O inconsciente e o corpo falante
Apresentação do tema do X Congresso da AMP, no Rio, em 2016
Jacques-Alain Miller
Mais do que na cereja sobre o bolo, prefiro pensar na infusão que lhes servirei como um digestivo, depois das iguarias
trazidas por este Congresso[1], a fim de abrir o apetite enquanto pensam naquele que acontecerá daqui a dois anos. Esperase, então, que eu introduza o tema do próximo Congresso.
Digo a mim mesmo que isso dura há mais de trinta anos, se considerarmos que os Congressos da AMP deram continuidade
aos Encontros do Campo Freudiano que começaram em 1980. Aqui estamos, portanto, mais uma vez, ao pé do mesmo
muro (mur). A palavra Muro me veio à cabeça, ela não deixa de evocar o neologismo que debocha do amor. É ao amuro
(amur) que devo a honra invariável de dar o lá da sinfonia, aquela que os membros da AMP, nós, terão de compor ao longo
dos dois anos que se passarão antes de nos encontrarmos? Seria esse um fato de transferência remanescente com relação
ao lugar daquele a quem coube a tarefa de fundar nossa Associação outrora? Mas, como acabo de lembrar, assumi essa
tarefa, de intitular, de dar um nome, pelo menos um tema, desde antes, desde o primeiro Encontro Internacional que
aconteceu em Caracas com a presença de Lacan. Se há amuro, eu não o remeterei à função de fundador, em nada
consagrada nos nossos estatutos, mas gostaria de referi-lo à de um batedor, função que me atribuí ao intitular meu curso
como «A Orientação Lacaniana».
Amuro quer dizer sobretudo que é preciso atravessar, a cada vez, o muro da linguagem, pata tentar cingir mais de perto –
não digamos o real – o que fazemos em nossa prática analítica. Orientar-me pelo pensamento de Lacan constituiu minha
preocupação e sei que a compartilhamos. A Associação Mundial de Psicanálise, de fato, não tem outra coesão. Essa
preocupação está no princípio do conjunto que formamos, para além dos estatutos, dos mutualismos e até mesmo mais
além dos laços de amizade, de simpatia que se tecem entre nós no decorrer dos anos.
Lacan reivindicava a dignidade para seu pensamento. Deve-se, dizia ele, ao fato de se esmerar em sair dos clichês. De fato,
esse pensamento atordoa. Trata-se, para nós, de segui-lo nas vias inéditas. Essas vias são com frequência obscuras, ainda
mais quando Lacan mergulha em seu último ensino. Poderíamos tê-lo deixado ali, abandoná-lo. Mas nos engajamos em
segui-lo. Os dois últimos Congressos atestam isso.
Por que nos engajarmos nisto, nesse difícil ramo último de seu ensino? Nosso gosto pela decifração não é gratuito. Tenho
esse gosto, nós o temos pelo fato de sermos analistas. E o somos o bastante para perceber, mediante alguns clarões
perfurando as nuvens obscuras da proposição de Lacan, o fato de ele ter conseguido destacar um realce que nos instrui
sobre o que se tornou a psicanálise, que não está mais exatamente em conformidade com o que se pensava sobre ela. Numa
posição extremada, ele chegou até a dizer que a prática analítica era uma prática delirante. Não nos deteremos nisso.
A psicanálise muda. Não é um desejo, mas um fato. Ela muda em nossos consultórios de analistas e essa mudança, no
fundo, é para nós tão manifesta que o Congresso de 2012 sobre a ordem simbólica, assim como o deste ano sobre o real,
têm, cada um, em seu título, a mesma menção cronológica: «no século XXI». Como dizer melhor o fato de termos o
sentimento do novo e, com ele, a percepção da urgência da necessidade de uma atualização? Como não termos, por
exemplo, a ideia de uma fissura quando Freud inventou a psicanálise, se assim podemos dizer, sob a égide da rainha
Vitória, paradigma da repressão da sexualidade, ao passo que o século XXI conhece a difusão maciça do que é chamado
depornô, ou seja, o coito exibido, tornado espetáculo, show acessível a cada um pela internet por meio de um simples clique
com o mouse? De Vitória ao pornô, não apenas passamos da interdição à permissão, mas à incitação, à intrusão, à
provocação, ao forçamento. O que é o pornô senão uma fantasia filmada com uma variedade própria para satisfazer os
apetites perversos em sua diversidade? Nada melhor que a profusão imaginária de corpos se entregando a um «se dar» e a
um «se pegar» para mostrar a ausência da relação sexual no real.
É algo novo na sexualidade, em seu regime social, em seus modos de aprendizagem, entre os jovens, entre as jovens classes
que entram na carreira. Eis então os masturbadores aliviados de terem de produzir eles mesmos os sonhos quando
despertos, uma vez que os encontram feitos, já sonhados para eles. O sexo frágil, no que concerne ao pornô, é o masculino,
que cede a isso de muito bom grado. Quantas vezes não ouvimos em análise homens que se queixam das compulsões de
acompanhar as peripécias pornográficas e até mesmo de estocá-las em uma reserva eletrônica! Do outro lado, o das esposas
e das amantes, pratica-se menos do que o conhecimento que se tem da prática de seu parceiro. Então, depende: considerase uma traição ou um divertimento sem consequências. Essa clínica da pornografia é do século XXI – só a evoco, mas ela
mereceria ser detalhada por ser insistente e porque há aproximadamente quinze anos tornou-se extremamente presente
nas análises.
Como não evocar, a propósito dessa prática tão contemporânea, o que foi, assinalado por Lacan como a irrupção dos efeitos
do cristianismo na arte, efeitos levados a seu apogeu pelo barroco? De volta de uma turnê pelas igrejas da Itália, que ele
chamava de uma orgia, Lacan notava, em seu Seminário Mais, ainda: «tudo é exibição de corpo evocando o gozo»[2]. No
que concerne à pornografia, estamos nisso. Contudo, a exibição religiosa dos corpos lânguidos deixa sempre fora de seu
campo a própria copulação, assim como a copulação está fora do campo, diz Lacan, na realidade humana.
Curioso retorno desta expressão: «realidade humana». Ela foi usada pelo primeiro tradutor de Heidegger, para o francês, a
fim de expressar o Dasein. Mas há um bom tempo cortamos a via do deixar-ser desse Dasein. Na era da técnica, a copulação
não fica mais confinada no privado nutrindo as fantasias particulares a cada um. Ela foi reintegrada ao campo da
representação, passando a uma escala de massa.
Uma segunda diferença entre o pornô e o barroco deve ainda ser enfatizada. Tal como definido por Lacan, o barroco visaria
à regulação da alma por meio da visão dos corpos, da escopia corporal. Não há nada disso no pornô, nenhuma regulação,
há mais, antes, uma perpétua infração. A escopia corporal funciona na pornografia como uma provocação a um gozo
destinado a se fartar sob o modo do mais-gozar, modo transgressivo em relação à regulação homeostática e precária em sua
realização silenciosa e solitária. Em geral, a cerimônia se realiza sem falas, de ponta a ponta na tela, mas com os suspiros ou
gritos da mímica do prazer. A adoração do falo, outrora segredo dos mistérios, permanece um episódio central – exceto no
pornô lésbico -, porém, doravante, banalizado.
A difusão planetária da pornografia por meio da tela eletrônica teve, sem dúvida, efeitos dos quais o psicanalista recebe
testemunhos. O que diz, o que representa a onipresença do pornô no começo deste século? Nada senão: a relação sexual
não existe. É isso que é repercutido, de algum modo cantado, por esse espetáculo incessante e sempre disponível. Pois
apenas essa ausência é suscetível de dar conta dessa empolgação, cujas consequências nos costumes das novas gerações,
quanto ao estilo das relações sexuais, já estamos acompanhando: desencantamento, brutalização, banalização. A fúria
copulatória alcança na pornografia um zero de sentido, que faz os leitores de A fenomenologia do espírito pensarem no que
disse Hegel sobre a morte infligida pela liberdade universal diante do terror: ela é «a mais fria e a mais rasa, sem maior
significação do que o cortar a cabeça de um repolho ou engolir um gole d'água»[3]. A copulação pornográfica tem a mesma
vacuidade semântica.
A relação sexual não existe! É preciso entender essa sentença com a ênfase posta por Plutarco quando relata, o único a fazêlo na Antiguidade, a fala fatal que ressoa sobre o mar:O grande Pã está morto! O episódio figura no diálogo intitulado
«Sobre o desaparecimento dos oráculos», que outrora evoquei em meu curso[4]. E a fala ressoa como o último oráculo
anunciando que, depois dele, não haverá mais oráculos. Como o oráculo que anuncia o desaparecimento dos oráculos. De
fato, nessa época, sob Tibério, em todo o território do império romano, os santuários nos quais a multidão outrora se
aglomerava para solicitar e recolher os oráculos conheceram um desafeto crescente. Uma mutação invisível caminhando
nas profundezas do gosto fechava a boca dos oráculos inspirados pelos demônios da mântica – digo demônios não pelo fato
de eles serem malvados, mas porque eram chamados de demônios os seres intermediários entre os deuses e os homens, e a
figura de Pã sem dúvida os representava.
Não há como não sermos sensíveis ao destino dos oráculos, já que um dia, de fato, eles desapareceram em uma zona onde
foram avidamente procurados, uma vez que nossa prática de interpretação, temos o costume de dizer, é oracular. Mas
nosso oráculo, para nós, é justamente o dito de Lacan sobre a relação sexual. Ele nos permite pôr em seu lugar o fato da
pornografia e Lacan o formulou muito antes da chegada da pornografia eletrônica da qual falo. Esta não é de modo algum –
quem o cogitaria? – a solução dos impasses da sexualidade. Ela é sintoma desse império da técnica, que vai estendendo seu
reino sobre as mais diversas civilizações do planeta, até mesmo as mais retrógradas. Não se trata de depor as armas diante
desse sintoma e de outros da mesma fonte. Eles exigem da psicanálise interpretação.
Quem sabe essa digressão sobre a pornografia nos dê acesso ao título do próximo Congresso? Apresentei, por ocasião de
um desses Congressos e Leonardo Gorostiza o lembrou, a disciplina que escolhi me impor na escolha do tema para a AMP.
Eles se dão em grupo de três, dizia eu, e cada um, alternadamente, dá a prevalência a uma das três categorias de Lacan,
cujas iniciais são R.S.I. Depois de «A ordem simbólica...», depois de «Um real...», seria de se esperar, como Gorostiza e
outros deduziram perfeitamente, que o imaginário viesse em primeiro plano. De que melhor forma isso poderia se fazer
senão a título do corpo, uma vez que encontramos a seguinte equivalência formulada por Lacan: o imaginário é o corpo. E
ela não é isolada, seu ensino, em seu conjunto, testemunha a favor dessa equivalência.
Em primeiro lugar, nesse ensino, o corpo se introduz, inicialmente, como imagem, imagem no espelho. Disso decorre o fato
de Lacan dar ao eu [moi] um estatuto que se distingue singularmente daquele que Freud lhe reconhecia em sua segunda
tópica. Em segundo lugar, é ainda com um jogo de imagem que Lacan ilustra a articulação prevalecente entre o Ideal do eu
e o eu ideal, cujos termos ele toma emprestado de Freud, mas para formalizá-los de maneira inédita. Em terceiro, essa
afinidade entre o corpo e o imaginário é também reafirmada em seu ensino dos nós. A construção borromeana enfatiza que
é pelo viés de sua imagem que o corpo participa, primeiro, da economia do gozo. Em quarto lugar, mais além, o corpo
condiciona tudo o que o registro imaginário aloja de representações: significado, sentido e significação, a própria imagem
do mundo. É no corpo imaginário que as palavras da língua fazem entrar as representações, que nos constituem um mundo
ilusório sob o modelo da unidade do corpo. Aqui estão muitas razões para escolher que o próximo Congresso faça variar o
tema do corpo na dimensão do imaginário.
Estava quase endossando essa ideia quando me dei conta de que o corpo, como corpo falante, muda de registro. O que é o
corpo falante? Ah, é um mistério[5], disse Lacan um dia. Esse dito de Lacan deve ser ainda mais mantido pelo fato de que
mistério não é matema, é até mesmo o oposto. Em Descartes, o que faz mistério, mas permanece indubitável, é a união da
alma com o corpo. A «Sexta meditação» lhe é dedicada e, por si só, ela mobilizou tanto a engenhosidade de seu mais
eminente comentador quanto as cinco precedentes. Essa união, uma vez que ela concerne meu corpo, meum corpus, vale
como terceira substância entre substância pensamento e substância extensão. Esse corpo, diz Descartes – a citação é
famosa -, «não apenas estou alojado em meu corpo, como um piloto em seu navio, mas, além disso, estou muito
estreitamente ligado a ele e de tal forma confundido e misturado que componho com ele como uma só totalidade»[6].
Sabemos que a dúvida hiperbólica figurada pela hipótese do gênio maligno poupa o cogito e nos entrega, dele, a certeza
como um resto que resiste à dúvida, até mesmo a mais ampla que se possa conceber. Sabe-se menos que,a posteriori,
precisamente nessa sexta meditação, descobre-se que a dúvida poupava também a união do eu penso com o corpo[7],
aquele que se distingue, entre todos, por ser o corpo desse eu penso.
Sem dúvida, para dar-se conta disso, é preciso prolongar o arco desse a posteriori até Edmund Husserl e suas Meditações
cartesianas. Ali, ele distingue com uma palavra preciosa, de um lado, os corpos físicos entre os quais os de meus
semelhantes e, do outro, meu corpo.E, para meu corpo, ele introduz um termo especial. Ele escreve: "Penso minha carne
com uma caracterização singular, meinen Leibe, a saber, o que, sozinho, não é um simples corpo, mas sim uma carne, o
único objeto no interior de minha camada abstrata da experiência ao qual atribuo um campo de sensação à altura da
experiência"[8]. A palavra preciosa é carne,distinta do que são os corpos físicos. Por carne, ele entende o que aparecia a
Descartes sob as formas da união da alma e do corpo.
Essa carne é sem dúvida apagada no Dasein heideggeriano, embora tenha alimentado a reflexão de Merleau-Ponty em sua
obra inacabada O visível e o invisível[9], livro ao qual Lacan dedicou sua atenção ao longo de seu Seminário Os quatro
conceitos fundamentais da psicanálise[10]. Ali, ele não enfatiza seu interesse por esse vocábulo, mas, no entanto, o
vocábulo carne será retomado por ele quando evoca a carne que traz a marca do signo. O signo recorta a carne, a desvitaliza
e a cadaveriza, o corpo, então, se separa dela. Na distinção entre o corpo e a carne, o corpo se mostra apto para figurar,
como superfície de inscrição, o lugar do Outro do significante. Para nós, o mistério cartesiano da união psicossomática se
desloca. O que faz mistério, mas permanece indubitável, é o que resulta do domínio do simbólico sobre o corpo. Para dizêlo em termos cartesianos: o mistério é sobretudo o da união da fala com o corpo. Por esse fato de experiência, pode-se dizer
que ele é do registro do real. Convém, então, dar lugar a isto que o último ensino de Lacan propõe: um nome novo para o
inconsciente. Há uma palavra para dizê-lo. Não podemos mantê-la para o Congresso por se tratar de um neologismo. Não
se pode traduzi-la. Se vocês se reportarem ao texto intitulado «Televisão»[11], vocês verão que, ali, interpelo Lacan a
propósito da palavra inconsciente. Digo-lhe muito simplesmente: «Inconsciente – que palavra esquisita!». É que já me
parecia não ser um termo que conjugasse muito bem com o ponto no qual ele estava em sua doutrina. Ele me respondeu –
vocês podem ver, já viram, já sabem – com uma recusa categórica: «Freud não encontrou outra melhor e não há porque
voltar a isso». Portanto, ele admite que essa palavra é imperfeita e desiste de qualquer tentativa de mudá-la. Dois anos mais
tarde, porém, ele muda de opinião, se considerarmos seu escrito «Joyce o Sintoma»[12], no qual lança o neologismo de que
falava, o falasser, a respeito do qual ele profetiza que substituirá a palavra freudiana inconsciente.
Eis aqui a operação que proponho a fim de nos dar a bússola para nosso próximo Congresso. Essa metáfora, a substituição
do inconsciente freudiano pelo falasser lacaniano, fixa um lampejo. Proponho tomá-la como índice do que muda na
psicanálise no século XXI, quando ela deve levar em conta outra ordem simbólica e outro real diferentes daqueles sobre os
quais ela se estabelecera.
A psicanálise muda. É um fato. Ela havia mudado, enfatizava Lacan com malícia, uma vez que ela foi inicialmente praticada
na solidão, por Freud, e que, em seguida, ela passou a ser praticada por um par. Mas ela conheceu muitas outras mudanças
que podemos mensurar, do momento em que lemos Freud, e até mesmo lemos, relemos o primeiro Lacan. Ela muda, de
fato, apesar de nossa atrelagem a palavras e a esquemas antigos. É um esforço continuado permanecer o mais próximo
possível da experiência para dizê-la sem se deixar esmagar sob o muro da linguagem. Para nos ajudar a ultrapassá-lo é
preciso um (a)muro[13], uma palavra agalmática que perfura esse muro. E encontro essa palavra no falasser.
Ela não estará no cartaz do próximo Congresso. Mas, entre nós, saberemos que se trata do falasser que se substitui ao
inconsciente, uma vez que analisar o falasser não é mais exatamente a mesma coisa que analisar o inconsciente no sentido
de Freud, nem mesmo o inconsciente estruturado como uma linguagem. Diria inclusive o seguinte: façamos a aposta de
que analisar o falasser é o que já fazemos, resta-nos saber dizê-lo.
Aprendemos a dizê-lo, por exemplo, quando falamos do sintoma como de um sinthoma. Aí está uma palavra, um conceito
que é da época do falasser. Ele traduz um deslocamento do conceito de sintoma, do inconsciente ao falasser. Como vocês
sabem, o sintoma como formação do inconsciente estruturado como uma linguagem é uma metáfora, um efeito de sentido
induzido pela substituição de um significante por outro. Em contrapartida, o sinthoma de um falasser é um acontecimento
de corpo, uma emergência de gozo. O corpo em questão, aliás, nada diz que é o de vocês. Você pode ser o sintoma de outro
corpo desde que você seja uma mulher. Há histeria quando há sintoma de sintoma, quando você faz sintomado sintoma de
um outro, ou seja, sintoma no segundo grau. O sintoma do falasser resta, sem dúvida, a ser esclarecido em sua relação com
os tipos clínicos – apenas evoco, sobre os rastros de Lacan, o que acontece na histeria.
Não chegaremos a isso esquecendo a estrutura do sintoma do inconsciente, nem tampouco esquecendo que a segunda
tópica de Freud não anula a primeira, mas se compõe com ela. Do mesmo modo, Lacan não veio para apagar Freud, mas
para prolongá-lo. Os remanejamentos de seu ensino se fazem sem fissuras utilizando-se os recursos de uma topologia
conceitual que garante a continuidade sem interditar a renovação. Assim, de Freud a Lacan, diremos que o mecanismo do
recalque nos é explicitado pela metáfora, tal como do inconsciente ao falasser a metáfora nos dá o envelope formal do
acontecimento de corpo. O recalque explicitado pela metáfora é uma cifração e a operação de cifração trabalha para o gozo
que afeta o corpo. É com um remendo como este, de peças diversas, de diferentes épocas, tomadas emprestadas de Freud e
de Lacan, que se tece nossa reflexão - não temos de recuar diante do fato de assim fazer um remendo a fim de avançar na
circunscrição da psicanálise no século XXI.
Aponto outro vocábulo – depois de sinthoma -, da época do falasser e que situarei ao lado do sinthoma. É uma palavra que
obriga também a proceder a uma nova classificação das noções que nos são familiares. A palavra que situo ao lado de
sinthoma é escabelo[escabeau], que tomo emprestado de «Joyce o Sintoma» [14]. O escabelo não é uma escada – é menor
que uma escada -, mas tem degraus. O que é o escabelo? Penso no escabelo psicanalítico, não apenas aquele que
precisamos para pegar os livros na estante de uma biblioteca. O escabelo é, de um modo geral, aquilo sobre o qual o falasser
se ergue, sobepara se fazer belo. É seu pedestal, que lhe permite elevar a si mesmo à dignidade da Coisa[15]. Isto, por
exemplo, é um pequeno escabelo para mim [mostrando o pequeno estrado sob a mesa].
O escabelo é um conceito transversal. Traduz de maneira imagética a sublimação freudiana, mas em seu cruzamento com o
narcisismo. Aqui está uma aproximação que é propriamente da época do falasser. O escabelo é a sublimação, mas na
medida em que ela se funda sobre o eu não penso inicial do falasser. O que é esse eu não penso? É a negação do
inconsciente por meio da qual o falasser se crê senhor de seu ser. E, com seu escabelo, ele acrescenta a isso o fato de se crer
um senhor belo. O que chamamos de cultura não é nada além da reserva dos escabelos na qual se vai buscar com o que
esticar o colarinho e bancar o glorioso.
Para dar o exemplo dessas categorias que parecem despontar e das quais necessitamos, me dizia que poderia tentar traçar
um paralelo entre o sinthoma e o escabelo. O que fomenta o escabelo? O falasser sob sua face de gozo da fala. Esse gozo da
fala origina os grandes ideais do Bem, do Verdadeiro e do Belo. O sinthoma, em compensação, como sintoma do falasser,
está ligado a seu corpo. O sintoma surge da marca escavada pela fala quando ela toma a aparência do dizer e faz
acontecimento de corpo. O escabelo está do lado do gozo da fala que inclui o sentido. Em contrapartida, o gozo próprio ao
sinthoma exclui o sentido.
Se Lacan se apaixonou por James Joyce e especialmente por sua obra Finnegans Wake, foi devido à façanha – ou à farsa –
que representa por fazer convergir sintoma e escabelo. Em termos exatos, Joyce fez do próprio sintoma como fora do
sentido, ininteligível, o escabelo de sua arte. Ele criou uma literatura cujo gozo é tão opaco quanto o do sintoma, nem por
isso deixando de ser um objeto de arte elevado sobre o escabelo à dignidade da Coisa. Podemos nos perguntar se a música,
a pintura, as Belas Artes tiveram seu Joyce. Talvez o que corresponda a Joyce, no registro da música, seja a composição
atonal, inaugurada por Schoenberg, de quem ouvimos falar há pouco[16]. E, no que concerne ao que chamamos de Belas
Artes, o iniciador talvez tenha sido um certo Marcel Duchamp. Joyce, Schoenberg, Duchamp são fabricantes de escabelos
destinados a fazer arte com o sintoma, com o gozo opaco do sintoma. E teríamos bastante dificuldade em ponderar sobre o
que é o escabelo-sintoma no que concerne à clínica. Temos, antes, de tirar disso uma lição.
Mas, digam-me uma coisa, fazer de seu sintoma um escabelo não é precisamente o de que se trata no passe, no qual se joga
com seu sintoma e com seu gozo opaco? Fazer uma análise é trabalhar a castração do escabelo para trazer à luz o gozo
opaco do sintoma. Fazer o passe é jogar com o sintoma assim esvaziado, a fim de fazer dele um escabelo, sob os aplausos do
grupo analítico. E, para dizê-lo em termos freudianos, isso é evidentemente um fato de sublimação e os aplausos não são
fortuitos. O momento em que a assistência está satisfeita faz parte do passe. Pode-se até dizer que o passe se realiza aí. No
tempo de Lacan, nunca se narrou os relatos de passe ao público. A operação ficava sepultada nas profundezas da
instituição. Ela só era conhecida por um pequeno número de iniciados. O passe era uma questão para não mais de dez
pessoas. Digamos que eu inventei fazer uma mostração pública dos passes porque eu sabia, eu pensava, acreditava que isso
era a própria essência do passe. Os escabelos aí estão para fazer a beleza, pois esta é a defesa última contra o real. Mas, uma
vez que os escabelos são derrubados, queimados, resta ainda ao falasser analisado demonstrar seu saber fazer com o real,
saber fazer com ele um objeto de arte, seu saber dizer, saber bem dizê-lo. É o que constitui o estopim, a tomada da palavra
que ele é convidado a fazer. O acontecimento de passe não é a nomeação, a decisão de um coletivo de expertos. O
acontecimento de passe é o dizer de um sozinho, o Analista da Escola, quando ele ordena sua experiência, quando ele a
interpreta em benefício de todo aquele que vem ao Congresso, o qual se trata de seduzir e inflamar. E isso foi posto à prova,
amplamente, durante o último Congresso.
Um dizer é um modo da fala que se distingue de fazer acontecimento. Freud discriminava, entre os modos da consciência:
consciente, pré-consciente e inconsciente. Para nós, se há modos a se distinguir não são relativos à consciência, mas modos
da fala. Em termos de retórica, há a metáfora e a metonímia. Em termos de lógica, há o modal e o apofântico, o afirmativo e
mesmo o imperativo. Na perspectiva estilística, há o clichê, o provérbio, o refrão. E da fala depende a escrita. Pois bem,
quando inconsciente é conceitualizado a partir da fala e não mais a partir da consciência, ele porta um nome novo: o
falasser. O ser de que se trata não precede a fala. É o contrário, a fala outorga o ser a esse animal por um efeito a posteriori.
Desde então, seu corpo se separa desse ser para passar para o registro do ter. O falasser não é o corpo, ele o tem[17].
O falasser tem de se haver com seu corpo como imaginário, assim como tem de se haver com o simbólico. O terceiro termo,
o real, é o complexo ou o implexo dos dois outros. Trata-se do corpo falante com seus dois gozos, gozo da fala e gozo do
corpo: um leva ao escabelo, o outro sustenta o sinthoma. No falasser há, a um só tempo, gozo do corpo e também gozo que
se deporta para fora do corpo, gozo da fala que Lacan identifica, com audácia e com lógica, ao gozo fálico, uma vez que este
é desarmônico em relação ao corpo. O corpo falante goza, portanto, em dois registros: por um lado, ele goza de si mesmo,
ele se afeta de gozo, ele se goza – uso do verbo na forma reflexiva; por outro, um órgão desse corpo se distingue de gozar de
si mesmo, ele condensa e isola um gozo à parte que se reparte entre os objetosa. Nesse sentido, o corpo falante é dividido
quanto a seu gozo. Esse corpo não é unitário como o imaginário o faz crer. Por essa razão, é preciso que o gozo fálico se
separe, no imaginário, na operação chamada de castração. O corpo falante fala em termos de pulsões. Isso autorizava Lacan
a apresentar a pulsão sob o modelo de uma cadeia significante. Ele prosseguiu na via desse desdobramento em sua lógica
da fantasia, na qual ele disjunta o Isso e o inconsciente. Mas, em contrapartida, o conceito de corpo está na junção do Isso
com o inconsciente. Ele lembra que as cadeias significantes que deciframos à maneira freudiana são conectadas com o
corpo e são feitas de substância gozante. Quanto ao Isso, Freud dizia que ele era o grande reservatório da libido. Esse dito é
deportado para o corpo falante que, como tal, é substância gozante. É do corpo que são extraídos os objetos a; é no corpo
que é buscado o gozo para o qual trabalha o inconsciente.
Freud dizia que a teoria das pulsões era uma mitologia. O gozo, em compensação, não é um mito. No capítulo 7 da Die
Traumdeutung, Freud chama o aparelho psíquico de uma ficção. O corpo falante, porém, não é uma ficção. É no corpo que
Freud encontra o princípio de sua ficção do aparelho psíquico. Ele é construído sobre o arco reflexo como um processo
regulado de maneira a manter o mais baixo possível a quantidade de excitação. Lacan substituiu o aparelho psíquico
estruturado pelo arco reflexo pelo inconsciente estruturado como uma linguagem. Não se trata de estímulo-resposta, mas
de significante-significado. Só que – e esta é uma expressão de Lacan já enfatizada e explicitada por mim – essa linguagem
é uma elucubração de saber sobre lalíngua[18], lalíngua do corpo falante. Disso decorre o fato de o inconsciente ser, ele
próprio, uma elucubração de saber sobre o corpo falante, sobre o falasser.
O que é uma elucubração de saber? É uma articulação de semblantes a um só tempo se desprendendo do real e
envelopando-o. A mutação maior que atinge a ordem simbólica no século XXI é o fato de ela ser, doravante, amplamente
conhecida como uma articulação de semblantes. As categorias tradicionais que organizam a existência passam para o nível
de simples construções sociais, votadas à desconstrução. Não é apenas o fato de os semblantes vacilarem, mas de eles
serem reconhecidos como semblantes. E, devido a um curioso entrecruzamento, é a psicanálise que, por meio de Lacan,
restitui o outro termo da polaridade conceitual: nem tudo é semblante, há um real.
O real do laço social é a inexistência da relação sexual. O real do inconsciente é o corpo falante. Enquanto a ordem
simbólica era concebida como um saber regulando o real e lhe impondo sua lei, a clínica era dominada pela oposição entre
neurose e psicose. Agora, a ordem simbólica é reconhecida como um sistema de semblantes que não comanda o real, mas
lhe é subordinada. Um sistema respondendo ao real da relação sexual que não existe.
Disso resulta, se assim posso dizer, uma declaração de igualdade clínica fundamental entre os falasseres. Os seres falantes
estão condenados à debilidade mental pelo próprio mental, precisamente pelo imaginário como imaginário de corpo e
imaginário de sentido. O simbólico imprime no corpo imaginário representações semânticas tecidas e desatadas pelo corpo
falante. É nesse sentido que sua debilidade destina o corpo falante como tal ao delírio. Perguntamo-nos como alguém que
foi analisado poderia ainda se imaginar como sendo normal.
Na economia do gozo, um significante mestre equivale a um outro. Da debilidade ao delírio, a consequência é boa. A única
via que se abre mais além é, para o falasser, fazerse tolo [dupe] de um real, quer dizer, montar um discurso no qual os
semblantes obstringem um real, um real no qual se crer sem a ele aderir, um real que não tem sentido, indiferente ao
sentido e que só pode ser aquilo que ele é. A debilidade é, ao contrário, a tapeação [duperie] do possível. Ser tolo, tapeado
por um real – o que ostento – é a única lucidez aberta ao corpo falante para se orientar. Debilidade – delírio – tapeação,
esta é a trilogia de ferro que repercute o nó do imaginário, do simbólico e do real.
Antigamente falava-se das indicações de análise. Avaliava-se se tal estrutura se prestava à análise e se indicava a recusa da
análise para quem a demandava por falta de indicações. Na época do falasser, digamos a verdade, analisa-se qualquer um.
Analisar o falasser demanda jogar uma partida entre delírio, debilidade e tapeação. É dirigir um delírio de maneira que sua
debilidade ceda à tapeação do real. Freud tinha ainda de se haver com o que ele chamava de recalque. E pudemos constatar,
nos relatos de passe, a que ponto essa categoria é, doravante, pouco utilizada. Claro, há relembranças. Mas nada atesta a
autenticidade de alguma delas. Nenhuma é final. O chamado retorno do recalcado é sempre arrastado no fluxo do falasser,
no qual a verdade se revela incessantemente mentirosa. No lugar do recalcado, a análise do falasser instala a verdade
mentirosa que decorre do que Freud reconheceu como o recalque originário. Isso quer dizer que a verdade é
intrinsicamente da mesma essência que a mentira. O proton pseudos é também o falso último. O gozo, ou os gozos do corpo
falante, porém, é aquilo que não mente.
A interpretação não é um fragmento de construção incidindo sobre um elemento isolado do recalque, como o pensava
Freud. Ela não é a elucubração de um saber. Ela não é tampouco um efeito de verdade logo absorvido pela sucessão das
mentiras. A interpretação é um dizer que visa ao corpo falante para produzir nele um acontecimento, para passar para as
tripas,dizia Lacan. Isso não se antecipa, mas se verifica a posteriori, pois o efeito de gozo é incalculável. Tudo o que a
análise pode fazer é afinar-se com a pulsação do corpo falante para se insinuar no sintoma. Quando se analisa o
inconsciente, o sentido da interpretação é a verdade. Quando se analisa o falasser, o corpo falante, o sentido da
interpretação é o gozo. Esse deslocamento da verdade ao gozo dá a medida do que se torna a prática analítica na era do
falasser.
Por essa razão, proponho, para o próximo Congresso, nos reunirmos sob a seguinte bandeira: «O inconsciente e o corpo
falante». Isto é um mistério, dizia Lacan. Tentaremos penetrar nele e esclarecê-lo. Para tanto, que cidade nos seria mais
propícia senão o Rio de Janeiro? Com o nome Pão de Açúcar, ela tem como emblema o mais magnífico dos escabelos.
Obrigado.
[Versão estabelecida por Anne-Charlotte Gauthier, Ève Miller-Rose e Guy Briole. Texto oral, não revisto pelo autor].
Version du 30.09.2014
Tradução: Vera Avellar Ribeiro.
Revisão: Marcus André Viera.
Versão no idioma original: L'inconscient et le corps parlant (Francês)
NOTAS
1. Conferência pronunciada por Jacques-Alain Miller por ocasião do encerramento do IX Congresso da Associação Mundial de Psicanálise
(AMP), em 17 de abril de 2014, apresentando o tema de seu X Congresso.
2. Lacan J., O Seminário, livro 20: mais, ainda, Rio de Janeiro, JZE, 2008, p. 121.
3. Hegel G.W.F., Phénoménologie de l'esprit, trad. J. Hippolyte, t. 2, Paris, Aubier, 1941, p. 136.
4. Cf. Miller J.-A., « A orientação lacaniana. Um esforço de poesia », lição de 13 de novembro de 2002, inédito.
5. Cf. Lacan J., O Seminário, livro 20: mais, ainda, op. cit., p. 140.
6. Descartes R., « Méditation sixième », Méditations. Objections et réponses, Paris, Gallimard, 1953, p. 326.
7. Ibid., p. 330.
8. Husserl E., Méditations cartésiennes.
9. Merleau-Ponty M., « L'entrelacs – Le chiasme », Le Visible et l'invisible, Paris, Gallimard, 1964, p. 172-204.
10. Lacan J., O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Rio de Janeiro, JZE, 1985, p. 75.
11. Lacan J., « Televisão », Outros escritos, Rio de Janeiro, JZE, 2003, p. 510.
12. Cf. Lacan J., « Joyce o Sintoma », Outros escritos, op. cit., p. 564. Sobre esse ponto, reportar-se também ao : O Seminário, livro 23: o
sinthoma, Rio de Janeiro, JZE, 2007, p. 55 : « no sujeito que se sustenta no falasser, que é o que designo como sendo o inconsciente ».
13. Lacan J., Je parle aux murs, Paris, Seuil, 2011, p. 103.
14. Cf. Lacan J., « Joyce o Sintoma », op. cit., p. 560-565.
15. Lacan J., O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise, Rio de Janeiro, JZE, 1988, p. 141.
16. Cf. Masson D., « Impromptu. Les chemins du réel en musique », intervenção por ocasião do IX Congresso da AMP, Paris, 17 de abril de
2014, inédito – disponível à escuta na internet, no site radiolacan.com.e em vídeo no site congresamp2014.
17. Cf. Lacan J., O Seminário, livro 23: o sinthoma, Rio de Janeiro, JZE, 2007, p. 150.
18. Cf. Lacan J., O Seminário, livro 20: mais, ainda, op. cit., p. 149.
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O Inconsciente e o corpo falante