A INDUMENTÁRIA DA POPULAÇÃO DE RUA
REPENSANDO PARADIGMAS
Aline Valadão Vieira Gualda Pereira
RIO DE JANEIRO
2003
ALINE VALADÃO VIEIRA GUALDA PEREIRA
A INDUMENTÁRIA DA POPULAÇÃO DE RUA – REPENSANDO PARADIGMAS
Projeto de pesquisa apresentado como requisito
para obtenção do título de Especialista em Moda
e Estudos da Indumentária.
Orientador: Prof. Marcelo Campos
Mestre em História da Arte – EBA / UFRJ
UNVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ
2003
Monografia submetida ao corpo docente da Universidade Estácio de Sá, como
parte dos requisitos necessários à obtenção da Especialização em Moda e
Estudos da Indumentária, aprovada por:
Prof.
Prof.
Prof.
Prof.
Prof.
FICHA CATALOGRÁFICA
PEREIRA, Aline V. V. Gualda. A indumentária da população de rua – repensando
paradigmas. Rio de Janeiro: UNESA, 2003.
1. Moda – Aspectos sociológicos 2. Moda – Aspectos antropológicos
3. Moda – Brasil – séc. XXI 4. Moda e cultura 5. Moda, aparência e identidade
6. Indumentária da população de rua 7. Corpo e expressividade 8. Semiologia
Dedicatória...
Ao meu marido, meus pais e irmã, por todo o incentivo e ajuda nos momentos de
dificuldade e, principalmente, pela confiança que depositam em mim - o que me
faz buscar ser sempre objeto do seu orgulho.
Agradecimentos...
Ao meu marido, Luiz Francisco, por todo o seu senso de amizade e
cumplicidade, pelo incentivo e colaboração em todas as etapas desta minha
trajetória. Aos meus pais, Luci e Aristeu, e minha irmã, Elen, pela ajuda
emocional e material, nos momentos mais difíceis. À Aninha, que com sua
doçura e seu carinho de menina faz com que, a cada dia, eu me torne uma
pessoa mais sensível e mais dedicada. Ao corpo docente da pós-graduação em
moda da UNESA, com destaque para o professor Marcelo Campos, responsável
pela lapidação de tantas das minhas idéias em estado bruto e para a professora
Regina Moura, que me fez atentar para a população de rua e seu código visual
como objeto de estudo da moda. Finalmente, agradeço aos moradores de rua do
Centro do Rio que, identificados ou anônimos ,contribuíram com seus
depoimentos, entrevistas e imagens para que este trabalho pudesse ser
realizado.
“A identidade é uma entidade abstrata sem existência real, muito embora seja
indispensável como fonte de referência”
(Lévi – Strauss)
LISTA DE FIGURAS
Fig. 1
Barreto, Luiz Carlos. Clochard francês fotografado em 1954, Veja
On-Line, Ed. 1701 de 23/05/2001......................................................... 11
Fig. 2
Gualda, Aline. Homem com pena de pássaro atrás da orelha,
Cinelândia.............................................................................................. 12
Fig. 3
Gualda, Luiz Francisco. Mulher trajando camiseta de malha,
bermuda e sandálias de dedo, Cinelândia............................................ 14
Fig. 4
Gualda, Luiz Francisco. Homem trajando camiseta de malha,
bermuda e sandálias de dedo, Cinelândia........................................... 14
Fig. 5
e6
Gualda, Luiz Francisco. Homem com possível quadro de
comprometimento mental. Rua da Quitanda......................................... 15
Fig. 7
Gualda, Luiz Francisco. Menino de aproximadamente 10 anos,
ausente de adultos, trajando camiseta de malha e bermuda, Rua
Uruguaiana............................................................................................ 15
Fig. 8
Gualda, Aline. Homem adulto, trajando camiseta de malha e
bermuda, Cinelândia............................................................................. 15
Fig. 9
Gualda, Luiz Francisco. Homem da rua trajando uniforme
profissional. Rio Branco........................................................................ 16
Fig. 10 Gualda, Aline. Homem com pochete e carrinho de pertences
pessoais, Cinelândia............................................................................. 18
Fig. 11 Gualda, Luiz Francisco. Grupo de mulheres, Cinelândia ..................... 21
Fig. 12 Gualda, Aline. Margarida*, Rua Uruguaiana......................................... 21
Fig. 13 Gualda, Aline. Rosa*, Rua Uruguaiana................................................. 22
Fig. 14 Gualda, Aline. Azaléia*, Rua Uruguaiana.............................................
23
Fig. 15 Gualda, Aline. Homem adulto, com calça cortada, Cinelândia.............
25
Fig. 16 Gualda, Aline. Homem idoso, morador aparentemente antigo das
ruas, dormindo no banco, Cinelândia.................................................... 27
Fig. 17 Gualda, Luiz Francisco. Menina (acompanhada de mulheres),
Cinelândia............................................................................................. 29
Fig. 18 Gualda, Luiz Francisco. Menina (acompanhada de mulheres),
Cinelândia ............................................................................................ 29
Fig. 19 Gualda, Aline. Menina (acompanhada de mulheres), Rua Sete de
Setembro............................................................................................... 29
Fig. 20 Gualda, Aline. Menino (acompanhado da mãe), Rua da
Assembléia............................................................................................ 29
Fig. 21 Gualda, Luiz Francisco. Adolescentes com roupas aparentemente
novas, Cinelândia.................................................................................. 31
Fig. 22 Gualda, Aline. Pinho*, Rua Uruguaiana................................................ 33
Fig.23 Gualda, Luiz Francisco. Homem procurando coisas nas lixeiras, até
encontra
um
maço
de
cigarros.
Rua
do
até 30 que
Carmo.................................................................................................... 36
Fig.31 Gualda, Luiz Francisco. Mulher idosa defecando na calçada. Rua da
Quitanda................................................................................................ 37
Fig.32 Gualda, Aline. Mulher idosa. Rua da Quitanda..................................... 37
RESUMO
Este trabalho tem como propósito lançar um olhar inicial para a
questão dos motivos da indumentária usada pela população de rua.
Através do cruzamento das particularidades visuais observadas e
dos segmentos internos percebidos é proposta uma antropologia da moda como
ferramenta de reflexão sobre os modelos paradigmáticos da aparência do
mendigo, por se tratar de um código diverso, não abarcado por nenhum estudo da
moda empreendido até então.
ABSTRACT
This production is an investigation about lesshome people’s way of
wearing or dressing.
Through this question, it trys to make it possible an antrophology
study about the usages and apearence of these people who have their own style
and way of life. It’s a new conception of researsh that there ins’t any other kind of
this material before.
OBJETIVO
Este estudo tem como objetivo buscar desmitificar os aspectos que
permeiam a construção da indumentária dos moradores de rua, questionando as
tramas de atribuições relacionadas à maneira de vestir e viver destas pessoas,
como tentativa – talvez utópica – de tentar diminuir o abismo cultural que as
separa das demais classes sociais, dotadas de costumes vestimentares
reconhecidamente entendidos como parte do complexo sistema da moda.
JUSTIFICATIVA
Custa o rico entrar no céu
(afirma o povo e não erra)
Porém muito mais difícil
É um pobre ficar na Terra...
Através deste pequeno trecho, Mário Quintana consegue fornecer o
motivo principal pelo interesse em explorar este objeto de pesquisa – a
indumentária da população de rua.
De que maneira a população de rua consegue alimentar-se, vestirse, relacionar-se e manter-se mesmo vivendo em meio a tantas restrições?
O ato de vestir-se ganha ainda notáveis características de requinte e
rebuscamento, que poderiam vir a transcender as barreiras do vital e da
necessidade de cobrir o corpo.
Em momentos anteriores à pesquisa, por não me haver ocorrido de
lançar um olhar mais criterioso, cheguei não raramente a massificar o que via
estereotipando a aparência da população de rua, sem considerar a possibilidade
de haver fatores que sustentassem a existência dos traços peculiares dessa
aparência tão diversa.
Afinal, o que poderia fazer estas pessoas se dedicarem à
personalização e beneficiamento da sua indumentária?
Pensando em mim como ponto de partida e nos motivos pelos quais
cubro o meu corpo, comecei por relacionar a questão dos princípios morais que
me obrigam a não andar nua. Posteriormente, pensei na adequação desta
“cobertura” às intempéries, para que meu corpo receba as doses de calor e frio
ambientes na medida em que eu não sofra desconforto de espécie alguma; num
terceiro momento, cheguei ao tecido costurado que me envolve e me agrega os
elementos de integração ao mundo em que vivo, negando ou aceitando
determinados valores e conceitos expressos pelo conjunto visual que a roupa e o
corpo, associados, conseguem comunicar. Isso sem descartar, porém, a questão
da sobrevivência imediata – a biológica, que intrinsecamente constitui a razão
primeira da existência do vestuário.
Partindo dessa proposta mais ampla de visão da indumentária e dos
seus motivos de ser, tentei aplicar estes mesmos princípios à realidade da
população de rua. Desde então, não consegui mais dissociar os interesses de
morador de rua dos meus interesses ao fazer uso da roupa. A seguir seria preciso
somente observar e identificar as peculiaridades desta ação de vestir neste grupo
em questão, desconstruindo os paradigmas tanto do animal sub-humano,
aculturado, quanto do clochard parisiense (a ser detalhado resumidamente no
corpo do texto do capítulo 2) , tantas vezes associados ao morador de rua de
uma forma geral.
Propus-me a identificar qual poderia ser, para o grupo em questão, o
papel da roupa e da imagem visual corporal. Também direcionei especial atenção
para a leitura desta imagem, ou seja, o impacto imediato dessa aparência no
usuário e nos observadores, com o intuito de identificar ou não traços
significativos de comunicação:
O ponto que nos interessa ressaltar é que existem códigos
de vestuário. (...) o problema deveria interessar quem quer
que decida viver em sociedade, ouvindo-a falar por todas as
formas que ela é capaz. Porque a sociedade, seja de que
forma se constituir, ao constituir-se “fala”. Fala porque se
constitui e constitui-se porque começa a falar. Quem não
sabe ouvi-la falar onde quer que ela fale, ainda que sem
usar palavras, passa por essa sociedade às cegas: não a
conhece: portanto, não pode modificá-la.1
Torna-se importante salientar que apesar da proximidade de temas
procurei distanciar-me de questões políticas, econômicas e sociais, para não
confundir o objetivo principal dessa pesquisa, que consiste em estabelecer
associações de valor cultural e estético através da indumentária na generalidade
dos acontecimentos cotidianos, do modo de vida e da organização interna da
população de rua. Algumas considerações de cunho aparentemente sócio-cultural
fazem-se presentes unicamente como referências que devem ser analisadas por
poderem implicar diretamente em relações com a imagem do grupo.
METODOLOGIA
Foi realizado inicialmente o estudo de textos culturais, sociais,
antropológicos e psicológicos, com o objetivo de discernir sobre alguns aspectos
do comportamento humano nos grupamentos de diferentes traços culturais com
maior clareza.
Para o trabalho de campo, delimitei a localidade do Centro do Rio de
Janeiro.
Os motivos dessa escolha devem-se à concentração de uma
quantidade suficiente de moradores de rua, de várias origens diferentes e
relacionados em grupamentos distintos. É notório o fato de que o crescimento da
população de rua carioca atinge várias regiões da cidade. Porém o fator
determinante da escolha do Centro em detrimento de outras localidades foi sua
característica de atração destas pessoas em função da grande circulação de
público que lhes proporciona maiores chances de cavar a subsistência. É claro
que a zona sul do Rio, por exemplo, graças ao seu potencial turístico, também é
capaz de atrair o indivíduo carente, mas por outro lado, fornece a ele a
possibilidade de alocação e moradia, descaracterizando-o como morador da rua.
Essa possibilidade também é real nos bairros periféricos, que não
oferecem, porém, características tão propícias para a aquisição dos recursos
vitais do morador de rua. O Centro, por sua vez não possui potencial residencial,
o que faz com que o indivíduo carente busque agrupar-se sob suas marquises,
utilizando os elementos de caráter público das ruas e praças como seus
elementos de vida privada. Para utilizarem água corrente, recorrem normalmente
às igrejas locais, onde também poderão inclusive guardar alguns pertences que
vendem como ambulantes durante o dia.
Os locais do Centro foram previamente selecionados conforme fui
percebendo sua tendência maior a agrupar os indivíduos a serem observados.
Estes locais normalmente oscilavam entre as praças circundadas por pólos
comerciais ou pólos de alimentação, as áreas vizinhas às igrejas católicas e os
terminais de transportes. Foram exploradas as avenidas Presidente Vargas, Rio
Branco e Almirante Barroso; as ruas da Alfândega, Uruguaiana, Miguel Couto,
Sete de Setembro, Ouvidor, México, São José e Senador Dantas; as praças da
Cinelândia, Tiradentes, Castelo e Largo de São Francisco.
Nessas áreas foram abordados moradores de rua e registrados seus
depoimentos e imagens, mediante autorização. Em outros casos onde a
aproximação não foi possível ou necessária, foram registradas somente as
imagens, complementadas por registros próprios.
Foram colhidas espontaneamente através de questionários abertos
informações de homens, mulheres e de crianças, com idades aproximadas entre
6 e 70 anos. Porém o grupo dos adolescentes das ruas foi alvo de observação
distanciada. Todas as declarações recolhidas e mencionadas no corpo do texto
terão os nomes reais dos entrevistados resguardados pelo uso de nomes fictícios.
SUMÁRIO
Lista de figuras ........................................................................................................ I
Resumo ................................................................................................................. III
Abstract ................................................................................................................. IV
Objetivo .................................................................................................................. V
Justificativa............................................................................................................ VI
Metodologia........................................................................................................... IX
INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 1
CAPÍTULO 1 - Quem é a população de rua? ......................................................... 8
CAPÍTULO 2 - Aparência e identidade................................................................. 10
CAPÍTULO 3 - O corpo-casa................................................................................ 17
CAPÍTULO 4 - A casa de cada um....................................................................... 20
4.1 - As mulheres: .......................................................................................... 20
4.2 - Os homens:............................................................................................ 24
4.3 - Os doentes:............................................................................................ 27
4.4 - Crianças e adolescentes: ....................................................................... 28
4.5 - O self:..................................................................................................... 32
CAPÍTULO 5 - Viabilizando a existência................................................................34
CONCLUSÃO.........................................................................................................39
Referências bibliográficas ..................................................................................... XI
Notas de fim ........................................................................................................ XIII
INTRODUÇÃO
Pode soar sensacionalista o fato de um pesquisador abraçar causas
que apóiem os menos favorecidos.
Pode ainda, sob outro ponto de vista, soar oportuno utilizar-se
destes
indivíduos
menos
favorecidos
pela
facilidade
de
barganha
das
informações, em benefício único da pesquisa. Acontece que o conflito entre as
diferenças e o contato com a diversidade são pressupostos valiosos para a
geração de perspectivas novas para ambos os lados – pesquisador e objeto de
pesquisa, em se tratando do elemento humano.
Os motivos, porém, que despertaram o interesse pelos aspectos
visuais da população de rua e que certamente continuarão a nos impulsionar
neste vasto caminho da pesquisa acadêmica apresentam-se bipolares, alternando
entre a estranheza primária frente aos seus hábitos vestimentares e a atração
pessoal pela questão da distinção social.
Desde o ingresso na jornada acadêmica na área de moda e do
contato com os primeiros estudos sobre a história da indumentária sempre surgia
pelo menos alguma curiosidade inerente ao fato da moda ser abordada como um
fenômeno restrito às altas classes, sendo feita pela e para a elite, assim como as
outras manifestações artísticas, de maneira geral.
Ao mesmo tempo, chamava-nos atenção observar especialmente a
maneira como as classes menos abastadas improvisavam as suas versões para a
moda da elite, ora fazendo-as como sinal de tentativa de equiparação ou negação
social, ora criando estilos particulares.
O estudo do uso da moda pelas classes baixas como artifício visual
mostra-se então um poderoso mecanismo gerador dos mais variados efeitos
estéticos onde, sobretudo, prevalecem os fatores criatividade x escassez.
Considerou-se a priori que para a população de rua, a roupa
assumiria um caráter estritamente protetor, já que para ter acesso à moda far-seia necessário o envolvimento de recursos financeiros obviamente inacessíveis a
estes indivíduos.
Mas, o que é a moda? Quantas são as suas facetas? E, finalmente,
de qual moda estaríamos falando?
Após algum tempo, depois da leitura e reflexão sobre alguns
autores, tornou-se possível a assimilação da concomitância de diferentes
abordagens e sentidos da moda e da possível identificação dessas abordagens
nos diferentes grupamentos sócio-culturais.
Propomos então o amadurecimento deste único e rígido sentido
mercadológico de moda que estamos acostumados a referenciar. Defendemos a
busca de outras definições que não reduzam a moda praticada pela cultura alheia
ao termo “indumentária específica” - pois que a instituição de uma antropologia da
moda viria a resolver tais questões - uma vez que, numa análise da indumentária
da população de rua, não estaremos tratando de nenhuma espécie de uniforme,
indumentária de cunho religioso ou fruto de qualquer tradição cultural hereditária.
O cerne da questão proposta abarca desde os possíveis fatores que
levariam
a
população
de
rua
a
preocupar-se
com
personalização
e
beneficiamento da sua indumentária mesmo face às inúmeras dificuldades
impostas pela vida nas ruas até os critérios usados para estabelecer as
aparências peculiares de cada segmentação identificada no grupo.
Será levantada a validade ou não da afirmação de que o morador de
rua preocupa-se com o ato do vestir, com a aparência e que necessita dela como
artifício de manutenção da sua sobrevivência. Serão verificados os critérios de
valor: a questão do gosto na obtenção dos elementos a serem vestidos.
Até o momento, pela falta da observação orientada, o subterfúgio do
estereótipo nos foi bastante conveniente; ainda mais quando associado ao
sentimento natural de rejeição que a imagem dos moradores de rua sugere.
O papel inicial dessa pesquisa é dissolver a confusão, ainda tão
comum, entre o vital e o social, nas questões inerentes à população de rua – o
que Kroeber2 denomina, respectivamente como “o orgânico e o cultural”.
Partindo deste entendimento kroeberiano do homem, torna-se
discutível a idéia da “ação mecânica das forças naturais sobre uma humanidade
puramente receptiva”3, pois, neste sentido,
Toda cultura depende de símbolos. É o exercício da
faculdade de simbolização que cria a cultura e o uso de
símbolos que torna possível a sua perpetuação. Sem o
símbolo não haveria cultura, e o homem seria apenas
animal, não um ser humano.4
Seguindo essa corrente de raciocínio atenta-se para o fato que, em
se tratando do ser humano, descarta-se a questão da busca instintiva pela
sobrevivência como único fim para as atitudes dos indivíduos. Não se ignora que
esta questão coexista intrínseca aos seus demais motivos, mas toma-se como
marco na diferenciação entre o ser humano e os animais restantes o exercício da
simbolização - independendo de sua origem voluntária ou não.
Ainda sob este entendimento, identificam-se duas vertentes no
âmbito da existência cultural: “uma das classes dominantes e outra das classes
dominadas. Na medida em que as desigualdades sociais desaparecem, esta
última incorpora os valores válidos da outra e elabora uma nova cultura”5.
No caso particular da população de rua e do estudo de sua
indumentária, estaremos supondo que a moda comercial não os objetivou. A
moda foi destinada às pessoas que possam pagar por ela e para isso manipula
mecanismos de aceitação do novo e de negação das últimas tendências.
É um fato considerável que para os moradores de rua de uma forma
geral, os subsídios para a sobrevivência são adquiridos basicamente por meio de
duas maneiras: doações ou meios ilícitos6. No caso aquisição das roupas, as
doadas são, na maioria das vezes, resíduos vestimentares do nosso sistema de
moda. Tratam-se de espécies de “restos culturais” do outro grupo. Este objetoroupa apresentará uma discrepância de tempo, de valor e, principalmente, de
contextualização. Consideraremos que, por causa dessa particularidade, os
traços de tendência de moda das roupas observadas estarão normalmente
defasados. Assim, por uma questão de adequação e apropriação, no grupo dos
moradores de rua, assumirá outros significados, agregados a outros valores e
outras necessidades.
Deve-se, para efeito desta pesquisa, considerar a possibilidade da
multiplicidade de apreensão e atribuição dos significados aos símbolos comuns às
classes de diferentes níveis. A roupa para a noite do doador, por exemplo, poderá
assumir o papel da roupa cotidiana do morador de rua. Tais deslocamentos de
papéis entre os objetos certamente surgirão em alguns casos.
Contudo, o que se ressalta é que o fato de haver na moda um ponto
de convergência entre os dois mundos. A roupa fornece ao morador de rua, em
certo momento, a possibilidade de se sentir equiparado social e culturalmente aos
indivíduos estabelecidos.
Há também que se considerar o caso da aquisição da roupa por
meios ilícitos. Esta forma de aquisição sugere uma busca intencional muito
evidente de equiparação social através da aparência: no caso dos jovens e
adolescentes de rua, este meio de apropriação é bastante comum. Os símbolos
mais freqüentemente apreendidos são as roupas e os objetos que conferem certo
status e valor material. Também não se abandona a hipótese da aquisição dos
objetos
destinando-os
incorporados
ao
para
grupo,
a
revenda.
destacam-se
os
Entre
elementos
tênis
e
vestimentares
acessórios
sportwear,
acompanhados pelo tratamento diferenciado de cabelos, gestual e vocabulário
próprios, que merecerão comentários mais aprofundados.
A preocupação no momento é considerar o fato de haver uma
diferença sistemática entre o significado que a peça de roupa doada já possuiu e
o que virá a possuir, o que não caracteriza em momento algum que a roupa
doada deixará de ter um significado.
Além da lógica do valor de uso da indumentária, a roupa não
se limita a uma função de proteção, pudor ou adereço. Ato
de diferenciação, vestir-se constitui um ato de significar.
Existe sempre no interior de cada grupo uma vestimenta
mínima histórica e culturalmente determinada sem a qual a
existência social, e mesmo biológica, do indivíduo se
aniquilaria. A moda, na esteira da máscara teatral como
representação simbólica, assume numerosas dinâmicas nas
configurações intersubjetivas, desde as mais óbvias que
trabalham no sentido de estabelecer distinções asseguradas
por códigos rígidos, até as mais sutis, que buscam a
diferença na dissolução dos modelos armados sobre pares
dicotômicos, referendando sexos, classes, etnias etc.7
Para alcançarmos um entendimento satisfatório destes significados,
precisaremos adentrar na realidade dos moradores de rua, conhecer os aspectos
básicos de sua origem, seu cotidiano e suas expectativas. Assim que pudermos
vivenciar este processo de transculturação que o objeto roupa sofre ao
estabelecer a passagem de um meio contextual para outro, poderemos então
pontuar as novas relações da roupa e das suas razões de ser. Além da roupa, do
adorno corporal, dos acessórios do vestuário e da manipulação da pele e dos
cabelos, entendidos como objetos palpáveis, serão entendidos como recursos
agregáveis ao corpo os objetos de comportamento, como gestual e vocabulário.
Cabe ressaltar que dentro do grupo da população carente foi
percebido um sistema organizacional próprio, com algumas subdivisões que
caracterizam os indivíduos segundo a sua origem, a sua idade, a sua condição
física e mental, a maneira como adquirem seus recursos e há quanto tempo estão
nas ruas. Dentro destas variações será levantada a possibilidade ou não de haver
distinções visuais como forma de fundamentar estes traços de disposição interna.
Para amarrar esta rede de relações, será firmado finalmente um
paralelo entre o corpo-construção do morador de rua e o conceito bachelardiano
da casa, como pano de fundo para as relações dos traços identificados com a
imagem das aparências estabelecidas.
CAPÍTULO 1- QUEM É A POPULAÇÃO DE RUA?
A rua pode ter pelo menos dois sentidos: o de se constituir
abrigo para os que, sem recursos, dormem sob marquises,
viadutos e sobre bancos de praça ou pode constituir-se
modo de vida, para os que já têm na rua o seu habitat e que
estabelecem com ela uma complexa rede de relações.8
A população de rua carioca encontra-se composta de diferentes
tipos humanos, que fazem das calçadas e marquises seu abrigo temporário ou
permanente, oriundos das mais diversas origens, protagonistas de dramas reais
de vida.
Existem as pessoas que se encontram nas ruas por terem perdido
seu emprego e, por conta disto, terem perdido também a possibilidade de
manterem seus poucos bens. Existem outras que, por problemas com familiares
optam por saírem de suas casas ou são expulsos delas, cortando os vínculos com
suas referências familiares e domiciliares. Existem também as que, embora
locadas nas ruas, mantêm estas referências.
Estar na rua circunstancialmente é uma situação provisória;
no entanto, quando a ausência de trabalho se prolonga,
quando o dormir na rua passa a ser uma constante, novas
relações se estabelecem, hábitos começam a ser
incorporados, novos códigos são criados.9
Existem ainda, aqueles que perderam completamente o contato com
o mundo “exterior” e são os moradores efetivos das ruas, pelo tempo de
permanência nelas.
Acredito haver uma existência pequena, porém merecedora de
consideração, de crianças já nascidas nas ruas do Rio.
(...) os que já moram nela possuem um modo de vida
próprio, ou seja, desenvolvem formas específicas de garantir
a sobrevivência, de conviver e ver o mundo. Têm sobre a
cidade um outro olhar, atribuindo novas funções aos
espaços públicos, às instituições.10
CAPÍTULO 2 - APARÊNCIA E IDENTIDADE
Entre os membros da população de rua existem segmentações
específicas diferenciadas, por exemplo, por sexo, faixa etária e forma de
aquisição de recursos.
Para cada segmentação destas, observam-se particularidades na
interação do indivíduo com os seus bens. No nosso caso específico, na relação
do homem com seu corpo. E ainda, do corpo os artifícios geradores da
comunicação visual estabelecida.
O fator da construção da imagem visual, em se tratando da imagem
de um indivíduo, é o que compõe a sua aparência.
Trata-se a aparência do morador de rua como a maneira através da
qual ele constrói seus traços de identidade, com a possibilidade de exercer seus
critérios de belo e não-belo, através da questão do gosto.
Através de observação nos parece simples distinguir as aparências
e enquadrar os indivíduos de acordo com a quantidade de informação que
recolhemos. Porém deve-se atentar para um cuidado com enquadramentos
preconceituosos baseados nos estereótipos que conhecemos acerca das
associações entre aparência e identidade objetivando uma revisão dos conceitos
anteriores.
Figura 1
Talvez por uma referência subliminar à moda como um fenômeno
originariamente francês, a imagem imediata do mendigo nos venha associada
diretamente aos traços da aparência do clochard parisiense (figura 1), cercado
por sua conotação poética e construção vestimentar barroca, negligenciando as
distinções climáticas e sócio-culturais que fornecem aos nossos moradores de rua
uma outra gama de materiais concretos e abstratos de edificação da auto-imagem
até que, em conformação e/ ou impossibilidade de solução para o problema da
sobrevida nas ruas, finalmente é atingida uma espécie de aparência associada a
atitudes mais próximas desse modelo, claro que contextualizado.
Graças à imensidão de artifícios e à grande acessibilidade à
informação, a construção da aparência é oferecida ao homem como forma de
exercício da dialética entre a sua individualidade e a identificação com o outro.
A dita democracia da moda afrouxa a ditadura das tendências e
busca na liberdade da expressão do eu fixar novos e promissores caminhos.
No caso da população de rua, ao contrário do que muitos possam
pensar, o que se constata é que esta certa liberdade de expressão é uma
constante.
Façamos um paralelo com um trecho de Bachelard:
Um grande verso pode ter grande influência na alma de uma
língua. Ele desperta imagens apagadas. E ao mesmo tempo
sanciona a imprevisibilidade da palavra. Tornar imprevisível
a palavra não será uma aprendizagem de liberdade?11
Em casos não raros a imagem do morador de rua pode apresentar
objetos que não estejam enquadrados na categoria de roupa. Estabelece-se
identificação com o trecho anterior quando tal objeto também se impregna de
certa imprevisibilidade. E refaz-se a questão: Tornar imprevisível o objeto não
será uma aprendizagem de liberdade (figura 2)?
Figura 2
Neste meio não há nenhuma espécie de vínculo da aparência com a
necessidade do consumo comercial. As relações de poder registradas através das
diferenciações na aparência são atribuídas muito mais ao valor subjetivo do que à
imposição material extrínseca do objeto: trata-se de uma coesão entre o corpo, o
objeto roupa e todo um código gestual e verbal específicos.
É necessário lembrar que a mídia não é elaborada para alcançar
estes indivíduos. A justificativa para seus trajes é muito mais interna ao grupo e
ao próprio sujeito do que influência externa.
Neste sentido, talvez haja a necessidade de entendermos a roupa
mais amplamente, extrapolando os limites das bainhas e cortes no tecido.
A roupa da população de rua, entendendo-a como artifício
componente de uma aparência cultural simbólica que sustenta a imagem,
abrange o objeto e todas as ações humanas que lhe dão suporte enquanto signo
– ações do sujeito, portanto, subjetivas.
Esta liberdade mostra-se ambígua na medida que liberta o morador
de rua dos nossos padrões estéticos formais, mas o aprisiona a construir-se sobre
as bases do nosso sistema de moda enquanto referencial e provedor de material
vestimentar. E ainda, tal liberdade só pode ser considerada em relação aos
padrões formais da aparência da cultura da sociedade estabelecida, mas ao
mesmo tempo o indivíduo morador das ruas obedece ao código de símbolos do
seu próprio sistema de identidades.
A diferenciação interna mais bem definida no grupo é a que
distingue os sexos. É bem visível a distinção entre o feminino e o masculino na
população de rua. Tais aparências raramente serão confundidas. O curioso é que
tal diferenciação não é imposta pela peça de roupa feminina ou masculina, mas
pela maneira como a roupa virá a ser utilizada (figuras 3 e 4).
Figuras 3 e 4
Também é bem delimitado o campo que distingue a aparência entre
os acometidos de problemas mentais e os mentalmente sãos. O exagero gestual
e o descompromisso com valores morais de pudor atribuídos à indumentária são
os traços mais evidentes no primeiro grupo. As cores ficam mais comprometidas e
a cor do ambiente impregna corpo e vestes com uma uniformidade escura, talvez
pela impossibilidade de discernir o higiênico e saudável e também pela solidão de
tais indivíduos, que os impede de ter acesso aos mesmos recursos dos outros.
Estes possuem forte tendência ao nomadismo, assumindo a condição de
andarilhos (figuras 5 e 6).
Figuras 5 e 6
Uma das delimitações vestimentares menos evidentes é a que
caracteriza as faixas etárias dos pólos infância e idade adulta. Talvez porque aqui,
o corpo sozinho já forneça todas as informações. Também pelo fato de que a
criança vestida com a “armadura” do adulto esteja assim mais fortalecida (figuras
7 e 8). No entanto, é mais claramente percebida a distinção nas classes dos
adolescentes e dos idosos.
Figuras 7 e 8
A origem de um morador de rua normalmente vem expressa na sua
aparência. Trajar um uniforme profissional gasto (figura 9), usar bijuterias, o
simples costume de usar roupas sempre limpas ou sempre sujas poderá, para
este fim, nos fornecer muita informação.
Figura 9
Para se conseguir uma observação mais ampla da aparência
do morador de rua é preciso conhecer o problema do morador de rua. A
partir de então, empreender uma primeira leitura é o contato necessário para
um levantamento das estranhezas.
CAPÍTULO 3 - O CORPO-CASA
Desprovido de casa, de trabalho regular, na maioria das
vezes de família, enfim, dos signos usuais nos quais ele
possa ver-se retratado e que revelem sua identidade, o
homem de rua concentra sua expressão no corpo. (...). Só
ou com companheiros ocasionais, ele anda pelas ruas
carregando seu mundo nas costas.12
Para as pessoas de rua, estejam elas em qualquer das categorias
citadas anteriormente, o corpo exerce uma função vital: atrelados ao corpo, vãose com o homem todos os seus poucos bens.
A inexistência de pontos fixos de referência que substituam a falta
de uma moradia convencional, o medo da violência da polícia ou dos próprios
companheiros, que ameaça perderem o pouco que têm e a tendência ao
nomadismo, necessária para a identificação de novos pontos de aquisição de
recursos mínimos de subsistência faz com que o morador das ruas carregue
sobre o corpo todo o peso físico e emocional dos objetos que contam a sua
história.
Observa-se uma relação do corpo como sendo a sua própria
moradia, pois é sobre ele que se dispõem as aquisições, é ele o espaço privado
que se tem para acomodar os objetos, enfeitar, exibir.
Para a acomodação de seus objetos, os compartimentos internos da
casa, seus armários e prateleiras, podem ser analogamente representados pelas
bolsas, sacolas e carrinhos que aqui, possuem forte caráter utilitário e completam
a funcionalidade da casa portátil (figura 10).
Figura 10
Assim, o corpo transcende a condição da existência biológica para
ser então um suporte que viabilize na prática essa existência.
É o corpo o responsável por assumir a ambivalência do valor
utilitário e das relações culturais.
Esse desdobramento permite que este mesmo corpo-casa seja
também o cenário para a expressão do indivíduo. É nele que se encontra o
ambiente a ser, por ele e pelas influências do meio, decorado, ornamentado. É
este corpo que permite a existência deste fator diferenciador – a cultura – quando
se exerce através da expressividade do indivíduo e do grupo, através do suporte
individual.
Se “a casa é um corpo de imagens que dão ao homem razões ou
ilusões de estabilidade”13, reafirma-se aqui o valor de transferência dos papel da
casa para o corpo. Assim poderíamos relacionar o corpo ao eu que habita: o ato
de habitar. Poderíamos associar a casa concreta e abstrata, impregnada de
valores afetivos, à roupa disposta sobre o corpo.
Com efeito, a casa é, a primeira vista, um objeto
rigorosamente geométrico. Somos tentados a analisa-la
racionalmente. Sua realidade inicial é visível e tangível. Ela é
feita de sólidos bem talhados, de vigas bem encaixadas. A
linha reta predomina. O fio de prumo deixou-lhe a marca de
sua sabedoria, de seu equilíbrio. Tal objeto geométrico
deveria resistir a metáforas que acolhem o corpo humano, a
alma humana. Mas a transposição para o humano ocorre de
imediato, assim que encaramos a casa como um espaço de
conforto que deve condensar e defender a intimidade.14
No cotidiano da população de rua diluem-se as forças antagônicas
do espaço público e do espaço privado. Uma série de reflexões desdobradas
afirma o espaço público da sociedade estabelecida como sendo o espaço amplo
da população de rua. Amplo porque virá abarcar os sentidos do público e do
privado num mesmo cenário. É nesta amplidão que se desfazem e se refazem as
atribuições de sentido e valor de cada objeto cenográfico. A mesma problemática
pode ser levantada em torno do universo individual do morador de rua, como
sendo o seu corpo o universo público de atuação das diferenças sociais externas.
CAPÍTULO 4 - A CASA DE CADA UM
Considerando a diferença biológica dos organismos, estaríamos
traçando pontos de diferenciação entre os integrantes do grupo da população de
rua e suas características peculiares de corpo-moradia.
4.1. As mulheres:
As mulheres, segundo uma análise primária, necessitariam de uma
casa-concha rígida para proteger seu corpo fisicamente mais frágil. Seria o caso
da casa “construída pelo corpo, para o corpo, assumindo sua forma pelo interior,
como uma concha, numa intimidade que trabalha fisicamente”15. Além do mais, o
exterior sólido da concha assume intenso caráter de proteção. A superfície
calcária, ao mesmo tempo que protege afugenta o predador, por criar uma
atmosfera de suspense em torno do que se oculta no interior da concha. Assim, o
ser que sai da sua concha sempre será assustador. Este invólucro rígido será
forjado pela indiferenciação entre a veste feminina e a masculina e pela adoção
de gestual e verbal mais agressivos.
Outra possível situação de manutenção da sobrevivência deste ser
“molusco” mais sensível é o agrupamento (figura 11). Mas nota-se a sua
formação nas situações em que a idade mais avançada já impede a mulher de
tentar se defender sozinha. Neste caso, a vida em colônia forma uma concha
imaginária e deixa aflorar em seu interior um resgate de alguns traços femininos
de vaidade (figura 12).
Figura 11
Figura 12
Observa-se que vaidade na mulher mais nova pode sugerir uma
intencionalidade sexual, que pode ser acentuada pelo uso de peças íntimas
aparentes. Não é raro o uso do corpo como moeda de troca nas negociações
internas do grupo da população de rua ou ainda, o uso do corpo como gerador de
filhos, o que aumenta e facilita a arrecadação da pedinte.
Figura 13
Rosa* (figura 13), moradora de rua abordada em entrevista na rua
Uruguaiana, conta que é arriscado ficar perambulando à noite e, por isso, é
conveniente pagar por um lugar seguro para pernoitar. Nesse sentido, ela
empresta o próprio corpo como forma de pagamento (e, pela maneira maliciosa
que ri, enquanto relata, também de diversão) aos guardadores de calçada.
Resguardada pela barreira do grupo, a mulher idosa resgata o uso
da bijuteria, do acessório e comumente do adereço de cabeça entendido como
proteção ao sol ou como sinal de imposição de respeito, fazendo uma alusão
inconsciente ao status conferido pelo uso dos chapéus ou perucas de outrora. Ela
também recupera lentamente o uso das saias e vestidos como formas tipicamente
femininas. Tais peças possibilitam ainda um maior conforto e mobilidade a essa
mulher idosa que recupera o hábito do trabalho, comercializando como
ambulante, pequenos objetos. Os recursos gerados pelo trabalho possibilitam à
essa mulher, além da passagem do tempo, a dignidade mínima da escolha das
suas roupas através do critério do gosto. Há aqui a questão da preferência de cor,
tecido, forma. As roupas doadas são escolhidas e as que sobram viram
mercadorias de comercialização interna ou matéria-prima para a confecção de
novas peças.
Margarida* (figura 14) conta que presta serviços de costureira ao
seu pequeno grupo, transformando cobertores velhos, casacos e outras peças
inutilizadas em gorros e boinas, que comercializa entre eles. É ela quem faz
pequenas adaptações e consertos nas roupas dos seus companheiros. Segundo
seu relato, algumas pessoas anônimas ou de grupos beneficentes distribuem
esporadicamente sacolas com roupas, calçados e cobertores para os moradores
de rua. A partir de então, há uma reunião para decidirem quem vai ficar com o
quê. Escolhem tamanhos, modelos e cores segundo as suas preferências. O que
sobra, quando não é beneficiado, é usado como moeda de troca com outros
grupos de moradores de rua.
Há também a possibilidade da compra de peças de roupa baratas no
comércio convencional (no nosso caso específico, nas lojas do SAARA), mas
segundo depoimentos de algumas mulheres dessa classe, isso ocorre raramente,
no caso de eventualidades.
Figura 14
Azaléia* afirma que possui vínculos familiares. Quando se aproxima
alguma data comemorativa, como natal ou aniversário das netas, ela vai ao morro
onde a filha e o genro moram. Para isto, tem que vestir uma roupa melhorzinha,
como diz. Às vezes, para este fim, ela compra alguma coisa no SAARA. Vaidosa,
diz que não abre mão do relógio, dos anéis e brincos de bijuteria que usa. Só não
usa ouro, porque na rua é perigoso tomarem dela, que já está velha. Mas diz ter
uma correntinha de prata guardada.
4.2. Os homens:
O homem de rua faz, geralmente, um menor uso do artifício que a
mulher. Talvez porque o fato do ser masculino já dê conta de impor algum
respeito. Na verdade, o que se observa é que o artifício vem completar o corpo
biológico, provendo-o nas suas insuficiências. Desta forma o uso dos símbolos no
grupo masculino se observa mais claramente como diferenciador das faixas
etárias ou como referência ao papel de provedor do homem.
Talvez pelo mesmo motivo, o homem de rua também não tenha
grande tendência ao agrupamento. Eles normalmente são encontrados sozinhos
dormindo nos bancos das praças. Sua condição adulta e saudável dificulta a
arrecadação por doações. Talvez diretamente ligada a esta observação esteja o
fato de se observarem mais homens acometidos de doenças perambulando pelas
ruas do que mulheres. A própria doença, neste caso, é um fator mobilizador
favorável à subsistência. O homem doente não é bem recebido pelo grupo: assim,
confirma-se seu caráter solitário. É importante salientar que a própria doença,
quando pré-existente, pode ser a origem do morador de rua pela rejeição da
família, que abandona o parente sujeitando-o à sorte. Nestes casos, é mais
incidente o abandono por histórico de doenças mentais. O fato é que é mais
comum entre os adultos perceber mulheres saudáveis e homens doentes (figura
15). Por sua vez, a mulher pode ganhar as ruas por fatores mais numerosos –
maus tratos do marido, da família, gravidezes precoces ou de filhos ilegítimos.
Figura 15
É claro que há, também, os homens que conseguem se estabelecer
e exercer alguma atividade que lhe dê sustento, como o caso das negociações de
ponto seguro para o pernoite, a comercialização de roupas doadas, enquanto
atividades internas – e a realização de algum comércio ambulante ou ocupação
temporária em troca de pequenas esmolas, enquanto atividades externas ao
grupo. Também é possível a prática de pequenos roubos e furtos.
Há um caso particular aos homens da população de rua: o uso do
uniforme profissional. Não é difícil encontrar pedintes trajando uniformes gastos,
argumentando não serem mendigos, mas pessoas que perderam o emprego
recentemente e precisam levar algum recurso para casa. Nestes casos, o
uniforme e o porte de documentação pessoal estabelecem o elo com a sociedade
formal como forma de apego à cidadania e negação da realidade de morador de
rua. Estes se encontram tão fortemente abatidos com sua condição frustrada que
normalmente exalam o cheiro da bebida alcoólica que consomem para amenizar
a fome, o sofrimento e a passagem do tempo.
Ao me abordar como pedinte, Cedro* conta brevemente sua história,
pedindo uma contribuição para alimentar os filhos. Eu insisto em saber sobre sua
profissão de cobrador de ônibus. Ele diz que está desempregado e só faz uso do
uniforme pras pessoas verem que ele não é “vagabundo”. Carrega uma garrafa
plástica com um líquido vermelho e insiste em dizer que muitos mendigos pedem
dinheiro para beber, mas ele não: ele só toma aquele Ki-suco. É notável o fato de
que ele consumiu recentemente alguma bebida alcoólica. Como maneira de
comprovar sua origem, ele me mostra a foto de duas crianças, dizendo serem
seus filhos. Cedro* nega que more nas ruas. Diz ir para casa assim que conseguir
juntar algum dinheiro.
Nota-se também que os homens idosos, ao contrário das mulheres
idosas, têm maior dificuldade para resgatar uma dignidade mínima que lhes
permita resistir com sanidade às agruras da vida nas ruas. Os homens mais
velhos geralmente estão visivelmente doentes física ou mentalmente, o que lhes
confere uma aparência menos limpa e cuidada do que a das mulheres (figura 16).
Tal fato os afasta da possibilidade do trabalho. A roupa do homem idoso não
passa pelo critério da escolha pelo gosto, tal qual acontece com as mulheres.
Quanto maior o tempo na rua, maior a dificuldade de
restabelecer os laços anteriores. (...). Sua aparência vai
mudando: as roupas, o andar lento fazem com que seja
identificado visualmente como um homem de rua. Dessa
forma, ele cria uma relação de dependência cada vez mais
forte com o mundo da rua.16
Figura 16
4.3. Os doentes:
Tanto no caso das mulheres e mais freqüentemente observável no
dos homens, as doenças mentais propiciam uma gama de características à parte,
o que se reflete imediatamente na construção das aparências.
Nestes casos observa-se uma completa libertação dos padrões de qualquer
grupo. A roupa torna-se mais alegórica do que protetiva. Aliás, esta tendência ao
beneficiamento da roupa pode basear-se nessa ruptura com os códigos coletivos
e na busca do ser-sozinho. Mas esta se trata de uma observação pessoal
despretensiosa de se calcar nos caminhos científicos dos estudos da mente.
É neste descompromisso com a sanidade que os objetos encontram
suas mais amplas variações de sentido e valor. Ou rompem totalmente com os
valores já fixados. Tudo pode ser roupa. Ou pode haver nenhuma roupa. A moral
não é mais agente reguladora e à criatividade não se impõem limites ou restrições
que não os pessoais. Neste caso específico, todo o espaço adquire caráter
privado no entendimento do indivíduo.
As aquisições de recursos dessas pessoas praticamente restringemse ao que pode ser encontrado nas lixeiras – tanto os alimentos quanto os objetos
pessoais. Sua aparência hostil dificulta a aproximação para as doações.
4.4. Crianças e adolescentes:
Uma espécie de relação do espaço privado com o corpo biológico
também pode ser pensada para crianças e adolescentes da população de rua.
Sua vulnerabilidade à violência tem que ser revestida por uma muralha que lhes
garanta a integridade física, social e afetiva, porém diferentemente, resguardando
as características inerentes a cada faixa.
Nota-se uma passagem-reforma quando a criança de rua deixa de
estar sob os olhos da mãe para ter que buscar o seu sustento sozinha, sem
supervisão.
A exemplo disto, temos a Cinelândia, onde famílias inteiras de
moradores de rua concentram-se para comer, dormir, realizar pequenos “bicos”,
mendigar ou, até mesmo, para a prática da marginalidade.
Nestes grupos onde percebemos a presença das mães, ainda
notamos nas crianças certos traços de desproteção; até mesmo, de infância
(figuras 17, 18, 19 e 20). Ainda que, neste meio, cada um tenha que buscar nas
ruas a sua própria sorte, neste caso, a mãe é uma espécie de provedora, ainda
que o seja somente para mapear o local de trabalho e decidir qual será o ponto
estratégico de cada filho-pedinte.
Figuras 17, 18, 19 e 20
Porém, é quando surge a transição da infância para a adolescência
que a estrutura individual do corpo precisa ser reforçada. O organismo não é
necessariamente forte para que possa garantir-se sem a ajuda do mais velho ou
sem o apelo ao artifício.
Nos grupos de adolescentes encontramos características visuais
agressivas, duras, que lhes forneçam a rigidez que sua anatomia ainda não
possui. Desta forma, agregam ao corpo signos que causem repulsa, incômodo,
medo. Intimidar torna-se o seu mecanismo de defesa.
A subcultura delinqüente, como propomos, é uma maneira
de tratar os problemas de ajustamento (...). Esses problemas
são principalmente problemas de status: a certas crianças é
negado o status numa sociedade respeitável porque não
podem elas se enquadrar nos moldes do respeitável sistema
de status. A subcultura delinqüente trata desses problemas
fornecendo os padrões aos quais essas crianças se podem
adaptar.17
Os adolescentes de rua normalmente usam acessórios que os
identifiquem como membros do grupo. Daí surgem entre estes adolescentes os
símbolos de identificação visual – corpo quase que desnudo e uma sensualidade
consciente, para indicar o estado de adulto através de uma possível iniciação
sexual, cabelos elaborados, expressões faciais e corporais bruscas e esguias,
como forma de atingir certa agressividade visual (figura 21).
Outra função importante da subcultura delinqüente é a
legitimação da agressão. Supomos com algum fundamento
que certa dose de hostilidade é gerada entre as crianças da
classe média, com seus ares de superioridade ou
condescendência e contra as normas da classe média, que
são, num sentido, a razão de sua frustração quanto ao
status.18
Paradoxalmente, por ser característica inerente ao fenômeno da
adolescência, surge o ímpeto da ostentação, a vontade de seguir ou negar
tendências de identidade, há um constante questionamento, com constantes
ausências de respostas, agravando-se ainda mais para os adolescentes deste
grupo, fadados a conviver com a escassez de recursos básicos.
Podemos verificar que, dentre os segmentos da população de rua, o
grupo dos adolescentes é o único que sugere tendências de códigos visuais mais
próximas das tendências de moda da sociedade, referenciando a cultura de
massa, que por sua vez, já é uma releitura estilizada da cultura das classes mais
altas.
Figura 21
Muito menos por uma questão de dificuldade de aquisição do que
pelo fator frustração, surge então um bom motivo para o ingresso na
marginalidade, que ocorre acompanhada dos atos de vandalismo e primeiros
furtos.
O mau emprego ou a destruição da propriedade não é
apenas um desvio ou diminuição da riqueza; é uma afronta a
classe média no ponto em que são mais vulneráveis os
egos. O roubo em grupo, institucionalizado pela subcultura
delinqüente, não é só um meio de apanhar alguma coisa. É
um meio considerado como a antítese do respeitável e
diligente trabalho numa profissão. Exprime desprezo por um
meio de vida, ao tornar seu oposto um critério de status.
Dinheiro e bens não são desprezados pelo delinqüente. Para
o delinqüente bem como para o não-delinqüente, é um meio
muito atraente e eficiente para atingir uma variedade de fins
e que nunca se tem demais. Contudo, na subcultura
delinqüente, o dinheiro roubado tem um odor de santidade
que não é desprendido pelo dinheiro economizado ou
honestamente ganho.19
Ao iniciar uma nova transição, agora para o mundo adulto, o que
pode acontecer é uma espécie de conformação, onde não se despreza o valor do
status. O que ocorre é uma mudança de referencial. “Status, por definição, é uma
concessão do respeito por parte de outrem”20. Assim, sendo, este status passa a
ser conferido por outros colegas no mesmo grupo, havendo uma rejeição das
fontes externas de status que os rejeitam. Nesta etapa a aparência compõe a
imagem do poder ou da submissão internos.
4.5. O self:
Em se tratando do morador de rua de uma forma geral, deve ser
ressaltado o fato de que pela restrição física, poucos objetos pessoais são
mantidos. Estes objetos, em maior ou menor escala conforme a segmentação
interna a qual pertença, acabam por integrar-se à sua aparência, que lhes confere
o valor de “roupa”, no sentido que compõem com o corpo um visual e que
impregnam-se de valores de função na ação do vestir. Também estes objetos
acabam por assumir valores de espaço, pois é dentro desta relação de ser com o
corpo que vão originar o habitar do sujeito.
Todos os objetos pessoais misturam-se, confundem-se, de forma
que cada um deles pode preencher o sentido de corpo, como uma unidade, ao
definir que cada uma dessas pessoas é una com aquilo o que possui: a totalidade
do seu corpo físico é a composição de seu organismo biológico juntamente com
os acessórios que se encontram acoplados a ele.
Por várias vezes observa-se nitidamente o processo transcultural na
mudança de valor utilitário dos objetos da população de rua. Este processo pode
se constituir da necessidade de suprir a carência de outros objetos ou ainda do
resultado do fator criatividade, embora não tão despretensiosamente.
No âmbito das relações internas do indivíduo com seu próprio corpo,
destaco a situação a seguir, presenciada no campo:
Figura 22
Pinho* (figura 22) explica em seu depoimento os motivos pelos quais
possui pequenas tiras e pedaços de barbante amarrados nos dedos e nas mãos:
tratam-se de pequenos trapos encontrados no chão que ele agrega ao corpo
como que num ritual de posse. Quando os pulsos e dedos já estão cheios, parece
que há uma necessidade de recomeçar o ritual, para alimentar em Pinho* a
carência da aquisição ou para pontuar a referência de tempo passando.
A partir desta fase, do seu corpo os pequenos trapos passam a ser
guardados em uma velha mochila de jeans, que carrega nas costas. E a busca se
reinicia.
A justificativa que ele formula para explicar esta busca é primária: diz
que estes barbantes são sempre úteis. Se ele precisar um dia, já terá bastante
guardado.
CAPÍTULO 5 – VIABILIZANDO A EXISTÊNCIA
A necessidade do morador de rua de atribuir ao espaço público o
papel dos lares que não têm deve-se à sua necessidade de conformação, de
ajustamento e do mínimo contato com a realidade, para que não sinta tanto o fato
de estar completamente excluído da sociedade convencional. Muitos dos casos
observados, após a análise das entrevistas, registram que estas pessoas referemse às ruas ou praças onde normalmente exercem a mendicância como que
morando em tais lugares – como verdadeiros endereços.
“- Você vai voltar? Eu quero um cobertor e roupa. Eu moro na
Miguel Couto. Você sabe onde é? Se eu não tiver lá, tô aqui na Uruguaiana, mas
eu moro é lá. Tenho dois meninos. Eles tão sempre lá. Se você chegar e eu não
tiver, não dá pra eles, senão eu nem vejo”, disse, por exemplo, Rosa*, 46 anos,
abordada na Rua Uruguaiana.
Durante
sua
declaração,
Pinho*,
por
várias
vezes
travava
identificação comigo – o que simbolizaria, para ele, a sociedade convencional,
dizendo, por exemplo, que ele era uma pessoa igual a mim, “que gostava de
ajudar ou outros”. Que, assim como eu, tinha um par de tênis. E também tinha um
armário cheio de roupas, na casa da tia, em São João de Meriti.
Os laços com a família são rompidos como relação cotidiana
efetiva; no entanto permanece uma relação imaginária, onde
existe uma figura feminina, habitualmente a mãe, que é
evocada quando se fala desse tema. A figura materna
expressa, sem dúvida, a idéia de proteção numa situação de
desamparo afetivo.21
De fato, há nesta relação entre os pólos população de rua e
sociedade estabelecida, a busca de um “elo perdido” que sirva como apelo
psicológico para a manutenção de uma certa conformação. Esses pontos de
convergência buscam, inclusive no vestuário, elementos de identidade e
aproximação.
Porém, se a imagem peculiar aqui é tratada como a materialização
de uma existência única, torna-se pertinente conhecer minimamente os aspectos
que a viabilizam.
As necessidades básicas vitais dos moradores de rua são realizadas
de maneiras diversas que dependem de variáveis externas, não sendo possível
estabelecer um padrão que formate a multiplicidade de possibilidades da prática.
Falar dos hábitos cotidianos: comer, dormir, tomar banho, ir ao
banheiro,
lazer,
rituais,
valores
–
torna-se
uma
ação
complexa
se
pretensiosamente precisa.
Como
o
campo
foi
delimitado
previamente,
podem
existir
coincidências que somente um estudo puramente antropológico viria a esclarecer
como traços culturais ou não. Mas com a simples intenção de relatar o observado,
podemos destacar alguns pontos:
As refeições diárias podem ser adquiridas basicamente por doação.
Há grupos de ONG’s e entidades religiosas que distribuem quentinhas em alguns
pontos do bairro, alguns dias da semana. Há também a possibilidade da compra
do almoço no restaurante popular estadual do Centro e as doações particulares.
A coleta de objetos e alimentos nas lixeiras públicas também é, na
maioria das vezes, uma das atividades restritas aos indivíduos de maior tempo de
permanência nas ruas e com possíveis problemas mentais. Pode ser também,
nos outros casos, fonte de matéria-prima e forma de entretenimento (figuras 23 –
30).
Figuras 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29 e 30
Para a higiene pessoal, existe a possibilidade do uso da água das
fontes públicas e das comunidades religiosas. Em depoimento, alguns moradores
de rua disseram usar canos de água das igrejas católicas do Centro para se
banharem e também fazem uso de seus sanitários. O bom comportamento pode
ser um dos critérios para obter a permissão para acesso às dependências das
igrejas. Em outros casos, pode naturalmente não haver mesmo distinção entre o
espaço público e o privado na realização das necessidades fisiológicas primárias
(figuras 31 e 32).
Figuras 31 e 32
O pernoite nas ruas pode ser muito perigoso para estes indivíduos,
que tendem a se organizar em grupos. Dessa forma, enquanto alguns dormem,
outros fazem vigília para tomar conta dos pertences do grupo, que podem ser
alvejados inclusive por membros de outros grupos. Em alguns pontos, o espaço
para dormir na calçada é negociado. Os mais velhos preferem dormir na Central
do Brasil, embora paguem uma pequena quantia em dinheiro por esse direito.
Eles afirmam que lá é mais seguro e tem uma pequena estrutura para a higiene
matinal.
Para os grupamentos com estrutura familiar, normalmente os
viadutos e pontes servem de abrigo e estes não fazem uso das calçadas
compartilhadas com outras pessoas, acredita-se até que pela busca de certa
privacidade.
Outras atividades, como lazer e rituais devem também ater-se às
questões que a antropologia viria a abarcar. Neste caso, atrelada ao assunto
indumentária, destacam-se as ações de customização e personalização de
roupas como formas não só de lazer, mas de possível rascunho dos traços
culturais e das questões estéticas. Da mesma forma, os rituais relacionados à
indumentária – os encontros familiares, os encontros sociais, os encontros
amorosos – que irão requerer paramentos diferenciados.
CONCLUSÃO
Por vários momentos, antes deste trabalho, confesso que me vi
analisando superficialmente tal assunto com um certo ranço preconceituoso,
considerando que as pessoas de rua vestiam-se unicamente para proteger seu
corpo contra as intempéries e para não andarem nus...
A ignorância – ou mesmo falta de motivos para admiti-la como tal e
modificá-la – fizeram-me, involuntariamente, enquadrar a população de rua numa
espécie de categoria inferior, cujos membros agiam unicamente sob a égide
primária do instinto da sobrevivência.
Após a experiência com a população de rua abandonei grande parte
da aparência estereotipada do “mendigo”, tendo a oportunidade de conhecer e
analisar as mais diversas variações e adaptações, no empenho de observar e
reconhecer os elementos componentes deste vestuário, de forma a enriquecer o
estudo da nossa moda e, conseqüentemente, da nossa cultura.
Constatou-se que há várias etapas de assimilação da vida nas ruas,
desde que se chega nelas até o momento de maior distanciamento cultural da
sociedade estabelecida, o que cederá espaço total à sedimentação da cultura das
ruas no cotidiano do indivíduo, sendo que cada fase dessa passagem é
caracterizada por uma espécie de veste simbólica predominante.
Dependendo da origem de cada morador de rua, podem ser
seguidos vários caminhos diferentes para essa transição. É interessante observar
o quanto a transculturação do objeto acompanha e demonstra a transculturação
do sujeito, até que ambos atinjam o maior grau de abstração de valor e
de
dissolução das noções de espaço público e privado.
É de suma importância o papel da roupa enquanto elo com a
dignidade através do exercício estético do gosto, com o sonho e com a
subjetividade através da possibilidade da liberdade de criação e uso do corpo. E
também é notável o caráter diagnóstico da roupa enquanto denotativa da posição
de cada morador de rua dentro do seu segmento de organização social interna.
Também fica demonstrado o papel não só da roupa, mas também do
corpo, como abrigo para a matéria e também para a afetividade, em estreiteza
com as noções de casa-edificação e casa-lar.
Dessa forma, chega-se finalmente a uma amplidão de atribuições e
possibilidades da aparência do morador de rua transcendendo a dicotomia do
reducionismo da negação da cultura e do exagero da analogia com o modelo
poético do clochard na cultura francesa.
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VINCENT-RICARD, Françoise. As espirais da moda. Rio de janeiro: Paz e Terra,
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NOTAS DE FIM
1
ECO, Umberto. O hábito fala pelo monge.
2
Alfred Kroeber (1876-1960), antropólogo americano, em seu artigo “O
superorgânico”, de 1949, mostrou como a cultura atua sobre o homem, ao mesmo
tempo em que se preocupou com a discussão de uma série de pontos
controvertidos, pois suas explicações contrariam uma série de crenças populares.
Iniciou, como o título do seu trabalho indica, com a demonstração de que graças à
cultura a humanidade distanciou-se do mundo animal. Mais do que isto, o homem
passou a ser considerado um ser que está acima das suas limitações orgânicas.
3
SAHLINS, Marshall. In: LARAIA, Roque de Barros. Cultura – um conceito
antropológico. p. 24.
4
BARTHES, Roland. O sistema da moda.
5
SODRÉ, Nelson Werneck. Síntese da história da cultura brasileira.
6
Não se pode desconsiderar que a marginalidade seja uma realidade neste meio.
O que gostaríamos de ressaltar, porém, é que há a grande incidência de doação
de roupas, que muitas vezes são captadas pelas paróquias do centro ou outras
entidades filantrópicas e distribuídas à população de rua. Há também os casos
em que voluntários entregam pessoalmente sacolas com roupas a essas
pessoas, o que torna o roubo de roupas um fator desnecessário, cometido
eventualmente pelos grupos mais jovens, por motivos que nos deteremos a
detalhar com destaque em capítulo mais a frente.
7
VILLAÇA, Nízia. Moda e proposta. In: Em nome do corpo.
8
COSTA, Maria Antonieta da. et alli. População de rua – quem é, como vive,
como é vista. p.93.
9
Idem, p.96.
10
Idem, Ibidem.
11
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço.
12
COSTA, Maria Antonieta da. et alli. Op. cit., p.99.
13
BACHELARD, Gaston. Op. Cit.
14
Idem.
15
MICHELET, Jules. In A poética do espaço. Op. Cit.
16
VIEIRA, Maria Antonieta da Costa et alli. Op. Cit.. p. 99.
17
BRITO, Sulamita de. A sociologia da juventude – a vida coletiva juvenil. p.
133. Sobre o termo “subcultura delinqüente” adotado pela autora em várias
passagens do seu texto, gostaria de esclarecer sua natureza não pejorativa que
justifica-se pela época na qual foi escrito. Hoje certamente haveria um termo mais
ameno para designar o mesmo objeto, devido às elaborações éticas e questões
humanas que vieram florescendo. Gostaria também de salientar que a
“delinqüência” aqui descrita serviria para abarcar desde os aspectos violentos das
classes inferiores até os atuais exemplos de agressividade e violência praticados
pelos jovens das classes altas.
18
Idem, Ibidem.
19
Idem, p.143.
20
Idem, p.145.
21
Idem, pp. 91 e 92.
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aspectos semiológicos da indumentária da população de rua