Nem tudo o que pode ser contabilizado conta, e nem tudo o que conta pode ser contabilizado. Albert Einstein O Mutualismo é uma forma de consciência presente nas relações da humanidade, que se traduz, bastas vezes, num movimento social através de comportamentos de entreajuda aplicáveis a muitas áreas da vida. Várias teorias têm evoluído substancialmente, mas, sempre no encalço do bem comum, o que poderá ser uma manifestação da verdade e da natureza da sociabilidade humana. Todas estas preocupações – inclusive a de estarmos reunidos nesta sala – mostra-nos, essa vertente que tem sempre dominado o homem, através dos séculos, como manifestação do sentimento de previdência. Essa encontra-se, por seu lado, imbricada na natureza jurídica da mutualidade que opera de acordo com 4 princípios fundamentais: Democracia, liberdade, responsabilidade e solidariedade. Como refere Damásio (2003), à medida que as sociedades humanas se tornam mais complexas, a sobrevivência e o bem-estar humanos têm vindo a depender de formas adicionais de regulação não automáticas que ocorrem num espaço social e cultural. Esta ideia de ajuda mútua, com vantagens recíprocas, tem vindo a alargar-se para o domínio social, dando significado ao mutualismo enquanto expressão socio-organizacional do ideário humano. Salienta Monzón (1987), que as mutualidades são agentes económico-sociais que têm capacidade em “integrar a função económica e a função social”, podendo criar riqueza com eficiência económica e distribui-la equitativamente. Por seu lado, Pitacas (2009) versa que as mutualidades comportam uma dupla dimensão. Têm uma dimensão económica (componente empresarial), como produtoras de bens e serviços e uma dimensão sociopolítica (componente associativa), como associações de pessoas, promotoras de atividades formativas, culturais e cívicas, cujo funcionamento assenta na participação democrática dos seus membros. A MUTUALIDADE EM ÁFRICA Quem estudou ou conhece minimamente a génese evolutiva e histórica do continente africano sabe que todo ele sempre esteve impregnado, durante todo o seu percurso, da ideia do Comunitarismo. Essa base originária do mutualismo só se alterou – mas não totalmente – com a chegada dos outros povos que levaram a moeda como troca. Em certas paragens as duas ideologias conviveram durante séculos. Entretanto, algumas questões essenciais subjazem e estão presentes sempre no que concerne ao debate mutualista em África. Neste apresentam-se duas opções fundamentais para o futuro: a) o regresso ou um redireccionamento diferente - daquele que vem sendo praticado - a um mercado comercial ou b) o estabelecimento de alguma forma de fundo mutualista de seguro. Ora, como é do conhecimento desta magna plateia, um modelo mutualista sustentável deveria possuir diferentes qualidades: medidas de gestão das crises, como os seguros contra catástrofes naturais; fornecer uma cobertura de base contra crises de rendimentos; fazer face aos custos administrativos ligados à instauração de um fundo mutualista próprio do sector; segurança social, bem como garantir a flexibilidade de passagem de um sistema nacional para outro, seja ele público, privado ou de outro tipo, por exemplo, mutualista. Na Africa de Oeste, o termo mutualidade de saúde é muito familiar e muito conhecido. Existem grandes fatores que justificam a emergência das mutualidades de Saúde na África de Oeste: O primeiro facto, está relativamente ligado ao financiamento do sistema de Saúde que estabelece uma reforma profunda e fundamental nos sistemas de Saúde. O segundo fator que explica a emergência das mutualidades de saúde, está ligado à evolução política destes países, principalmente no domínio da saúde. Os programas de reajustamento estrutural traduzidos por reformas económicas e institucionais, que visam a desvinculação progressiva do estado em determinadas áreas, e a promoção do sector privado e das associações. No início do século XXI, cerca de 50 por cento da população dos países da África subsariana vivia abaixo do limiar da pobreza. Mais de 100 milhões de pessoas não têm acesso a uma alimentação suficiente para viver em condições próprias. As dificuldades económicas dos países da região refletiram-se bastante nas despesas sociais. O sector da saúde foi um dos mais afetados por estas tendências adversas. Os intervenientes africanos do sector da saúde, os movimentos sociais e outros membros da sociedade civil mobilizaram-se também para pesquisar, em paralelo ou como complemento às medidas públicas, soluções com o duplo desafio de melhorar a saúde das populações e de proporcionar um financiamento duradouro dos cuidados de saúde. A criação de mutualidades de saúde constitui uma das iniciativas desenvolvidas neste âmbito. Em África a mutualidade conjuga os princípios fundamentais do seguro, da participação e da solidariedade. A mutualidade é um sistema de previdência eficaz para a prevenção contra a irregularidade sazonal dos rendimentos nomeadamente no meio rural. Vários estudos confirmaram o potencial das mutualidades de saúde em matéria de acesso aos cuidados de saúde em África. Este potencial suscitou um interesse crescente para as grandes mutualidades. O apoio ao movimento mutualista organizou-se e desenvolveu-se a um ritmo sustentado. Foi definida em Abidjan uma Plataforma sobre as estratégias de apoio às mutualidades de saúde, durante um encontro que reuniu uma dezena de Estados e mais de cinquenta estruturas: federações mutualistas de África e de outras regiões do mundo, organizações internacionais, agências de cooperação, prestadores de cuidados de saúde, as ONG locais e internacionais, universidades, centros de pesquisa e confederações sindicais. Foi criada uma concertação das mutualidades de saúde na África francófona de forma a aumentar as trocas de experiências e de informação neste domínio. Ao longo das últimas décadas, as sucessivas crises económicas tiveram um impacto negativo nas despesas sociais na maioria dos países africanos abaixo do Sahara. Esta situação afetou particularmente o sector da saúde a partir dos anos 70, tendo como consequências a degradação do serviço público e o aumento do custo dos cuidados de saúde de qualidade. Face a esta situação, os ministros da Saúde dos países africanos reuniram-se em Bamako em 1987, durante uma conferência organizada em conjunto pela UNICEF e a OMS, tendo em vista a definição de uma estratégia de reforma dos sistemas de saúde. Esta conferência salientou a extensão dos cuidados de saúde primários, a participação da comunidade na gestão dos serviços de saúde e no financiamento dos cuidados. A partir de 1993, quase todos os países de África ao sul do Sahara tinham abandonado a gratuitidade dos cuidados em benefício de sistemas de comparticipação dos custos: uma contribuição financeira era doravante exigida aos utilizadores de forma a cobrir uma parte dos custos de saúde e melhorar a provisão em medicamentos. Esta política permitiu reforçar a disponibilidade e a qualidade dos cuidados. Ela coloca no entanto, problemas de equidade e de acesso aos cuidados das camadas mais pobres da população. A contribuição financeira dos doentes ou da sua família no combate da doença é necessária para assegurar o bom funcionamento dos serviços de saúde, mas limita o acesso dos mais carenciados aos cuidados. Com muita frequência, os indivíduos e as suas famílias não podem assumir as despesas necessárias para beneficiarem dos cuidados específicos. Por esta razão, um pouco por todo o lado mulheres e homens desenvolveram mecanismos de previdência para se protegerem dos riscos. As respostas coletivas de mutualidades em África, baseiam-se no recurso à entreajuda e à solidariedade entre amigos/vizinhos, no seio da família alargada, numa associação ou noutras formas de agrupamento. Os movimentos de entreajuda em África e noutros países em desenvolvimento encontram-se distribuídos em larga escala, com formas tradicionais muito marcadas. A entreajuda em caso de doença realiza-se normalmente sob duas formas: Em natureza: transporte dos doentes, tratamento dos campos de um agricultor hospitalizado, guarda de crianças, etc.; e em género: concessão de empréstimos ou doações para ajuda ao pagamento das despesas de cuidados de saúde. O sistema mutualista em África representa a forma mais conhecida e mais documentada em África. Constitui uma entreajuda financeira organizada por pequenos grupos de pessoas que formam uma união de poupança e de crédito. O seu modo de funcionamento é definido segundo o nível de rendimentos dos participantes, das suas necessidades prioritárias e o contexto no qual estes evoluem. De acordo com Pitacas (2009), as mutualidades de saúde ou previdência estão presentes na maioria dos Estados, gerindo diretamente o sistema de proteção obrigatória, ou através de cobertura complementar, ou desenvolvendo atividades de previdência, ajuda mútua, assistência médica ou social. De igual modo, as mutualidades em África apresentam características diferentes de país para país, em resultado de condicionantes políticas, sociais e económicas, sendo, contudo, uma expressão de ajuda mútua à semelhança dos outros países. As suas funções dependem da configuração dos sistemas públicos de segurança social, assumindo um papel de maior ou menor complementaridade. A entreajuda nas sociedades africanas A entreajuda exprime-se de diferentes formas nas sociedades africanas: pelo trabalho, apoio financeiro, etc. O sistema mutualista constitui uma forma de entreajuda financeira muito utilizada em África, particularmente entre os trabalhadores das zonas urbanas e são constituídas por pequenos grupos de pessoas que formam uma espécie de poupança e de crédito, na qual os membros recebem, a título indicativo, uma determinada quantia de dinheiro em comum acordo e debitada sobre as contribuições de todo o grupo que normalmente fazem parte da mesma família, do mesmo bairro, de uma mesma empresa ou de um mesmo meio profissional. A mutualidade de saúde em África tem funcionado numa perspetiva de que cada membro paga as suas contribuições, com uma periodicidade variável e independentemente do seu risco pessoal de doença. Como contrapartida das suas contribuições, a mutualidade garante aos seus membros o pagamento (ou o reembolso) da totalidade ou de uma parte do custo dos cuidados de saúde recebidos. Os cuidados de saúde são feitos por prestadores de cuidados de saúde, com quem a mutualidade realizou acordos relativamente às tarifas e à qualidade dos cuidados a prestar, entre outros fatores, ou por instituições que pertencem à mutualidade de saúde. Apesar do sistema de mutualidades ter vindo a mostrar-se útil, ela enfrenta algumas dificuldades em África como: a quase totalidade das mutualidades não dispõe de responsáveis suficientemente competentes, nomeadamente a nível de gestão; muito poucas mutualidades estabeleceram convenções com os centros de saúde e os hospitais; alguns prestadores de cuidados de saúde interromperam a sua colaboração no decorrer da sua atividade; outros, recusam-se a trabalhar com as mutualidades, por falta de confiança, etc. Um modelo mutualista sustentável deveria possuir diferentes qualidades. Deveria assentar na solidariedade – solidariedade Norte-Sul e entre os seus membros – mas visar a longo prazo a sua autonomização e o seu autofinanciamento. Deveria ser flexível e ajustar-se a diferentes contextos. Deveria visar a igualdade, não tanto a nível das contribuições de cada um para a sua sobrevivência económica, mas sobretudo a nível do acesso aos cuidados que assegura. Deveria ser participativo e portador de uma dinâmica social que lhe permita influenciar ou, inclusivamente, pilotar políticas de saúde e exercer alguma razoável pressão sobre os governos. A União Europeia tem um papel a desempenhar na instauração de estruturas de saúde solidárias. Antes do mais, obrando para que se reúnam as condições prévias necessárias aos sistemas mutualistas: aconselhando, orientando, financiando sistemas de saúde de base e o acesso aos medicamentos sem os quais nenhum sistema de seguro saúde se pode desenvolver. Por último, apoiando programas internacionais de solidariedade que criem iniciativas e intercâmbios que permitam estruturar redes mutualistas portadoras de uma transformação social. A não mercantilização da saúde que a Europa reclama deveria ser a regra também em África. CABO VERDE Em Cabo Verde tem-se adotado o sistema de mutualidade como meio de proteção social e tem constituído um mecanismo informal de proteção social, com carácter associativo que asseguram a cobertura/resposta a certos riscos sociais a que se sujeitam os seus membros. São sistemas de tipo tradicional, baseados na solidariedade e ajuda mútua que asseguram a satisfação de algumas necessidades pontuais dos beneficiários insuficientemente cobertos ou não cobertos por outros sistemas de proteção social. As organizações mutualistas encontram-se viradas essencialmente para a proteção na saúde e para a poupança de crédito. As associações garantem aos seus membros alguns benefícios, como sejam, o apoio em situações de morte, a cobertura de despesas de saúde (assistência médica e medicamentosa), facilidades de crédito para atividades geradoras de rendimentos e melhoria das condições de habitabilidade. Para além das anteriormente elencadas, é de se referir ainda as organizações tradicionais informais de mutualidade, com maior expressão na ilha de Santiago, podendo-se destacar, as Caixas de Poupança e crédito, os Grupos de Interesses Comuns, as Tabancas o Toto-caixa, as Associações Funerárias, para além de várias organizações de base comunitária (Associações de desenvolvimento comunitário, associações de bairro). Essas organizações têm servido para proteger as camadas mais desfavorecidas, que se encontram insuficientemente cobertas ou não cobertas por outros sistemas de proteção social. Muitas das organizações tradicionais de solidariedade predominam sobretudo no meio rural, onde se desenvolvem formas de solidariedade e entreajuda como estratégia de sobrevivência das classes menos favorecidas. Existem em maior número nas ilhas de Sotavento, coexistindo com formas de entreajuda espontânea (djuntamon) que permitem resolver alguns necessidades básicas de certos grupos, nomeadamente, na realização dos trabalhos agrícolas, construção e melhoria de habitação, alimentação, saúde, educação, cultura, bem como o financiamento de atividades económicas no sector informal. Regista-se igualmente um número expressivo de associações de desenvolvimento comunitário no meio rural que desenvolvem atividades de interesse coletivo, nas áreas do saneamento, conservação dos solos, reflorestação, construção de diques e de sistemas de irrigação, de reservatórios de água, de habitações sociais, de pocilgas e estábulos, além de concessão de microcréditos aos seus membros para o desenvolvimento de atividades geradoras de rendimentos. Essas atividades são subvencionadas pelo Ministério da Agricultura, através de contratos-programa e pelo Programa de Luta Contra a Pobreza (microcrédito). Sendo os princípios da solidariedade a força motora da criação dessas organizações, muitos têm enfrentado problemas e dificuldades relativas à participação, devido à perda relativa da solidariedade e do espírito de entreajuda, sobretudo nos meios urbanos. Nos bairros periféricos da cidade predominam sobretudo as associações funerárias e as associações de bairros, registando-se igualmente iniciativas como o toto-caixa, para satisfação de necessidades urgentes, sobretudo entre comerciantes do sector informal. As associações de bairro (no meio urbano) desenvolvem diferentes tipos de atividades, desde gestão de jardins-de-infância, à organização de cursos de alfabetização ou de formação profissional, contando com apoios de organismos governamentais e algumas embaixadas. As mutualidades de saúde têm ainda pouca expressão numérica, sendo de registar o importante papel que algumas têm desempenhado (caso não só da Mutualidade da Achadinha, bem como de uma iniciativa recente em S. Vicente). No domínio da proteção social existem sem dúvida organizações não públicas que têm vindo a desenvolver um trabalho de extrema importância, quando não dominante em direção de grupos sociais bem específicos. Convém reter algumas delas, principalmente pela abrangência de suas atividades e pelo grupo social recoberto, tendo como exemplo Cruz Vermelha, aldeias SOS, cartas cabo-verdianas, Bornefonden, etc. Os sistemas tradicionais de proteção social constituem, sem dúvida, um instrumento de apoio aos membros em situações pontuais, respondendo muitas vezes à inexistência ou insuficiência de outras formas de proteção e segurança individual ou coletiva. Embora algumas iniciativas estejam a surgir, no domínio da proteção na saúde, não se tem registado uma evolução positiva deste tipo de proteção, embora exista uma forte presença do INPS. O elevado custo de funcionamento, particularmente das caixas de poupança e crédito, a forte dependência de financiamento, a instabilidade face às conjunturas de ordem política, económica e financeira e o fraco pagamento das quotizações por parte dos membros, colocam a questão da sustentabilidade dessas organizações mutualistas em Cabo Verde. Conclusão Inspirado na solidariedade, o Mutualismo como instituição é o sistema mais antigo do mundo. Se, inicialmente, surge ligado a organismos religiosos, económicos e políticos, na Idade Média servia os propósitos de agremiações de profissionais do mesmo ramo, promovendo a regulamentação, a qualidade da profissão e a proteção de órfãos, viúvas e inválidos. Com a revolução francesa de 1789 emergiram os valores que regeriam o Mutualismo e as mutualidades: liberdade (de adesão e saída), igualdade (dos associados) e fraternidade (um fundo comum que dilui o risco individual no risco coletivo). O liberalismo que inspirou o século XIX e a Revolução Industrial, conduzindo à proletarização, à destruição dos mecanismos de solidariedade familiar ou informal e à emergência de novas classes sociais desprotegidas pelas instituições públicas, suscitaram a necessidade da criação de associações de defesa mútua. O Mutualismo associado a grupos profissionais ganhou a forma de associações mutualistas ou mutualidades, que custeavam despesas de funeral e sustentavam na invalidez, na doença, na orfandade ou nos acidentes de trabalho. Foi somente na Idade Moderna e, principalmente na Idade Contemporânea, que ocorreram os avanços ao desenvolvimento técnico nessa área, com o Cálculo das Probabilidades, a Estatística e a Lei dos Grandes Números. Em África, as perspetivas são promissoras mormente dada a sua experiência nessa matéria de entreajuda. Faltam os pressupostos enunciados e já constatados e diagnosticados anteriormente. Se para os problemas globais necessitamos de soluções globais, as experiências deverão ser partilhadas entre diversas paragens do planeta, sempre sob o signo da procura do bem comum para toda a humanidade. É uma questão de consciência.