SENTIDO, ESTRUTURA E CONTEXTO SITUACIONAL Profa. Dr. Rejane Flor Machado - UFPEL ([email protected]) Resumo: Este estudo é sobre gêneros textuais. Parte-se da idéia de que a linguagem é funcional e que o texto forma uma unidade de sentido. A existência de uma estrutura é o recurso principal para que haja esta unidade. A estrutura do texto configura-se a partir de uma situação de produção. Dois modos relacionam a estrutura do texto e a configuração contextual: 1) a estrutura apresentada pelo texto define e confirma a natureza da configuração contextual; 2) a configuração contextual age como um ponto de referência, decidindo o tipo de elemento que pode aparecer, quando, onde e com que frequência. Sob esses aspectos e a título de ilustração, faz-se a análise estrutural de uma crônica. Procura-se especular os elementos que submetem, condicionam esse texto ao gênero estudado. Nas análises foram utilizadas as concepções de campo, relação e modo, ligadas as metafunções ideacional, interpessoal e textual. Palavras-chave: texto – gênero – estrutura – contexto – sentido This study is about textual genres. We start from the principle that language is functional and the text is a unity of meaning. The existence of structure is the principal resource for this union. The text structure configures itself from the situation from which it was produced. Two modes relate the structure of the text and the contextual configuration: 1) the structure presented by the text define and confirm the nature contextual configuration; 2) contextual configuration works as a reference point deciding the type of element that may occur when, where and how frequently. Within these aspects and for illustration purposes only, we undertake a structural analysis of a chronicle. We aim to determine which elements of the text characterize the genre in question. The analysis used the concepts of field, relation and mode, connected as metafunctions ideational, interpersonal and textual. Keywords: text – genre – structure – context – meaning 1INTRODUÇÃO Este estudo se apoia na teoria funcionalista de Halliday, que vê a linguagem como um sistema sócio-semiótico. A ideia de sistema se justifica na percepção de que há sistemas de significados, isto é, redes de relações, como, por exemplo, as variáveis de registro, de macro e de microestrutura. Em relação à expressão sócio-semiótico, Halliday(1989, p.04) vê um sistema social, ou uma cultura, como um sistema de significados, um entre os sistemas de significados que, considerados como um todo, constituem a cultura humana. Juntamente com a investigação constante dos princípios da teoria, é motivo de leitura e estudo desta pesquisadora trabalhos que têm sido publicados por autores estrangeiros e nacionais sobre fenômenos da linguagem que, vistos sob a perspectiva da Teoria Sistêmico Funcional (TSF) ou Linguística Sistêmico Funcional (LSF) permitem conhecer melhor este sistema de significação que, além de mediar a existência humana, é agente da construção e da organização de sua experiência. A linguagem, independente da modalidade em que se realiza, afeta a vida do ser humano como um todo. Inteiramente dependentes da linguagem são as concepções do que é o ser, do que pensa, do que realiza e de como é o seu relacionamento com a sociedade complexa que o ultrapassa e o envolve. Implicada do jeito que é na própria vida, a linguagem nunca é neutra, ela se ocupa intensamente da tarefa de fazer o mundo significar. O desejo que se possui de entender profundamente o funcionamento da linguagem vai bem além de simplesmente encontrar respostas satisfatórias para indagações acerca da linguagem. É no ensino que se quer interferir com o fruto dessas investigações. Sabendo que a noção de linguagem do professor é determinante da sua prática de ensino, o estudo da linguagem em funcionamento, tal como se vê na LSF, permite tornar mais consistente o ensino, no sentido de fornecer apoio aos alunos para que estes possam promover mudanças em suas vidas comunicativas, direcionando-se para o desenvolvimento sociocultural almejado. Halliday (1989) fala dos mitos que são cultuados e implementados a partir de teorias mal concebidas e infrutíferas que servem meramente para perpetuar determinadas concepções sobre a linguagem. Segundo o autor, os mais graves e confusos desses mitos são os que predicam em favor da dissociação entre a linguagem e o significado. Essa prática transforma o ensino sobre a linguagem em um ensino voltado para as regras da linguagem, sintáticas em sua maioria, o que resulta em áridos estudos de partes de discursos e de análise isolada de frases. Em contraste, a teoria hallidayana tem como base a semântica, não a sintaxe. Assim, ao analisar os textos, procura considerar e identificar o papel dos vários itens que o constituem, uma vez que se concebe serem esses funcionalmente motivados. Está de acordo com os pressupostos funcionalistas dizer que o reconhecimento da natureza funcional da linguagem possibilita enxergar em textos e discursos fenômenos que, conforme as pressuposições do pesquisador, com um olhar desnudo, pouco direcionado, são difíceis, ou impossíveis vislumbrar. Mais especificamente, vê-se na Teoria Sistêmico-Funcional uma forte aliada para o estudo de textos. A teoria permite abordar a linguagem como um sistema complexo de significados, que se organiza de acordo com as exigências da situação discursiva. A TSF é uma concepção de linguagem em que esta é vista como um recurso para construir e interpretar significados em contextos sociais. 2 TEXTO E CONTEXTO Estes dois termos, texto e contexto, colocados em adjacência na teoria de Halliday, servem para lembrar, conforme o próprio autor (Halliday, 1989, p.5), que “estes são aspectos do mesmo processo”. Para ele, metaforicamente, há um texto e um outro texto que o acompanha e que denomina de contexto. O que está dentro da ideia ‘com o texto’ está, na verdade, além do texto em uma situação discursiva. A esse contexto, Halliday denomina de contexto de situação. É a situação de uso da linguagem, o ambiente do texto. Voltando a idéia de texto, esse se define como linguagem que desempenha um determinado papel em um determinado contexto. É “instância de uso da linguagem viva que está desempenhando um papel em um contexto da situação” (Halliday, 1989, p.10). Um ponto importante sobre a natureza do texto, conforme o próprio linguista salienta, é que, embora o texto, quando se escreve, pareça constituir-se de palavras e sentenças, ele é realmente feito de significados. É uma unidade semântica. E, por ter essa natureza, o texto deve ser considerado como um produto e como um processo, mantendo esses dois aspectos em foco. É preciso portanto ir além das palavras e estruturas, vendo o texto como um todo de linguagem, como um evento interativo, uma troca social de significados. Halliday saliente a necessidade de se combinar as duas concepções de texto, como um produto e como um processo, relacionando essas visões com a noção de sistema linguístico que subjaz aos textos. Vendo texto e contexto em uma “inter-ação”, pode-se pensar em caracterizar o texto através do seu contexto. A descrição se faz em termos de uma estrutura conceitual simples, tripartida: campo, relação e modo. Campo refere-se ao acontecimento, à natureza da prática social; Relação refere-se à natureza dos participantes, aos seus status e papéis; Modo diz respeito à organização simbólica do texto, qual é a sua importância, e qual é a sua função no contexto. Esses três aspectos que particularizam a noção de contexto, caracterizando o texto, são realizados pelas três metafunções da linguagem: Metafunção ideacional – diz respeito ao conteúdo do texto, às representações das experiências do mundo interior e exterior. Metafunção interpessoal – diz respeito às interações entre os sujeitos, aos papéis que esses representam. Metafunção textual – refere-se à estrutura do texto. É o recurso que assegura que o dizer é relevante e relaciona-se com o contexto. A oração é a unidade básica em que se configuram materialmente as metafunções, precipuamente através dos elementos léxico-gramaticais. Assim o componente ideacional se materializa pela transitividade; o interpessoal se mostra através do modo e das modalidades; o textual aparece na relação tema/rema, nos aspectos de coesão e coerência. Motta-Roth e Heberle, retomando Halliday, melhor especificam as realizações linguísticas das metafunções: Por meio da categoria de transitividade, o falante/escritor manifesta sua experiência do mundo e representa quem faz o quê a quem e em quais circunstâncias, definindo os tipos de processos (materiais, mentais, verbais, relacionais, comportamentais e existenciais), os participantes e as circunstâncias de cada oração do texto, diferenciadas entre si pelo tipo de verbo. A função interpessoal, por sua vez, diz respeito ao estabelecimento de relações humanas: é a ‘intrusão’ do usuário da língua no evento discursivo. Trata-se da expressão dos comentários, atitudes e avaliações realizadas, por exemplo pelo uso do modo imperativo ou interrogativo, pela voz ativa ou passiva e pela modalidade. A função textual é interna à linguagem e diz respeito às relações entre as orações do texto, à estrutura temática e à coesão. O conteúdo ideacional e a interação pessoal adquirem significado para formar uma unidade coerente por meio de elementos da função textual como os marcadores discursivos, os processos de subordinação e coordenação e a organização temática do texto (Motta-Roth; Heberle, 2005, p.16). Conforme Halliday (1989), considerar-se alguém capaz de ler um texto, ou ouvi-lo significa que esse leitor deverá ser capaz de saber interpretá-lo em termos de todas as metafunções, o que significa: 1. Entender os processos que estão sendo referidos, os participantes nesses processos, e as circunstâncias – tempo, causa, etc. – associados a estes; 2. Entender a relação entre um processo e outro, ou um participante e outro, que dividem a mesma posição no texto. 3. Reconhecer a função discursiva, o tipo de proposta, comando, afirmação ou indagação, atitudes ou julgamentos ali encontrados. Reconhecer também as características retóricas que constituem o ato como simbólico. 4. Apreender a importância do dizer, a topicalidade das mensagens e a coerência entre uma e outra parte do texto. Ressalta-se que, nesse movimento de leitura, o uso da noção de contexto é primordial para poder explicar porque certas coisas foram ditas ou escritas. Além disse a noção permite precisar o que mais poderia ser dito ou escrito e que assim não ocorreu. A razão para o uso da noção de contexto de situação, como observa Halliday (1989) não é só retrospectiva, é também prospectiva. A inter-relação entre texto e contexto provoca predições, o que é uma excelente perspectiva porque ajuda a entender como se dá a troca de sentido e a interação. Halliday viu, por outro lado, a necessidade de contemplar os tipos de texto em que a referência não é tão imediata. Ao conjunto compartilhado de contextos de situação denominase, nesta concepção, contexto de cultura, que se define, mais especificamente, como um sistema de experiências com significados compartilhados. Entende-se ainda que é o contexto de cultura que permite fazer generalizações. Na próxima parte deste texto, examinam-se as concepções de gênero e estrutura. 3. ESTRUTURA DO GÊNERO Antes de falar sobre estrutura é preciso comentar o que se entende por gênero. Embora seja um truísmo, convém reforçar que, ao se falar sobre esse fenômeno da linguagem, estão sendo colocadas em pauta as noções de discurso, enunciado e, muito propriamente, de dialogismo, como ensina Bakhtin. A concepção de gênero está tão fortemente ligada a Bakthtin que, dentro das mais diversas teorias, tem se achado pertinente suas colocações para se conceituar o que se denomina gênero. Bakthin (2000) separa os gêneros discursivos em duas classes: os gêneros primários ( são os que surgem no dia a dia, tais como a conversa telefônica, o bate-papo, o email etc.); e os secundários (carregam a idéia de elaboração, não são espontâneos). São exemplos destes o ensaio, a petição, o artigo científico. O autor aponta outra classificação importante para a definição de gênero neste trabalho. Ele separa os gêneros a partir de três aspectos: conteúdo – refere-se à seleção de temas (esfera social); estilo – refere-se à escolha linguística; e construção composicional – refere-se a formas de organização textual (obedece à intenção do autor). Ainda de acordo com Bakhtin, havendo uma função e condições específicas para cada esfera da comunicação verbal, haverá também um determinado gênero, contendo certo tipo de enunciado relativamente estável do ponto de vista temático, composicional e estilístico. O não conhecimento do gênero discursivo de uma determinada esfera da comunicação funciona como uma barreira que impede a entrada do sujeito nessa área discursiva. São situações em que se pondera sobre o potencial responsivo que pauta as interações verbais, além de ratificar o caráter profundamente dialógico da linguagem. O gênero, como se pode ver pela quantidade de estudos feitos mais recentemente, passou a ser considerado uma noção central para a própria definição de linguagem, precipuamente sob uma abordagem funcionalista. Conforme Meurer (2000, apud Meurer, Bonini e Motta-Roth, 2005), o fenômeno gênero se localiza entre a língua, o discurso e as estruturas socias, permitindo a discussão entre teóricos e pesquisadores de diferentes campos e provocando o aparecimento de elementos conceituais que têm possibilitado a revisão ampla do aparato teórico linguístico. Sempre sob o ponto de vista discursivo, busca-se ainda no conceito de Fairclough, apresentado por Meurer (2005), inspiração teórica para argumentar em prol de uma visão de gênero que o coloca como um estereótipo do papel da linguagem nas relações sociais. Não se entra aqui nas relações de poder, nas questões ideológicas. O propósito da apresentação e exploração do que é dito por esse autor é somente salientar o fato de que qualquer manifestação linguística do ser humano obedece a preceitos culturais, e também linguísticos, e que estes fatores moldam a forma de expressão e delineiam estruturas abstratas dessas situações. O gênero, segundo Fairclough, é então visto como “um conjunto de convenções relativamente estável que é associado com, e parcialmente realiza, um tipo de atividade socialmente aprovado, como a conversa informal, a compra de produtos em uma loja, uma entrevista de emprego, um documento de televisão, um poema ou um artigo científico” (apud Meurer, 2005). Tendo presentes os pressupostos da Teoria Sistêmico Funcional, Hasan (1996) fixa-se na questão contextual como determinante do gênero. Segundo a autora, o contexto é o maior determinante das características definidoras do gênero textual. Em seu texto, traz como exemplo uma propaganda. Esse simples fato, como diz a autora, permite predizer que a forma da mensagem deve contar um elemento da estrutura cuja função é atrair a atenção. Esse elemento tende a aparecer em primeiro plano, ou de uma forma relevante. Diante desses fatos, Hasan questiona se os gêneros possuem alguma propriedade específica que os façam ser considerados um exemplar de determinado gênero. Para discutir essa questão colocada por Hasan, entra-se no que a autora denomina de estrutura. A noção de estrutura já nos é familiar. Mas o que mesmo se entende por estrutura em uma teoria funcionalista? O que é a Estrutura Potencial do Gênero, proposta por Hasan? Hasan(1989) defende o abandono dos gêneros descritos pela literatura em favor dos que representam as situações do cotidiano. A invisibilidade da estrutura desses gêneros é uma razão para estudá-las. Pode-se, dessa maneira, identificá-la no texto. Mas há uma outra razão, apontada por Hasan. Conforme o seu ponto de vista, “um entendimento dos gêneros das situações do cotidiano, particularmente daqueles em que a linguagem age como um instrumento nos ajuda a ver claramente a estreita parceria entre linguagem e a vivência”(p.54). Para averiguar a estrutura dos gêneros ligados a situações do cotidiano, a pesquisadora propõe analisar situações em que a linguagem está atrelada à circunstância de interação. Ela designa essas situações de ‘focalizadas na interação’.e observa haver uma bidirecionalidade em termos do fazer linguístico. Hasan, ao buscar a caracterização da estrutura potencial de gênero, procura observar, de forma mais precisa, a relação entre estrutura e contexto. E a pergunta que norteia esta etapa é ‘como o contexto afeta a estrutura do texto’? Para a análise do contexto configuracional, Hasan se utiliza dos seguintes conceitos: campo, relação e modo, já discutidos neste trabalho. Essas variáveis mantêm uma relação de reciprocidade com a configuração contextual. Mas, alerta a autora, não é buscando a relação de cada um desses elementos com o texto que se pode predizer a estrutura do texto. É o conjunto de valores que realiza campo, relação e modo que permite descrever o texto como a expressão verbal de uma atividade social. Segundo Hasan, “os fatores relevantes do ambiente – i.e., as configurações contextuais – estão causalmente relacionados aos elementos da estrutura do texto”(1996, p.51). Ainda, o contexto de configuração dá uma boa idéia de que significados são relevantes e para qual estágio de uma atividade em andamento. Os textos contêm certos elementos que podem ali aparecer, mas que não necessitam estar contidos em outros textos inseridos no mesmo contexto. São esses elementos denominados de opcionais, na teoria proposta por Hasan (1989). Na mesma esteira, há elementos que “tendem a aparecer em uma ordem específica e sua ocorrência pode ser prevista por elementos contextuais”(Motta-Roth e Heberle, 2005, p.18). São esses designados pela palavra obrigatórios. Um terceiro tipo de elemento textual, o iterativo, ou recursivo, diz respeito aos elementos recursivos que se repetem no evento linguístico. É possível expressar o espectro total de elementos opcionais e elementos obrigatórios e sua ordem, de tal modo que é possível estabelecer, conforme Hasan (1989) uma estrutura potencial do gênero. A linguista propõe estudar ‘estruturas genéricas de gênero’ (GSP), embora não haja um plano rígido para essas estruturas, o que permite variações. Para essa tarefa, certas características da cc 1 podem ser usadas para fazer certos tipos de predicações sobre a estrutura dos textos. São estas: Que elementos devem ocorrer? Que elementos podem ocorrer? Onde devem ocorrer? Onde podem ocorrer? Com que frequência eles ocorrem? Encerrando essa fase de exploração da teoria, passa-se para outra etapa deste trabalho: é a parte de análise e classificação do texto e do contexto. Sabe-se que o trabalho feito não permite estabelecer com segurança uma metodologia de análise. Como tentativa de estudo, porém, vê-se como producente o trabalho que segue e que denominamos, propositadamente, de ilustração. 4 ANÁLISE DE TEXTO O texto a ser analisado intitula-se “o valor das coisas”. É uma crônica escrita por Martha Medeiros e publicada no jornal Zero Hora em 2004. 1 Configuração contextual É evidente que, com apenas um texto, não podemos senão indicar, muito restritamente, algumas regularidades possíveis existentes neste tipo de texto, não mais do que isso. Para o trabalho de análise que se configura em pesquisa, deverá haver um corpus consistente e a análise dos dados precisa ser exaustiva. Alerta-se então que o trabalho não está concluído. É do interesse desta pesquisadora poder intensificar as análises, garantindo um conjunto de dados que possam trazer respostas sobre as indagações que se colocam sobre a estrutura potencial do gênero textual em estudo. Texto “O valor das coisas”, Martha Medeiros Outro dia estava assistindo a um programa de tevê que mostrava relíquias da dinastia Ching, especialmente vasos. Peças de valor incalculável, que não eram cedidas nem mesmo a museus, estavam confinadas numa espécie de bunker chinês, preservadas de qualquer olhar. Fiquei pensando: se alguém colocasse um vaso daqueles numa feira de artesanato ao ar livre, junto a outras quinquilharias, as pessoas talvez pagassem 40 reais por ele, não mais. O mesmo poderia acontecer com uma gravura de Roy Liechtenstein misturada a cartoons expostos numa mostra universitária, ou com um colar do designer Antonio Bernardo pendurado na parede de uma loja de bijuterias, ou uma escultura do Aleijadinho vendida na beira da estrada junto a anjos feitos com material barato. Desinformados, raramente conseguimos destacar o raro do medíocre. O valor das coisas está no conhecimento das coisas. Tão óbvio, e no entanto há um mundaréu de gente que satisfaz sua curiosidade bisbilhotando a vida alheia, e se contentam com isso. Estão bem informados sobre a novela, sobre a intimidade dos artistas, sobre as fofocas do seu seleto grupo de amigos, e isso é suficiente para preencher-lhes o espírito. Qualquer outra informação adicional, arte, literatura, música, filosofia, é papo de intelectual, e intelectual no sentido mais pejorativo do termo. Só é possível valorizar aquilo que foi estudado e percebido em sua grandeza. Se eu não me informo sobre o valor histórico de uma moeda que circulava na época dos otomanos, ela passa a ser apenas uma pequena esfera enferrujada que eu não juntaria do chão. Se eu não conheço o significado que teve uma muralha para a defesa de grandes impérios, ela vira apenas um muro passível de pichação. Se eu não reconheço certos traços artísticos, um vitral de Chagall passará tão despercebido quanto o vitral de um banheiro de restaurante. Podemos viver muito bem sem cultura, mas a vida perde em encantamento. Vale para pessoas também. Sempre que a gente se conforma com meia dúzia de informações a respeito de alguém- signo, idade, estado civil, time, partido e profissão - perdemos a chance de admirá-lo. Gostamos de muitas pessoas, mas quantas delas a gente admira de verdade? Só aquelas que tivemos a sorte de conhecer mais profundamente. A ignorância parcial é comum, não há como a gente armazenar milhões de informações, mas ignorância absoluta é preguiça. Faz tudo e todos parecerem iguais. E a vida se torna mais fútil. Aplica-se então ao texto o construto teórico de Hasan (1989, 1996) e de Halliday (1989, 2004). Busca-se primeiramente responder ao questionamento que se compõe a partir das variáveis contextuais discutidas: campo, relação e modo. Conteúdo situacional: 1. O que está acontecendo? 2. Quem participa? 3. Como se dá a interação? Respondendo a essas questões, é um texto escrito de uma forma leve, em uma linguagem que beira a oralidade. A autora coloca-se no texto como um “eu” que se dirige ao seu, o leitor, que passa a ser seu parceiro na reflexão. Há palavras no texto, assim como expressões e construções sintáticas que dão conta da forma coloquial com que a autora conduz o tema escolhido: “bisbilhotando”, “mundaréu de gente”; “é papo de intelectual”; “não eram cedidas nem mesmo a museus”. O texto, inscrito no gênero crônica, apresenta uma organização sistemática. Aparece em um primeiro plano uma situação do cotidiano: exposição de obras de arte. Isso faz com que a autora comece a sua especulação sobre o “valor das coisas”, o valor dessas obras de arte. Lidando com o consenso das pessoas, há a exploração da ideia de que “se não se conhece algo, não se pode valorizá-lo”. De forma hipotética, vão aparecendo situações em que objetos de valor são colocados lado a lado com objetos destituídos de valor artístico. Situações hipotéticas são colocadas como exemplo. A organização do texto dá conta da realização da atividade social: o não reconhecimento do belo, do primoroso, quando isso não é externamente ressaltado, como em uma exposição, ou quando objetos de valor estão misturados com outros sem valor artístico. Essas ponderações simples são as artimanhas que o sujeito-autor usa para convencer o interlocutor a pensar como ele. Vê-se nessa publicação como texto e contexto estão imbricados. A crônica é um texto em que a argumentação não está comprometida com a precisão, com a prova. É assim mesmo que, no texto em estudo, aparecem os argumentos. Uma relação causal prepondera nos argumentos apresentados em prol do ponto de vista defendido. Mas esses argumentos não possuem materialidade, consistência. Fez-se o levantamento dos processos, participantes e circunstâncias e observa-se que há mais processos relacionais, comportamentais e mentais do que materiais. Os poucos processos materiais que se apresentam estão, em sua maioria, ou em orações hipotéticas, ou negativas, ou o verbo indica que já não existe mais a ação: … se alguém colocasse um vaso daqueles; …que eu não juntaria do chão; … se tivesse pendurado. Não há construções que indiquem transitividade verbal na sua forma prototípica: apresentando, além de processo material, ator e meta. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Estudou-se aqui gêneros textuais sob uma perspectiva funcional. São textos que possuem um desempenho específico em um determinado contexto e que precisam ser assim vistos no momento em que se quer entender como se dá a construção das significações a partir da linguagem e a construção do contexto a partir dessas significações. O método de análise que se depreende da teoria de Halliday e Hasan, embora aqui explorado de forma incipiente, tem se mostrado produtivo para se entender a linguagem como um sistema de representação simbólica de experiências recorrentes em uma dada cultura. Hasan e Halliday dedicam-se a investigar o componente semântico do texto e o modo como sua realização linguística varia. A concepção das metafunções tem o propósito de detalhar o processo de significação, levando em consideração o conteúdo do texto, a interação social e a estrutura e o formato do texto. Por outro lado, há os conceitos de campo, relação e modo para definir o contexto de interação pela linguagem. É necessário ver com cautela, no entanto, o arcabouço teórico. É Halliday mesmo que defende o uso apropriado desses princípios. Para ele, a linguagem é multifuncional, cada sentença no texto é multifuncional, ou seja, para se ter o sentido do que se está ouvindo ou lendo, é preciso olhar para a densa fábrica de fazer sentido. Para entender o texto, é preciso afastar o olhar das partes e olhar para o todo simultaneamente através de diferentes ângulos, vendo como cada um deles contribui para a interpretação total, que é a natureza essencial de uma abordagem funcional. Considera-se oportuno ainda dizer que a reflexão que se propõe, à luz da Lingüística Sistêmico-Funcional, pode trazer contribuições para o ensino, possibilitando a construção de metodologias que levem o aluno a efetivamente perceber o sentido do texto, a partir da análise lingüística do texto como um todo, das partes que o compõem e dos contextos de uso. 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN,M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000. CLORAN, C.; BUTT, D.;WILLIAMS, G. Ways of saying: ways of meaning. Selected papers of Ruqaya Hasan.London: Cassell, 1996. HALLIDAY, M.A.K.; MATTHIESSEN, C. An introduction to functional grammar. New York: Oxford Press, 2004. HALLIDAY, M.A.K.; HASAN, R. Language, context, and text: aspects of language in a social-semiotic perspective. New York: Oxford Press, 1989. MEURER, J.L. Gêneros teorias na análise crítica de Fairclough. In: MEURER, J.L.;BONINI, A.; MOTTA-ROTH, D. 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