GOVERNANÇA E DENSIDADE INSTITUCIONAL NOS TERRITÓRIOS DE BAIXA DENSIDADE: REFLEXÕES A PROPÓSITO DE CINFÃES Ângela SILVA1, Pedro CHAMUSCA2 1 FLUP/Centro de Estudos em Geografia e Ordenamento do Território (CEGOT), Email: [email protected] 2 FLUP/Centro de Estudos em Geografia e Ordenamento do Território (CEGOT), Email: [email protected] PALAVRAS CHAVE Governança, Capital social, Densidade institucional, Territórios de Baixa Densidade, Cinfães RESUMO O presente artigo pretende reflectir as transformações sociais, económicas e políticas das últimas décadas, considerando a emergência de novos modelos de governação, assentes em princípios de abertura, participação, cooperação, parceria e trabalho em rede. Partindo dos conceitos de governança, capital social e densidade institucional são apresentadas as conclusões preliminares de um estudo de caso em curso no Município de Cinfães, em que a Câmara Municipal e a Escola (enquanto actores-chave) têm aproveitado as “Novas Oportunidades” para desenvolver e aplicar um modelo de governança territorial, que se mantém, no entanto, muito agarrado às estruturas e procedimentos formais, geralmente associado a episódios específicos. KEYWORDS Governance, Social Capital, Institutional Thickness, Low Density Territories, Cinfães ABSTRACT This paper aims to debate last decade’s social, economic and politic transformations, considering the emergence of new governance models, based on principles of openness, participation, cooperation, partnership and networking. Focusing on the concepts of governance, social capital and institutional thickness, we present the preliminary conclusions of an ongoing case-study on the Municipality of Cinfães, where the City Hall and the School (as key stakeholders) are using the “New Opportunities Program” to develop and implement a territorial governance model, which remains, however, strongly tied to formal structures and procedures, usually associated to specific episodes. 1. INTRODUÇÃO O sistema de regulação política que definia o modelo estatal de organização económica do pósguerra (Welfare State) era caracterizado pela produção industrial em massa e pelo forte intervencionismo do estado (Brenner, 2004). Este modelo de governação baseava o intervencionismo e a autoridade estatal num aparelho burocrático fortemente hierarquizado segundo lógicas piramidais e de concentração de poderes, que assim regulavam e geriam o território privilegiando a aposta em políticas direccionadas, em que os actores locais não eram dotados de competências para a participação activa elaboração de políticas públicas. Nos últimos 30 anos do século passado, porém, várias foram as transformações que abalaram a tradicional organização das sociedades e da economia – internacionalização e globalização económica; maior intervenção do sector privado no quadro decisório e regulatório; fragmentação do sistema político; descentralização do estado; etc. (Gibbs et al., 2001). Estas alterações estruturais colidem com os sistemas de governação tradicionais, fazendo com que o modelo de organização do Estado-Providência entre em ruptura a partir de finais de 1970, dando lugar à ascensão de grandes grupos empresariais que, num contexto de liberalismo económico, aproveitaram a significativa redução da autoridade dos estados sobre as actividades económicas para, com um conjunto alargado de novos participantes, passar a desempenhar um papel activo na gestão dos territórios (Keil, 2006). Começa, então, a valorizar-se princípios como a organização em redes, a competição entre poderes e a adopção de políticas abrangentes e integradoras. Neste contexto, as transformações sentidas configuram uma progressiva transição de um modelo regulatório de organização industrial fordista-keynesiano para um modelo de produção e gestão pós-fordista mais flexível, em que os modelos de governação que caracterizaram a Europa ao longo do século XX dão lugar a novos modelos caracterizados pela articulação entre o estado, a sociedade civil e as suas organizações, e os actores privados. (Swyngedown, 2005). 2. A EMERGÊNCIA DE UM NOVO PARADIGMA E A VALORIZAÇÃO DO CAPITAL SOCIAL E DA “DENSIDADE INSTITUCIONAL” Nas duas últimas décadas, a colaboração e articulação em redes, bem como formas inovadoras e interactivas (com organizações e cidadãos) de fazer política, têm vindo a ganhar importância. A emergência de um novo conceito1 e a valorização da evolução da governação para a governança, pretende responder ao aumento da complexidade dos processos de transformação social e económica de base espacial, (que obrigam a considerar alterações a várias escalas) e às crescentes dificuldades de resposta por parte do estado. Este novo modelo de governação designa um processo de planeamento e gestão territorial mias abrangente, integrador e participado. A governança é um processo caracterizado pela descentralização, já que os governos centrais estendem a autonomia das unidades de governo local, dando-lhe mais autoridade e responsabilidades; pela emergência da sociedade civil enquanto actor importante essencial para promover uma boa gestão e desenvolvimento dos territórios; pela valorização de princípios de integração, estratégia e cooperação; e por um crescente envolvimento do sector privado na gestão dos territórios (Laquian, 2002). Em suma, é um processo em que o estado deixa de ser o único responsável pela acção colectiva e em que a gestão dos territórios se faz de acordo com critérios muito mais abrangentes que o exercício do poder e da autoridade pelos eleitos, designadamente: interdependência entre organizações, com quebra das fronteiras entre os três sectores (público, privado e sociedade civil); interacções constantes (negociação e partilha de recursos) entre os 1 O conceito de governança tem sido amplamente discutido e debatido nos últimos anos. Por isso mesmo, não será alvo de um grande aprofundamento, recomendando-se a leitura de publicações anteriores dos autores. actores; definição de regras partilhadas e para o efeito negociadas; e relativa autonomia das redes em relação ao poder do estado central. (Rhodes, 1996). Profundamente enraizado no conceito de governança encontra-se a ideia de “capital social”. Este está relacionado com a importância do capital humano para o desenvolvimento das comunidades, ou seja, diz respeito às forças vivas (actores) de um determinado território, à forma como se articulam, interagem e cooperam para intervir sobre um recurso colectivo (Healey, 2002) – o território – e alcançar objectivos comuns. Este conceito manifesta-se especialmente importante num contexto em que as dinâmicas que afectam os territórios e as sociedades que os habitam se multiplicaram, complexificaram e fragmentaram (Chamusca e Fernandes, 2009) e permite a introdução de uma nova dimensão de análise – a “densidade institucional” (“institutional thickness”) dos territórios (Gibbs et al., 2001), associando-se a fracas redes institucionais e à inexistência de uma cultura de parceria e trabalho em rede uma fraca aplicação dos princípios de governança à escala local/regional, fazendo que hoje se fala de uma sociedade caracterizada por “poucos processos e demasiados planos” (Gibbs et al., pp. 116) e que algumas regiões de baixa densidade apresentem uma grande inadaptação aos novos desafios. 3. MUNICÍPIO DE CINFÃES2: A APOSTA NA CAPACITAÇÃO DO CAPITAL HUMANO E NO REFORÇO DA DENSIDADE INSTITUCIONAL COMO VECTORES DE DESENVOLVIMENTO E DE APLICAÇÃO DE UM MODELO DE GOVERNANÇA O processo de expansão desordenada do sistema urbano português e de débil organização espacial3 produziu um conjunto de problemas e assimetrias de base territorial, entre os quais a configuração de espaços a que se convencionou chamar “territórios de baixa densidade”. Em Portugal, estes territórios caracterizam-se pela persistência (muitas vezes crónica) de problemas estruturais, entre os quais se evidenciam a existência de uma população envelhecida e Figura 1 – Ciclo vicioso dos territórios de baixa densidade 2 É um concelho que pertence à dorsal problema do Baixo Tâmega, com especificidades e problemas característicos da região mais deprimida do país. Recomenda-se a leitura de artigos anteriores dos autores 3 Ver artigo Silva, A.; Lima, F.; Chamusca, P. (2010) Estratégias de eficiência colectiva em territórios de baixa densidade: reflexões a propósito do Minho-Lima e do Tâmega. Actas do XXI Colóquio Ibérico de Geografia (no prelo) assimetricamente distribuída, caracterizada por elevados índices de desqualificação e desclassificação e por um tecido empresarial com fraca capacidade empreendedora e de inovação, “agarrado” a um panorama de diversidade e dinamismo institucionais incipientes (Covas, 2007). A importância crescente destes territórios, bem como a insuficiência dos mecanismos tradicionais em responder a um conjunto de problemas estruturais motivou o desenvolvimento de novos mecanismos de apoio, assentes na valorização de abordagens integradas e de estratégias colectivas e empenhados no aproveitamento do potencial endógeno, com destaque para o património natural e histórico-cultural, a paisagem, as tradições, e o conhecimento tácito e erudito das suas populações (Marques e Silva, 2009). Nos últimos anos, alguns municípios que integram os chamados “territórios de baixa densidade” procuraram apostar na qualificação do seu capital humano, reforçando as suas competências, capacitando-os para uma cidadania mais activa e envolvendo-os em alguns projectos de desenvolvimento concretos. No caso do Município de Cinfães, evidencia-se a aposta na capacitação e promoção da Escola como parceiro privilegiado para a elaboração e implementação de estratégias de desenvolvimento. Partindo de uma oportunidade (o Programa Novas Oportunidades4) que fez regressar aos estudos uma considerável percentagem de população, iniciou-se uma estratégia de “territorialização” (Silva, 2010) dos saberes. Assim, em vez de se privilegiar uma aposta nas metodologias tradicionais de qualificação e formação profissional (de acordo com os pressupostos estabelecidos no Catálogo Nacional de Qualificações) da população adulta, que muitas vezes é reproduzida sem atender às especificidades do território e simplesmente para cumprir objectivos traduzidos em números e percentagens, optou-se por uma clara estratégia de valorização dos recursos endógenos locais. Esta aposta foi especialmente evidente nos cursos de São Cristóvão de Nogueira5, onde os formandos realizaram, com o apoio e reconhecimento da Câmara, duas actividades integradoras6 de divulgação, promoção e valorização dos recursos endógenos locais, acrescentando ainda saberes e competências aos envolvidos no processo. A primeira intitulada São Cristóvão de Nogueira: Costumes e Tradições consistiu numa exposição dos saberes, artes e sabores (amplamente visitada à escala regional), englobando uma apresentação multimédia e a criação de um blog, que fazem parte do marketing territorial concelhio. A segunda “São Cristóvão de Nogueira: Sentir os Sentidos” procurou dar continuidade ao processo (de forma mais ambiciosa), passou pela produção de um livro e de um filme que confinam em si as características geográficas, históricos, culturais, sociais e ambientais do concelho. Nestas actividades foram envolvidos vários agentes locais como empresários (em especial proprietários das quintas de vinho verde), população mais idosa (para levantamento de informação acerca das tradições antigas), Câmara Municipal, Juntas de Freguesia, alunos, professores, comunidade local, agricultores e associações culturais. Este processo tem sido alvo de um processo de investigação 7, do qual apresentamos as conclusões já disponíveis no capítulo seguinte, reflectindo à luz da dúvida que nos deixa Bock (2006) – Será 4 5 6 Ver http://www.novasoportunidades.gov.pt/ Freguesia do Município de Cinfães do Douro. As actividades integradoras devem ser significativas e envolver todos os intervenientes no processo, tendo em conta os núcleos geradores desenvolvidos e a realidade/ experiências dos formandos. 7 Associado à tese de doutoramento dos autores e a projectos de investigação de associações locais. Por limitações na dimensão do artigo optou-se por não apresentar uma descrição exaustiva (que poderemos clarificar na comunicação) e centramo-nos apenas nas conclusões já disponíveis. que as novas estruturas de governação vão ser de curta duração e exclusivas de casos isolados ou projectos concretos, ou estamos perante um processo de alteração profunda de médio e longo prazo, capaz de produzir uma nova cultura política e do qual já são visíveis alguns resultados? 4. CONCLUSÕES PRELIMINARES Apesar de identificarmos ganhos evidentes no reforço do capital social e humano, bem como no reforço da “densidade institucional”, a análise efectuada à dinâmica do processo após a conclusão dos cursos de formação revela algumas notas interessantes e que devem merecer reflexão. a) Assiste-se a uma evidente valorização do capital humano do município, traduzido numa população mais qualificada, dotada de mais competências e com um profundo conhecimento dos recursos endógenos. As entrevistas8 realizadas revelam que há um maior conhecimento entre os vários grupos da sociedade, que a abertura para a cooperação é muito superior e que as interacções são mais frequentes. b) O reforço do capital social é acompanhado pelo aumento da densidade institucional. Os sinais apontam para um ligeiro crescimento do número de novas pequenas associações/empresas locais (na grande maioria dos casos associados a recursos endógenos – em domínios como o turismo, o desporto e a gastronomia), para o crescimento das interacções entre os diferentes grupos e para a densificação de redes presentes no território – verticais (com aumento das escalas e geografias envolvidas no processo), horizontais (entre diferentes actores – poderes públicos, sector privado, sociedade civil e grupos voluntários) e sectoriais (na procura de políticas mais abrangentes e integradas – associada ao reforço das parcerias e colaboração (tendo a Escola sempre como parceiro de referência) c) Reforço das dinâmicas de aprendizagem, com forte incidência territorial e com valorização da partilha de experiências e recursos d) Contudo, evidencia-se uma insuficiente aposta da Câmara Municipal no reforço de mecanismos formais e informais de reforço da participação que não estejam agarrados a este contexto de aprendizagem, o que pode ser em parte explicado pela ausência de recursos/competências do poder local. e) As redes tendem a enfraquecer quando deixam de ter uma natureza formal, já que há uma evidente dificuldade em legitimar regras informais que regulem acordos e projectos desprendidos de uma instituição pública, ou seja após a conclusão de um curso, apesar de os actores se manterem organizados colectivamente, continuam excessivamente dependentes da Escola e da Câmara Municipal. f) Problemas de responsabilização das redes e dos processos de governança, já que muitos dos actores têm pouca dimensão e preferem resguardar-se numa rede de articulação entre sector público, privado e sociedade civil que considere as suas visões e os seus interesses, mas em que o Município enquanto organismo público continue a ser o único a responder pelos projectos de desenvolvimento. 8 Entrevistas realizadas a Manuel Pereira (Presidente do Agrupamento de Escolas de Cinfães), Jorge Ventura (Presidente da Associação de Defesa do Vale do Bestança), Maria Sousa (Vereadora do Pelouro da Educação da Câmara Municipal de Cinfães), Martinho Barbosa e Conceição Bernardo (formadores), José Pereira, Fernanda Pereira e Carla Silva (formandos), ao longo do ano lectivo 2010/2011. g) Esta conjugação de factores permite-nos afirmar que estamos perante um processo de governança “em episódios específicos” e que o Município de Cinfães ainda não conseguiu consolidar uma efectiva “cultura de governança”, em que estruturas formais e informais acordem um conjunto de regras, valores e objectivos para partilharem responsabilidades e agirem de forma colectiva. Em alternativa, a governança vai adquirindo formas variáveis consoante a intervenção (intervenção por projecto), estando muito agarrada aos cursos de formação de adultos, à presença de actores-chave (Câmara Municipal e Escola) de natureza “top” e correndo o risco de se tornar um “flop”, isto é, de não produzir uma alteração nos processos de planeamento e gestão, de não tornar a sociedade civil num elemento essencial do processo de governação e de ter resultados pouco eficazes, o que é preocupante se tivermos em linha de conta a ideia expressa por Kofi Annan (1998) de que a “boa governança é, porventura, o factor mais importante para erradicar a pobreza e promover o desenvolvimento”. 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Annan, K. (1998). Report of the Secretary-General on the work of the Organization. Chapter II. ONU Bock, S. (2006). “City 2030”—21 cities in quest of the future: New forms of urban and regional governance." European Planning Studies 14(3): 321 - 334. Brenner, N. (2004). 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