IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA - ANPUH-BA
HISTÓRIA: SUJEITOS, SABERES E PRÁTICAS.
29 de Julho a 1° de Agosto de 2008.
Vitória da Conquista - BA.
UMA DEFESA DA PRESENÇA DE CRIANÇAS DE CÔR NA
ESCOLARIZAÇÃO BAIANA – OS ESCRITOS DO MONSENHOR
ROMUALDO MARIA DE SEIXAS BARROSO -1881/1885
Ione Celeste de Sousa
Doutora em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
E-mail: [email protected]
Palavras-chave: Escolarização. Ingênuos. Crianças negras. Bahia provincial.
A Instrução Pública foi desde a década de 1850 eleita como o remédio à considerada
incapacidade de Progresso da nação brasileira – o povo analfabeto, longe das Luzes d a
Instrução e da morigeração dos costumes. Tanto que, em 09 de janeiro de 1881, Lei Imperial
passou a exigir que o eleitor fosse alfabetizado, tanto para ser votado como para ser votante.
Os discursos da época em todo o país, inclusive na Província da Bahi a, representavam os
males que nos afligiam como derivados de duas práticas sociais – a escravidão de africanos e
seus descendentes; a falta de educação Moral e de Instrução da população.
Foi esse conte xto que os ingênuos vivenciaram no período de 1879 a 18 89, vigência
oficial da Lei 2040 que estabeleceu entre outros dispositivos reguladores da relação privada
Senhor/Escravo (PENA, 2001) que caberia ao/a Senhor/a da mulher escrava manter o filho
desta até os oito anos de idade. No seu parágrafo primeiro tamb ém instituiu que “§ 1º Os ditos
filhos menores ficarão em poder e sob a autoridade dos senhores de suas mãis, os quaes terão
obrigação de crial -os e tratal-os até a idade de oito annos completos ” (BRASIL, 1871).
A partir desta idade a criança poderia ser entregue ao Governo e abrigada em
instituições especialmente criadas para este fim. Caso contrário, o senhor de usa mãe poderia
dispor da mão de obra do ingênuo/a até os vinte e um anos, sob o dispositivo da tutela,
podendo usufruir dos seus serv iços para si ou para outrem a tí tulo de ressarcimento pelo
dispêndio de criaçã o do mesmo, ou no texto da lei “Chegando o filho da escrava a esta idade,
o senhor da mãi terá a opção, ou de receber do Estado a indenização de 600$000, ou de
utilisar-se dos serviços do m enor até a idade de 21 annos completos ” (BRASIL, 1871).
Segundo Venancio e Lima (1988) em estudo sobre as províncias do Rio de Janeiro e
da Bahia, o impacto desta lei nos prim eiros anos, entre 1872 e 1881, foi aumentar o número
de filhos de escravas entreg ues às instituições asilares mais tradicionais, como a Santa Casa
de Misericórdia nas duas províncias, assim como também aumentou o número de crianças de
côr abandonadas nas ruas. Sua análise dos livros de entrada e de matrícula das referidas
instituições evidenciam que, após 1870, menos de 10% das crianças assistidas eram brancas.
2
As instituições tradicionais passaram a ser abrigo para as crianças de côr. A Lei do Ventre
Livre transformou os filhos de escravas em potenciais menores abandonados.
Aqui na Bahia, logo em 1872 , uma senhora de escrava pretendeu entregar a criança
ingênua recém nascida ao Governo, que negou o recebimento, alertando -a para suas
responsabilidades de proprietária.
Devolvendo o requerimento , em que Maria Filippa de S. Anna pretende
ceder ao Governo uma cria, filha de sua escrava creoula Germana, para que
se lhe dê o destino alludido no Artigo 2.º da Lei 2040 de 28 de Setembro de
1871, fazendo a Supplicante ao mesmo tempo renuncia dos direitos que lhe
garante, a dita da Supplicante é inadmissíve, uma vez que não existem ainda
as Associações, a que se refere o mencionado Artigo 2.o., cabendo por tanto
a Supplicante a obrigação impreterivel de observar pontualmente o disposto
no Artigo 1.o.§1.o. periodo 1.o. ate que , creadas as refer idas Associaçoes,
possa a Supplicante lançar mao do expediente que o mesmo Artigo 2.o.
faculta aos Senhores, que nao preferem criar e tratar os filhos livres de suas
escravas mediante as vantagens de que trata o citado Artigo 1.o.,§ 1.o., no
periodo 2.o. Deos Guarde V.Ex.a. Bahia, 1 º de Março de 1872.
Com o passar do tempo , através de uma nova regulamentação que retirou a dubiedade
sobre os termos “crial-os” e “tratal-os” explicitando que estes não significavam educá-los,
instruí-los de forma escolariza da, esta prática de abandono amainou e o número de ingênuos
entregues pelos senhores de suas mães não chegou sequer a 1% do número total dos mesmos
(Relatórios do Ministério da Agricultura, Negócios e Obras Públicas). A considerar a
orientação emanada do próprio ministro, João Luis Cansanção de Sinimbu, em circular
reservada aos presidentes de província, inclusive da Bahia, em 1878, para que atuassem em
dissuadir os senhores de entregar os ingênuos ao Governo pela falta de criação das referidas
instituições de asilo (SCHUELER, 1997).
Assim, no geral, os ingênuos vivenciaram poucos processos de escolarização. Porém,
alguns chegaram às salas de aula pública e, apesar da ínfima quantidade, apontam a esta
experiência, assim como permitem apreender estes sujeitos como motivo de preocupação para
legisladores, dirigentes da Instrução, professores, pais de outros alunos, assim como para o
próprio Presidente da Província, Antônio de Araújo Bulcão. Outrossim, permite também
acompanhar debates e representações sobre si , assim como acompanhar estratégias de uso da
Instrução Pública.
Em 29 de maio de 1881 este presidente respondeu oficialmente ao então
recém
empossado Diretor Geral da Instrução Pública, o Cônego Romualdo Maria de Seixas Barroso,
que era garantido aos ingê nuos a presenças nas aulas públicas da província da Bahi a, dando
3
fim a uma polê mica que é apreensível em ofícios enviados ao presidente e o mesmo diretor,
com pergunta de teor geral – era permitido que ingênuos freqüentassem as aulas públicas
primárias ou elementares? Estas aulas eram de responsabilidade do Governo Provincial e
foram estabelecidas em 1834, devendo existir pelo menos uma em cada vila , arraial, freguesia
ou povoado destinada à população entre sete e treze anos de idade. Eram regidas por um
professor ou professora, em grupos multiseriais (SOUSA, 2006) . Gratuitas, porém no sentido
da época, pois os pais ou responsáveis pagavam todos os emolumentos precisos. Nelas, era
proibida a freqüência de escravos, existindo , porém, um considerável número de alunos de
côr, principalmente na categoria étnico -social pardo.
Considero que não foi por acaso esta definição sobre a aceitação das crianças
ingênuas, que se atrasava desde 1878, foi dada neste ano, o primeiro dos quatro da atuação de
D. Romualdo Maria de Seixas Barroso enquanto Diretor Geral de Instrução Pública (DIGP),
cargo criado em 1849 com a atribuição de sistematizar a instrução na província. No artigo 1º,
parágrafo quatro estava estabelecido que deveria :
Enviar todos os annos à Assembléa Legisl ativa Provincial por intermedio do
Governo, um relatorio circumstanciado de todos os Estabelecimentos de
Instrucção e Aulas da Provincia, acompanhando -o de observações tendentes
ao melhoramento da mesma Instrucção (BAHIA, 1849).
Esta atribuição foi cump rida a regra por Romualdo Maria Barroso quando exerceu o
cargo, nos legando três conscienciosos relatórios, em 1882, 1883 e 1884.
Um dos intelectuais do clero baiano do final do oitocentos, nascido em 16 de fevereiro
de 1846, na freguesia da Sé, pertenceu a uma família de ilustres prelados. D Romualdo Maria
era sobrinho e homônimo do tio, o Marquês de Santa Cruz. Foi vigário Prebendado na Sé
Metropolitana, Doutor em Cânones , pela Universidade de La Sapienza, Roma, aos vinte e
quatro anos, em 1870. Um ano d epois estava em Salvador, onde prestou concurso para ser
Vigário na recém criada Freguesia dos Mares, sítio do mesmo nome recém desmembrado da
Freguesia de Nossa Senhora da Penha de Itapagipe, no qual logrou aprovação.
Neste posto tomou a si a responsabili dade de exercer, além de outras funções
paroquiais, o de mestre de primeiras letras da aula Noturna, também recém institucionalizada
em 1871, e que funcionou na própria casa paroquial , prática ainda aceita na época unir casa de
moradia do mestre com a casa de exercício do magistério (FARIA FILHO, 2000). Na Bahia, o
primeiro prédio exclusivamente construído para o fim de ser uma escola foi o das Escolas
Reunidas da Freguesia de São Pedro, ainda hoje existente na atual praça da Piedade, em 1881.
4
A partir desta época, seu nome esteve ligado à Instrução P ública, até sua morte em 27 de
setembro de 1886, aos quarenta anos.
Abolicionista militante, D . Romualdo Maria escrevia no jornal O Abolicionista,
editado por Augusto Guimarães. Seus textos versam sobre a defe sa da abolição, com uma
especificidade – a defesa da escolarização, da Instrução, como Redenção dos ex -escravos.
Esta deveria ser uma atribuição do Governo com o reparação aos que sofreram a experiência
da escravidão, que considerava odiosa, por impedir que o escravo constituísse família e
portanto enquanto homem pudesse ser um cidadão. Assim, citando D Lacordaire, em suas
conferências na catedral de Notre Dame de Paris, afirmou:
O sentimento de paternidade desce ao nosso coração com as primeiras
sombras da velhice e toma posse do vácuo que nelle deixaram as affeiçoes
precedentes. [...] O corpo curva-se ao peso dos annos , o espírito também
pode curvar-se, mas alma com que amamos, essa não se curva. A
paternidade é a coroa da vida (O ABOLICIONISTA , 1872, p. 3).
Neste exemplar, de 1º de março de 1872 , o jornal publicou um longo texto seu,
originalmente um sermão aos seus paroquianos dos Mares em 1 º de novembro do ano
anterior, portanto escrito e pronunciado ainda no calor da hora do evento que o preocupava –
a Lei do Ventre Livre, recém promulgada em 28 de setembro de 1871. O edital do jornal tinha
inicio explicitando o porquê de ter aplaudido a Lei 2040 quando fora até então adversário de
seu encaminhamento.
Entretanto é bem simples a explicação desse procedi mento, em apparencia
contradctorio.
Combatíamos a proposta, porque queríamos abolida a escravidão, e ella a
conservavva; applaudimos a lei, porque ella, conservando embora a
escravidão, desmoralisa -a e condemna-a á uma queda infallivel e próxima
(O ABOLICIONISTA, 1872, p. 1).
Referente ao sermão, este começa pela condenação radical da escravidão, o que tem
continuidade em todo o texto pelo artifício de mesclar opiniões pessoais com argumentos de
doutores e padres da Igreja Católica Romana ao afirmar que “D’esde S. Paulo, escrevendo aos
habitantes de Corintho, até o Antonio Vieira, o apostolo da liberdade Americana, nunca
variou a doutrina da Egreja ”.
Para entender a atitude de D . Romualdo é preciso problematizar, como nos propõe
Certeau (2002) o sujeito que enuncia tais proposições, o que tentamos ao apresentá -lo em
parágrafo acima, assim como o contexto dessa enunciação , no referente as propostas e
5
experiências de escolarização, aqui entendida como a expansão da instrução e da educação
formal ás diversas ca madas da sociedade, mantida ou implementada pelos governos
centralizados, entre os séculos XVI/XX, no mundo ocidental
(HAMILTON,
2001),
especialmente as parcelas denominadas emicamente pobres, povo, populacho.
A educação dos pobres via a escolarização, inc luindo os de côr, no último terço do
século XIX esteve diretamente relacionada à formação de um trabalhador e de um ideal de
cidadão, o trabalhador morigerado, tanto no âmbito da instrução quanto no âmbito da
educação moral. O intuito ao unir Instruir e Ed ucar pobres e não–brancos era formar futuros
cidadãos, aptos a colaborarem na construção do país. Assim, também deveria prepará -lo para
participar das mudanças de parti cipação política, atendendo as exigências da lei de janeiro de
1881 do eleitor ser alfabetizado .
Esta colaboração na construção da Nação, contudo, não seria igual para todos. Ao
contrário, deveria ocorrer sob uma premissa hierarquizadora e org anicista, na qual cada grupo
tinha um lugar e uma atuação predefinida, o que correspondia a demandas sociais vivenciadas
no período, numa sociedade que a priori ainda se dividia entre senhores e escravos. Para
atingir este intuito civilizador, os pobres deveriam ser capacitados nas habilidades de ler,
escrever e contar , assim como preparados em ofícios, tanto nas habilidades de artífices ou
artistas, como nos ofí cios da agricultura, contanto que exercessem atividades produtivas,
permitindo o controle desta crescente massa liberta e livre.
Porém, o caminho de educar e instruir os pobres, as “classes nacionaes” para um
melhor uso na agricultura, e, se houvessem excedentes, na s atividades industriaes para assim
servir ao país, foi espinhoso. Uma das experiências foi à educação destinada aos ingênuos.
Alguns pontuais trabalhos históricos vêm enfatizando as propostas de instituições agrícolas e
asilos que se propuser am a educá-los em conjunto com menores órfãos e desvalidos.
Em
artigo recente Chalhoub (2006, p. 39-41) reclamou uma maior ênfase para esse tema,
principalmente o rastrear as experiências concretas desses sujeitos nos processos de
escolarização.
Nesse ponto, porém, surge a pergunta que não quer calar. O que aconteceu
com os filhos livres da mulher escrava nascidos após a lei de 28 de setembro
de 1871 quanto à educação. Quanto ao acesso à instrução primaria?
[...] Em resolução anterior em poucos mese s à aprovação da reforma
eleitoral de 1881, o governo imperial estabelecera que os senhores não
estavam de modo algu m obrigados a cuidar da instruçã o primaria dos filhos
livres de suas cativas que perman eciam sobre sua guarda.
6
Diretamente quanto aos ingênuos o trabalho de
Fonseca (2002) explorou as
alternativas criadas pelas elites para a educação dos que denomina negros em geral no final do
século XIX. Os marcos históricos do seu trabalho são também a Lei 2040 e a Abolição – Lei
3330 e acompanhou nos relatórios do Ministério de Negócios da Agricultura, Comércio e
Obras Públicas, assim como os do Ministério do Interior, ambos do segundo período Imperial ,
os debates e propostas sobre a educação dos negros, especialmente dos ingênuos. Entretanto,
seu limite foi não adentrar nas vivências destes ingênuos, exceto daqueles enviados às
colônias agrícolas ou asilos orfanológicos, algo em comum em outros trabalhos que tratam
deste sujeito.
Podemos citar como evidên cia da preocupação, presente até 1885, com os ingênuos e
as possibilidades de educá -lo um trecho do relatório do Diretor Geral dos Estudos, padre
Francisco José da Rocha , em 1872, citado em relatório do presidente da província Freitas
Henrique sobre a questão de como deveria ocorrer a educação destas crianças. A ressaltar sua
leitura da diferença destas como desigualdade, assim como da premissa de que o ensino de
ofícios era determinante, proposições comuns à época ( SCHWARCZ, 1995).
[...] é também necessário ir se attendendo á conveniência de crear escholas
especiaes para o ensino das crianças favorecidas pela lei de 28 de
setembro, e das que já tem entrado no goso de sua liberdade por acto
espontâneo dos senhores. Tanto como da liberdade tem ellas necessi dade da
instrucção, que as deve regenerar tornando -as úteis á sociedad e.
Mas, regenerar de que crianças de sete ou oito anos? De no máximo dez ou doze anos,
no caso das alforriadas costumeiramente pelos senhores, sem ainda estarem em relação direta
com a lei do Ventre Livre? Provavelmente de males, vícios atávicos a os negros e seus
descendentes. Regenerar os pobres, sempre perigosos.
É sensível o dilema, a angústia sobre aceitar ou não os ingênuos/as;sobre como
declarar sua presença, pois na maioria continuavam os filhos das escravas tendo sub notificação da filiação paterna , em uma escola moralisada, que priorizava filhos de “famílias
dignas”; e se tinham dono ou não como suas mães? São questões pertinentes numa sociedade
em mudanças profundas das divisões sociais legais, enrai zadas na hierarquia de origem , livres
ou escravos, em transição para uma fundada na racialização.
E esta questão sobre a presença ou não de libertos, escravos nas aulas era crescente .
Anterior aviso oficial, publicado na Revista de Instrução, em 1872, informava que até libertos
poderiam comparecer as aulas, contanto com o apoio de patronos. Ou a serviço destes.
7
Ao mesmo Com o incluso parecer , por copia, do conselheiro presidente da
relação, datado de 6 do corrente, respondendo ao off icio que vmc.° dirigiu me em 25 do passado, ácerca da admissão do menor Eustaquio, liberto, sob
condição de acompanhar sua senhora , na eschola publica primaria da
freguezia de Paripe.
Ainda é importante compreender as proposições sobre a educação dos i ngênuos de
alguém como o cônego Romualdo Maria, que, se não foi se concretizaram, trazem pistas de
projetos e desejos fermentados.
Enquanto os poderes competentes resolvem a questão, a nós, como homens e
como filhos de um paiz christao, cumpre, quanto em nós couber, preparal -os
pela educação para gosaram d’ essa liberdade, que deo -lhe Deus, e garantio lhes o eminente estadista, cujo nome venerando [...]
Muito longe, pois, de lhe ficharmos as portas, da escola, devemos abrir -lhes
de par em par.
E de lá dent ro, no santuário da instrucção, desapaparecerão essas
preferenciais, esses vans distinçcões, que a força e o orgulho radicarão n’
este mundo de lado “a única nobreza é a dos corações e dos entendimento
que buscão reguer -se para as culturas do CEO” (Relatório do Diretor Geral
de Instrução Pública, 1882).
Acompanhando o parecer de 29 de maio de 1881 que estabeleceu definitivamente a
possibilidade dos ingênuos freqüentarem as aulas públicas da província, para além das
questões legais, o documento passou a t ecer considerações sobre a própria razão da educação
do ingênuo, que para D. Romualdo deveria ter duas facetas: primeiro, reparar o crime da
escravidão.
Neste sermão uma questão foi norteadora: a necessidade que julgava premente de dar
aos ex-escravos e seus filhos além da Liberdade legal a Liberdade proporcionada pela
Instrução. Sua preocupação era como fazer do negro ex -escravo um cidadão. Como fazer
amar e honrar a Deus e a Pátria um ser sem Instrução e sob as garras da Escravidão?
Errante, sem família , sem pátria, sem religião, muitas vezes de que te serve
esse viver quearremeda a morte?
E não será isso contar todas as fibras do coração, tritural -o atrozmente?nao
será isso abrir largas portas á devassidão?
Quereis que o escravo seja probo e honrado?
Absurdo. É pretender que de silvados brotem rozas, e de fonte impura
nasçam agoas cristalinas.
Não é tudo entretanto.
Se da mocidade depende a sorte futura do mundo social e político, se acha se nas suas mãos o principio da regeneração, se a vida de um gran de povo
está nos seos comícios e na tribuna, mas antes de tudo está nos seos lares,
que esperanças alentaremos sobre os destinos de toda e qualquer nação
8
assolada pelo flagello da escravidão? (Relatório do Diretor Geral de
Instrução Pública, 1 882).
Profundamente influenciado pelas idéias pedagógicas francesas e norte -americanas
que baseiam suas propostas de como preparar os ingênuos para vida, e proporcionar -lhes uma
vida digna – cristã, trabalhadora, morigerada e moralisada.
Esta Directoria espera qu e Vm. Consultando os sentimentos de seu coração,
onde o céo depositou o gérmen da vocação para o magistério -o amor á
infância – interessar-se-há por todos os modos ao seu alcance pelo futuro
d’essas pobres crianças.
Com a lei de 28 de Setembro reparou o B rasil em um dia a injustiça de tres
séculos.
Não basta porém.
È necessário ainda habilitar -se os ingênuos para que possão, não só pela
instrucção, mas também pelo trabalho “triumphar dos males a que os expõe
a sua miséria” (Relatório do Diretor Geral de Instrução Pública, 1882).
A educação cristã era o caminho que, inclusive, dirimiria possíveis pulsões atávicas ou
de rancor racial. Inspirava e amedrontava D. Romualdo a experiência norte -americana com os
libertos. Propôs então uma educação especial para o s ingênuos, como os C olleges especiais
dos negros norte -americanos, os Colored School’s , que diretamente citou . No esforço de
convencimento de que estas instituições evitariam que no Brasil ocorresse o acirramento
racial, historicizou a experiência da cria ção destes colégios para meninos de côr por um
refugiado sandominguesse, Joubert, branco, vítima da sublevação de 1791. Convencido pelo
cristianismo a abandonar a vingança, estabeleceu estas escolas, que o reverendo considerava a
solução para o Brasil.
A América do norte, que, sob mais de um aspecto , é modelo á outros paizes,
está a indicar-nos o procedimento que devemos seguir em relação a esses
deherdados da sorte.
Alli, muito antes que se proclamasse a emancipação dos escravos, um
sacerdote, por nome Joubert, da companhia dos padres de S. Sulpicio,
fundou a primeira escola para os meninos de cor - Colored- schools.
[...] Teremos algum dia no Brazil associações, que se encarreguem
especialmente da educação dos filhos livres da mulher escrava e que abrão
para elles escolas especiaes? (Relatório do Diretor Geral de Instrução
Pública, 1882).
A ressaltar que o emancipacionismo de Reverendo Romualdo, pautava -se pelo
liberalismo político e pelo ultramontanismo religioso. Portanto, um
abolicionismo
conservador. Seus relatórios são portanto documentos de suma importância para refletir sobre
9
alguns dos caminhos pensados pela escolarização para os ingênuos que os discursos oficiais e
outros registros de época apontam como objetivos, formas de constituir o cidadão na cional
útil a Si e a Nação, instruído nas primeiras letras.
Moralizado, morigerado, hábil em algum
oficio, o mais distante possível de práticas populares marcadas pelo lúdico e construída em
noções culturais de tempo e Espaço. Caminhos que preconizava m sua integração à soc iedade
via a instrução e o trabalho: moral isados, morigerados e católicos.
Referências
ABREU, Martha. Mães escravas e filhos libertos: novas perspectivas em torno da Lei do
Ventre Livre. In: RIZZINI, Irma ( Org.). Olhares sobre a crian ça no Brasil: séculos XIX e
XX. Rio de Janeiro: Petrobrás-BR/Ministério da Cultura /Ed. Universitária, 1997.
ALANIZ, Ana Gicelle. Ingênuos e libertos em Campinas no século XIX . Campinas: Editora
da Unicamp/Centro de Memória , 1997.
BAHIA (Estado). Coleção de Leis da Província da Bahia, Resolução 378, de 19/11/1849.
Salvador, 1849.
BRASIL. Lei nº 2040 de 28.09.1871. Lei do Ventre Livre. Rio de Janeiro, 1871.
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. São Paulo: Forense Editora, 2002.
CHALHOUB, Sidney. Exclusão e cidadania. História Viva, São Paulo: Editora D uetto,
Edição Especial Temática n . 3, Temas Brasileiros: A presença negra , p. 38-41, 2006.
COSTA E SILVA, Candido da. Os segadores e a messe . Salvador: Edufba, 2000.
FARIA FILHO, Luciano Mendes de. Dos pardieiros aos palácios: cultura escolar e urbana
em Belo Horizonte na Primeira República. Passo Fundo-RS: UPF Editora, 2000.
FONSECA, Marcus Vinicius da. A educação dos negros: uma nova face da Abolição.
Bauru/SP: Editora da Universidade São Francisc o, 2002.
FONSECA, Thais. História da educação e história cultural. In:
; GREIVE, Cinthya.
(Org.). História e historiografia da educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
HAMILTON, David. Notas de lugar nenhum: sobre os primórdios da escol arização moderna.
Revista Brasileira de História da Educação , Campinas: SBHE/Autores Associados, n. 1,
2001.
PENA, Eduardo Spiller . Pajens da Casa Imperial . Campinas: Editora da Unicamp , 2001.
SCHUELER, Alessandra Frota. Educar e instruir: a instrução popular na Corte Imperial
(1870-1889). 1997. Dissertação (Mestrado em História Soci al das Idéias) – Universidade
Federal Fluminense, Niterói, 1997.
10
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questões raciais
no Brasil (1870-1930). São Paulo: C ompanhia das Letras, 199 5.
SOUSA, Ione Celeste de. Escolas ao povo: experiências de escolarização de pobres na Bahia
– 1870 a 1890. 2006. Tese (Doutorado em História Social ) – PUC/São Paulo, São Paulo,
2006.
VENANCIO, Renato Pinto. Famílias abandonadas – assistência à criança de camadas
populares no Rio de Janeiro e em Salvador – séculos XVIII e XIX. Campinas: Papirus , 1999.
; LIMA, Lana Lage da Gama. Os órfãos da lei: o abandono de crianças negras no Rio
de Janeiro após 1871. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 24 -33, 1988.
Download

Ione Celeste de Sousa