ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DO JORNAL PÚBLICO OUTUBRO ’10 / EDIÇÃO 3 • PROPRIEDADE INDUSTRIAL • RELAÇÕES BILATERAIS «O DIA MUNDIAL DO MAR COMEMOROU-SE POR TODO O PAÍS» REVELA MIGUEL SEQUEIRA, PRESIDENTE DO CONSELHO DIRECTIVO DO IPTM AUGUSTO GUEDES, PRESIDENTE DA ANET, EM DISCURSO DIRECTO “A Engenharia portuguesa tem de ser um factor de riqueza” ESTA FOI UMA ENTREVISTA A UM HOMEM IGUAL A SI MESMO E QUE TEM DEDICADO GRANDE PARTE DA SUA VIDA À DIGNIFICAÇÃO DA PROFISSÃO DOS ENGENHEIROS TÉCNICOS. COM UM DISCURSO DIRECTO E ESPONTÂNEO, AQUI E ALI «APIMENTADO» COM UM LIGEIRO «TOQUE» DE PROVOCAÇÃO, AUGUSTO GUEDES, PRESIDENTE DA ANET – ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS ENGENHEIROS TÉCNICOS REVELA-NOS O PANORAMA ACTUAL DAS COISAS, PRECONIZANDO MEDIDAS CONCRETAS NO SENTIDO DA ENGENHARIA PORTUGUESA SE TORNE AINDA MAIS COMPETITIVA E CRESÇA A NÍVEL NACIONAL E INTERNACIONAL. O discurso é extenso, a mensagem é fundamental e a conclusão só deve ser esta, ou seja, é necessário que se acabem com os velhos tabus e se dê à engenharia aquilo que ela merece, “que passa pela enorme capacidade que possui de promover o nosso país e consequentemente o nosso desenvolvimento, pois a engenharia é, cada vez mais, um instrumento fundamental de penetração de Portugal no mundo”, afirma Augusto Guedes. É por este cenário que é legítimo afirmar que a engenharia detém um papel importantíssimo no progresso e desenvolvimento do país, sendo necessário reaproveitar a mão-de-obra instruída e qualificada nacional, onde as novas gerações terão um papel fundamental no futuro. Para o presidente da ANET, Portugal tem aproveitado “razoavelmente bem” os profissionais de engenharia, embora ainda sejam necessárias diversas e inúmeras alterações de índole pública e de uma urgente mudança de mentalidades nas denominadas associações corporativas, porque “não tenhamos dúvidas, tenho uma enorme expectativa de que o país vai continuar a evoluir, independentemente das dificuldades e de todas as dúvidas que diariamente pairam. Desejo que Portugal continue a traçar um caminho evolutivo como fez nos últimos 30 anos, com o mesmo ritmo e com menos erros. E os chamados «velhos do Restelo», aqueles que estão sempre contra tudo e contra todos, serão cada vez menos e não irão representar qualquer influência no futuro, porque existe hoje 70 uma enorme convicção nas novas gerações, que estão ávidas de mostrar que têm qualidade e que serão os principais intervenientes na mudança positiva deste país”, assevera o nosso interlocutor. URGE PRODUZIR MAIS ENGENHEIROS Uma das principais lutas da ANET tem passado pelo combate à chamada engenharia ilícita, bastando recordar que muitas das “pessoas que fazem a engenharia não estão habilitadas para tal. A engenharia só deve ser exercida por aqueles que estão habilitados e reconhecidos. Caso isso não aconteça não são apenas os legítimos e reconhecidos engenheiros que irão sofrer com este cenário, somos todos nós, o país na globalidade”, assegura Augusto Guedes, para quem o panorama actual é bem melhor do que no passado recente, embora…”embora ainda haja muita coisa a fazer. De facto melhoramos neste campo, mas isso ainda não é suficiente. Falta considerar que existe um conjunto de actos que são exclusivos dos engenheiros e engenheiros técnicos. O problema é que o país não produziu, nem produz, o número de engenheiros necessários ao desenvolvimento do país e tal como em 1973, em que existia uma lei que permitia que outras pessoas pudessem praticar actos de engenharia, isso ainda hoje acontece”. Qual a solução para terminar com este cenário de tão nefastos efeitos para Portugal? “É necessário duplicar, num prazo razoável de dez anos, o número de engenheiros e de engenheiros técnicos, porque esta é a solução para o que são neste momento as carências do país”, as- segura o nosso entrevistado, dando como exemplo casos de empresas de grande dimensão que “têm de ter nos seus quadros, pouco mais de uma dezena de engenheiros. Isto é inaceitável. Temos que, gradualmente, corrigir essa situação e para que isso seja uma realidade é necessário um maior número de formados em engenharia”. Mas quem são os responsáveis desta situação? Há escassez de escolas? “Isso é uma falsa questão. Criou-se o «mito» de que temos licenciados a mais, mas isso acontece apenas em algumas áreas e não na vertente da engenharia. O país tem de produzir pessoas com formação superior porque só dessa forma se pode fazer face às necessidades futuras, porque o futuro começa a construir-se hoje. A engenharia portuguesa tem de ser um factor de riqueza, a nível económico e num plano internacional. Esta é a grande oportunidade e não podemos desperdiça-la, talvez mesmo a única dos últimos 200 anos”. Assegurando ainda que esta oportunidade é direccionada para todas as engenharias e não consoante as áreas de especialidade, segundo Augusto Guedes é necessário cessar também os chamados lobbies. Mas quem são os que fomentam esses lobbies? Algumas associações “corporativas”, que ainda hoje existem e que ao tempo, foram sustentáculo do Estado Novo. Também as associações de direito público, vulgo ordens, que com uma postura egocêntrica, contestam o aumento do número de vagas nas universidades”, esclarece, dando como exemplo mais concreto a Ordem dos Médicos “que está sempre a contestar a abertura de um maior número de AUGUSTO GUEDES, PRESIDENTE DA ANET novas vagas. Não podemos pactuar com isto. As associações que têm poderes delegados do Estado não podem, de forma alguma, só dar protecção aos instalados, o que só prejudica o desenvolvimento do nosso país. É essa a batalha que a ANET trava hoje”. “A ANET NÃO SE DEIXA INTIMIDAR” Mas não será natural que as associações de direito público protejam os seus membros? Segundo Augusto Guedes esse princípio é positivo, “defender o que é nosso. Mas não podemos defender e proteger os vícios e os lobbies instalados”. Qual é o papel da ANET no meio deste cenário? “Olhe, a nossa visão é exactamente oposta. Temos de lutar para aumentar o número de membros e de diplomados. A ANET tem um discurso próprio. Não sendo corporativa, defendemos a duplicação dos engenheiros e engenheiros técnicos, e pretendemos continuar a contestar posições como a da Ordem dos Médicos e de outras ordens que são proteccionistas”, assegura convicto. Mas esta posição da ANET não passará somente de uma luta feita «apenas e só» através de um discurso corrosivo? “De forma alguma. Temos tomado uma série de iniciativas e destaco a elaboração da grelha dos actos de engenharia que, permite certificar o que cada engenheiro técnico pode subscrever. Temos combatido «ferozmente» e dentro das nossas limitações a engenharia ilícita, a vulgar assinatura de favor. O problema é que, os resultados nem sempre são visíveis. Mesmo assim, somos pressionados, do exterior, por outras associações de direito público, não sendo por acaso que ainda não tenham permitido que a ANET faça parte do Conselho das Profissões Liberais. Não nos deixamos intimidar e iremos continuar com um discurso de ruptura contra as práticas instaladas e isso paga-se caro. Mas não temos dúvidas que este é o caminho e mais cedo ou mais tarde conseguiremos demonstrar e provar que estamos correctos”. “JÁ IMPORTAMOS UM NÚMERO ELEVADO DE ENGENHEIROS” As atitudes corporativas têm na opinião do nosso entrevistado manietado os desideratos dos engenheiros e consequentemente do país. Mas correremos o risco de num futuro próximo ter que, à imagem do que tem sido realizado com profissionais de saúde, de importar engenheiros? Segundo Augusto Guedes esse cenário já é visível. “Já importamos um número elevado de engenheiros porque temos uma carência enorme. Aliás, neste momento é muito difícil encontrar um engenheiro no mercado desempregado. O problema é que este problema é menos visível porque um engenheiro não trabalha directamente com o público. Veja-se os casos das autarquias, que têm uma ausência de técnicos de engenharia a todos os níveis. Não podemos continuar neste panorama. A engenharia é hoje um potenciador da exportação em Portugal, mas podia ser muito mais se tivesse mais engenheiros, pois estes têm, pela sua natureza uma enorme capacidade empresarial que acabam por tornar os engenheiros em gestores e empreendedores, que é algo que em Portugal não existe pelas tais políticas proteccionistas de poderes instalados, com resultados negativos para o quotidiano do país”. Mas quais são as consequências desses actos? “Estamos no limiar. Conseguimos satisfazer as necessidades do mercado mas com um enorme deficit, única e exclusivamente porque criou-se este conceito que não deve haver mais pessoas formadas com o curso superior”, assegura, deixando uma palavra elogiosa para com o actual Executivo liderado por José Sócrates, “que tem tomado decisões que vêm contrariando o actual cenário. Veja-se as últimas apostas deste Executivo que demonstram que estamos no caminho certo, porque «mexeram» com os lobbies instalados”. APOSTAS DO GOVERNO ELOGIADAS Assim, segundo o presidente da ANET, o Governo, de uma forma silenciosa, teve a coragem de realizar “as mais importantes reformas dos últimos 200 anos. Não tenho nenhuma dúvida”. Mas o desemprego aumentou….”Sim, temos problemas pontuais como o desemprego desqualificado e pessoas sem formação, que infelizmente nunca mais terão oportunidades de emprego. O rumo da globalização mundial não lhes dá espaço. Essas pessoas estão condenadas ao desemprego eterno e à sociedade resta-lhe organizar-se da melhor forma para lhes pagar o subsídio de desemprego, sendo este panorama uma herança do antigo regime que passava pela qualificação baixa e portanto vamos «pagar a factura» dessa política agora”. Então mas onde está a coragem que refere deste actual Governo? “Na reforma da política educativa. Desde logo com a introdução do inglês na escola primária, com a reforma de Bolonha, com o aumento de vagas no ensino superior e outras medidas, porque são iniciativas estruturantes que terão resultados positivos no futuro de Portugal. Por isso digo e afirmo que a reforma mais importante deste Governo foi na área na educação e não a podemos desperdiçar sob pena de não termos uma segunda oportunidade. Hoje fomenta-se o culto da formação e da educação, em contraponto com o culto do trabalho imposto no antigo regime” Assegurando que os engenheiros e engenheiros técnicos são bastante reconhecidos a nível nacional e internacional, segundo Augusto Guedes o desenvolvimento de Portugal passa mesmo pela engenharia e pela arquitectura. “Regeneração, requalificação urbana, organização do edificado são vertentes que só os engenheiros e arquitectos podem promover, com o impacto que isso terá ao nível de infra-estruturas de comunicações e telecomunicações. Aliás, Portugal é dos países mais bem posicionados nessa matéria, embora ainda tenhamos muitas assimetrias locais e regionais que têm de ser resolvidas”, afirma o nosso entrevistado, lembrando que outra das iniciativas fundamentais criadas pelo actual Governo passa pelo Plano Tecnológico. “Este plano foi alvo de chacota e de brincadeiras de mau gosto por parte de muitos e não percebem que este foi um passo importante para o futuro e desenvolvimento do nosso país. Portugal hoje não tem nada a ver com o que era há quatro anos, quanto mais há duas décadas. Hoje temos milhares de jovens com acesso a computadores distribuídos pelo Governo, que quando estiverem numa fase adulta poderão colocar o país numa posição cimeira ao nível do desenvolvimento tecnológico. Obviamente que estas apostas não terão efeitos imediato. Só alguém com uma essência maldosa e depreciativa acredita nisso”, assegura convicto, deixando um aviso aqueles que preferem manter os seus cargos cómodos de falsos nobres ao invés da evolução do país. “Venham as forças da sociedade que vier este cenário será imparável. Tenho ainda mais prazer em assistir a esta mudança num momento em que comemoramos cem anos de República, sob o lema de «Escola para todos» ”. BOLONHA - ULTRAPASSAR ESTRUTURAS DESACTUALIZADAS “Bolonha é uma oportunidade para o país. Se não tivesse mais nada na sua essência, pelo menos teve o dom de mexer em estruturas que estavam completamente ultrapassadas e «caducas» no ensino superior e que eram dominadas por lobbies”, afirma Augusto Guedes. Fala dos professores universitários? “Obviamente. A sociedade portuguesa está com receio de perder coisas que efectivamente não tem. Os professores universitários edificaram lobbies fortes e organizados, que detinham programas educacionais que não eram revistos há mais de duas ou três décadas, facto que foi alterado com Bolonha. Aqueles que compreenderam as vantagens destas mudanças continuam a evoluir. Os que forem resistindo vão perdendo sucessivas batalhas e portanto, reafirmo novamente, é uma das reformas mais importantes dos últimos duzentos anos, porque mexeu com a estrutura mental e psicológica da sociedade. É a possibilidade de circulação no mundo académico e isso aporta novas ideias, nova massa crítica, novas ideias. Não temos qualquer hipótese de evolução se o ensino superior não produzir pensamento”, assegura o nosso interlocutor. De facto esta mudança de paradigma aportada por Bolonha é vital, mas falta ainda alterar a ligação entre o universo empresarial e os Edifícios do Saber, vulgo universidades. Bolonha trouxe esse dinamismo e essa relação de parceria? “Isso é uma velha questão que tem pouco sentido. Não existe lacuna nenhuma de ligação. As novas gerações de estudantes serão os novos empresários de amanhã e irão substituir as gerações de empresários antigos e que têm «morte» anunciada. Estamos a assistir a um ciclo que está no fim”, explica Augusto Guedes, lembrando que apesar das taxas de 72 desempregados a nível de licenciados ser elevada não tem necessariamente de ser algo negativo. “Significa que o mercado os vai absorver, embora esse processo de adaptação seja moroso”. UM TEMA SENSÍVEL Engenharia ilícita. Poderes instituídos. Lobbies instalados. Engenheiros técnicos visto como profissionais menores. Estes e outros assuntos revelam-se no quotidiano diário de Portugal no universo da engenharia. O que deve ser feito para alterar estes comportamentos e mentalidades? Não seria desejável, para terminar com os mesmos, uma fusão entre a ANET e a Ordem dos Engenheiros no sentido de representar e solucionar os problemas de engenharia? Para Augusto Guedes assiste-se actualmente a uma «guerra» muito complexa neste domínio “porque existem ainda inúmeros vícios na sociedade portuguesa e não é de um dia para o outro que se ultrapassa este cenário. Por exemplo, o problema da «assinatura de favor» é uma questão de consciência cívica, não se resolvendo apenas com novas leis. Mas este não é um problema apenas da engenharia, porque está instituído em diversos sectores da nossa sociedade e que vai demorar o seu tempo a ser alterada”. Mas poderia esta fusão entre as duas entidades reguladoras da engenharia, ANET e Ordem dos Engenheiros, ajudar a finalizar estes problemas, mais concretamente a engenharia ilícita? Segundo Augusto Guedes esse pode ser um dos caminhos, “mas apenas se essa fusão provocasse uma alteração de mentalidade e isso para a ANET ainda não é claro”, esclarece, assegurando que a relação com o novo Bastonário da Ordem dos Engenheiros, Carlos Matias Ramos, não é movida por nenhum sentimento de desconfiança. “Esta é uma questão que não envolve apenas pessoas, embora sejam determinantes para os processos se resolverem. Temos de continuar a caminhar rumo a uma maturação que permita a edificação de uma relação duplamente responsável das atitudes de cada instituição. Acredito que «a prazo» possamos assistir a uma fusão e à criação de uma ordem única, embora neste momento não me parece que estejam reunidas condições para o fazer. Se mudarmos atitudes, preconceitos e complexos, nos próximos dez anos poderemos assistir a essa fusão”. Na sua opinião esse problema passa ainda pelo engenheiro técnico ser visto como um profissional menor? “Sem dúvida. São esses preconceitos que têm de ser completamente alterados. Vivemos numa sociedade muito estigmatizada e o facto dos engenheiros técnicos, na sua maioria, serem oriundos de classes sociais mais baixas preconiza esses preconceitos que me parecem ridículos. Portanto, mais do que o presidente da ANET ou o Bastonário da Ordem dos Engenheiros, é necessário terminar com os estigmas que ainda existem na sociedade relativamente a esta matéria”, salienta convicto Augusto Guedes, optimista relativamente ao futuro e a uma possível fusão. “Se me perguntasse se há 20 anos existiam condições para que essa fusão fosse uma realidade diria que não. Hoje estamos muito melhor e apesar desta relação ainda se encontrar numa fase bastante embrionária, começam a existir sinais de mudança positivos. Mas não existe nenhum clima de «guerra» ou de luta. Existe ainda muito trabalho de «corredor» e de sombra que está a ser realizado e não vejo necessidade de precipitar nada”. São conhecidos os diferendos entre Augusto Guedes e o anterior Bastonário da Ordem dos Engenheiros, Fernando Santo, sendo que para o presidente da ANET é importante que todos estejam dispostos a ceder. “Com o Bastonário Carlos Matias Ramos o diálogo tem sido fácil, mas não estamos sozinhos. Somos um país de invejas e eu como presidente da ANET sei que quando assumo um compromisso cumpro-o até ao fim. Mas para que esta confiança exista e seja profícua não podem acontecer situações dúbias como quando a ANET celebrou um acordo com o anterior bastonário sobre a Lei 31, tendo este realizado uma petição, depois do acordo alcançado, para se proceder à alteração do acordado. Isso cria desconfiança e é necessário que se assumam compromissos e se terminem com os preconceitos e estigmas para que existam condições para se trabalhar em prol da engenharia e de Portugal”. Mas será que este impasse não tem consequências nefastas para o país e para a própria classe da engenharia? “O país não perde nada, bem pelo contrário. Há apenas uma sã concorrência entre ambos. O país só perderá se não conseguirmos encontrar caminhos que a ANET defende como a duplicar o número de engenheiros nos próximos dez anos”, conclui o presidente da ANET, Augusto Guedes.