Departamento de Letras
NARRATIVA, IDENTIDADE E TRABALHO
Aluna: Aline Maria Cantanhêde Pereira
Orientadora: Maria do Carmo Leite de Oliveira
Introdução
Este relatório tem por objetivo apresentar as atividades por mim desenvolvidas
como bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), no
período de agosto de 2009 a julho de 2010. A proposta de pesquisa aqui apresentada é
um desdobramento do estudo desenvolvido pela orientadora com o apoio do CNPq
(bolsa de produtividade 2007-2010) sobre sucesso e carreira profissional e introduz o
tema de um dos subprojetos, apoiado pela FAPERJ (edital 026/2008/ 2009-2011),
Cultura brasileira e o discurso dos profissionais acerca das relações de trabalho.
Inicialmente, apresento as atividades gerais realizadas no âmbito do referido
projeto e, a seguir, o estudo desenvolvido conforme meu projeto individual “Narrativa,
identidade e trabalho”.
Atividades
Como bolsista do projeto, participei das seguintes atividades: (i) participação em
reuniões com a orientadora para discutir textos teóricos e dar conta das atividades de
pesquisa em que estive envolvida; (ii) seleção de tópicos sobre a pesquisa; (iii)
pesquisa bibliográfica e fichamento sobre tópicos relevantes para o desenvolvimento do
meu projeto individual; (iv) análise de dados, direcionada às perguntas de pesquisa; (v)
elaboração de comunicação para apresentação no X Seminário Salínguas; (vi)
preparação de comunicação para o XVIII Seminário de Iniciação Científica – PUC Rio; (vii) preparação de relatório de pesquisa.
O estudo
A capacidade de representar-se é exclusiva da espécie humana. O sujeito organiza
suas experiências dando sentido a elas através da narrativa que faz de si mesmo. De
acordo com Bastos (2008), “ao criar esse universo narrativo, estamos necessariamente
mostrando quem somos, ou pelo menos, algumas dimensões de quem somos”. Sendo o
trabalho uma categoria central na narrativa de nós mesmos, as histórias de experiência
profissional são parte de nossas histórias de vida que, segundo Linde (1993) auxiliam na
criação e manutenção das identidades.
Num momento em que se acentua a precarizaçao do trabalho, a sustentação da
noção tradicional de carreira como trajetória profissional ascendente vinculada a uma
mesma organização é posta em xeque. Sendo assim, cabe investigar como as histórias
de vida são (re)contadas e como o sentido do trabalho é (re)pensado.
Este estudo tem como objeto a história de profissionais que migraram – voluntária
ou involuntariamente – do emprego corporativo para o autoemprego, na condição de
consultores autônomos. A partir da análise de dados gerados em entrevistas de pesquisa
com profissionais de diferentes grupos etários e de alto nível de qualificação que
fizeram essa migração, busca-se verificar como eles constroem uma narrativa coerente
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de si mesmos e como a mudança de categoria de empregado para autoempregado afeta o
sentido do trabalho.
Perspectivas teóricas e metodológicas
Tomamos a teoria da narrativa e a análise de categorias de pertença como
ferramental teórico-metodológico. O corpus é constituído de um conjunto de 10
entrevistas semi-estruturadas de 30 a 70 minutos com indivíduos, selecionados por
tipicidade e acessibilidade, com elevado nível de qualificação profissional que deixaram
grandes organizações empresariais e que vivenciavam a experiência do autoemprego
por tempos diferenciados.
No que diz respeito à narrativa, partimos do pressuposto de que a história de vida
de cada indivíduo é um conjunto de todas as estórias e discursos contados por ele
durante o curso de sua vida e que se relacionam de forma coerente entre si. (Linde,
1993). Essas narrativas devem satisfazer a dois critérios básicos: contar algo sobre o
falante e serem reportáveis, ou seja, reportarem eventos não usuais de forma que
possam ser contados e recontados durante um período de tempo. Conforme ressalta
Bastos (2008):
Esse conjunto vai dinamicamente se alterando no curso da vida das
pessoas, não apenas no sentido de que as estórias vão se transformando a
cada situação de narração, como também no sentido de que novas estórias
vão sendo acrescentadas e outras esquecidas. As estórias de vida estão,
assim, em constante revisão e reinterpretação.
Quando contamos estórias estamos construindo identidade, pois situamos os outros e a
nós mesmos numa gama de relações sociais, valores, crenças. Ochs e Capps (2001)
afirmam que a narrativa pessoal é uma forma de usar a linguagem ou outro sistema
simbólico para narrar eventos da vida com uma ordem temporal e lógica, para
desmistificá-los e estabelecer coerência ao longo do passado, presente e experiências
ainda não realizadas. Ainda para as autoras, a narrativa de vida se concentra em
mudanças sociais ordinárias nas quais interlocutores constroem sentido para eventos da
vida.
De Fina (2003) estabelece uma distinção entre narrativa e estória, esclarecendo
que o protótipo de uma narrativa é a estória. As estórias podem ser descritas não
somente como narrativas que têm uma ordem seqüencial e temporal, mas também como
textos que incluem algum tipo de ruptura ou distúrbio no curso normal dos eventos,
algum tipo de ação inesperada que provoca uma reação e/ou um ajuste. No caso da
referida pesquisa, os entrevistados vivenciaram uma ruptura ao migrarem do emprego
em grandes empresas, em que possuíam uma estabilidade financeira acompanhada de
um status social, para a experiência do autoemprego.
Neste trabalho, nosso foco são os sistemas de Coerência, isto é, sistemas de
crenças e relações entre crenças, usados para estruturar estórias de vida e explicações
para as experiências vividas. Esses sistemas funcionam como uma forma de justificar as
opções e/ou posições dos falantes. A coerência de uma estória de vida representa uma
obrigação social. Linde (1993) busca analisar como os indivíduos envolvidos no
processo narrativo fazem uso dos sistemas de coerência, sobretudo o senso comum, para
dar sentido as suas experiências. A autora afirma que os sistemas de coerência
consistem em artifícios culturais que estruturam vivências em forma de narrativas,
sendo compartilhadas nas entrevistas, por exemplo. Além disso, existem os sistemas de
coerência compartilhados por especialistas, ou seja, “crenças e relações entre crenças
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compreendidas, adquiridas e usadas apropriadamente por especialistas em certas áreas”
(p.163).
Nas entrevistas de pesquisa analisadas, os entrevistados utilizam sistemas de
coerência como uma forma de justificar a mudança do emprego para o autoemprego:
“Eu queria aprender outras coisas, eu queria trabalhar com estratégica, com
marketing, coisas diferentes daquilo que eu estava fazendo e a oportunidade não estava
chegando”. Percebe-se que o entrevistado justifica sua mudança relatando sua
insatisfação com as atividades que exercia na empresa e revelando seu desejo de atuar
em outros setores. Observamos que os entrevistados ao mesmo tempo em que procuram
mostrar que permanecem os mesmos, apesar dessa ruptura, relatam mudanças
significativas em suas formas de atuação profissional:
“eu sou o mesmo profissional que eu sempre fui”
“Eu nasci para ser funcionário público ou fazer uma carreira numa
multinacional. Isso é o que meus pais queriam para mim, mas eu fugi desse destino,
gerenciei a fuga no momento certo, eu fiz isso”
No que se refere às categorias de pertença, assumimos que grande parte do
conhecimento dos membros de uma sociedade é armazenada em termos de categorias
(Sacks, 1972, 1979, 1992). A noção de Mecanismo de Categorização de Membros
(MCM) explica a formação das coleções de categorias e de atividades associadas e
como elas são mobilizadas de acordo com o conhecimento da cultura em que está
inserida e da situação em que se encontra. No caso do referido projeto, temos a coleção
trabalho que engloba as categorias de emprego e autoemprego e atividades relacionadas,
assim como pares relacionais padronizados, por direitos e obrigações, como no caso do
emprego o par chefe/subordinado. Watson (1997) utiliza a ACM (Análise de
Categorização de Membros) como uma ferramenta metodológica para analisar a relação
entre cenário e fala. Acredita que se as “identidades” das partes são relevantes para elas
na interação, estas poderão ser identificadas através das várias maneiras pelas quais as
partes invocam, formulam e orientam as categorias de membros relevantes.
Determinados sentidos do trabalho são ativados pelos entrevistados para se referir
a cada uma dessas categorias. O trabalho visto como emprego é relacionado à
imposição, obrigação, segurança/estabilidade, status social/dignidade. Já o trabalho
entendido como autoemprego é associado a prazer, liberdade/autonomia, qualidade de
vida, insegurança financeira/risco. Os participantes procuram, em suas narrativas,
mostrar o que permanece, o que é rejeitado e o que é alterado na transição do emprego
corporativo para a condição de autoempregados.
Análise
Considerando a Família “trabalho como emprego”, percebemos que entre os
entrevistados havia um conhecimento compartilhado sobre os atributos e deveres do par
relacional padrão chefe/subordinado. O trabalho entendido como emprego era, em geral,
associado à imposição, à cobrança, a rotinas, ao trabalho como resultado:
(a) “Você quando era funcionário, você não tem essa liberdade, tem que estar
prestando contas aos seus gestores, né?”
(b) “Quando eu era empregado, eu vi coisas feitas erroneamente, mas eu não tinha
autoridade para mudá-las, agora eu posso.”
Tempo: controle (relógio de ponto), longas jornadas, horas extras, sem tempo
para família e vida pessoal/ aposentadoria:
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“Na empresa X é assim: você tem que justificar porque está saindo na hora Vou sair na
hora porque eu vou ao médico, tá, gente? Não estou desmotivado.”
Espaço: restrição de local de trabalho (a empresa); espaço com recursos
materiais e humanos:
“Eu perdi o carro, a secretária, o celular, o laptop (...) eu perdi essas minhas
extensões. Eu fiquei nu”.
Estabilidade: salário fixo + bônus; proteção das leis trabalhistas; benefícios da
segurança social, aposentadoria.
Reconhecimento social (ser um trabalhador) e status social (pelo cargo que
ocupa e pela grife da organização).
(a) “O fato de não estar com o rótulo, é a historia do seu tempo, espaço do rótulo IBM.
Onde você trabalha? O que você faz? Sabe aquelas perguntas nas rodas sociais mais
bobas?”
(b) “o que você é, o que você faz? – Eu sou um X, eu sou um executivo de negócios na
empresa Y. Então é difícil quando de repente você não tem mais, você não está mais
numa posição na empresa Y. Eu me senti desconfortável, eu me ressenti de não ter mais
um rótulo claro para me apresentar (embora eu nunca tenha parado de trabalhar”
Já levando em conta a Família “trabalho como autoemprego” também havia certo
conhecimento compartilhado sobre aspectos que configuram tal categoria:
Autonomia total; liberdade
“Quando eu era empregado, vi coisas sendo feitas erroneamente, mas eu não tinha
autoridade para mudá-las. Agora eu posso.”
Tempo: maior flexibilidade na distribuição do tempo; trabalho sem horário fixo;
tempo para a família, para a vida pessoal (esporte, lazer)
(a) “Agora eu posso decidir quando vou trabalhar 14 horas por dia e quando vou
trabalhar no fim de semana”
(b) “Eu respeito o relógio biológico. E outra coisa também é com relação às atividades
que eu sempre me preocupo em fazer uma atividade física, eu estou nadando, fazer uma
corrida para, enfim, manter minha parte saudável, para manter minha saúde. Antes eu
não tinha tempo como tenho agora”.
Espaço: a casa/lar ou a rua/sala; falta de suporte material e humano
“Eu estou mexendo no computador de bermuda, então eles não veem que eu estou
fazendo trabalho”
Falta de reconhecimento social (parece que não tem trabalho) e status social
(sem a grife da organização e suporte material).
O sentido do trabalho como emprego pressupõe um benefício material e social de
alto custo em função da estabilidade de salários, do status social e por ser um meio de
ascensão hierárquica e socioeconômica. Tal beneficio é reconhecido mas é relativizado
pelo custo: falta de autonomia, dedicação total, rotinas aborrecidas, chefes, metas
impossíveis de serem alcançadas etc. Já o trabalho como autoemprego pressupõe um
benefício moral, conforme podemos observar nos fragmentos abaixo:
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(a) Edor: “- Você pensa em se aposentar?
Edo: Eu já estou aposentada do trabalho chato
(b) “eu estou 100% satisfeita. Embora eu tenha que lidar com a instabilidade
financeira, eu acredito que esse é um preço barato para pagar. O que eu ganhei em
termos de qualidade de vida, bem- estar, satisfação pessoal (…) para mim, isso não tem
preço”.
Vale ressaltar a presença de dois discursos em diálogo, o do Novo Capitalismo,
associado ao trabalho como emprego e o da Qualidade de vida, associado ao
autoemprego (Oliveira & Gomes, 2009). O primeiro entende o trabalho como busca de
ganhos elevados. Já o segundo, defende o trabalho como algo prazeroso e que deve se
harmonizar com as demais dimensões da vida do indivíduo, tais como o lazer, a família,
a saúde etc.
Resultados obtidos
A referida pesquisa foi por mim apresentada no X Seminário Salínguas, intitulado
Textos e contextos: leituras e releituras, por meio da comunicação "O(s) significado(s)
do trabalho em entrevistas de pesquisa com autoempregados", realizada no dia 31 de
maio de 2010 na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A pesquisa intitulada
“Narrativa, identidade e trabalho” será apresentada no XVIII Seminário de Iniciação
Científica – PUC-Rio a realizar-se entre os dias 24 e 27 de agosto de 2010 na Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Com base na análise dos dados, observamos que os entrevistados procuram
construir uma narrativa coerente de si mesmos para explicar a mudança da categoria
empregado para a categoria autoempregado. Embora se apresentem como “o mesmo
profissional”, o que se observa é que, se por um lado, a mudança de categoria é
explicada pelo discurso capitalista que lhes garantiu o emprego em grandes
organizações, por outro essa mudança se justifica pelo discurso da qualidade de vida
que aponta para um sentido do trabalho como prazer em detrimento do sentido do
trabalho como obrigação. O benefício material decorrente do trabalho em grandes
organizações empresariais é reconhecido, mas relativizado pelo custo: falta de
autonomia, dedicação total, rotinas aborrecidas, chefes nas costas, metas impossíveis de
serem alcançadas etc. No autoemprego, os indivíduos buscam ter um projeto de vida,
em que o trabalho se harmonize com outros interesses.
Referências
1. AYOMETZI, Cecilia Castillo. “Storying as becoming - Identity through the telling of
conversion”. In: BAMBERG, Michael; DE FINA, Anna & Schiffrin, Deborah. Selves
and identities in narrative and discourse. Philadelphia: John Benjamins Publishing
Company, 2007. p. 41-70.
2. BASTOS, Liliana Cabral. Estórias, vida cotidiana e identidade – uma introdução ao
estudo da narrativa. In CALDAS-COULTHARD, Carmem Rosa (org.). Práticas
discursivas: da teoria à ação social. Homenagem a Malcolm Coulthard. São Paulo:
Contexto, 2008.
3. DIVAN, L.M.F. O uso retórico das categorizações como recursos linguísticos para
realizar ações comunicativas. Juiz de Fora: UFJF, Faculdade de Letras. Exame de
qualificação de projeto de tese de doutorado, 2009.
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4. LINDE, Charlotte. Life Stories: The creation of coherence. New York: Oxford
University Press, 1993.
5. OCHS, Elinor & CAPPS, Lisa. “A dimensional approach to narrative”. In: ___.
Living Narrative – creating lives in everyday storytelling. Cambridge: Harvard
University Press, 2001. p.1-58.
6. OLIVEIRA, Maria do Carmo L & SILVA, José Robertp G. Autonomy, risk and
quality of life: Self-employed consultants and their perspectives in the contemporary
discourse of working relations. Fifth International Conference on Discourse,
Communication and the Enterprise. University of Milan – Italy, 24 de setembro de
2009.
7. PEREIRA, Aline M. Catanhede & OLIVEIRA, Maria do Carmo L O(s)
significado(s) do trabalho em entrevistas de pesquisa com autoempregados. X
Seminário Salínguas, Universidade Federal do Rio de Janeiro,31 de maio de 2010
8. SABÓIA, I.B de.; COELHO, R.; AQUINO, C. A. B de. Narratives et labour:
impasses sobre o trabalho como narrativa de si-mesmo na contemporaneidade.
Calidoscópio, v.5, n.2, p.84-91, mai/ago 2007.
9. SELL, M.; OSTERMANN, A.C. Análise de Categorias de Pertença em estudos de
linguagem e gênero: a (des)construção discursiva do homogêneo masculino. São Paulo:
Alfa, v.53, n.1, p. 11-34, 2009.
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