A ORGANIZAÇÃO ESTRUTURAL HIERÁRQUICA DAS
INTERAÇÕES VERBAIS
Adriano Duarte Rodrigues
Introdução
Já vimos que tanto as interações verbais formais e institucionalmente
enquadradas como as conversações espontâneas são atividades reguladas. Os falantes
não tomam a palavra de maneira desordenada nem dizem o que lhes passa pela cabeça,
mas intervêm na altura apropriada, as suas intervenções apresentam níveis mais ou
menos rigorosos de coerência, encadeiam-nas de acordo com a compreensão daquilo
que está em jogo em cada um dos momentos em que intervêm. O encadeamento das
suas intervenções obedece a regularidades tanto semânticas e sintácticas como
pragmáticas. Assumem plena relevância a propósito desta organização as metáforas
habitualmente utilizadas pelos etnometodólogos, que costumam comparar o
comportamento dos seres humanos envolvidos nas interações verbais ao dos dançarinos
ou ao dos músicos de uma orquestra: os falantes coordenam entre si as suas
intervenções tal como cada um dos dançarinos ajusta em permanência os seus passos
com os passos dos seus parceiros e cada um dos músicos coordena as suas intervenções
com as dos outros músicos.
As interações verbais obedecem a uma organização que comporta um conjunto
de níveis estruturados de acordo com o seguinte princípio: cada um dos níveis, excepto
o nível mais elevado, é constituído pelo nível imediatamente superior e constitui o nível
imediatamente inferior, excepto no caso nível mais elementar.
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Damos o nome de interação ao nível mais elevado desta organização estrutural.
Este nível corresponde ao conjunto da interação verbal; não é, por conseguinte,
constituído por nenhum outro nível, mas constitui o nível imediatamente abaixo, a que
damos o nome de sequência. A sequência, que é constituída pelo nível interação,
constitui por sua vez o nível a que damos o nome de permuta. A permuta que é
constituída pelo nível da sequência, constitui o nível a que damos o nome de
intervenção. Por fim, a intervenção, que é constituída pelo nível da intervenção,
constitui o nível último da estrutura, a que damos o nome de acto de linguagem.
Podemos representar o conjunto dos níveis desta organização estrutural das
intervenções verbais do seguinte modo:
INTERAÇÃO  SEQUÊNCIA  PERMUTA  INTERVENÇÃO  ACTO
DE LINGUAGEM
A interação
A interação corresponde ao nível superior da organização estrutural das
interações verbais. Se muitas vezes não é difícil saber quando começa e quando acaba,
outras vezes a sua delimitação coloca dificuldades particulares, uma vez que não existe
propriamente um critério indiscutível para essa delimitação que possa ser aplicado em
todas as circunstâncias.
Podemos considerar, em princípio, como critérios para a delimitação da
interação a unidade de lugar e de tempo em que os interactantes se encontram e falam
entre si, a manutenção da interação entre as mesmas pessoas, a manutenção do mesmo
objecto temático. Nenhum destes critérios pode ser aplicado em todos os casos. Assim,
por exemplo, uma interação verbal pode começar num local e prolongar-se enquanto os
interactantes se deslocam, ser retomada num outro local e noutro momento, poder
começar com determinadas pessoas e inserir outros participantes, como no caso de uma
conversa a um jantar onde vão chegando os convivas. Além disso, não é raro
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assistirmos à introdução de vários tópicos ao longo de uma interação, sem que
possamos dizer que estamos diante de conversas diferentes.
Acerca deste nível, um dos problemas interessantes tem a ver com o facto de
muitas vezes uma interação se inserir no quadro de uma história conversacional, como é
o caso de uma conversa ao serão entre o marido e a mulher, conversa que se segue a
inúmeras outras conversas anteriores e que, ao terminar, não pode deixar de se projectar
sobre potenciais outras conversas no futuro. (Golopentia-Eretescu, S. (1985; 1988).
A sequência
Uma interação comporta uma ou mais sequências. Podemos dar da sequência
uma definição genérica, dizendo, como os autores da Escola de Genebra, que se trata da
transacção de um objecto de negociação e por objecto de transacção entendemos
qualquer foco de atenção comum aos interactantes mobilizador do seu envolvimento.
A questão da delimitação da sequência nem sempre é fácil de identificar. Para o
fazer os interactantes utilizam dispositivos ou marcas de delimitação de sequências,
como podemos reconhecer no seguinte exemplo:
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1Técnica:
então e o que é que a traz por cá
2
(01.080)
3 Utente:
sim estamos a passar (.) eh (.) alguma dificuldade em casa
(..) é por 4 isso que eu vim pedir uma
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ajuda
6 Técnica
hum
7 Técnica
uma ajuda como (.) em que aspecto
8 Utente
sim (..) alimentação e roupa
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(00.480)
10 Técnica
hm::
11 Técnica
então e diga-me lá (..) mora aqui em Monte Abraão
12
(00.400)
13 Utente
sim sim
Neste exemplo podemos facilmente identificar a utilização de dispositivos de
delimitação de sequências, neste caso, realizada pela técnica: “enão e o que é que…”.
Na linha 1 e “então e diga lá”, na linha 11.
Podemos identificar três conjuntos de sequências, de acordo com o seguinte
esquema:
Sequência de abertura  Sequência(s) do corpo da interação  Sequência de
fecho
As sequências de abertura e de fecho possuem a característica comum de serem
mais ritualizadas, ao passo que a(s) sequência(s) que formam o corpo das interações
verbais são menos ritualizadas.
Técnica: Ora bem eh: Dona Mxxxx Exxxxx muito boa tarde
Utente: Boa tarde (.) menina
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Técnica
dona Axxxxxxx:
Utente
sim
Técnica
vamos entrar (.) por favor? (0.5) (…)
Utente
bom dia
Técnica
bom dia (.) pode-se sentar por favor
Esta diferença decorre do facto de, tanto na sequência de abertura como na
sequência de fecho, os interactantes estarem confrontados de maneira mais directa com
os constrangimentos que condicionam a própria interação e que têm a ver com o
processo de figuração, com a salvaguarda dos valores potencialmente antagónicos do
estabelecimento da relação e de salvaguardarem o território próprio de cada um dos
interactantes.
A ritualização das sequências de abertura e de fecho manifestam-se no
desencadeamento de dispositivos conversacionais mais estereotipados seguindo scripts
predefinidos. No caso da sequência de abertura, o script comporta, nesta ordem, o
encadeamento de actos de identificação e de saudação mútuas e recíprocas que se
sucedem ao encontro. Por seu lado, na sequência de fecho, o script comporta, nesta
ordem, a negociação do fecho da interação seguida da despedida, como podemos
observar no seguinte exemplo:
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Técnica-
dona Oxxxx (.) mais uma vez muito obrigada por ter podido
Utente-
de nada (..) obrigada eu
(00.270)
Técnica-
está:?
Técnica-
e que corra tudo bem
Utente-
gostei muito de estar a falar
Utente-
(01.070)
Utente-
soube-me bem (.) está
Técnica-
e cuide-se bem
Utente-
está
Técnica-
muito obrigada
Utente-
obrigada eu
A(s) sequência(s) do corpo da interação são habitualmente delimitadas pelo
desencadeamento de marcas ou de dispositivos próprios para este efeito.
A permuta
A permuta constitui a mais pequena unidade dialogal da interação, tendo como
protótipo a estrutura do par adjacente, isto é, o agenciamento de duas ou mais
intervenções. Como tal, é constituída pela sequência e constituinte da intervenção. É a
mais pequena unidade dialogal porque, para a sua realização, contribuem dois ou mais
interactantes e porque, abaixo dela, encontramos em princípio níveis monologais, isto é,
produzidos apenas por um dos interactantes:
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Técnica:
então diga lá dona Dxxxxxx (..) é a primeira vez que vem aqui
à junta (.) não é
Utente:
sim sim (.) é a primeira vez
Apesar de a permuta ter como protótipo a estrutura do par adjacente, podemos
encontrar muitas vezes permutas formadas por três ou mais intervenções. Têm sido
apresentados dois tipos de explicações para estes casos. Para os analistas da
conversação americanos, estes casos costumam ser explicados como expansões das
componentes dos pares adjacentes, ao passo que os autores da Escola de Genebra
enquadram-nos na distinção entre permutas avaliativas, de natureza ternária, e permutas
confirmativas, de natureza binária, como observar comparando os seguintes exemplos:
L1: Que horas são?
L2: Sete e meia
L1: Muito obrigado
L1: O que estás a ler?
L2: Um romance de Eça de
Queirós
A intervenção
A intervenção corresponde à unidade monologal realizada por um dos
interactantes. Corresponde ao nível constituído pela permuta e constituinte do nível
mais elementar, o do acto de linguagem. Uma intervenção pode, no entanto, ser formada
por um acto de linguagem ou por mais do que um acto de linguagem.
Para os autores da Escola de Genebra, a intervenção pode comportar um acto
directivo e um acto subordinado, este em posição anterior ou posterior ao acto directivo.
O acto directivo corresponde, em princípio ao acto que decorre da enunciação do
conteúdo proposicional do enunciado, ao passo que o acto subordinado comporta, entre
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outras coisas, a justificação da enunciação do acto principal assim como a averiguação
das condições que tornam possível, plausível ou razoável realizar acto principal. Isto
ficará mais claro observando o seguinte exemplo:
Utente:
sim estamos a passar (.) eh (.) alguma dificuldade em casa (..)
é por isso que eu vim pedir uma ajuda
Nesta intervenção, a utente realiza um acto directivo “vim pedir ajuda” e um
acto subordinado destinado a justificar a razão por que o realiza: “estamos a passar
alguma dificuldade em casa”, acto que neste caso o precede. A conexão é explicitada
com o emprego de um conector “é por isso”.
O acto de linguagem
O acto de linguagem é o nível elementar das unidades monologais da interação.
Já vimos no parágrafo anterior que uma intervenção pode ter um ou mais actos de
linguagem e que a relação entre os actos de linguagem é hierarquicamente marcada.
Damos o nome de actos de linguagem às acções que os falantes fazem com os
enunciados que enunciam, tais como, por exemplo, as asserções, as promessas, os
pedidos, as ordens, as perguntas, as respostas, os convites. Correspondem ao que John
Austin (1962) e Searle (1969) dão o nome de actos ilocutórios.
Conclusão
A breve apresentação da organização hierárquica das interações verbais permite
entender o desenrolar da atividade interaccional dos seres humanos como agenciamento
ou articulação de vários níveis entre si encadeados. Gostaria agora de sublinhar que por
organização hierárquica não se deve entender que em todas as interações verbais
encontramos todos estes níveis, mas que que o surgimento de cada um destes níveis
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ocorre exactamente no local previsto por esta ordem. Assim, por exemplo, pode não
ocorrer uma sequência de abertura, sobretudo em interações que se inserem numa
história conversacional mais ou menos longa, mas, a ocorrer, é sempre no início. Podem
não existir sequências que correspondam ao corpo da interacção, como no caso de
interacções que se limitem a trocas de saudação, mas no caso de existirem, elas situamse evidentemente entre a sequência de abertura e a sequência de fecho da interacção. Da
existência de diferentes níveis não devemos, por conseguinte, inferir que todos os níveis
tenham que ocorrer em todas as interacções.
Referências bibliográficas:
Austin, J. L. (1962) – How to Do Things with Words, Oxford, Oxford university
Press.
Golopentia-Eretescu, S. (1985) – L’Histoire Conversationnelle, Working Paper,
nº 149, Urbino, Centre International de Sémiotique et de Linguistique.
Golopentia-Eretescu, S. (1988) – Interaction et Histoire Conversationnelle, in
Cosnier & al. (ed.) – Echanges sur la Conversation, Paris, CNRS, 1988, páginas 69-81.
Kerbrat-Orecchioni, C. (1998) – Les Interactions Verbales, 1. Approche
Interactionnelle et Structure des Conversations, Paris, Armand Colin, páginas 192-278.
Roulet, E. (1981) – Echanges, interventions et actes de langage dans la structure
de la conversation, in Etudes de Linguistique Appliquée, 44, páginas 7-39.
Rodrigues, A. D. (2001) – A Partitura Invisível, Lisboa, Colibri, páginas 198211.
Roulet, E. & alii (1985) – L’Articulation du Discours en Français
Contemporain, Berne, Francfort s/ Main, Peter Lang.
Sacks, H., Schegloff, E. A. & Jefferson, G. (1974) – A Simplest systematics for
the Organization of turn-taking in conversation, in Language, 50: 696-735.
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Schegloff, E. A. (2009) – Sequence Organization in Interaction. A Primer in
Conversation Analysis, Cambridge, Cambridge University Press.
Searle, J. R. (1969) - Speech Acts, Cambridge, Cambridge University Press (trad.
port.: Os Actos de Fala, Coimbra, Almedina).
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