Memorial
Submetido à Banca Examinadora do Concurso Público de provas e títulos para provimento de uma vaga como
Professor Adjunto da Carreira do Magistério Superior da Universidade Federal do Rio de Janeiro
IFCS / Departamento de História — Teoria e Metodologia da História (código n. 0286249).
Rio de Janeiro, março de 2004.
Norma Côrtes
§ Formação acadêmica
Sou historiadora. Formei-me pela PUC-Rio, onde ingressei ainda adolescente, às
vésperas de casar e completar 19 anos. E de lá só sai aos 34 anos de idade — já adulta,
divorciada, e com o título de Mestre em História Social da Cultura. Da PUC fui
estudante e professora. E em ambos os casos, entrei por concurso permanecendo tempo
o bastante para acreditar que sou boa aprendiz das artes do meu ofício. Ter sido formada
em História entre 1980 e 1995 foi quase um privilégio. Se foi uma década
economicamente perdida, os anos oitenta também foram um período de grandes abalos
e rupturas cognitivas. Entre a euforia e a perplexidade, assistimos então ao colapso dos
esquemas teóricos e explicativos do estruturalismo e/ou do marxismo de inspiração
althusseriana.
E a isso se seguiu um espírito de franca liberalidade intelectual,
parecendo que todos os paradigmas e formas de abordagem do passado estavam
disponíveis e eram possíveis ou legítimos. Mágica, a palavra interdisciplinaridade soava
como a solução de todos os dilemas teóricos. Era, porém, só o canto de uma sereia cujo
encanto nos levava a acreditar que a verdadeira História (!?) residia num campo
intelectual permissivo, difuso e frouxamente compartilhado entre a Antropologia, a
Literatura, a Psicanálise, a Sociologia, a Ciência Política, a Filosofia etc. Ainda bem
que tive a sorte de estar próxima de professores — uns entusiasmados, outros céticos e
alguns deliciosamente indecisos — que rapidamente me ensinaram que a identidade do
historiador não se construiria pela diluição das fronteiras intelectuais dessa disciplina.
Ao contrario: o diálogo interdisciplinar era tão urgente quanto era necessário afirmar a
singularidade da abordagem histórica e historiográfica.
Lembro bem. Quem me ensinou isso foi Maria Alice Rezende de Carvalho (e
sinceramente acho que ela falava por experiência própria, uma vez que sua trajetória
intelectual descreve um caminho de ida, mas também de volta, entre a História e a
2
Sociologia). Duas vezes minha orientadora, na PUC e no Iuperj, Maria Alice ensinoume a calibrar esse encontro entre a História e as Ciências Sociais. Substantivamente, ela
me apresentou à História da razão sociológica e também ao repertório conceitual da
Sociologia dos intelectuais e do conhecimento. Mas ao invés de fazê-lo como se
manejasse um elenco fixo e atemporal de instrumentos teóricos cuja aplicação é
universal e a validade, absoluta, fez-me ver a historicidade do processo de composição
da reflexão sociológica. Em suma, enraizando a Sociologia na história e fazendo uso de
um raciocínio historicamente orientado — em estreito acordo com o historicismo que
germina em Mannheim —, transmitiu-me uma perspectiva crítica e auto-reflexiva
acerca dos limites e das condições de possibilidade (históricas e epistêmicas) daquela
mesma razão sociológica que então me apresentava.
Quando ingressei no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, na
turma de 1994, para fazer o doutorado em Ciência Política recebi uma acolhida
intelectual bastante generosa. E isso foi muito importante, pois embora parecesse que o
Instituto era uma versão laica da História da PUC, o fato é que nunca me senti
fortemente integrada ao mainstrean da casa. Digo, não aprendi a ser uma cientista
política dura. Na rua da Matriz, em Botafogo, aprendi outras coisas: lá fui aluna de
Cesar Guimarães, Ricardo Benzaquen, José Murilo de Carvalho, Marcelo Jasmin,
Renato Lesa, Luiz Werneck Vianna — além de Maria Alice, é claro1. Todos epocais
(para usar o linguajar sibilino do professor Candido Mendes), pois eram sociólogos,
antropólogos, cientistas políticos e/ou historiadores que mesmo pertencendo a duas
gerações diferentes se irmanavam tanto pela seriedade dos seus trabalhos quanto porque
compreendiam o pensamento brasileiro, a inteligência política e sociológica clássica ou
a vida intelectual e filosófica em geral como expressões singulares de uma época
histórica qualquer. Com eles também aprendi a pensar a vida inteligente como
manifestação do “espírito” de uma época e a conceber os fatos da razão (política ou
sociológica) como fenômenos empíricos historicamente conformados. Ali, finalmente,
refinei o meu estilo de escrita e de abordagem histórica e acho que posso me apresentar
como uma historiadora das idéias políticas sem que isso cause vergonha ou provoque
constrangimento naqueles que contribuíram para minha formação intelectual e
1
Além desses, também fui aluna do professor Manuel Luiz Salgado Guimarães na disciplina História e Narrativa,
oferecida durante o segundo semestre de 1994 no Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ.
3
acadêmica.
A essa curta trajetória também se soma uma idiossincrática inclinação para os
estudos teóricos e filosóficos. Por alguma razão que eu mesma não compreendo, desde
muito jovem sou “amadora” da Filosofia e encontrei na área de Teoria e Metodologia da
História a minha vocação profissional. Meu aprendizado dessa área foi marcado pelos
ensinamentos do professor Francisco Falcon cujas aulas de Teoria ou de História da
historiografia eram copiosas, mas totalmente propícias a fazer pensar. Durante os
quinze anos em que estive na PUC fui sua aluna. Quer dizer, eu praticamente o persegui
durante toda a minha graduação e também no mestrado. E desde então compreendi que
é um tour de force querer separar a teoria da história. Afinal, ainda que possuam
estatutos desiguais, a reflexão teórica e os acontecimentos históricos não estão em
campos antitéticos. Pois longe de exprimir uma oposição ao real, a atitude teorética
revela uma ação, sendo o esforço reflexivo de um agente histórico que quer conhecer a
si e a seus próprios passos cognitivos e intelectuais. Em outras palavras, se
compreendida como ação, a reflexão teórica não pode ser vista como refratária ao
mundo, pois nela se encerra um modo de pertencimento do homem à realidade e à sua
História. Volto a esse ponto logo adiante.
§ Histórico profissional (ensino & pesquisa)
Há dezesseis anos sou professora universitária2. Iniciei minha carreira docente
em 1988 na antiga Faculdade da Cidade (situada às margens da Lagoa Rodrigo de
Freitas, bairro da zona sul do Rio de Janeiro), onde oferecia História do Brasil
republicano para turmas de graduação em Comunicação e Turismo. Depois, atuei
durante oito anos no Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro, lecionando disciplinas obrigatórias da área de Teoria e Metodologia para
os alunos da graduação de História além de variadas outras disciplinas eletivas para as
Ciências Socais, o Direito, a Comunicação ou a Administração. Afora tais atividades
docentes, na PUC participei do grupo de estudos formado pelos professores e alunos do
Mestrado em História Social da Cultura que, assim como eu, também lecionavam na
graduação. No início dos anos 1990, durante aproximadamente um ano, mantivemos
2
A única experiência profissional que mantive com vínculos institucionais fora dos muros universitários foi no
Arquivo Nacional, onde por aproximadamente dois anos (primeiro como estagiária e depois como pesquisadora) atuei
junto à Divisão de Pesquisa (cf Declaração anexo).
4
encontros regulares para estudar e analisar os clássicos da historiografia ou do
pensamento político. O professor Cesar Guimarães apresentou-nos Lições da Filosofia
da História de Hegel; Marcelo Jasmim analisou as obras históricas de Aléxis de
Tocqueville; Sonia Lacerda (atualmente na UNB) expôs a Ciência Nova de Vico;
Berenice Cavalcante brindou-nos com Caio Prado Junior; e Ricardo Benzaquen
esbanjou erudição ao analisar Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre. Produtivos e
densos, os debates desse grupo de estudo me ajudaram a definir um modo de leitura e
interpretação e também um método de abordagem teórica. Dosando o chamado contexto
histórico — informações pré-textuais, biográficas etc — em equilíbrio com os
elementos formais e propriamente textuais, as peripécias discursivas ou os recursos
conceituais e teóricos mobilizados pelos clássicos, tais exercícios analíticos exibiam um
formato de enquadramento em História social das idéias e um modelo de compreensão
da historicidade da inteligência política e/ou historiográfica que, mesmo acentuando
fortemente seu enraizamento na chamada realidade histórica, não depreciava o estatuto
ôntico das idéias à mera “vulgaridade ideológica”.
Recentemente, há mais ou menos cinco anos, sou Professora Adjunta da
Universidade Candido Mendes (com atuação nos campi Ipanema, Campos de
Goytacazes ou Tijuca). Na UCAM, sempre ofereço disciplinas das Ciências Humanas,
com caráter propedêutico, que ocupam a franja inicial da grade curricular do curso de
Direito. Lá ensino Introdução à História da Filosofia; Introdução à Ciência Política;
História do Direito; Introdução à Sociologia; Sociologia Jurídica; ou Introdução à
Metodologia do Trabalho Científico.
Acredito que essa variedade de disciplinas e de público alvo acabou temperando
minhas habilidades didáticas. Afinal de contas, se aprendi a dar aulas observando os
meus professores (e posso dizer, sem medo de errar, que assisti a uma gama de
exemplos admiráveis), foi somente com meus alunos que ganhei clareza e simplicidade
— e isso foi num crescendo, tornando-se um compromisso inabalável com a
transmissão dos conteúdos programáticos. Sob esse ânimo, há anos elaboro apostilas
didáticas (cf particularmente: Quase tudo que se deve saber para viver numa
Universidade, mas ninguém ensina; Para escrever bem e Como escrever um projeto de
pesquisa em História), que agora estão disponíveis em meu site pessoal, o Artes do
Tempo© 3. Escrevo-as por prazer — ou talvez por causa de uma esquisitice criativa que
3
Artes do Tempo©, url: www.artesdotempo.hpg.com.br / e-mail: [email protected]
5
volta e meia me assalta —, mas o importante, porém, é que resultam do esforço de
sistematização das minhas experiências docentes ou de pesquisa e revelam com boa
dose de precisão o tipo de envolvimento que normalmente dedico aos meus alunos.
Ultimamente sou bolsista recém doutora pelo CNPq junto ao Departamento de
História e ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro4.
Desde novembro de 2001, quando obtive esta bolsa, além das
atividades docentes na graduação e na pós-graduação5, da coordenação da Comissão da
Biblioteca do IFCH e da edição da Revista eletrônica Intellectus6, também realizo um
estudo historiográfico sobre as obras de Nelson Werneck Sodré e a filosofia de João
Cruz Costa. Intitulada Clássicos da Historiografia Brasileira. Visões da História em
Nelson Werneck Sodré e João Cruz Costa, essa pesquisa visa investigar e compreender
os debates intelectuais que contribuíram para fixar os atuais padrões de inteligibilidade
da História do Brasil. Quer dizer, mais que resgatar do esquecimento as obras do
“último historiador marxista” ou as idéias do “único” filósofo nacionalista da USP, o
que se pretende é encontrar elementos empíricos que permitam compreender e analisar
o debate historiográfico que, em meados dos anos 1970, polarizou duas gerações de
intelectuais brasileiros e os seus respectivos estilos de pensamento7 — e isso resultou na
conformação de um padrão de raciocínio acentuadamente estruturalista cuja força
explicativa foi quase hegemônica8, pois se estendeu à maioria das áreas disciplinares
4
Lá encontrei um plantel de historiadores sérios e admiráveis, que me oferecem um convívio fraternal,
intelectualmente estimulante e particularmente produtivo. Sinceramente, sou-lhes muito grata por isso.
5
cf anexo, os programas das disciplinas oferecidas.
6
Editada pela Prof Maria Emilia Prado e por mim, a Intellēctus (www2.uerj.br/~intellectus/) é uma revista eletrônica
que pretende publicar estudos sobre a vida intelectual latino-americana e brasileira. Sua intenção é reunir artigos,
resenhas, links e nomes de pesquisadores ou estudiosos que analisem a história e as obras da nossa inteligência
política, econômica, cultural, social, artística, filosófica, jurídica etc. A revista está aberta a todas as especialidades e
diferentes formas de reflexão e abordagem do seu tema principal – os fatos e feitos da vida inteligente —, pois quer
contribuir para ampliação desse debate.
7
Com auto-imagens distintas e excludentes — uns acreditavam expressar a consciência social de um dizer comum e
popular; outros pretendiam edificar uma ciência radicalmente contrária aos saberes vulgares e aos ditos ideológicos
—, o que polarizou essas gerações foram duas visões antagônicas de Brasil. Subdesenvolvimento versus
desenvolvimento combinado e dependente; cosmopolitismo versus nacionalismo; consciência versus ciência; lógica
dual versus lógica dialética; historicismo versus estruturalismo; razão histórica versus razão sociológica: todas essas
dicotomias revelam duas weltanschauungen que disputavam o significado da realidade social, travaram um conflito
de interpretações acerca da sociedade brasileira e se chocaram pela prerrogativa de definir a melhor chave explicativa
do mundo dos homens.
8
Hoje esta hegemonia está em franco declino. No próximo semestre, planejo oferecer um curso no PPGH da UERJ
sobre tal História dos debates historiográficos brasileiros, tentando traçar seus combates políticos e dilemas
conceituais e teóricos desde a tese do feudalismo até a descoberta da “terceira margem do Atlântico” . Quer dizer,
desde Nelson Werneck Sodré até os atuais estudos historiográficos que de um modo geral passaram a investigar a
África.
6
das chamadas Ciências Humanas (com exceção, talvez, do Direito) e também a todos os
eventos da História do Brasil desde o Tratado de Tordesilhas.
Essa pesquisa está em desenvolvimento (atualmente estou organizando um Guia
Bibliográfico reunindo toda a literatura secundária relativa à vida e obra de Nelson
Werneck Sodré) e, como o previsto, até o fim deste ano os seus resultados substantivos
devem vir a público9. Acredito que ela consiste num experimento de abordagem dos
debates historiográficos brasileiros e espero que contribua para a compreensão da
história da formação dos atuais paradigmas de inteligibilidade da História do Brasil.
Enfim, pretendo que seus rendimentos intelectuais me permitam refinar um modo
compreensivo que, diluindo as fronteiras entre a história e a teoria/metodologia da
História, resgate a historicidade da inteligência historiadora e consiga equilibrar o
tratamento analítico comumente dado aos aspectos epistemológicos e teoréticos com o
resgate histórico das controvérsias substantivas (de ordem política e social) que estão
contidas nas obras deste dois autores clássicos da historiografia brasileira.
§ Produção científica, publicações e afins.
Meus trabalhos mais relevantes, digo os que exigiram maior fôlego e
investimento, foram: a dissertação de mestrado, Alceu Amoroso Lima: Idéia, Vontade,
Ação da intelectualidade católica no Brasil; e a tese de doutorado, Esperança e
Democracia. As idéias de Álvaro Vieira Pinto (ED)10. Ambos tiveram a orientação de
9
A validade da bolsa RD expira em outubro de 2004, quando devo apresentar ao CNPq o Relatório Final. Como
produtos parciais deste empreendimento, além dos relatórios já enviados em 2002 e 2003, posso citar as Disciplinas
oferecidas na graduação e no PPGH da UERJ; a Comunicação Coordenada Arquivo pessoal e a construção do
sentido histórico apresentada no Encontro Regional da ANPUH sediado na UERJ em outubro de 2002; e finalmente a
exposição O filósofo e o historiador feita na Jornada de Estudos Nelson Werneck Sodré (VII Jornadas de Ciências
Sociais) na UNESP – Marília, entre os dias 19 e 22 de agosto de 2002 (cf anexo).
10 De ambos trabalhos frutificaram os seguintes artigos, ensaios e comunicações (cf anexo):
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A democracia educa. Revista Contemporaneidade e Educação, n 11 (prelo)
Anti-mímesis. Despojamento, diálogo, democracia. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 30, 2002, p.
91-109.
Consciência e Realidade Nacional — notas sobre a ontologia da nacionalidade de Álvaro Vieira Pinto (1909–
1987). Acervo. Revista do Arquivo Nacional. Rio de Janeiro, v. 12, jan/dez 1999, p.
Católicos e autoritários. Breves considerações sobre a sociologia de Alceu Amoroso Lima. Rio de Janeiro,
Intellectus – revista eletrônica. Disponível em www2..uerj.br/~intellectus/
Entre o Império e a República, o sentido trágico da Questão Religiosa. Revista ARCKÈ Interdisciplinar, ano III,
n. 8, 1994, p. 99-115.
Comunicação no XI Congresso Brasileiro de Sociologia. Álvaro Vieira Pinto. A realidade como construção
social e dialógica. Campinas, 04 de setembro de 2003.
Exposição O filósofo e o historiador na Jornada de Estudos Nelson Werneck Sodré (VII Jornadas de Ciências
Sociais) UNESP – Marília. De 19 a 22 de agosto de 2002.
Conferência Álvaro Vieira Pinto — a nação como projeto da semana de abertura da exposição Construtivismo e
Arte: o Brasil como projeto. Curador Reynaldo Roels. Museu de Arte Moderna — MAM. Rio de Janeiro, 02
7
Maria Alice Rezende de Carvalho e consistem em estudos de interpretação histórica e
de exegese das idéias sociais, políticas e filosóficas desses dois intelectuais brasileiros.
Jamais havia pensado seriamente a respeito de existir ou não algum tipo de continuidade
entre tais trabalhos (na verdade, é a primeira vez que preciso escrever um Memorial e,
honestamente, não me sinto nada confortável em construir esta persona que vos
escreve), mas apesar disso vou afirmar que, embora tenham alvos distintos e graus de
maturidade
autoral
notavelmente
enquadramento intelectual.
desiguais,
guardam
forte
semelhança
de
Inscritas no campo temático dos estudos sobre o
pensamento brasileiro — a dissertação dedicada à investigação dos intelectuais católicos
desde a Questão Religiosa até fins da década 1930; e a tese voltada para as idéias
nacionalistas que entre 1950 e 1960 estavam contidas na filosofia historicista e
existencialista de Vieira Pinto, o filósofo do Instituto Superior de Estudos Brasileiros
(ISEB) —, ambas foram tentativas de elaborar uma Historia social das idéias e dos
intelectuais no Brasil.
De uma forma geral, além de lidar com as fontes e eventualmente descobrir uma
nova documentação de pesquisa, meus principais desafios eram: primeiro, não
superestimar as determinações do real em qualquer de suas instâncias ou dimensões (e
isso significava não tratar os intelectuais ou suas idéias como fenômenos de segunda
grandeza, meros reflexos de um mundo que os determina e precede). Depois,
conseqüentemente, também não reificar a noção de contexto histórico — na medida em
que o contexto não consiste num continente elucidativo dos conteúdos textuais, mas tãosomente numa reunião razoavelmente arbitrária das outras fontes documentais (objetos,
textos ou imagens) elaboradas à época pelos demais agentes históricos. E finalmente,
evitar hipertrofiar a autonomia da vida intelectual. Porque, ao contrário dos cabelos, as
idéias não germinam nas cabeças espontânea ou naturalmente11.
Todas essas questões já estavam mais ou menos sugeridas na dissertação de
mestrado. Nela, sob clara inspiração hegeliana (idéia, vontade, ação são figuras da
consciência extraídas da Fenomenologia do Espírito de Hegel), tentei explorar o
de março de 1999.
Conferência IISEB e a democracia. Álvaro Vieira Pinto. No Seminário Pensamento Político Brasileiro
oferecido pelo Prof Cesar Guimarães no Iuperj, em 17 de abril de 2001. (sem texto)
ƒ
Comunicação Álvaro Vieira Pinto: Esperança e Democracia na III Semana de História realizada pelo
Departamento de História da UERJ, 24 a 28 de novembro de 2003. (sem texto)
11
Que eu saiba, tais questões encontram a sua melhor formulação no contextualismo lingüístico. Cf particularmente
Dominick LaCapra et alii. Modern european intellectual history. Ithaca: Cornel University Press, 1982.; J.G.A.
Pocock. Politics language & time. Chicago: The University of Chicago Press, 1989; James Tully (ed) Meaning &
context. Quentin Skinner and his critics. Princeton: Princeton University Press, 1988.
ƒ
8
paradoxo existente entre as intenções humanas e o sentido da História12. Da ação trágica
e involuntária13 até o planejamento e a ação política, a dissertação sobre Alceu Amoroso
Lima descreve a história da formação da inteligência católica no Brasil e analisa os seus
modos de agir e pensar.
Muito embora tenha sido um trabalho claramente escolar, os rendimentos da
dissertação me conduziram a discutir teoricamente o caráter inventivo e construtivo das
tradições. (Convém observar que tal questão era válida tanto para os meus próprios
gestos de recomposição historiográfica quanto para os de Amoroso Lima, pois em
meados de 1930, ao mirar o passado, ele fixa a tradição de pensadores católicos em que
se reconhece. Outrossim, é importante frisar que o tratamento não teleológico da
tradição fez-me evitar as ultrapassadas noções de influência e de precursor14) E em
seguida, além disso, também considerei as escolhas cognitivas e os recursos intelectuais,
isto é, os conceitos, as teorias, os sistemas explicativos, os modos de enquadramento ou
abordagem etc, como topoi discursivos e cognoscentes que conformam visões de mundo
e revelam gestos e opções de natureza política. Afinal, quando Amoroso Lima elegeu a
Sociologia como o sistema compreensivo da sociedade brasileira — e isso após um
longo e penoso processo de laicização da vida pública — ele finalmente encontrou a
fórmula da autonomia e da liberdade da Igreja face ao Estado15.
Nessa investigação sobre a formação da consciência católica já se encontrava um
claro esforço de reflexão teórica. Contudo, foi só na tese de doutorado que enfrentei as
questões acerca da historicidade da inteligência — a minha própria e a do meu “objeto”
de investigação — e do estatuto ôntico das idéias munida de um repertório filosófico,
teórico e conceitual consistente. Não quero insinuar que se trate de obra de maturidade
(sou moça demais para isso!), mas o fato é que o estudo sobre o pensamento de Álvaro
Vieira Pinto obrigou-me a assumir a circularidade da situação hermenêutica e a refletir
sobre os embaraços aí envolvidos de modo a resolvê-los produtivamente.
12
Ver G. W.F. Hegel. Lecciones sobre la filosofia de la historia universal. Madrid: Alianza Editorial, 1975, p 85.
13
Cf anexo: Entre o Império e a República, o sentido trágico da Questão Religiosa. Revista ARCKÈ Interdisciplinar,
ano III, n. 8, 1994, p. 99-115.
14
Cf o 4o capítulo, Breves apontamentos de uma quase conclusão, de Alceu Amoroso Lima: idéia, vontade, ação da
intelectualidade católica no Brasil.
15
“[...] ele adotou a sociologia como a intérprete da realidade social, levando até as últimas conseqüências o
pressuposto epistêmico e ontológico dessa disciplina: a ordem da sociedade obedece a uma legalidade própria e
guarda autonomia frente ao Estado. Assim, quando utiliza a sociologia como modo de compreensão da vida coletiva
ele também se apropriava de uma sistematização teórica e metódica que lhe confirmava a idéia de a sociedade não
estar compreendida no e pelo direito positivo.” Norma Côrtes. Católicos e autoritários. Breves considerações sobre a
sociologia de Alceu Amoroso Lima. RJ, Intellectus – revista eletrônica. Disponível em www2..uerj.br/~intellectus/
(cf anexo)
9
Esperança e Democracia. As idéias de Álvaro Vieira Pinto. ganhou o Prêmio de
publicação do Iuperj e, em outubro de 2003, foi lançado pela Editora UFMG no
Encontro anual da ANPOCS. (A capa é de minha autoria, também16.) Serei breve. Suas
principais contribuições são estas que abaixo se seguem:
1. Gerado durante as aulas do professor Cesar
Guimarães sobre cultura e política no Brasil dos anos
1950-196017, Esperança e Democracia consiste numa
crítica aos paradigmas historiográficos e sociológicos
ainda vigentes, que insistem em interpretar esse
período da História republicana reduzindo-o à tríade
conceitual nacionalismo / desenvolvimentismo /
populismo. Se não chega a configurar um movimento,
tal revisão historiográfica também não se deu
isoladamente. E mesmo não sendo intencional ou tendo qualquer organicidade, é
possível identificar em diversos outros autores da atualidade o mesmo ânimo para
retirar a História dos anos 1950 do engessamento conceitual a que até
recentemente estava condenada18.
2. Esperança e Democracia é um estudo sobre o pensamento brasileiro e também
consiste num exercício teórico-metodológico. Com dupla inscrição disciplinar
(Brasil e Teoria), ele é a um só tempo uma investigação sobre a filosofia de
Vieira Pinto e uma detida e escrupulosa reflexão acerca das atitudes metódicas
necessárias a aproximação e ao entendimento do passado. Com efeito, antes de
adotar um procedimento crítico formal ou uma estéril descrição conceitual do
chamado “marco teórico”, seu caminho metódico responde a uma exigência
gerada pela consciência da historicidade da própria investigação. Em outras
palavras, os passos de aproximação e composição do objeto (as obras de Vieira
16
A capa segue a disposição gráfica da Coleção Origens e foi elaborada a partir de Bandeirinhas de Alfredo Volpi.
Sobre a proximidade entre a arte construtivista no Brasil e a filosofia de Vieira Pinto, cf anexo Anti-mímesis.
Despojamento, diálogo, democracia. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 30, 2002, p. 91-109.
17
Além de inúmeras outras teses e dissertações, o Banco de Dados Cultura e Política no Brasil (1950-1968),
organizado pelo Professor Cesar Guimarães, com a participação de Santuza Neves, Ricardo Guanabara e a minha, foi
um dos produtos de suas aulas e pesquisas (consultas on-line em www.iuperj.br).
18
Sem fazer uma listagem exaustiva, ver os recentes trabalhos de Jorge Ferreira, Daniel Aarão Reis, Paulo Cunha,
Fernando Latmann-Weltman, Marcos Silva, Marcelo Ridenti, Santuza Neves e vários outros.
10
Pinto) rejeitaram a ingenuidade cognitiva, refletiram sobre si mesmos, negaram
gratuidade às escolhas intelectuais, indagaram sobre a conformação e a História
dos seus próprios recursos cognoscentes — eis a História, o processo de
conformação e institucionalização, dos paradigmas historiográficos brasileiros —
e, finalmente, desconstruindo tal trajetória, assumiram a circularidade da situação
hermenêutica tal como postulada em Gadamer, Verdade e método.
3. Instalado nessa situação compreensiva, ED encerra uma suspeita quanto à
pretensão inscrita na incursão epistemológica de fundamentar teoricamente o
conhecimento histórico19. Na prática, apesar de a questão não ser meramente
procedimental, isso implicou em: a) fugir do malfadado primeiro capítulo teórico,
que geralmente exibe um arsenal conceitual que congela ou despreza os dados
empíricos; b) evitar elaborar uma angelical apresentação do chamado “estado das
artes” — pois seria o desfile das mesmíssimas armas conceituais que derrotaram
as idéias de Vieira Pinto20 —; e finalmente, c) não lidar com a teoria ou o método
como se fossem instrumentos atemporais, neutros e sempre disponíveis ou dados
a priori de qualquer investida cognoscente. E por outro lado, sob o aspecto
teórico, digo filosófico, tratava-se tanto de superar o fetiche da metodologia —
fetiche que confere primazia ao rigor metódico supondo que as premissas teóricometodológicas garantem per si o entendimento dos vestígios do passado —,
quanto ultrapassar o criticismo de inspiração kantiana cuja preocupação consiste
em fundamentar o conhecimento, estabelecendo a priori as suas condições de
possibilidade epistêmicas. Na contramão de ambas
atitudes, Esperança e
Democracia pretende que a fundamentação (teórica) do saber histórico repouse
na história ela mesma21.
Muito bem. De Esperança e Democracia restaram pistas e sugestões para
futuros outros projetos e estudos (um deles já mencionado e em desenvolvimento
19
Entre outros, cf Charles Taylor. Argumentos filosóficos. São Paulo: Loyola, 2000; e Richard Rorty. A filosofia e o
espelho da natureza. Lisboa: Dom Quixote, 1988.
20
21
Ver a nota sete deste Memorial.
“É a força de uma tradição que interpela o intérprete da História, não o contrário. O ânimo de conhecer um
acontecimento passado não nasce no cérebro curioso de um investigador solitário, isto é, não tem sua origem numa
psique plena de traços ímpares e idiossincráticos. A gênese que lança, anima e estabelece o empreendimento
compreensivo reside no pulsar de uma tradição transmitida ao longo do tempo. Não convém banalizar tal proposição
e imaginar o sujeito do conhecimento, o intérprete do passado, como mero fantoche destituído de personalidade e
sempre pronto a assumir papéis ou interesses que lhes são alheios. O ponto não é ignorar a subjetividade, mas sim
deslocar a indagação epistemológica do terreno da consciência para o mundo histórico propriamente dito.” (ED: p57)
11
financiado pela bolsa RD/CNPq). Mas de seu saldo também se extrai um núcleo de
questões que, a bem da verdade, lançam suspeição sobre o estatuto teorético da Teoria e
Metodologia da História. Mais do que indagar sobre sua serventia ou função, a questão
consiste em rejeitar a pretensão inaugural da atitude teorética.
Explico-me.
A rigor, nem o controle dos instrumentos metódicos, nem as opções teóricas são
caminhos inexoráveis para a verdade (em qualquer acepção do termo). A distinção entre
a boa e a má História não depende do formalismo do método e nem sequer pertence
exclusivamente a uma das inúmeras possibilidades de coloração teórica. Grosso modo,
para além da hegemonia intelectual de uma dada cultura historiográfica que fixa
consensos e sanciona paradigmas interpretativos, os critérios que permitem separar o
joio do trigo residem na honestidade, na sinceridade e na maturidade intelectual do
historiador. É claro que essa convicção de caráter deontológico não afasta a necessidade
da introspecção crítica22. Ao contrário: pois se ela enfatiza um aspecto ético extra
epistêmico (uma espécie de vocação para a verdade), por outro lado, continua exigindo
reflexão. Afinal, nesse registro, os profissionais dedicados ao conhecimento do passado
precisam compreender todos os seus atos cognoscentes, isto é, devem dominar os
procedimentos metódicos e principalmente compreender a historicidade e o
enraizamento mundano (ordinário) das suas próprias opções intelectuais.
Mais ingênuo que o empirismo ou o academicismo positivista que conferem
loquacidade à documentação dos arquivos é o historiador que imagina que suas
premissas teórico-metodológicas são o fiat inaugural do processo de conhecimento do
passado. Ora, as chamadas premissas nem fornecem critérios neutros ou universais para
verificação e validação de nossas próprias intuições, suspeitas ou convicções
cognoscentes; e nem sequer são premissas exatamente. Porque antes de ocuparem a
ante-sala da História, como se fossem o ponto-zero que dá partida e assegura as
condições de possibilidade do conhecimento histórico — situação em que tudo se
resolveria pela imaculada precisão das elucubrações do sujeito cognitivo —, elas
exprimem modos de concepção do conhecimento da história e esforços compreensivos
já realizados e vividos no passado. Em outras palavras, revelam tradições intelectuais.
E, portanto, não há qualquer anterioridade ou primazia entre tais formulações e os
22
Aqui sigo os passos do argumento de Max Weber sobre os limites da ciência tal como aparecem na célebre
conferência A ciência como vocação.
12
vestígios pretéritos contidos na história propriamente dita.
Todas as incursões teóricas (ultrapassadas ou atuais) foram historicamente
constituídas. Sei que isso é um truísmo, mas é preciso assinalar que tais incursões
possuem matrizes intelectuais, cumpriram uma senda histórica, conformaram-se através
das vicissitudes dessa trajetória — que, de resto, pode ter sido um processo conflitivo de
institucionalização e profissionalização da disciplina23 — e por fim formalizaram um
corpus qualquer de idéias que contém uma concepção de conhecimento, uma visão de
mundo, uma perspectiva acerca da espessura temporal24, uma eleição de quem são os
protagonistas do passado etc, etc. Histórico e socialmente construído, esse elenco de
proposições não pode ou deve ser utilizado como se fosse um modelo explicativo
absoluto.
Na prática, isso significa que não basta oferecer aos futuros historiadores uma
parafernália teórico-metodológica atualíssima, eventualmente sistematizada num
manual de iniciação aos estudos históricos, e imaginar que as exigências de rigor
historiográfico foram atendidas. Antes disso talvez seja necessário levá-los a considerar
o caráter histórico dos debates historiográficos. Quer dizer, o ponto é fazê-los perceber
que não há inexorabilidade ou naturalidade alguma nos atuais recursos intelectuais.
Ademais, longe de serem precisos ou rigorosos, os nossos conceitos, métodos e teorias
ocultam uma trajetória de fixação geralmente cheia de imprecisões explicativas,
imperfeições lógicas, ilações ideológicas — sem falar nas disputas por poder
acadêmico, nas pequenas vilanias ou na fogueira das vaidades intelectuais.... Enfim,
toda a questão então se resume em fazê-los reconhecer a historicidade dos nossos
próprios regimes mentais. Se assim for, Teoria e Metodologia da História provoca
espanto e só serve para fazer pensar, mas isso nos humaniza e pode ser um bom
caminho através do qual reconhecemos aquilo que somos nós.
Muito obrigada,
Norma
23
Como exemplo cf os estudos de Fritz Ringer.O declínio dos mandarins alemães. São Paulo: Edusp, 2000. ou
François Dosse. A história em migalhas. São Paulo: Edusc, 2003. Para o caso brasileiro, ver os ensaios de Bernardo
Sorj. A construção intelectual do Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001 e também Carlo
Fico e Ronaldo Polito. A historiografia dos últimos vinte anos — tentativa de avaliação crítica. in J. Malerba (org) A
velha história. Campinas, Papirus, 1996.
24
Sobre o tempo, cf anexo Amnésia o tempo domo construção. Revista Espaço Acadêmico, ano II, n. 22, mar 2003 –
mensal. Disponível em http://www.espacoacademico.com.br/rea_arquivo.htm
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Memorial. Submetido à banca examinadora do - PPGHIS