Os 50 Anos do livro “A Estrutura das Revoluções Científicas” e a Teoria Econômica Neoclássica1 Jorge Paulo de Araújo2 Resumo: As primeiras avaliações do livro “A Estrutura das Revoluções Científicas” exibiram dúvidas sobre a aplicabilidade das ideias de Thomas Kuhn na economia. O objetivo deste artigo é sugerir que alguns historiadores atuais da economia matemática implicitamente incorporaram nas suas análises o conceito de comunidade científica como foi definido por Thomas Kuhn no seu livro clássico. Além disso, destaca-se o uso das ideias de Kuhn sobre valores científicos. Consequentemente, o autor defende a adequação das características de matriz disciplinar para explicar a persistência de modelos matemáticos abstratos na metodologia mainstream. Palavras-chave: Thomas Kuhn, economia matemática, história do pensamento econômico JEL: B13 Abstract: The first reviews of the book "The Structure of Scientific Revolutions" displayed doubts about the applicability of the ideas of Thomas Kuhn in the economy. The purpose of this article is to suggest that some current historians of mathematical economics implicitly incorporated into its analysis the concept of scientific community defined by Thomas Kuhn in his classic book. Also, the author highlight the use of Kuhn's ideas about scientific values. Therefore, he maintains the adequacy of the features of disciplinary matrix to explain the persistence of abstract mathematical models in mainstream methodology. Keywords: Thomas Kuhn, mathematical economics, history of economic thought Introdução O livro de Thomas Kuhn, “A Estrutura das Revoluções Científicas”, publicado em 1962 marca um novo período para a história da ciência e para a filosofia da ciência. No século passado, a ciência, enquanto fenômeno histórico, foi descrita de duas maneiras: como uma “história interna” e como uma “história externa”. A história interna explica o desenvolvimento científico através dos elementos lógicos e factuais que articulam as teorias científicas; enquanto que a história externa supõe que os elementos exclusivamente pertinentes à ciência não permitem por si só a reconstituição da evolução científica, são ainda necessários elementos sociais, políticos e econômicos, etc. A divisão entre “história interna” e “história externa” origina-se da proposta de Hans Reichenbach (1891-1953) na década de 1930 entre um “contexto da descoberta”, que daria conta dos elementos extralógicos, e um “contexto da justificativa” que compreende a 1 Este trabalho tem suporte financeiro da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS). 2 Professor Adjunto do Departamento de Relações Internacionais e Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (BRASIL). E-mail: [email protected] 1 2 reconstrução racional das teorias (MAIA, 2013, p.108). Os neopositivistas, desta maneira, enfatizavam o interesse exclusivo na fundamentação e na reconstrução lógica do conhecimento científico. Karl Popper, ao admitir que a experiência pressupõe alguma teoria e que a ciência avança pela critica constante (POPPER, 1993, p. 41, p. 101), criticou tanto o neopositivismo, quanto recusou uma perspectiva externalista. A ciência avança pela descoberta de novos fatos que desafiam as teorias estabelecidas e exigem alterações e substituições. Para Popper, é possível explicar a evolução da ciência através deste mecanismo sem que seja necessário recorrer ao contexto particular em que a teoria foi gerada: “o critério de demarcação [entre ciência e não ciência] não é empírico, não foi extraído da observação do que se faz ou não se faz em ciência, seja a ciência atual, seja a ciência através de sua história, mas especificar aquilo que devemos e que não devemos contar como ciência contribui ou ajuda a fazer a história da ciência” (POPPER, 2007, p. 33). Desta maneira, Popper reforça a dualidade interno-externo, que Carlos Maia muito apropriadamente chamou de “maniqueísmo epistemológico”, ou “duas regiões de competências imiscíveis” (MAIA, 2013, p. 111). A segunda dando conta da validade do conhecimento e a primeira, das origens. O livro de Kuhn é uma espécie de síntese dos dois esquemas explicativos. Thomas Kuhn sublinhou a importância dos compromissos internos assumidos pelos membros de uma disciplina científica particular. Kuhn enfatizou a importância destes compromissos naquilo que chamou “paradigmas” ou “matrizes disciplinares” e afirmou que parcialmente as ciências se caracterizam por estes compromissos. Para além dos compromissos que particularizam a comunidade científica frente ao resto da sociedade, teríamos períodos revolucionários em que os compromissos internos são questionados ou rompidos em vista da impossibilidade da comunidade científica responder determinadas questões suscitadas ou não pelo desenvolvimento científico (KUHN, 1978, p. 95). Nos períodos revolucionários, os elementos externalistas são destacados para explicar a formação do novo paradigma. Por sua vez, os elementos internalistas, nos períodos paradigmáticos, dão conta dos avanços científicos através das técnicas estabelecidas, e nas crises, explicam as razões do abandono do paradigma superado. Kuhn despertou críticas tanto dos “internalistas”, por exemplo, Popper (LAKATOS e MUSGRAVE, 1979, p. 63) e Lakatos (LAKATOS e MUSGRAVE, 1979, p. 110), quanto dos “externalistas” (BRONFENBRENNER, 1970). 3 Por sua vez, num artigo publicado em 1971, Kuhn criticou os historiadores por não darem a atenção merecida à história da ciência, e ainda, negligenciarem e desconhecerem os aspectos internos das diferentes disciplinas científicas (KUHN, 1989, p. 167). Mais recentemente, os historiadores têm sublinhado que o conceito de comunidade científica afastou Kuhn de um projeto adequado de história das ciências (MAIA, 2013). No assunto “ciência”, todo autor, inclusive Thomas Kuhn, tem que situar seu trabalho entre a filosofia e a história. Enfim, para alguns filósofos, trata-se do problema de determinar as características a-históricas do discurso científico. Para os sociólogos e historiadores, conhecimento científico é aquilo que julgaram ou julgamos como tal. Seja como for, Kuhn despertou a necessidade de dar mais atenção à história das ciências e tencionou a querela interno-externo. Nos economistas inclinados aos estudos históricos, como sugerimos abaixo, talvez Thomas Kuhn seja o responsável pela atribuição do papel fundamental e mediador da comunidade científica nos estudos mais recentes. Além disto, esta nova geração de historiadores domina o aparato matemático pertinente, ao contrário daqueles criticados genericamente no artigo de 1971 (KUHN, 1989, p. 167). Afinal, a partir da década de 1940, a economia mainstream se transformou numa ciência matemática, com questões “confusamente interdisciplinares” e num “contexto muito técnico”3 (WEINTRAUB, 1992, p. 3). O presente trabalho tem dois objetivos. O primeiro sugere a maneira como a historiografia econômica incorporou as sugestões de Kuhn e também as alterou; o segundo procura evidenciar a adequação das características de matriz disciplinar para explicar a persistência de modelos matematizados na metodologia neoclássica. As Primeiras Avaliações da obra de Kuhn na História do Pensamento Econômico Na economia, provavelmente, a primeira referência ao livro de Thomas Kuhn é o artigo de George Stigler (STIGLER, 1969). Neste artigo, o autor observa que os conceitos de paradigma e revolução científica não estão suficientemente definidos de maneira que possamos comprovar que a ciência evolua da maneira que Kuhn sustenta (STIGLER, 1969, p. 225). Stigler, na verdade, duvida da radicalidade que Kuhn supõe na troca de um paradigma por outro: “[...] as mudanças de paradigma realmente levam a ver o mundo definido por seus compromissos de pesquisa de uma maneira diferente” (KUHN, 1978, p. 146). Stigler não chega a enunciar explicitamente sua dúvida, mas inicia seu artigo com a seguinte frase: “A 3 Todas as traduções foram feitas pelo autor do presente trabalho. 4 linha divisória ou zona entre a economia do passado e do presente é mais uma questão de intuito que de tempo” (STIGLER, 1969, p. 217). Outro autor, Martin Bronfenbrenner, também não acredita na radicalidade das revoluções e sugere que “uma dialética hegeliana crua de tese-antítese-síntese pode encaixar os principais fatos da história” (BRONFENBRENNER, 1971, p. 136). O artigo de Mark Blaug (BLAUG, 1975) é uma crítica severa à obra de Kuhn posterior a 2ª edição do “Revoluções”, onde Thomas Kuhn rebate as críticas feitas às concepções presentes na 1ª edição de 1962. Blaug concede que “adequadamente qualificado, no entanto, o termo [paradigma] conserva uma função na exposição histórica das doutrinas econômicas como um lembrete da falácia de tentar avaliar determinadas teorias sem invocar o quadro metafísico mais amplo em que eles estão inseridos” (BLAUG, 1975, p. 400). Mark Blaug comenta que uma das razões alegadas por Kuhn para rejeitar o falseacionismo de Popper é o chamado “princípio de tenacidade”, isto é, que teorias contestadas por evidências não são necessariamente eliminadas, seja pelo uso de recursos ad hoc, seja por não existir alternativa teórica. Apropriadamente, Blaug observa que esta observação de Kuhn marca uma diferença de ênfase entre os dois autores. Para Popper o “princípio de tenacidade” é um afastamento das boas práticas científicas, para Kuhn é um fato a ser assinalado. Existe, portanto, um deslocamento do campo normativo para o descritivo (BLAUG, 1975, p. 402). Para Blaug, embora os economistas defendam o falseacionismo popperiano como um traço da cientificidade de sua disciplina, este tem sido sacrificado inúmeras vezes pela elegância analítica e generalidade e resultado num “falseacionismo inócuo” (BLAUG, 1975, p. 410). Por outro lado, para Blaug a concepção de programas de pesquisa de Lakatos com um núcleo teórico duro e cintos protetores, que sofrem modificações ou são eliminados pela crítica, oferece uma explicação mais adequada para a ciência econômica que o esquema de alternâncias entre períodos de ciência normal e revolucionários: “esse quadro da atividade científica, proposto por Lakatos, é muito mais rico que aquele de Kuhn. Além disso, ele fornece informações a respeito de porque "paradigmas" são sempre substituídos, um mistério que é um dos pontos fracos centrais da obra de Kuhn” (BLAUG, 1975, p. 408). Para Blaug, uma “história internalista”, ao estilo de Lakatos, é mais plausível que as descontinuidades antevistas por Kuhn. Para estes historiadores, o problema com as ideias de Kuhn é que em economia não temos a substituição completa de um paradigma por outro, mas antes sobreposição e 5 convivência de paradigmas rivais. O contrário seria aceitar que a economia está num constante período pré-paradigmático: “Talvez, seja significativo que os economistas discutam menos sobre a cientificidade de seu campo de estudo do que outros profissionais de outras áreas da ciência social. Deve-se, isto ao fato que os economistas saberem o que é ciência? Ou será que estão de acordo a respeito da economia? [...] Normalmente, os membros de uma comunidade científica amadurecida trabalham a partir de um único paradigma ou conjunto de paradigmas estreitamente relacionados. [...] Durante o período pré-paradigmático, quando temos uma multiplicidade de escolas em competição, torna-se muito difícil encontrar provas de progresso, a não ser no interior das escolas.” (KUHN, 1978, p. 202-205) A avaliação de Leonard Kunin e Stirton Weaver destacou a provável importância das ideias de Kuhn tendo em vista o “forte consenso [entre economistas] no que constitui um conjunto significante de categorias conceituais e relações para os guiarem nas suas atividades científicas” (KUNIN e WEAVER, 1971, p. 391). No entanto, para os autores, o conceito de “paradigma” é muito vago para ser aplicável (KUNIN e WEAVER, 1971, p. 392) e, além disso, ressaltaram que as propostas de Kuhn não devem ser transferidas das ciências físicas para a economia sem modificações (KUNIN e WEAVER, 1971, p. 393). Os autores alegaram que uma diferença notável entre a física e a economia é que o mundo físico não se altera historicamente, ao contrário do mundo social. Isto não impede que os economistas adotem um paradigma ou que o modifiquem exclusivamente por razões internas à ciência econômica. Todavia, para os autores, a instabilidade do mundo econômico limita a adoção de um paradigma único (KUNIN e WEAVER, 1971, p. 395). Kuhn não pretendeu avaliar a ciência recorrendo a alguma arbitragem neutra externa e fixa, seja através de uma base empírica invariante como os neopositivistas, seja, como em Popper através do princípio de falseabilidade. Para Kuhn, não existe uma base imutável, ahistórica, que sirva para explicar a evolução das ciências. As teorias são avaliadas via um conjunto de critérios compartilhados que sempre são determinações – dado o estado atual das ciências – inevitavelmente sujeitas a alterações. Entretanto, os autores parecem reconhecer que o relativismo de Kuhn o único caminho disponível para introduzir a dimensão histórica nas ciências nas quais esta dimensão é incontestável (KUNIN e WEAVER, 1971, p. 391). Thomas Kuhn contribuiu de maneira notável em múltiplos sentidos para apagar as barreiras entre ciências exatas e naturais e as ciências humanas. Um destes sentidos, Kuhn explicita na conferência “O Caminho desde a Estrutura”. Anunciando um novo livro, Kuhn 6 diz que “penso em meu projeto como um retorno [...] aos problemas filosóficos que ficaram do “A Estrutura” para considerações futuras. [...] os alvos principais por ele visados são temas tais como racionalidade, relativismo e, mais particularmente, realismo e verdade.” (KUHN, 2006, p. 115-116). E mais adiante, acrescenta “[...] o desenvolvimento científico deve ser visto como um processo empurrado por trás, e não puxado pela frente – como evolução a partir de algo, e não como evolução em direção a algo” (KUHN, 2006, p. 123). Atualmente, existe uma tendência a negligenciar as características particulares de cada ciência e incorporar a história do pensamento econômico dentro do quadro amplo da formação e evolução das ciências. Uma expressão disto são os artigos de Margareth Schabas (SCHABAS, 1992, 2002). Nesta direção também colabora a avaliação da matematização das ciências não como uma mera tentativa de imitação da física, mas como um movimento mais amplo que envolveu várias ciências como percebemos no artigo Sandye Gloria-Palermo (SANDYE, 2010). Os trabalhos mais antigos, portanto, se fixaram na questão se as chamadas revoluções - Marginalista ou Keynesiana, para citar dois exemplos - corresponderiam aos períodos científicos extraordinários propostos por Kuhn, pois não existe na economia a substituição integral de paradigmas e vigência de um único em dado período histórico. Nestes trabalhos quase nenhuma atenção é concedida às características das matrizes disciplinares e valores científicos. Além disso, nenhuma atenção é dada ao importantíssimo papel que Kuhn atribui ao conceito de comunidade científica. O Conceito de Comunidade Científica e Valores Científicos Kuhn destaca a comunidade de cientistas como o conceito principal na sua análise do processo científico: No livro [“A Estrutura”], o termo “paradigma” aparece em proximidade estreita, tanto física quanto lógica, da frase “comunidade científica”. Um paradigma é o que os membros de uma comunidade científica, e só eles, partilham. Reciprocamente, é a respectiva possessão de um paradigma comum que constitui uma comunidade científica [...]. (KUHN, 1989, p. 355) Na história da ciência, o primeiro trabalho a destacar o papel dos elementos sociais e econômicos foi o famoso artigo de Boris Hessen, “As raízes Sócio-Econômicas dos “Principia” de Newton” (HESSEN, 1993). Este artigo foi o modelo de historiografia externalista e marxista da ciência. As teses ali apresentadas, conhecidas como “Teses de Hessen-Grossmann”, são que: i) a ciência em dado período está relacionada ao desenvolvimento econômico, tecnológico e social deste período; ii) o desenvolvimento 7 tecnológico do período condiciona o desenvolvimento científico; iii) existem compromissos de classe social que influenciam as formulações científicas (FREUNDENTAL e McLAUGHILIN, 2009, p. 1). Thomas Kuhn reconhece a influência destas pesquisas: [...] recentemente, outro conjunto de trabalhos começou a modelar o trabalho contemporâneo na história da ciência. O seu resultado é um interesse crescente, proveniente em parte da história geral e em parte da sociologia alemã e da história marxista, pelo papel dos fatores nãointelectuais, particularmente institucionais e sócio-econômicos, no desenvolvimento científico. (KUHN, 1989, p. 148) Ao comentar os estudos de história da ciência, Kuhn diz que [os atuais historiadores] salientam cada vez mais os efeitos sobre a ciência, não do meio intelectual, mas do meio sócio-econômico, efeito manifestos nos padrões de educação, de institucionalização, de comunicação e de valores. Os seus esforços devem qualquer coisa às histórias marxistas mais antigas, mas os seus interesses são ao mesmo tempo mais vastos, mais profundos e menos doutrinários do que os de seus predecessores. [...] Tal como a literatura e as artes, a ciência é produto de um grupo, de uma comunidade de cientistas. (KUHN, 1989, p. 204) Não devemos crer que Kuhn adira às teses marxistas acima, pois, para Hessen, a ciência está condicionada pela tecnologia precisamente porque é chamada para resolver problemas técnicos e porque não dispõe de outros meios técnicos exceto os correntes. Thomas Kuh, por sua vez, frisa que nem sempre tecnologia e ciência estão associdas (KUHN, 1989, p. 185). Kuhn avalia que até o final do século XIX a ciência pouco contribuiu para as inovações tecnológicas. Por outro lado, parcela do desenvolvimento científico resultou, sem dúvida, da experiência dos artífices, mas, em todos estes casos, afirma Kuhn, as técnicas não se beneficiaram e acrescenta, “um ponto que os historiadores marxistas sistematicamente omitiram” (KUHN, 1989, p. 186). No entanto, Kuhn diz que, “desde 1870, a ciência assumiu um papel que nenhum estudante do desenvolvimento sócio-econômico moderno pode, responsavelmente, ignorar” (KUHN, 1989, p. 188). As ciências se tornaram socialmente relevantes porque, durante o fim do século XVIII e primeira metade do século XIX, formaram-se associações de especialistas destacadas das sociedades científicas gerais e com publicações próprias, além disso, surgiram laboratórios de pesquisa e o ensino voltado exclusivamente para a formação científica profissional. Portanto, as influências externas sobre as ciências estão mediadas pela comunidade científica que faz a articulação entre o meio externo e interno. Todavia, aquilo que é interno à disciplina científica não tem papel passivo em relação ao meio externo. Muito ilustrativo, é o exemplo que Kuhn 8 fornece em relação à história militar, em geral, os estudiosos a estudam buscando as causas e os efeitos das guerras sobre as sociedades. Entretanto, observa Kuhn, a compreensão das causas e efeitos das guerras depende também internamente das instituições militares. Para Kuhn, no caso da ciência, uma estrutura similar de interações com a sociedade é aplicável a partir da segunda metade do século XIX (KUHN, T., p. 194). Tendo passado um ano entre 1958 e 1959 entre cientistas sociais no Center for Advanced Studies in Behavioral Sciences at Stanford - onde também esteve Gerard Debreu no ano de 1960 (DÜPPE, 2012, p.430) - Kuhn comenta no prefácio do “Estrutura”: fiquei impressionado com o número e a extensão dos desacordos existentes entre cientistas sociais no que diz respeito à natureza dos métodos e problemas científicos legítimos. Tanto a História como meus conhecimentos fizeram-me duvidar de que os praticantes das ciências naturais possuam respostas mais firmes ou mais permanentes para tais questões do que seus colegas das ciências sociais. (KUHN, 1978, p.12) Ora, uma pretensa particularidade da ciência frente à filosofia, por exemplo, é que os métodos científicos buscam o controle e a eficácia na conformidade entre as afirmações científicas e a realidade. Existe uma suposição implícita na existência de uma realidade em relação ao qual a validade das teorias é testada. Para Kuhn não se trata de negar ou afirmar a realidade, mas analisar o papel que efetivamente esta suposição tácita desempenha na ciência assim como o associado conceito de verdade por correspondência. Lakatos, por exemplo, entendeu que Kuhn estava propondo um relativismo destruidor: O choque entre Popper e Kuhn não se verifica em torno de um mero ponto técnico de epistemologia. Refere-se aos nossos valores intelectuais centrais e tem implicações não só para a física teórica, mas também para as ciências sociais subdesenvolvidas [...] Se nem mesmo na ciência há outro modo de julgar uma teoria senão calculando o número, a fé e a energia vocal de seus apoiadores, isso terá de ocorrer principalmente nas ciências sociais: a verdade está no poder. (LAKATOS, 1979, p. 112) Ao criticar Popper que a falseabilidade seja o único critério definidor de cientificidade e o princípio propulsor da atividade científica, Kuhn não está negando nem a realidade e nem que a falseabilidade não seja importante em ciência: Dizer que, em questões de escolha de teoria, a força da lógica e da observação não pode, em princípio, ser compulsiva não é descartar a lógica e a observação nem sugerir que não haja boas razões para favorecer uma teoria em detrimento de outra. Dizer que os cientistas treinados são, nesses assuntos, o mais alto tribunal de apelação não é defender a regra das multidões nem sugerir que os cientistas poderiam 9 ter decidido aceitar qualquer teoria. [...] Meu objetivo também é a compreensão da ciência, das razões de sua eficácia, do status cognitivo de suas teorias. À diferença, porém, da maioria dos filósofos da ciência, comecei como historiador da ciência examinando atentamente os fatos da vida científica. Tendo descoberto, no decorrer do processo, que muito comportamento científico [...] violava persistentemente os cânones metodológicos aceitos, tive de perguntar porque essa inconformidade com os citados cânones não parecia tolher o êxito da atividade. (KUHN, 1979, p. 289) Por outro lado, para Kuhn a discussão sobre a cientificidade, ou sobre a definição do termo “ciência” acoberta outras preocupações: Por que minha área de estudo não progride do mesmo modo que a Física? Que mudança de técnica, método ou ideologia fariam com que progredisse? Entretanto, essas não são perguntas que possam ser respondidas através de acordos sobre definições. [...] tais questões não deixariam de ser fonte de preocupações caso fosse encontrada uma definição [...]. (Kuhn, 1978, p. 202) Kuhn observa que os físicos e matemáticos, por exemplo, não estão constrangidos a resolver problemas pela sua urgência social como médicos ou engenheiros (Kuhn, 1978, p. 206). Isto permite ao físico dedicar-se com liberdade aos problemas para os quais se julga apto para resolver e isto aumenta a velocidade na solução de problemas em oposição aos problemas humanos onde parece que as ciências não progridem. Todavia, a importância social do problema não é um dos critérios para uma definição das ciências humanas. Por exemplo, ao ser questionado sobre acusação que os teóricos modernos da economia se preocupam exclusivamente com problemas de natureza técnica, Debreu respondeu: [...] a essência do trabalho científico é avançar por pequenos passos. Galileu poderia ser ridicularizado por muitos de seus contemporâneos quando rolava bolas sobre planos inclinados, mas esta foi a maneira de começar o estudo da mecânica. Alguém poderia estar impaciente, cinquenta anos atrás, com o fato que as ciências médicas não faziam progressos mais rápidos e maiores no tratamento de certas doenças. A ciência avança gradualmente e ataca problemas intratáveis num dado momento. (DEBREU, 1987, p. 256) O conceito fundamental para Kuhn é o de matriz disciplinar. A matriz disciplinar exibe quatro aspectos fundamentais (RANSANZ, 1999). A primeira característica se refere à estrutura conceitual básica, fundamentada ou não numa base empírica. Esta estrutura molda a formulação dos problemas que a teoria se propõe resolver. Por exemplo, em Gerard Debreu a estrutura conceitual básica é dada pela formulação da teoria do equilíbrio: 10 Os dois problemas centrais da teoria que esta monografia apresenta são: (1) a explicação dos preços das commodities resultantes da interação através dos mercados dos agentes de uma economia de propriedade privada; (2) a explicação do papel dos preços em um estado ótimo de uma economia. A análise é, portanto, organizado em torno do conceito de um sistema de preços ou, mais geralmente, de uma função valor definida no espaço das commodities. (DEBREU, 1957, p. ix) Em segundo lugar, temos os compromissos ontológicos e as analogias admitidas: Uma visão global de uma economia que quer levar em conta o grande número de suas mercadorias, o número igualmente grande de seus preços, a multidão de seus agentes e suas interações requer um modelo matemático. Economistas têm construído com êxito tal modelo porque o conceito central de quantidade de um produto tem uma estrutura linear natural. [...] Da mesma forma, o sistema de preço de uma economia pode ser tratado como um ponto no espaço de preço linear dual do espaço de mercadorias, cuja dimensão é também o número de mercadorias. (DEBREU, 1991, p. 3) Em terceiro lugar, temos os valores científicos que Kuhn resume na adequação empírica, alcance, simplicidade, consistência e fecundidade das teorias. Estes valores são fundamentais para a comparação de teorias rivais e explicam em parte a preferência por uma ou outra. “Naturamente, estou sugerindo que os critérios de escolha, com que comecei, funcionam não como regras, que determinam a escolha, mas como valores, que a influenciam” (KUHN, 1978, p. 395). A lista não pretende ser exaustiva. Kuhn escolhe cinco porque as considera individualmente importantes (KUHN, 1987, p. 385). Por exemplo, em Debreu, encontramos seguidamente a defesa da sua teoria do equilíbrio porque “o conceito central de quantidade de uma mercadoria tem uma estrutura linear natural” (DEBREU, 1991, p. 3), “a teoria do equilíbrio é primeiramente uma estrutura de referência, economistas têm uma ferramenta analítica melhor como uma consequência da insistência recente no rigor, generalidade e simplicidade” (DEBREU, 1987, p. 244) e “uma recente interpretação descoberta pode aumentar consideravelmente o domínio de aplicabilidade da teoria sem requerer qualquer mudança na sua estrutura” (DEBREU, 1991, p. 5). A adequação empírica significa que as consequências deduzidas da teoria devem estar em concordância com a observação e informações experimentais existentes. O alcance da teoria significa que a teoria deve explicar mais do que aquilo que inicialmente foi seu primeiro objetivo. A simplicidade corresponde ao fato que as teorias percebem os fenômenos 11 isolados como instâncias de uma mesma explicação. Uma teoria deve ser consistente tanto em relação a ela mesma como em conjunto com outras teorias já aceitas. Por último, a fecundidade, isto é, uma teoria deve propiciar novas descobertas ou verificar novas relações entre fenômenos já conhecidos: Poucos artigos publicados, então, pela Econometrica ou pela Review of Economic Studies passaria no teste ácido de remover toda a interpretação econômica deixando sua infra-estrutura matemática ficar por si mesma. A maior solidez lógica das análises mais recentes têm contribuído para a rápida construção contemporânea da teoria econômica. Isso permitiu aos pesquisadores construir sobre o trabalho de seus antecessores e acelerar o processo cumulativo no qual estão participando. (DEBREU, 1991, p. 3) Finalmente, temos os exemplos paradigmáticos que ilustram os triunfos da teoria e servem para educar os cientistas na busca de soluções para novos problemas; “vários reconhecimentos acadêmicos dão ênfase adicional sobre o papel que a cultura matemática agora joga na nossa profissão [de economista]” (DEBREU, 1991, p.1). Alguns Historiadores Atuais e Thomas Kuhn Nenhum dos autores citados nesta seção se refere a Kuhn explicitamente. Isto não significa, obviamente, que Thomas Kuhn não os tenha influenciado. Brevemente, apresentamos os artigos “Creating a Context for Game Theory” de 1992, “Reading Cournot, Reading Nash: the Creation and Stabilisation of the Nash Equilibrium” de 1994 e “From Parlor Games to Social Science: von Neumann, Morgenstern, and the Creation of Game Theory 1928-1944” de 1995 de Robert Leonard. Nosso objetivo é ressaltar como o conceito de comunidade científica é fundamental para este autor. Os artigos do Leonard tratam a questão que o autor chama a “estabilização” da teoria dos jogos (LEONARD, 1992, p. 60), ou seja, como depois de um período de indecisões e recuos, que o autor situa entre 1921 e 1946 (LEONARD, 1992, p. 57), finalmente a teoria dos jogos se assentou como uma especialidade da ciência econômica. O autor diz que, em geral, um aspecto da cultura acadêmica é um tanto quanto inevitável, que é saber quem são as atuais figuras centrais da disciplina, ou quais são as escolas de pensamento em competição. Esta ordem histórica, imposta retroativamente pelos teóricos, muitas vezes assume uma forma particular, no qual o passado é visto como uma sequência imperturbável de contribuições dos principais líderes nos trazendo ao nosso imperfeito, mas ainda assim iluminado, atual estado de entendimento. Nesta forma, conhecida como história Whig, atribuise aos precursores um papel particularmente central: abre o caminho teórico para seus sucessores seguirem adiante, baseando-se nesses 12 fundamentos. A pretensão deste trabalho é que uma reconstrução mais desinteressada da prática dos economistas pode ajudar a revelar a complexidade da investigação cotidiana na teoria econômica. Em vez de olhar avanços teóricos do passado como apontando inevitavelmente para os mais recentes desenvolvimentos que desde então se tornaram familiares, vamos tentar recuperar algo da incerteza, negociação e debates que caracterizam a prática em economia matemática. O que descobrimos é que os novos conceitos e teorias levam tempo para serem assimilados, para ganhar um papel na discussão, para que seus significados sejam fixados: em suma, para serem estabilizados. Se alguém acredita, como o autor, que a história da economia deve prestar maior atenção à contingência e ao contexto, oferecendo "descrição mais densa" da prática dos teóricos, ao invés de contar uma simples fábula de como os últimos economistas heroicamente conseguiram antecipar o presente, então a história da teoria dos jogos constitui particularmente uma rica, para não mencionar atual, área de pesquisa. (LEONARD, 1994, p. 493) Leonard enfatiza que existe uma história estilizada que atribui o começo da teoria dos jogos ao livro “Theory of Games and Economic Behavior”, publicado em 1944, e existe um período no qual se forma o paradigma da teoria dos jogos (LEONARD, 1992, p.29). De qualquer maneira, o livro do von Neumann e do Morgenstern data um período que o autor chama “nível pandisciplinar” (LEONARD, 1995, p. 731). Para Leonard “na ausência de uma comunidade matemática racional, "teoria dos jogos" permanece um termo inadequado” (LEONARD, 1992, p. 30). Na parte II, do artigo de 1992, Leonard mostra o quanto [...] na sua maior parte, a interação entre os matemáticos em questão foi desprezível. Na medida em que uma teoria matemática adquire vida através de uma comunidade racional discutindo e contribuindo para o conjunto de ideias em questão, a análise matemática dos jogos antes da II Guerra Mundial, foi um caso particularmente sem vida. Não foi apenas muito pequeno número de pessoas interessadas envolvidas, mas, sobretudo, elas permaneceram incomunicáveis de fato . Apenas com o aparecimento de von Neumann e Morgenstern 1944 este estado de coisas começou a mudar. (LEONARD, 1992, p. 31) A segunda Guerra Mundial criou um contexto onde a teoria dos jogos ganha relevância pois “teve repercussões fundamentais sobre o modo como a ciência seria desenvolvida quando o conflito terminou. E, isto se aplica a matemática e economia, tanto quanto às ciências naturais” (LEONARD, 1992, p. 60). A partir do interesse dos militares e do suporte financeiro destes, a teoria dos jogos 13 [...] começou a ganhar respeitabilidade como uma área da matemática aplicada, veio o apoio para futuras pesquisas na área e uma comunidade com capacidade de se auto-reproduzir apareceu. Todo o processo representou a estabilização da matemática dos jogos. Isso ocorreu através da demonstração dos elos entre os jogos que já eram conhecido, por exemplo, em outras áreas da matemática ou o que tinha sido recentemente aprendidos na área de estratégia militar. (LEONARD, 1992, p. 60) Leonard escolhe o ano de 1946 como começo da estabilização. Neste ano Lynn Loomis publicou o artigo “On a Theorem of von Neumann” (LOOMIS, 1946) onde apresentou uma demonstração elementar do teorema minimax. Leonard termina o artigo sugerindo pesquisas futuras que revelem como a teoria dos jogos se difundiu do meio militar para as universidades e principalmente para o seu importante papel na microeconomia (LEONARD, 1992, p. 72). A seguir, tratamos do artigo “Nash Equilibrium” de Nicola Giocoli (GIOCOLI, 2004). O objetivo é “explicar porque [o conceito de] Equilíbrio de Nash foi negligenciado por muitos anos pelos economistas neoclássicos, incluindo os mais matematicamente orientados (ou mesmo os teóricos de jogos)” (GIOCOLI, 2004, p. 641). Para Giocoli, este conceito não teve um impacto imediato na teoria econômica porque a agenda de pesquisa do pós-guerra era o “como e o porquê” um sistema econômico atinge um equilíbrio. O conceito de equilíbro de Nash não ofereceria resposta por duas razões: em primeiro lugar, o tipo de racionalidade que mantem implica uma modelagem de recursos epistêmicos por parte do agente econômico que supera o que um economista do pós-guerra acharia aceitável e, segundo, o ponto de vista de ponto fixo de equilíbrio estático personificado pelo equilíbro de Nash tornou impossível abordar a questão de como os agentes revisam seus planos e expectativas - em outras palavras, o mesmo tema apontado desde 1930 como o ano crucial para elucidar o como e o porquê de equilíbrio. (GIOCOLI, 2004, p. 641) Na seção 1.3 do artigo, Giocoli expõe a famosa seção “Motivation and Interpretation” da tese de doutorado (NASH, 1950, p. 21) omitida em publicações posteriores. Em relação a esta seção, também Leonard conjectura sobre este silêncio de Nash: Entre a dissertação e sua versão publicada, no entanto, esta discussão econômica foi simplesmente descartada, toda a discussão da intuição econômica de Nash por trás de sua matemática é totalmente omitida do artigo do Annals [of Mathematics]! Independentemente, de quem pode ter tomado tais decisões editoriais, Nash ou seus editores, o que vemos aqui é o discurso que está sendo moldado na época pelas normas da comunidade daqueles que publicam matemática, e no 14 Annals of Mathematics em particular. Entre os matemáticos, que valorizam a elegância teórica, as ruminações sobre a intuição econômica subjacente a matemática tem pouco lugar [...] Requisitos formais têm precedência sobre debates sobre o comportamento “razoabilidade” comportamental dos conceitos econômicos subjacentes. (LEONARD, 1994, p.502) Giocoli lamenta esta omissão e sugere que se a seção “Motivation and Interpretation” tivesse sido publicada, o desenvolvimento da escola neoclássica poderia ter sido diverso. Giocoli diz que a diferença de avaliações entre economistas e matemáticos é um exemplo das “incomensurabilidades” que existem entre diferentes disciplinas científicas (GIOCOLI, 2004, p. 663). Como é bem sabido, o conceito de incomensurabilidade entre teorias científicas é devida a Paul Feyerabend e Thomas Kuhn, mas não com o significado atribuído por Giocoli. O artigo “A Contextualized Historical Analysis of the Kuhn-Tucker Theorem in Nonlinear Programming: The Impact of World War II” (KJELDSEN, 2000, p. 340), por sua vez, relata como o chamado teorema de Kuhn-Tucker, atualmente considerado um resultado fundamental da economia matemática, foi negligenciado entre 1939 e 1950 pela comunidade matemática, sendo que as formulações anteriores são quase idênticas àquelas que o destacaram posteriormente. Em 1939, o matemático Willian Karush obteve o teorema de Kuhn-Tucker utilizando a mesma técnica - o lema de Farkas - empregada por Albert Tucker e Harold Tucker em 1950 (KJELDSEN, 2000, p. 340). Também, o matemático Fritz John obteve o mesmo resultado, empregando técnicas similares, em 1948 (KJELDSEN, 2010, p. 340). Não houve interesse na publicação do resultado de Karush e Fritz John teve o trabalho recusado para publicação (KJELDSEN, 2000, p. 339). No entanto, em 1950, após a publicação do teorema por Kuhn e Tucker imediatamente este se tornou um resultado festejado da economia matemática (KJELDSEN, 2000, p. 331). Diga-se, o trabalho de Albert Tucker e Harold Tucker tem resultados que os trabalhos anteriores de Karush e Fritz John não possuem e isto também contribuiu para a celebridade do resultado. Como nos trabalhos de Leonard, Kjeldsen destaca o isolamento dos pesquisadores (KJELDSEN, 2000, p. 339) e ao propor uma razão pela qual o trabalho de Karush não foi publicado diz Ele não derivou um resultado que é comparável ao teorema de KuhnTucker, não explorou o assunto mais profundamente, e seu trabalho não era de programação não-linear, pois ocorreu num contexto completamente diferente. O departamento [de matemática] de Chicago [focava-se] num programa de pesquisa estreitamente definido por cáculo das variações, e dentro desta direção de pesquisa ninguém 15 estava interessado em explorar as possibilidades de aplicações do resultado do Karush. (KJELDSEN, 2010, p. 338) Em relação ao trabalho de Fritz John, Kjeldsen faz uma observação semelhante. “Mesmo que [no] título e [na] introdução, John passe a impressão de preocupar-se com problemas em cálculo das variações, a minha opinião é que seu artigo deve ser visto como uma contribuição para a teoria da convexidade [...]” (KJELDSEN, 2000, p. 341). Kjeldsen claramente distingue o contexto da descoberta que ele chama o “contexto sociológico” e o contexto da justificação que nomeia o “contexto puramente matemático”. Hoje, o autor observa, os matemáticos tomam os resultados dos quatro matemáticos como idênticos, pois para o trabalho matemático atual relevante é apenas o segundo contexto. Para Kjeldsen, a ausência de atenção para os trabalhos de Karush e Fritz John se explica pelo pouco interesse e valor que a comunidade matemática norte-americana conferia à matemática aplicada antes da II Guerra Mundial. O interesse dos militares e a adesão dos cientistas, e particularmente dos matemáticos, trouxe não apenas recursos financeiros, mas também prestígio para a matemática aplicada (KJELDSEN, 2000, p. 351). Os recursos financeiros favoreceram a formação da comunidade de matemáticos que desenvolveu a programação linear, a teoria dos jogos de soma-zero, relacionou estas duas áreas e desenvolveu os métodos computacionais necessários. Neste processo, o papel de John von Neumann foi essencial (KJELDSEN, 2000, p. 351-357). E, particularmente, para a teoria dos jogos significou a marginalização involuntária por parte de von Neumann dos objetivos de teoria econômica de Morgenstern, enquanto crítico da escola neoclássica, em detrimento dos interesses dos militares como é salientado por Leonard (LEONARD, 1992, p. 30), ou seja, “a teoria dos jogos estava agora nas mãos dos matemáticos que, sabendo pouco sobre economia, não compartilhavam com Morgenstern o desejo de revolucionar a teoria econômica” (LEONARD, 1994, p. 495) O autor conclui que o teorema de Kuhn-Tucker mostra que um teorema matemático em si, o seu "conteúdo matemático puro", nem sempre decide se ele vai estimular a investigação ulterior ou não. Contextos sociais também podem desempenhar um papel essencial. Embora os três resultados hoje sejam vistos como o mesmo teorema, na prática, são muito diferentes. O significado do resultado e do seu potencial para estimular a pesquisa adicional na sua área é determinada pela matemática e, por vezes, também pelos sociais-contexto no qual ele foi desenvolvido. (KJELDSEN, 2010, p. 357) 16 Till Düppe em dois artigos, “Debreu´s Apologies for Mathematical Economics after 1983” (DÜPPE, 2010) e “Gerard Debreu´s Secrecy: His Life in Order and Silence” (DÜPPE, 2012), relata a interação de duas escolas, a escola econômica que se constituiu a partir da década de 1940, e que chamamos “formalista”, e a escola matemática Bourbaki constituída na França a partir da década de 1930. Bourbaki não se preocupou com matemática aplicada que, como comentaremos, resultou num problema epistemológico para esta escola. Dos artigos do Düppe, inferimos que Debreu procurou transferir os valores científicos da Escola Bourbaki, no sentido que lhes dá Thomas Kuhn, para a epistemologia econômica. Também, observamos que as contribuições dos interesses políticos e econômicos se dão através das comunidades científicas envolvidas. No primeiro dos artigos, Düppe trata dos valores científicos que Debreu, ao estilo bourbakiano, atribui ao rigor matemático, ou seja, o que Debreu entende por generalidade das suposições, claridade e independência em relação às ideologias. O problema de Düppe é analisar o papel desempenhado na ciência econômica pelos valores científicos de Debreu: “a medida que um modelo formal de uma economia adquire uma vida matemática própria tornase objeto de um processo inexorável em que rigor, generalidade e simplicidade que são perseguidos implacavelmente” (DEBREU, 1986, p. 1265). Não discutiremos o ideário de Bourbaki em relação à matemática, ou seja, a exposição do conhecimento matemático na forma axiomática e a partir de certas estruturas primitivas. A filiação de Debreu a esta escola é indiscutível: “[...] fui treinado como um matemático, [...] para alguém educado na tradição matemática de Bourbaki não era convincente [que um sistema de n equações com n incógnitas tenha sempre solução], seja linear ou não [...]” (DEBREU, 1987, p. 248). A questão é como justificamos estes valores, em princípio, matemáticos, na ciência econômica. Afinal, o rigor é uma qualidade em qualquer disciplina científica, mas, nem mesmo na matemática, constitui uma finalidade. Na economia mainstream, entretanto, como, já repetiram tantas vezes, o rigor na exposição da teoria presumidamente sacrifica outros objetivos como, por exemplo, uma conceituação mais adequada e relevância do problema. Ora, para Düppe, a ênfase de Debreu nos aspectos axiomáticos da formulação matemática tem uma explicação bastante simples. Na década de 1950, Debreu exibia a face pública que a Comissão Cowles interessava mostrar: A virada teórica no Cowles não era apenas uma questão de gosto, mas de política. A presença de Debreu aumentou a diferença entre o puro e o aplicado e foi, portanto, decisiva para a reivindicação de uma autoridade apartidária por parte da Cowles quando se confrontando 17 Friedman, apaziguando McCarthy, e ao mesmo tempo fazendo promessas aos seus patrocinadores na RAND e na Força Aérea. (DÜPPE, 2012, p. 425) Ao contrário, na década de 1980, interessava apresentar uma face política para o trabalho de Debreu como expressou a Academia de Ciências da Suécia que o premiou com o Nobel: Adam Smith já havia levantado a questão de como decisões de mercado, aparentemente independentes umas das outras, estão coordenadas. [...] Arrow e Debreu conseguiram provar a existência de equilíbrio de preços, isto é, eles confirmaram a consistência lógica interna do modelo de economia de mercado de Smith e Walras.” (apud DÜPPE, 2012, p.440) Portanto, Düppe mostra como aspectos políticos extra-científicos se articulam na matriz disciplinar. Podemos suspeitar que a ênfase na estrutura matemática, isto é, o “teste ácido de remover toda a interpretação econômica deixando sua infra-estrutura matemática ficar por si mesma” (DEBREU, 1991, p. 3) encobre uma recusa política de tratar as conseqüências sociais da atividade acadêmica: Por que algumas das teorias mais intrincadas da matemática tornaramse uma ferramenta indispensável para a física moderna, para o engenheiro, e para o fabricante de bombas atômicas? Felizmente para nós, o matemático não se sente chamado a responder a essas perguntas, nem deve ser responsabilizado por tal uso ou o uso indevido de sua obra. (BOURBAKI, 1949, p. 2) Ainda, quando os filósofos nos atacam com seus paradoxos, corremos para nos esconder atrás do formalismo e dizemos: “a Matemática é apenas uma combinação de símbolos sem significado” [....].Finalmente, nos deixam em paz para voltar para a nossa matemática e fazermos o que sempre fizemos [...]. (DIEUDONNÉ, 1970, p. 145) Debreu supõe que “rigor” significa ausência de significado, por isto Düppe muito corretamente diz que não existe nos conceitos matemáticos de Debreu uma representação dos sujeitos econômicos mas uma substituição que conserva apenas o nome do objeto econômico primitivo (DÜPPE, 2010, p. 10). Em outras palavras, “rigor” para Debreu significa permitir que a teoria se formule como uma combinação de símbolos desprovidos de significado. Esta ausência de significados permite o controle lógico em relação à consistência pois “negada uma base experimental suficientemente segura, a teoria econômica tem que respeitar as regras do discurso lógico e deve renunciar à facilidade da inconsistência interna” (DEBREU, 1991, p.2). Mas, também, existem questões semânticas implicadas no processo de formalização: Tomamos aqui um ponto de vista ingênuo de não lidar com as questões espinhosas , meio filosóficas, meio matemáticas , levantadas 18 pelo problema da “natureza” dos “seres” ou “objetos” matemáticos. Basta dizer que os estudos axiomáticos dos séculos XIX e XX gradualmente substituiram o pluralismo inicial da representação mental desses “seres” – pensou-se inicialmente como ideais, “abstrações” de experiências sensoriais e retendo toda a sua heterogeneidade – por uma concepção unitária, reduzindo gradualmente todas as noções matemáticas, primeiramente, no conceito do número natural e, em seguida , numa segunda fase, na noção de conjunto. Este último conceito, considerado por muito tempo como “primitivo” e “indefinível”, tem sido objeto de polêmicas intermináveis, como resultado de seu caráter extremamente geral e por conta do tipo de muito vaga representação mental que suscita; as dificuldades não desapareceram até que a própria noção de conjunto tivesse desaparecido (e com ele toda a metafísica dos pseudoproblemas relativos aos “seres” matemáticos), à luz do recente trabalho sobre o formalismo lógico. Deste ponto de vista, as estruturas matemáticas se tornam adequadamente falando os únicos objetos matemáticos. (BOURBAKI, 1950, p. 225) Como observa Düppe, “Debreu não teoriza frente ao mundo, mas frente à estrutura” (DÜPPE, 2010, p.12). Por outro lado, o descolamento dos significados da estrutura formal confere também generalidade pois podemos associar significados diversos desde que conservem às mesmas relações formais: “uma interpretação recentemente descoberta pode então aumentar consideravelmente a o domínio aplicabilidade da teoria, sem exigir qualquer alteração na sua estrutura” (DEBREU, 1991, p. 5). Do ponto de vista estritamente lógico, Debreu enfrenta na economia o mesmo problema do Bourbaki em relação a matemática. Desconectada a relação entre os aspectos formais e semânticos, Bourbaki defronta-se com a relação agora aparentemente gratuita entre a matemática e suas aplicações, e Debreu, com a questão se os conceitos e axiomas estão expressando os objetos e relações econômicas reais: Aqui, o trabalho interpretativo dos instrutores de economia começa. Eles literalmente inventam narrativas para os objetos matemáticos, produzindo a impressão de referência real. Se os professores enfatizam a inteligibilidade e mantém a matemática acessível, eles ironicamente reforçam o baluarte matemático contra a reflexão crítica. O mesmo se aplica para aqueles economistas que tomam as narrativas de graduação literalmente como verdades descritivas e entram na economia comportamental. A maior parte desta pesquisa confunde pressupostos e axiomas e, na verdade, reforça a estrutura subjacente que é independente de qualquer interpretação. Foi principalmente em virtude dessas interpretações "secundárias" dos axiomas que a comunidade neo-walrasiano pode alcançar sucesso na 19 produção de um referencial de teoria econômica. (DÜPPE, 2010, p. 13) Em relação aos axiomas que relacionam os conceitos primitivos, Debreu observa que “quando Arrow e eu começamos a trabalhar no problema de existência [de equilíbrio] no começo da década de 1950, não sabíamos o quanto deveriam ser fortes as suposições. Se descobrissemos que fossem muito restritivas, acredito que o modelo [de equilíbrio geral] seria de pouco valor. Nas últimas três décadas e meia, as suposições têm sido gradualmente enfraquecidas” (DEBREU, 1987, p. 243). Para Debreu, os axiomas não apresentam de forma estilizada propriedades dos conceitos econômicos representados matemáticamente, mas são axiomas, os mais gerais possíveis, de forma a assegurar a existência de equilíbrio, assim se explica que, “em outras palavras, ao provar existência não estamos afirmando algo acerca do mundo real, mas tentando avaliar o modelo” (DEBREU, 1987, p. 243). Com diz Düppe, a confusão é entre “suposição” e “axioma”. Suposições não são especificadas sobre os conceitos primitivos, muito menos em relação ao seu significado referencial, mas em relação aos objetos matemáticos que substituem estes conceitos primitivos. Falar de "suposições" é enganador no sentido que Debreu não assume algo como acontece com hipóteses, suposições ou crenças básicas, que entrariam em jogo quando teorizando. O que Debreu chama de “hipóteses” são resultado da axiomatização, ao invés de a priori epistêmicos. (DÜPPE, 2010, p. 12) Relacionada a generalidade e ausência de significado, Debreu associa à inexistência de viés ideológico: A formulação exata de premissas e conclusões acabou, aliás, por ser uma proteção eficaz contra a sempre presente tentação de aplicar uma teoria econômica para além do seu domínio de validade. E, através da exatidão dessa formulação, a análise econômica, às vezes, aproximase do ideal de ser livre de ideologia. O caso dos dois principais teoremas da economia do bem-estar é sintomático. Eles respectivamente dão condições sob as quais um equilíbrio em relação a um sistema de preços é um ótimo de Pareto, e em que condições o inverso se mantém. Oponentes da intervenção estatal lêem nesses dois teoremas a demonstração matemática da superioridade incondicional das economias de mercado, enquanto os defensores da intervenção estatal acolhem mesmos teoremas porque a explicitação de seus pressupostos enfatiza as discrepâncias entre o modelo teórico e as economias que observam. (DEBREU, 1986, p.1266) Em relação a esta concepção de Debreu, Düppe afirma que Debreu não resolveu um problema político por qualquer meio epistêmico. Ao contrário, ele despolitizou a economia. O que Debreu celebra como a libertação da ideologia é a liberdade de relevância 20 política. Somente neste sentido é a economia ciência, e não de acordo com qualquer padrão de filosofia da ciência, como tenho defendido. Economia é sistemática, sim, mas não conhecimento sistemático. Debreu provou rigorosamente que a autoridade de rigor não apoia nenhuma interpretação política da Teoria do Equilíbrio Geral. [...] O trabalho de Debreu marca a virada da Economia da suspeita de ser livre de ideologia para o lamento da insignificância. (DÜPPE, 2010, p. 26) Os artigos do Till Düppe tratam os critérios científicos de Debreu como valores no sentido de Kuhn e não como critérios absolutos para a escolha científica. No final do artigo “Debreu’s Apologies for Mathematical Economics”, Düppe afirma que a associação que acabou ocorrendo entre o trabalho de Debreu e o neoliberalismo não tem caráter necessário. Se houvesse um viés político na economia matemática, na sua relação com o rigor e transparência, este seria mais socialista que liberal, argumenta o autor (DÜPPE, 2010, p. 29). A questão que realmente está em jogo é que “Debreu foi questionado como uma autoridade em significado e não em estruturas. Pois, jamais alguém na discussão econômica esteve interessado em estruturas” (DÜPPE, 2010, p. 30). A Permanência da Ênfase Internalista Abaixo, comentamos dois artigos, The Formalist Revolution of the 1950s” (BLAUG, 2003) e “Introducing Formalism in Economics: The Growth Model of John von Neumann” (GLORIA-PALERMO, 2010), que enfatizam explicações internalistas. Os perigos de uma história exclusivamente internalista estão muito bem expressos na frase de David Bloor “[Os críticos de Kuhn] parecem pensar que há uma conexão intrínseca entre as ideias e sua utilização, em vez de uma conexão historicamente mutável” (BLOOR, 2009, p. 124). No artigo “The Formalist Revolution of the 1950s” (BLAUG, 2003), o fato que a teoria dos jogos na década de 1950 e 1960, depois da publicação do livro do von Neumann e do Morgenstern, permaneceu relativamente de pouco interesse para os economistas para ressurgir na década de 1970 é um “enigma histórico” (BLAUG, 2003, p. 148). Blaug procurou razões no desenvolvimento da própria teoria econômica e as apresentadas são que a teoria dos jogos “apenas oferecia soluções definitivas para jogos não-cooperativos de somazero que são irrelevantes para a economia” e “o desaparecimento de análise de desequilíbrio na microeconomia de inspiração walrasiana e a crescente concentração no estado final do equilíbrio que foi uma característica marcante da economia ortodoxa na década de 1950” (BLAUG, 2003, p. 148). Como vimos anteriormente, os artigos do Robert Leonard e Nicola 21 Giocoli nos oferecem um relato consistente de parcela das causas da trajetória das teoria dos jogos. Em 2003, Blaug consistentemente ainda priorizou explicações “internalistas”. Um artigo, que nos parece apresentar um ponto de vista distorcido da chamada “Revolução Formalista”, é o “Introducing Formalism in Economics: The Growth Model of John von Neumann” de autoria de Sandye Gloria-Palermo (GLORIA-PALERMO, 2010) . A autora assentou seus argumentos sobre trechos retirados do artigo clássico sobre crescimento do von Neumann (GLORIA-PALERMO, 2010, p. 157, p. 164), um trecho retirado de um artigo do David Hilbert (GLORIA-PALERMO, 2010, p. 161) e um trecho do Bourbaki (GLORIA-PALERMO, 2010, p. 163). Não há dúvida que a partir dos trechos selecionados a leitura feita por Sandye Gloria-Palermo é relativamente convincente e concluimos, junto com a autora, que não existem diferenças epistemológicas notáveis entre von Neumann e Debreu. Leo Corry (CORRY, 2001) ao tratar o impacto da escola Bourbaki na matemática estabelece dois conceitos relacionados ao que Thomas Kuhn chama de “matriz disciplinar”. Corry distingue as questões que se referem ao “corpo do conhecimento” que seriam aquelas que Kuhn chama de “enigmas” ou “quebra-cabeças” e aquelas que estão dirigidas diretamente à matriz disciplinar, questões da “imagem do conhecimento”. Por exemplo, seriam problemas relacionados à imagem aqueles que questionam quais os problemas importantes em dado momento, quais são os procedimentos e autoridades para dirimir dúvidas, como devem ser os currículos universitários, etc. Em resumo todos os problemas epistemológicos e normativos envolvidos em cada disciplina científica particular (CORRY, 2001, p. 168). Ora, a filiação de von Neumann a escola formalista hilbertiana e a axiomatização que esta escola empregou tanto em matemática quanto na Física ou Economia é bastante distante do programa da Escola Bourbaki. Sandye adequadamente observou que o processo de axiomatização na ciência tem nas suas origens hilbertianas dois objetivos: por um lado, aquele que na matemática tornou-se o mais conhecido, ou seja, a formalização tratando, através dos instrumentos próprios da matemática, as questões de consistência e completude, o que veio a ser conhecido como o programa formalista para a matemática; por outro lado, axiomatização também significa um processo de rigorização e exposição não apenas para a matemática como para toda a ciência como o bem conhecido trecho de Hilbert, usado por Sandye, revela (GLORIA-PALERMO, 2010, p. 161). Von Neumann ainda que empregue técnicas matemáticas quase idênticas aos membros da escola Bourbaki não propôs a reconstrução da matemática em bases axiomáticas a partir de algumas estruturas básicas e também sempre associou à matemática às suas aplicações. Nem 22 os problemas do corpo da matemática de von Neumann e Bourbaki foram os mesmos, nem as imagens de um e outro foram as mesmas. Esclarecedor neste sentido é o trecho em que Debreu comenta a influência do livro “Theory of Games” do von Neumann e Morgenstern: [...] a publicação do “Theory of Games and Economic Behavior” foi um símbolo do início de uma era de ouro. Eu não quis dizer que a estrutura e todos os conceitos centrais da teoria dos jogos deveriam ser tomados literalmente. Queria dizer que havia no livro uma reformulação da teoria econômica, que novas ferramentas matemáticas foram introduzidas, particularmente análise convexa, que também aderiu-se ao rigor matemático, que a teoria fornecia em muitos aspectos, um estímulo intelectual poderoso. [...] A influência do seu trabalho foi grande, mas em muitos casos, sentida indiretamente e de maneiras imprevistas pelos dois autores. (DEBREU, 1987, p. 251) Ora, a filiação de von Neumann a escola formalista hilbertiana e a axiomatização que esta escola empregou tanto em matemática quanto na física ou economia é bastante distante do programa da Escola Bourbaki. A escola formalista originada em Hilbert resulta das preocupações de Hilbert em relação a fundamentação da física suscitada pela leitura do livro de mecânica de Heinrich Hertz (CORRY, 2000, p. 38). Conclusão Aparentemente, parcela das ideias de Kuhn é particularmente adequada para explicar a metodologia neoclássica das últimas décadas do século vinte. Uma tradição de pesquisa propondo teorias matemáticas relativamente desconexas de fatores empíricos, mas com alta concordância intracomunitária quanto aos métodos e instrumentos analíticos. É importante frisar que para Kuhn, a matriz disciplinar tem caráter prático, ou seja, delimita e conforma os problemas tratados e também estabelece os compromissos que permeiam a comunidade científica. Inegavelmente, é um problema histórico explicar a tenacidade de teorias matematicamente formalizadas que parecem ter pouca relação com os fenômenos econômicos que seriam a razão da teoria. Mesmo admitindo a explicação óbvia para esta persistência no postulado que supõe a matematização uma característica valiosa para cientificidade, restaria explicar a maneira através da qual tal postulado é capaz de sustentar uma tradição científica com escassa aplicabilidade. Aparentemente, os valores científicos por parte da comunidade dos economistas matemáticos explica a sobrevivência neoclássica na disputa com as escolas rivais. Historiadores como Robert Leonard, Nicola Giocoli, Tinne Kjeldsen e Till Düppe não se limitaram a utilizar uma esquematização prévia, como o conjunto de valores 23 intracomunitários destacados acima, mas relacionaram a sustentação e reforço destes valores através da relação que a comunidade científica mantém com os acontecimentos políticos e sociais nos quais esta comunidade está imersa. A insistência dos primeiros críticos – como comentamos acima, Stigler, Bronfenbrenner, Blaug, Kunin e Weaver – que a proposta de Kuhn não se adequava à economia por causa da vigência simultânea de vários paradigmas foi atenuada. Provavelmente, os historiadores atuais preferem ler que “normalmente, os membros de uma comunidade científica amadurecida trabalham a partir de um único paradigma ou conjunto de paradigmas estreitamente relacionados” (KUHN, 1978, p. 202). Tanto, Leonard (LEONARD, 1994), quanto Düppe (DÜPPE, 2010) e Giocoli (GIOCOLI, 2004) insistiram nos resultados sobre a teoria econômica da diferença de ordenação dos valores científicos entre a comunidade dos economistas e a dos matemáticos. Giocoli chama esta diferença de “incomensurabilidades” que é um termo de Kuhn utilizado com um novo significado (KUHN, 1978, p. 145). Portanto, sugerimos que o livro “As Revoluções” está influenciando pelo menos uma geração recente de historiadores da economia matemática. Kuhn criticou a radicalização de seu programa como ocorreu na escola de David Bloor (KUHN, 2006, p. 116), mas talvez, em relação à matriz neoclássica ele concordasse que “a lógica do conceito é um resíduo de seu papel social e não vice-versa” (BLOOR, 2009, p. 118). Referências Bibliográficas BLAUG, M. Kuhn versus Lakatos, or Paradigms versus Research Programmes in the History of Economics. History of Political Economy (HOPE), v. 7, n. 4, p. 399-433. 1975. _________. 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