. E fizeram festas ... E foram à TV contar como haviam conseguido fazer o gambá sorrir... E escreveram livros, que todos leram, sobre “Como fazer o seu gambá...” E abriram escolas e deram diplomas... E se elegeram deputados e presidentes... E foram muitos felizes como haviam sido. GUILHERME AUGUSTO ARAÚJO FERNANDES (Mem Fox) Era uma vez um menino chamado Guilherme Augusto Araújo Fernandes ele nem era tão velho assim Sua casa era ao lado de um asilo de velhos e ele conhecia todo mundo que vivia lá. Ele gostava da Sra. Silvano que tocava piano. Ele ouvia as histórias arrepiantes que lhe contava o Sr. Cervantes. Ele brincava com o Sr. Valdemar que adorava remar. Ajudava a Sra. Mandala que andava com bengala. E admirava o Sr. Possante que tinha voz de gigante. Mas a pessoa de quem ele mais gostava era a Sra. Antônia Maria Diniz Cordeiro, porque ela também tinha quatro nomes, como ele. Ele a chamava de Dona Antônia e contava-lhe todos os seus segredos. Um dia, Guilherme Augusto escutou sua mãe e seu pai conversando sobre a Dona Antônia. - Coitada da velhinha - disse sua mãe. - Por que ela é coitada? Perguntou Guilherme Augusto. - Porque ela perdeu a memória – respondeu seu pai. - Também, não é pra menos – disse sua mãe. – Afinal, ela já tem noventa e seis anos. - O que é uma memória? – perguntou Guilherme Augusto. - Ele vivia fazendo perguntas. - É algo de que você se lembra – respondeu o pai. Mas Guilherme Augusto queria saber mais; então, ele procurou a Sra. Silvano que tocava piano. - O que é memória? – perguntou. - Algo quente, meu filho, algo quente. Ele procurou o Sr. Cervantes que lhe contava histórias arrepiantes. - O que é uma memória? – perguntou. - Algo bem antigo, meu caro, algo bem antigo. Ele procurou o Sr. Valdemar que adorava remar. - O que é uma memória? – perguntou. - Algo que o faz chorar, meu menino, algo que o faz chorar. Ele procurou a Sra. Mandala que andava com uma bengala. - O que é uma memória? – perguntou. - Algo que o faz rir, meu querido, algo que o faz rir. Ele procurou o Sr. Possante que tinha voz de gigante. - O que é memória? – perguntou. - Algo que vale ouro, meu jovem, algo que vale ouro. Então, Guilherme Augusto voltou para casa, para procurar memória para Dona Antônia, já que ela havia perdido as suas. Ele procurou uma antiga caixa de sapato cheia de conchas, guardadas há muito tempo, e colocou-as com cuidado numa cesta. Ele achou a marionete, que sempre fizera todo mundo rir, e colocou-a na cesta também. Ele lembrou-se, com tristeza, da medalha que seu avô lhe tinha dado e colocou-a delicadamente ao lado das conchas. Ele procurou uma antiga caixa de sapato cheia de conchas, guardadas há muito tempo, e colocou-as com cuidado numa cesta. Ele achou a marionete, que sempre fizera todo mundo rir, e colocou-a na cesta também. Ele lembrou-se, com tristeza, da medalha que seu avô lhe tinha dado e colocou-a delicadamente ao lado das conchas. Ele procurou uma antiga caixa de sapato cheia de conchas, guardadas há muito tempo, e colocou-as com cuidado numa cesta. Ele achou a marionete, que sempre fizera todo mundo rir, e colocou-a na cesta também. Ele lembrou-se, com tristeza, da medalha que seu avô lhe tinha dado e colocou-. Aí, Guilherme Augusto foi visitar Dona Antônia e deu aela, uma por uma, cada coisa de sua cesta. “Que criança adorável que me traz essas coisas maravilhosas”, pensou Dona Antônia. E então ela começou a se lembrar. Ela segurou o ovo ainda quente e contou a Guilherme Augusto sobre um ovinho azul, todo pintado, que havia encontrado uma vez, dentro de um ninho, no jardim da casa de sua tia. Ela colocou conchas no ouvido e lembrou da vez que tinha ido à praia de bonde, há muito tempo, e como sentia calor com suas botas de amarrar. Ela pegou a medalha e lembrou, com tristeza, de seu irmão mais velho, que havia ido para a guerra e que nunca mais voltou. Ela sorriu para a marionete e lembrou da vez em que mostrara uma para sua irmãzinha, que rira às gargalhadas, com a boca cheia de mingau. Ela jogou a bola de futebol para Guilherme Augusto e lembrou do dia em que se conheceram e de todos as segredos que haviam compartilhado. E os dois sorriram e sorriram, pois toda a memória perdida de Dona Antônia tinha sido encontrada, por um menino que nem era tão velho assim. GÊNERO: MEMÓRIAS - A brisa do outono Creio que fosse entrada de outono, pois se fecho os olhos consigo ouvir o assovio do vento e lembrar da imagem das folhas amareladas voando no pátio do colégio. Sinto ainda o cheiro da liberdade que vinha com a brisa misturada ao fino pó da estação. Início da década de oitenta, eu, menina-adolescente, corpo magro, vazio; cabeça cheia de idéias, invadida por sonhos, ilusões. Não era uma adolescente bonita, longe disso. Cabelos crespos, mal cuidados, porém, pensamentos lisos. Naquele tempo meus pais já haviam se separado, minha mãe partira em busca de uma razão real para viver. E nós, talvez fugindo do destino, havíamos mudado para uma cidadezinha vizinha de nossa terra natal. Meu pai, profissão de pedreiro, homem tradicional, mãos rústicas, gestos rudes, coração puro. Sujeito que nunca conseguiu entender ao certo os motivos que o levaram a ser abandonado. Foi pego de surpresa pelas trapaças da vida; recém separado, responsável por quatro filhas crianças-adolescentes. Fui, assim, carregando na bagagem de minha existência esta história, matriculada numa escola que desconhecia totalmente, num município estranho, rodeada por pessoas que não tinham nenhum significado efetivo para mim. Desta maneira, logo percebi que fazia parte de um grupo minoritário e excluído, ou seja, era a mais nova aluna que tinha vindo de “família de pais separados”, rótulo este que na época era qualquer coisa como um indicador de pessoa-problema. Professores e alguns colegas de sala, movidos pela exacerbada curiosidade humana (há os que preferem denominar como uma espécie de crueldade) investigavam minha vida, faziam-me perguntas embaraçosas e tentavam penetrar, como uma faca afiada, em minha intimidade e lembranças para arrancar detalhes da separação de meus pais. Eu, que naquela época não tive acesso aos “autos do processo”, esquivavame do assunto, assim como o diabo corre da cruz. Criança não tinha voz nem vez, pelo menos era o que sentia, lá no íntimo, com a filha caçula. A marca que me imputaram na época, não foi de toda ruim, já que com a percepção aguçada para as cobranças sociais, aprendi bem cedo que se eu tinha intenção de sobreviver naquela selva educacional, teria que encontrar um meio de fazer a diferença diante das pessoas que apresentavam muito pouca tolerância perante ao não-convencional. Surgiu, então, uma proposta no colégio para que todos os alunos realizassem uma produção textual. Uma espécie de concurso de redação, onde o melhor texto receberia um prêmio material simbólico. Em contrapartida, o vencedor seria, também, detentor do reconhecimento acadêmico. E foi com isso que eu passei a sonhar daquele dia em diante: “o passaporte para mostrar que em pelo menos um quesito eu havia dado certo: o da não-ignorância”. E, acreditando na premissa de que a vida imita a arte, o tema proposto no tal concurso foi “Minha Existência”. O assunto soou para mim como um desafio: eu escreveria sobre meu passado de maneira verídica, real, dura como realmente era, ou brincaria com as palavras e teceria outra trama: mais bela, mais delicada, tal qual o cetim suave e brilhante que nos ofusca os olhos e acaricia a alma? Pensei somente por alguns instantes, como toda criança-adolescente. Logo decidi. Escolhi a primeira opção: a da verdade nua e crua; optei pela vida como ela tinha sido pra mim. Foi assim que abri a minha “Caixa de Pandora” e descrevi, pela primeira vez, sem ressalvas, a história de meus afetos, desafetos e minhas grandes tristezas de menina pequena. E o resultado de tudo isso? Penso que foi de um saldo positivo. Ganhei o prêmio de melhor texto do colégio, mesmo tendo uma infância muito pobre, pertencendo a um modelo de família irregular para aquele tempo, aquele povo e aquele lugar... Hoje, passadas algumas décadas, recordo quase nada do que coloquei naquele papel e me fez ser vencedora. Mas o que me lembro mesmo é da brisa do outono que tocava o meu rosto e das folhas soltas e amareladas que dançavam um lindo balé pelo ar. Hérica Elaine Barbosa Ruiz GÊNERO: CRÔNICA - Como os girassóis Se me fosse permitida mais uma vez habitar neste planeta, após minha partida definitiva, penso que gostaria de ressurgir como um girassol. Sim, um simples girassol. Tentaria não mais vestir a pele gasta e comum de homem ou de mulher... gostaria de ter a experiência única de ser esta planta que irradia soberania, brevidade, força, perfeição, e quer sempre ter o sol ao seu alcance. Diz a lenda que as pétalas reluzentes do girassol colheram toda a cor nos raios do sol; suas sementes têm a força bruta e produtiva da terra virgem e suas folhas verdes e generosas acenam pelo mundo ao toque do vento. Não sei, mas é paixão antiga... talvez pela imponência, talvez pela beleza simples, ou pela solidão, afinal cada flor é única; por isso já entreguei, quando mais jovem, pousando para fotos, meu corpo a eles, os girassóis. Recobri meus seios e a região do baixo-ventre com a flor que parafraseia o giro do sol. Seria destino ou obstinação? Quem sabe? Necessitei de apenas três. Um para cada parte que me define como mulher... Houve, então, uma fusão da natureza: meus cabelos, encaracolados de mulher, eram a metáfora das raízes que prendiam a planta ao solo; meus braços funcionavam como galhos longos e finos; as mãos como folhagens; meus pelos, marrons... a cor de suas sementes. Minha vida, seu breve vigor numa antagonia entre a força e a delicadeza do ser- mulher. Pousei assim para a fotografia... e desta forma o momento se eternizou. Mulher vestida de sol. Mulher que gira o mundo em pensamentos... mulher que faz o mundo girar. Mulher que necessita de sol; mulher-girassol. Sei que o tempo dado à planta na terra é efêmero, mesmo assim me sentiria realizada. Ando procurando viver intensamente, mesmo que pouco. Arriscaria-me a ser girassol: uma espécie de vida que já nasce bela, com cores quentes, vibrantes, formas definidas e permanece assim, por toda sua breve estada na terra. Procura luminosidade em toda sua existência e, quando não mais a encontra, quando não há sol, move-se lentamente para ficar frente a frente a outro girassol. Movo-me, insistentemente em busca de luz, procuro nas pessoas a presença, preciso ter sempre uma face para observar; sou avessa à escuridão, principalmente a das almas. Pensemos nós, pobres mulheres humanas, triste o nosso destino: nem sempre nascemos belas, nem sempre temos a luminosidade do sol. Há algumas que permanecem por toda a vida na escuridão... Quase nunca temos discernimento para nos curvarmos diante de forças superiores; desviamos o olhar; tememos as relações face-a face; queremos vida longa, mesmo na ausência de vida real. Pobres tolas, quisera um dia adquirirmos a sabedoria e a beleza que se encontra somente na magnitude de um girassol. “O girassol vive para o sol. O girassol vive com o sol. O girassol depende do sol. O girassol gira e roda com o sol. Quando o sol se põe, o girassol olha para o chão. O mesmo chão que lhe contava histórias sobre outros girassóis, sobre outras pétalas que foram caindo e que não voltam ao lugar e ao tempo a que pertenceram. O mesmo chão que hoje está mudo, calado, sem vida.” O Pequeno Príncipe – Capítulo XXI E foi então que apareceu a raposa: - Bom dia, disse a raposa. - Bom dia, respondeu polidamente o principezinho, que se voltou, mas não viu nada. - Eu estou aqui, disse a voz, debaixo da macieira… - Quem és tu? perguntou o principezinho. Tu és bem bonita… - Sou uma raposa, disse a raposa. - Vem brincar comigo, propôs o principezinho. Estou tão triste… - Eu não posso brincar contigo, disse a raposa. não me cativaram ainda. - Ah! desculpa, disse o principezinho. Após uma reflexão, acrescentou: - Que quer dizer “cativar”? - Tu não és daqui, disse a raposa. Que procuras? - Procuro os homens, disse o principezinho. Que quer dizer “cativar”? - Os homens, disse a raposa, têm fuzis e caçam. É bem incômodo! Criam galinhas também. É a única coisa interessante que fazem. Tu procuras galinhas? - Não, disse o principezinho. Eu procuro amigos. Que quer dizer “cativar”? - É uma coisa muito esquecida, disse a raposa. Significa “criar laços…” - Criar laços? - Exatamente, disse a raposa. Tu não és para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens também necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo… - Começo a compreender, disse o principezinho. Existe uma flor… eu creio que ela me cativou… - É possível, disse a raposa. Vê-se tanta coisa na Terra… - Oh! não foi na Terra, disse o principezinho. A raposa pareceu intrigada: - Num outro planeta? - Sim. - Há caçadores nesse planeta? - Não. - Que bom! E galinhas? - Também não. - Nada é perfeito, suspirou a raposa. Mas a raposa voltou à sua idéia. - Minha vida é monótona. Eu caço as galinhas e os homens me caçam. Todas as galinhas se parecem e todos os homens se parecem também. E por isso eu me aborreço um pouco. Mas se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol. Conhecerei um barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros passos me fazem entrar debaixo da terra. O teu me chamará para fora da toca, como se fosse música. E depois, olha! Vês, lá longe, os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelos cor de ouro. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado. O trigo, que é dourado, fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo… A raposa calou-se e considerou por muito tempo o príncipe: - Por favor… cativa-me! disse ela. - Bem quisera, disse o principezinho, mas eu não tenho muito tempo. Tenho amigos a descobrir e muitas coisas a conhecer. - A gente só conhece bem as coisas que cativou, disse a raposa. Os homens não têm mais tempo de conhecer alguma coisa. Compram tudo prontinho nas lojas. Mas como não existem lojas de amigos, os homens não têm mais amigos. Se tu queres um amigo, cativa-me! - Que é preciso fazer? perguntou o principezinho. - É preciso ser paciente, respondeu a raposa. Tu te sentarás primeiro um pouco longe de mim, assim, na relva. Eu te olharei com o canto do olho e tu não dirás nada. A linguagem é uma fonte de mal-entendidos. Mas, cada dia, te sentarás mais perto… No dia seguinte o principezinho voltou. - Teria sido melhor voltares à mesma hora, disse a raposa. Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz. Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade! Mas se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de preparar o coração… É preciso ritos. - Que é um rito? perguntou o principezinho. - É uma coisa muito esquecida também, disse a raposa. É o que faz com que um dia seja diferente dos outros dias; uma hora, das outras horas. Os meus caçadores, por exemplo, possuem um rito. Dançam na quinta-feira com as moças da aldeia. A quinta-feira então é o dia maravilhoso! Vou passear até a vinha. Se os caçadores dançassem qualquer dia, os dias seriam todos iguais, e eu não teria férias! Assim o principezinho cativou a raposa. Mas, quando chegou a hora da partida, a raposa disse: - Ah! Eu vou chorar. - A culpa é tua, disse o principezinho, eu não queria te fazer mal; mas tu quiseste que eu te cativasse… - Quis, disse a raposa. - Mas tu vais chorar! disse o principezinho. - Vou, disse a raposa. - Então, não sais lucrando nada! - Eu lucro, disse a raposa, por causa da cor do trigo. Depois ela acrescentou: - Vai rever as rosas. Tu compreenderás que a tua é a única no mundo. Tu voltarás para me dizer adeus, e eu te farei presente de um segredo. Foi o principezinho rever as rosas: - Vós não sois absolutamente iguais à minha rosa, vós não sois nada ainda. Ninguém ainda vos cativou, nem cativastes a ninguém. Sois como era a minha raposa. Era uma raposa igual a cem mil outras. Mas eu fiz dela um amigo. Ela á agora única no mundo. E as rosas estavam desapontadas. - Sois belas, mas vazias, disse ele ainda. Não se pode morrer por vós. Minha rosa, sem dúvida um transeunte qualquer pensaria que se parece convosco. Ela sozinha é, porém, mais importante que vós todas, pois foi a ela que eu reguei. Foi a ela que pus sob a redoma. Foi a ela que abriguei com o pára-vento. Foi dela que eu matei as larvas (exceto duas ou três por causa das borboletas). Foi a ela que eu escutei queixar-se ou gabar-se, ou mesmo calar-se algumas vezes. É a minha rosa. E voltou, então, à raposa: - Adeus, disse ele… - Adeus, disse a raposa. Eis o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos. - O essencial é invisível para os olhos, repetiu o principezinho, a fim de se lembrar. - Foi o tempo que perdeste com tua rosa que fez tua rosa tão importante. - Foi o tempo que eu perdi com a minha rosa… repetiu o principezinho, a fim de se lembrar. - Os homens esqueceram essa verdade, disse a raposa. Mas tu não a deves esquecer. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas. Tu és responsável pela rosa… - Eu sou responsável pela minha rosa… repetiu o principezinho, a fim de se lembrar.