Interrupção do atendimento pediátrico via plano de saúde Introdução. Os meios de comunicação social estão noticiando que os pediatras deixarão de atender crianças por meio de convênios com planos de saúde. Os hospitais privados têm asseverado que mesmo os casos de emergência infantil não serão atendidos via plano de saúde, mas apenas de forma particular. Diante do preocupante e iminente evento social, urge analisar a responsabilidade dos hospitais em relação ao não-atendimento de emergência e de urgência. Antes, contudo, vale esclarecer que a portaria 356, de 20 de fevereiro de 2002, definiu no GLOSSÁRIO DE TERMOS COMUNS NOS SERVIÇOS DE SAÚDE DO MERCOSUL, que: Procedimento de emergência - conjunto de ações empregadas na recuperação de pacientes cujos agravos da saúde necessitam de assistência imediata por apresentar risco de vida. Procedimento de urgência - conjunto de ações empregadas na recuperação de pacientes cujos agravos da saúde necessitam de assistência imediata. Os serviços privados de assistência à saúde caracterizam-se pela atuação, por iniciativa própria, de profissionais liberais, legalmente habilitados, e de pessoas jurídicas de direito privado na promoção, proteção e recuperação da saúde, segundo clara disposição contida no artigo 20 da Lei 8080/90. Na prestação de serviços privados de assistência à saúde, diz o artigo 22 da Lei 8080/90, serão observados os princípios éticos e as normas expedidas pelo órgão de direção do Sistema Único de Saúde (SUS) quanto às condições para seu funcionamento. O artigo 7º da Lei 8080/90 remete, ao exemplificar alguns princípios, ao artigo 198 da Constituição Federal, mas não traz nada explicativo sobre o norte a ser seguido pelas empresas privadas. Obviamente a omissão normativa não alforria as empresas privadas de assistência à saúde de observarem princípios éticos e nem as isenta de seguir o regramento jurídico brasileiro. O primeiro princípio ético a ser seguido foi inscrito na Constituição logo em seu primeiro artigo, quando no inciso III deitou ser um dos fundamentos da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana. O princípio vem reforçado na própria Constituição Federal, quando, ao prestigiar a propriedade e a iniciativa privada, endereçou aos empreendedores e empresários a obrigação de observar os seguintes princípios: “função social da propriedade” e “defesa do consumidor”. Pois bem, os Hospitais, segundo as notícias veiculadas na mídia, manterão pediatras em esquema de plantão, mas cobrarão em espécie pelas consultas. Imaginemos, então, a situação de uma criança que seja levada ao hospital privado e não consiga atendimento por não ter condições de efetuar o pagamento da consulta. Imaginemos que essa criança venha a falecer ou sofrer sérias lesões pelo não-atendimento, apesar do hospital dispor de pediatras e de médicos de outras especialidades. A omissão dos médicos e dos hospitais em prestar o atendimento de urgência ou de emergência certamente guardará relevância jurídica. A primeira conseqüência a ser ressaltada é de índole criminal. Reza o artigo 135 do Código Penal que configura omissão de socorro deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, 1) à criança abandonada ou extraviada, ou2) à pessoa invalida ou ferida, 3) )ao desamparo ou - à pessoa - em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública. Note-se que a definição de urgência e emergência - vide início do texto - remete à idéia de pessoa em estado grave e de iminente perigo. O Poder Judiciário já decidiu que o profissional da saúde que deixa de atender paciente em casos de urgência e emergência, comete o crime de omissão de socorro. Confira-se precedentes jurisprudenciais: OMISSÃO DE SOCORRO. ENFERMEIRA-CHEFE DE HOSPITAL QUE SE RECUSA A PRESTAR ASSISTÊNCIA À VÍTIMA, QUE VEM A FALECER. CARACTERIZAÇÃO. Caracteriza o crime previsto no art. 135, parágrafo único, do CP, a conduta da agente que, exercendo a função de enfermeira-chefe de hospital, sob a alegação de inexistência de maca para a retirada do doente da ambulância, recusa-se a prestar assistência à vítima, portadora de grave deficiência cardíaca, que vem a falecer. (TACRIMSP; APL 1234401/1; Décima Segunda Câmara; Rel. Juiz Amador Pedroso; Julg. 05/02/2001) OMISSÃO DE SOCORRO. MÉDICO QUE RECUSA ASSISTÊNCIA A MENOR VÍTIMA DE PEQUENO ACIDENTE, A PRETEXTO DE SER A MÃE DAQUELA, QUE A ACOMPANHAVA, DEVEDORA DE HONORÁRIOS -MOTIVO EGOÍSTICO. CRIME CARACTERIZADO -CONDENAÇÃO MANTIDA. PENA REDUZIDA ANTE O RECONHECIMENTO DA ATENUANTE DA CONFISSÃO ESPONTÂNEA. Caracteriza o crime do artigo 135, do CP, a conduta do médico que recusa assistência a menor vítima de pequeno acidente, a pretexto de falta de pagamento de cirurgia realizada anteriormente na progenitora da vítima; não importa que o ferimento seja leve, desde que, embora passageiramente, reduza à vítima à situação de não poder valer-se a si mesma, ensejando-se, assim, a agravação do perigo. (TJSC; ACr 30.415; Pinhalzinho; Segunda Câmara Criminal; Rel. Des. Nilton Macedo Machado; Julg. 25/02/1994) Note-se, ademais, que o crime de omissão de socorro, consistente em negar atendimento à criança que necessite de procedimento de urgência ou emergência é cometido em circunstância que agrava a pena que vier a ser cominada. Com efeito, dispõe o artigo 61 do Código Penal que são circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime, ter o agente (no caso o médico) cometido o crime: por motivo fútil ou torpe; com violação de dever inerente a cargo, ofício, ministério ou profissão; contra criança; em ocasião de desgraça particular do ofendido (paciente). Ainda cabível, dependendo das circunstâncias concretas, vislumbrar a hipótese de crime de homicídio comissivo omissivo com dolo eventual. Denominam-se delitos omissivos impróprios (impuros ou comissivos por omissão) aqueles em que o sujeito, abstendo-se de realizar a esperada conduta impeditiva do resultado jurídico, deixa que ele ocorra. É bem a conduta do médico que deixa de atender e impedir o resultado morte, assumindo, inequivocamente, o risco de que a morte sobrevenha ao doente. Responsabilização civil. Além da responsabilidade penal, deixar de atender uma criança em estado de urgência e emergência dará ensejo ao surgimento dos pressupostos de responsabilização civil do hospital, do plano de saúde e do médico que se recusar a atender aos casos graves. A jurisprudência, lastreada em forte doutrina jurídica, já condenou hospitais a indenizar consumidores que não receberam atendimento médico, quando o hospital condicionava o início dos procedimentos terapêuticos ao pagamento ou emissão de caução. O julgado abaixo transcrito é bastante eloqüente: APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. HOSPITAL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. OMISSÃO. NEGATIVA DE ATENDIMENTO POR FALTA DE PAGAMENTO. MORTE. PERDA DE UMA CHANCE. DANOS MORAIS CARACTERIZADOS. 1. Assiste razão à parte autora ao imputar à entidade hospitalar demandada parte da responsabilidade pelos danos ocasionados em razão da morte de seu pai, tendo em vista que é fato incontroverso da lide, na forma do art. 334, inc. III, do CPC, que o óbito da vítima, bem como a negativa do nosocômio em atendê-la. 2. Preambularmente, cumpre ressaltar que a responsabilidade civil do hospital é de ordem objetiva, independentemente de culpa, consoante estabelece o art. 14, caput, do CDC, o que faz presumir a culpa deste e prescindir da produção de provas a esse respeito. 3. Ademais, é preciso consignar que os serviços prestados por estabelecimentos hospitalares estão submetidos às disposições do CDC. Inteligência do art. 3º, § 2º, da Lei nº. 8.078/90. 4. No entanto, o nosocômio demandado exonera-se do dever de indenizar caso comprove a ausência de nexo causal, ou seja, provar a culpa exclusiva da vítima, caso fortuito, força maior, ou fato exclusivo de terceiro. 5. No caso em exame, restou devidamente configurada a responsabilidade do apelante, decorrente da conduta omissiva adotada por seus prepostos. De acordo com a prova oral produzida durante a instrução, a funcionária que conversou com o filho da vítima no dia do infortúnio condicionou o atendimento médico ao pagamento da quantia de R$ 50,00. 6. No que tange à alegação de que o nexo de causalidade estaria excluído em razão de que a vítima faleceria de qualquer modo. Embora seja forçoso reconhecer que a gravidade de seu estado de saúde, como afiançado pelo Perito Médico Legista. Não há como se ter certeza de que se o paciente tivesse recebido pronto e adequado atendimento médico teria falecido da mesma forma. Aplicável aos fatos narrados na exordial a teoria da perda de uma chance. Indenização por danos morais 7. Reconhecida a responsabilidade da entidade hospitalar pelo evento danoso, exsurge o dever de ressarcir os danos daí decorrentes, como o prejuízo imaterial ocasionado, decorrente da dor e sofrimento da parte autora, em razão da perda de seu pai. 8. No que tange à prova do dano moral, por se tratar de lesão imaterial, desnecessária a demonstração do prejuízo, na medida em que possui natureza compensatória, minimizando de forma indireta as conseqüências da conduta do demandado, decorrendo aquele do próprio fato. Conduta ilícita do demandado que faz presumir os prejuízos alegados pela parte autora, é o denominado dano moral puro. 9. O valor da indenização a título de dano moral deve levar em conta questões fáticas, como as condições econômicas do ofendido e do ofensor, a extensão do prejuízo, além quantificação da culpa daquele, a fim de que não importe em ganho desmesurado. 10. A indenização mantida em R$ 11.400,00 para cada um dos autores, porquanto adequada aos parâmetros precitados, assegurando o caráter repressivo-pedagógico próprio da indenização por danos morais, sem importar em enriquecimento sem causa, ante as peculiaridades do caso concreto. Negado provimento ao apelo. (TJRS; AC 70025575002; Palmeira das Missões; Quinta Câmara Cível; Rel. Des. Jorge Luiz Lopes do Canto; Julg. 12/11/2008; DOERS 19/11/2008; Pág. 34) A teoria da perda de uma chance, oriunda do direito Francês, é amplamente aceita no Brasil. O Hospital e o médico não responderão pelo resultado – que será levado em conta apenas para a fixação da indenização – mas pelo fato de que com a omissão do hospital, do médico e do plano de saúde a criança perdeu a chance de ser atendida de forma ágil. Responsabilização administrativa perante o Conselho Federal de Medicina. Os médicos e as organizações de prestação de serviços médicos se sujeitam ao Código de Ética Médica, criado pela Resolução do Conselho Federal de Medicina nº1246/88, publicado no Diário Oficial da União de 26.01.88. Dentre as normas inscritas no Código de Ética Médica, são consideradas faltas éticas as seguintes condutas: Art. 35 - Deixar de atender em setores de urgência e emergência, quando for de sua obrigação fazê-lo, colocando em risco a vida de pacientes, mesmo respaldado por decisão majoritária da categoria. Art. 58 - Deixar de atender paciente que procure seus cuidados profissionais em caso de urgência, quando não haja outro médico ou serviço médico em condições de fazê-lo. É fato que o artigo 86 do Código de Ética Médica diz ser vedado ao médico “receber remuneração pela prestação de serviços profissionais a preços vis ou extorsivos, inclusive de convênios”, mas tal regra não o dispensa de observar o dever de, em primeiro lugar, zelar pelo direito à vida e à saúde do paciente, máxime quando em estado grave e necessitando de procedimentos de urgência e emergência. Conclusão. Ainda que seja legítimo o movimento dos médicos pediatras no sentido de buscar a valorização financeira do mister por eles desenvolvido, os atendimentos de urgência e emergência não podem ser interrompidos. O não-atendimento dos casos de urgência e emergência, independentemente da questão financeira subjacente, configura ilícito pela ótica penal, civil e administrativa. Para que seja possível buscar a responsabilização dos responsáveis pelo nãoatendimento, os consumidores que se sentirem prejudicados devem lavrar Boletim de Ocorrência policial, guardar todos os documentos que forem fornecidos pelos hospitais, anotar o nome e matrícula dos médicos e servidores com quem falar e tentar obter nome e endereço de eventuais testemunhas. Não podemos e não devemos assistir passivamente a violação dos direitos das pessoas enfermas, especialmente quando estas forem infantes, eis que segundo o artigo 227 da Constituição Federal, é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança (...), com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-las a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Brasília, 28 de agosto de 2009. André de Moura Soares Defensor Público. [email protected]