ALDÓNIO GOMES Nota biográfica Filho único de Manuel e Maria da Conceição, nasceu na Ajuda, em Lisboa, a 30 de de‐ zembro de 1926. Criança tímida, desde cedo participou ativamente na vida do núcleo famili‐ ar, tanto mais que o pai era forçado, por razões profissionais, a longas ausências e o dinheiro não abundava. Aluno aplicado e responsável não se deixou abater pelas diversas mudanças de escola ditadas pelas deslocações familiares que o obrigaram a adaptações frequentes – com uma passagem da 3.ª para a 2.ª classe por insuficiência de idade e a venda forçada de uma caneta de estimação para poder comprar um manual de Matemática, material de estu‐ do que serviu de base ao 20 que sucedeu ao zero inicial, na passagem do Liceu de Castelo Branco para o Liceu Pedro Nunes na capital. Esteve quase para se chamar Jacques, nome de um padrinho, mas a vontade do pai impôs‐se e das origens madeirenses do progenitor nasceu Aldónio. Curiosamente, no Dicio‐ nário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, regista‐se a raridade do nome, dando conta da insegurança da origem e tomando‐o como exemplo: As‐ sim se chama o distinto pedagogo Dr. Aldónio Gomes. Aos dezoito anos foi trabalhar para a Caixa Geral de Depósitos, sem nunca abandonar os estudos. Licenciou‐se em Filologia Clássica como aluno voluntário, embora ainda se tives‐ se matriculado em Medicina – curso que o fascinava, mas que obrigaria a uma dedicação ex‐ clusiva que a vida não lhe permitia. Fez a tropa em Setúbal e dessa altura guardou memórias gratificantes, talvez porque nunca lhe foi difícil cumprir regras. Casou‐se pela primeira vez com uma colega da Faculdade, mãe dos seus quatro fi‐ lhos, e a sua vida profissional começou a progredir: fez o estágio profissional para professor, ao mesmo tempo que dava aulas em colégios particulares para subsistir já que então o está‐ gio não era pago. Contava que nessa altura o cansaço era tanto que era capaz de dormir de pé. Aos vários cargos que desempenhou corresponderam os diversos locais onde foi vi‐ vendo, de Tondela a Viana do Castelo, de Santarém a Vila Nova de Gaia e, finalmente, de Lisboa ao Estoril, com incontáveis estadias em São Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Guiné‐ Bissau, Angola e Moçambique. Ainda hoje os antigos alunos da Escola Industrial e Comercial de Santarém recordam com profunda saudade o seu diretor e professor de Língua Portuguesa dos anos sessenta, sublinhando‐lhe as qualidades como gestor e organizador, mas sobretudo o brilho como pro‐ fessor: Sabia do que falava, sabia muito do conteúdo do que ensinava. Sabia como dar a aprender. Sabia como envolver na aprendizagem. Falava com simplicidade, mas com o saber, a elegância e o respeito pelos temas que só os grandes mestres podiam evidenciar. – afirma Manuel João Sá, no blogue Alfageme Santarém, em fevereiro de 2011. E conta: Contactámo‐ lo, há um tempo. Fomos a casa dele: o “Alpiarça”, o Malaca, o Xavier, eu próprio. Foi com grande emoção que falámos com ele, que lembrámos aqueles tempos… Foi ali, ao fim de muitos anos, que pudemos dizer‐lhe, olhos nos olhos, na nossa voz de ainda‐meninos‐já ho‐ mens‐há muito – como tinha sido bom tê‐lo tido como diretor, como professor, como educa‐ dor, enfim. A partir de dezembro de 1965 foi diretor da Telescola e em direto, ainda a preto e branco, praticamente sem meios auxiliares, dava aulas de Português, com uma maestria que prendia ao pequeno ecrã professores e alunos que puderam através desse meio continuar os seus estudos para além do então chamado ensino primário. Nas localidades mais remotas de Portugal e também em São Tomé e Príncipe, a Telescola foi o garante do acesso à escola‐ ridade de um grande número de crianças e adolescentes e o facto de as lições serem grava‐ das em direto permitiu a utilização pioneira de textos literários africanos – que terão passa‐ do despercebidos à censura, mas que lhe valeram o reconhecimento e o apreço do Professor Manuel Ferreira, por exemplo. Numa entrevista à revista semanal de atualidades Flama, em junho de 1970, no quin‐ to aniversário da Telescola, fez o balanço dos cinco anos de atividade da maior sala de aulas portuguesa – 20 mil alunos inscritos e 1123 postos no país – e referiu inúmeros projetos es‐ partilhados pelo pouco tempo que a TV lhes reservava, apenas o período das 14.40 às 19 horas de segunda a sexta. Entre esses projetos, contam‐se programas de apoio aos estudan‐ tes que têm exames, formação de professores de vários graus, cursos técnicos com apoio de correspondência e ensino infantil. No Ministério da Educação foi diretor‐geral (antes e depois do 25 de Abril, permane‐ cendo no cargo por vontade dos trabalhadores), inspetor‐geral de ensino e diretor da Obra Social. Participou em dois governos como independente: foi Secretário de Estado dos Ensi‐ nos Básico e Secundário no II Governo Constitucional (PS/CDS) e no V Governo Constitucio‐ nal (chefiado por Maria de Lurdes Pintasilgo). Dedicou grande parte da sua vida profissional ao serviço público, tendo recebido em 1981 o grau de Grande Oficial da Ordem de Instrução Pública e todos aqueles que com ele privaram referem a sua inteligência, a sua honestidade intelectual, a sua humildade e a sua capacidade de trabalho. Entre 1985 e 1995, foi consultor da Fundação Calouste Gulbenkian e coordenador do Projeto de Expansão e Melhoria Qualitativa do Ensino da Língua Portuguesa, da mesma Fun‐ dação, que dinamizou a reformulação dos programas de ensino, a formação dos professores e a elaboração de manuais escolares, de todos os níveis de ensino, nos países africanos de língua portuguesa. Nesse âmbito gizou estratégias de ação, chefiou dezenas de missões téc‐ nicas aos cinco países e liderou um projeto de grande complexidade e sensibilidade política nalguns casos, sem nunca ter atraiçoado o rigor da língua portuguesa e procurando os pres‐ supostos teóricos do ensino‐aprendizagem dessa mesma língua em contextos linguísticos tão variados. Profundamente inovador nas práticas propostas, este Projeto consubstanciou‐se em cinco subprojectos distintos e correspondeu às expectativas dos países – sempre represen‐ tados por uma equipa nacional que trabalhava com a equipa da Fundação – e garantia a arti‐ culação vertical das aprendizagens da língua portuguesa, nas suas vertentes utilitária e lite‐ rária, tendo sempre em linha de conta a literatura do país e as outras literaturas em língua portuguesa. Com calendários apertados e cumpridos escrupulosamente, foi graças ao seu incansável entusiasmo e reconhecido saber que se produziram, em coautoria, dezenas de manuais de língua portuguesa (para alunos e professores) específicos a cada um dos países. A principal dificuldade com que se deparava na seleção de textos literários para a elaboração desses manuais era o desconhecimento que imperava sobre autores e obras edi‐ tadas de e em cada um dos PALOP. Se antes das independências, já era difícil acompanhar o movimento editorial de autores africanos, depois era praticamente impossível. Mas, no seu vocabulário, a palavra impossível não tinha lugar: com a persistência, a que muitos chama‐ ram teimosia, transformou cada missão técnica em pesquisa laboriosa de livros editados no país. E de tal modo esta prática se tornou habitual que era ele – o estrangeiro – que dava a conhecer aos professores nacionais o que tinha acabado de ser editado no seu país. Com‐ prados, transportados muitas vezes na bagagem de mão por causa do peso, são esses livros – que constituem hoje parte do seu espólio bibliográfico – que a Universidade de Aveiro vai tornar úteis aos estudiosos das literaturas africanas de língua portuguesa. Continuar a divul‐ gá‐los é um imperativo moral que fez nascer em 1997 o Dicionário de Autores de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, editado pela Caminho, e em cuja “Introdução” os autores dizem que o seu objetivo é atenuar os problemas de uma tripla situação: o desconhecimen‐ to, frequente em Portugal, em certos meios, inclusive escolares, relativamente a poetas e prosadores de literaturas africanas de língua portuguesa; o desconhecimento, em cada um dos Cinco, das personalidades literárias dos outros países de língua oficial portuguesa; e – insólito, ou talvez nem tanto – o facto de se descobrir, por vezes, em cada país, um débil co‐ nhecimento dos autores desse mesmo país e das respetivas obras. Também com o objetivo de divulgar os textos literários africanos nas escolas portu‐ guesas, foi coordenador científico da linha editorial africana do Grupo de Trabalho do Minis‐ tério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, com produção de 12 volumes da Coleção Novas Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, para professo‐ res e alunos dos 3 ciclos do ensino básico. Foi ainda autor de programas de ensino, formador de formadores de professores e de professores de Língua Portuguesa, em Portugal e nos PALOP, tendo realizado inúmeras ações de formação nas áreas de didática da língua, de pedagogia e de metodologias de tra‐ balho, com coautoria da obra do Serviço de Educação da Fundação Calouste Gulbenkian, O Guia do Professor de Língua Portuguesa – 3 volumes, um para cada nível de ensino. Alargando o âmbito da sua ação e atingindo o público em geral utilizou, ao longo de anos, a televisão e a rádio como meios privilegiados para dar a conhecer a língua portuguesa e as suas particularidades, em saborosas conversas pontuadas de pequenas historietas e cu‐ riosidades. Exemplos disso são programas como: Lições de Português, na R.T.P.1 (1971‐ 1975), A Falar É Que a Gente Se Entende, na R.T.P.1 (1979), Abóboras no Telhado, na Rádio Comercial (1992), Como Disse? / Programa Acontece, na R.T.P.2 (1999‐2003). No magazine mensal Eva de fevereiro de 1973, o insuspeito crítico Mário Castrim, num artigo intitulado “Presença televisiva: o que é isso?” afirma: Quanto a Aldónio Gomes, a sua atividade tem‐se orientado, há anos, no sentido de dar a compreender a riqueza, as sub‐ tilezas da literatura. […] Convida‐nos a ler, não com os olhos, mas com a inteligência: convi‐ da‐nos a mergulhar no mar das palavras, em lugar de passarmos por elas como gato por brasas. A arma de que Aldónio se serve é a grande facilidade de expressão e de comunicação. E Correia da Fonseca, na sua habitual crítica de TV, de 22 de setembro de 1979, inti‐ tulada “A vantagem de ser Aldónio”, refere, sobre a rubrica A Falar É Que a Gente se Enten‐ de, o seguinte: Anteontem mesmo, a propósito da diversidade de tratamentos pessoais que a Língua Portuguesa consente, tema em princípio limitador e baço, a charla de Aldónio Gomes constituiu, como aliás é costume, um discreto festival de inteligência. E sublinha‐se o seu ca‐ ráter discreto, livre da menor dose de presunção. Entretanto, em 2002, assistiu finalmente ao lançamento da série televisiva Ora Viva! – sessenta episódios correspondentes ao 2.º nível do Projeto “Língua Viva 98”, empreendi‐ mento arrojado de que foi coautor e responsável pedagógico na escrita de guiões e na pro‐ dução e realização dos videogramas, em colaboração com a R.T.P. Trata‐se de uma série que foi para o ar na R.T.P.2 e que visava sobretudo motivar, pela trama inerente a um conjunto de blocos didáticos, um crescente interesse pela língua e pelos seus problemas, ao mesmo tempo que consolidava e desenvolvia o domínio de estruturas e recursos básicos linguísti‐ cos, de modo a assegurar um primeiro estádio de competência comunicativa. Para além dos títulos citados, foi autor ou coautor de numerosos trabalhos, nas áreas do ensino da língua portuguesa, das literaturas africanas de língua portuguesa e da formação de professores. Por exemplo: Dicionário Elementar da Língua Portuguesa, Dicionário Prático de Conjugação dos Verbos da Língua Portuguesa, Literatura na Guiné‐Bissau. Foi ainda cola‐ borador do Grande Dicionário de Língua Portuguesa da Porto Editora e coautor da coleção Português, Língua Viva, da Clássica Editora, com publicação dos quatro primeiros volumes: A Vida das Palavras. Léxico (2004), Escutar, Falar. Oralidade (2005) Escrever Direito. Ortografia (2005) A Língua não É Traiçoeira. Morfologia (2006). Deixou quase pronto o Dicionário de Estrangeirismos. Nos últimos dez anos da sua vida, até o dia 9 de fevereiro de 2011, viveu no Estoril – com a segunda mulher e os seus dois gatos – já aposentado, mas cumprindo quase até ao fim uma rotina de trabalho: lendo, estudando, escrevendo, ouvindo sempre mais do que fa‐ lando, mas dizendo invariavelmente a palavra que fazia falta. Fernanda Cavacas Estoril, setembro de 2011