UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO – UFOP INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS – ICHS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA – DEHIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – PPGHIS LAIZELINE ARAGÃO DE OLIVEIRA NOS DOMÍNIOS DE DONA JOAQUINA DO POMPÉU: NEGÓCIOS, FAMÍLIA E ELITES LOCAIS (1764-1824) Mariana, 2012 LAIZELINE ARAGÃO DE OLIVEIRA NOS DOMÍNIOS DE DONA JOAQUINA DO POMPÉU: NEGÓCIOS, FAMÍLIA E ELITES LOCAIS (1764-1824) Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em História do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em História. Área de Concentração: Poder e Linguagens Linha de pesquisa: Poder, Espaço e Sociedade Orientadora: Profª. Dr.ª Cláudia Maria das Graças Chaves. Mariana, 2012 O482n Oliveira, Laizeline Aragão de. Nos domínios de Dona Joaquina do Pompéu [manuscrito] : negócios, famílias e elites locais (1764-1824) / Laizeline Aragão de Oliveira - 2012. 133f.: il. color.; grafs.; mapas. Orientadora: Profª Drª Cláudia Maria das Graças Chaves. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Ouro Preto. Instituto de Ciências Humanas e Sociais. Departamento de História. Programa de Pósgraduação em História. Área de concentração: Poder e Linguagens. 1. Comércio - Teses. 2. Branco, Joaquina Bernarda de Abreu e Silva Castello, 1752-1824 - Teses. 3. Família - Teses. 4. Elites - Teses. 5. Pitangui (MG) - Teses. I. Universidade Federal de Ouro Preto. II. Título. CDU: 94(81).03:316.344.42(815.1) Catalogação: [email protected] Laizeline Aragão de Oliveira Nos domínios de Dona Joaquina do Pompéu: negócios, família e elites locais (1764-1824) Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto-UFOP, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em História. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada. Banca Examinadora _____________________________________________________ Profª. Drª. Cláudia Maria das Graças Chaves – Orientadora Departamento de História/UFOP _____________________________________________________ Prof. Dr. Antônio Carlos Jucá Sampaio Departamento de História/UFRJ _____________________________________________________ Prof. Dr. Renato Pinto Venâncio Departamento de História/UFMG/UFOP Mariana, 26 de Setembro de 2012 Para Marcosss, meu amor. AGRADECIMENTOS “Amo a história. Se não a amasse não seria historiador.” (L. Febvre) É impossível construir um trabalho acadêmico sozinha. Por mais que o ato de redigir o texto seja solitário, outros momentos da pesquisa exigem a participação e contribuição de mentes solidárias. Produzir este trabalho me fez mergulhar no século XVIII e ficar, muitas vezes, ausente da minha própria vida. Mas a compensação vem agora ao vê-lo pronto. Foram dois longos anos de idas e vindas, de Belo Horizonte para Mariana, de Mariana para Belo Horizonte. De Belo Horizonte para Pitangui, de Pitangui para Belo Horizonte e depois de volta para Mariana. Por vezes achei que nunca terminaria, que o texto estava horrível, que o melhor seria jogar tudo para o alto. Mas depois vinha aquela vontade incontrolável de historiadora de voltar no arquivo, ler mais documentos, achar mais informações, descobrir mais sobre minha personagem Dona Joaquina do Pompéu. Oh mulher que meu deu trabalho! Mas no fim tudo entrou nos eixos, algumas respostas obtidas, algumas lacunas preenchidas e eis que o texto surge. E surge pronto para ser questionado, para ser contestado (o que farão com certeza) ou para ser simplesmente reconhecido como um texto relevante para a história de Minas Gerais (o que eu espero que aconteça). Mas é bom lembrar que o texto está pronto e ao mesmo tempo não está. A partir de agora ele pode ser alterado e renovado, vai saber o que ainda não vou descobrir sobre a Senhora Dona Joaquina? Vai saber o que outros historiadores não descobrirão? Ao longo do árduo processo de construção deste trabalho algumas pessoas foram essenciais e a elas ofereço o meu mais sincero agradecimento. Agradeço em primeiro lugar, e antes de mais nada, a professa Cláudia Maria das Graças Chaves por ter aceitado ser minha orientadora mesmo sem me conhecer. Você foi uma orientadora excepcionalmente incrível! Sua generosidade, compreensão, paciência e conhecimento foram essenciais para o meu trabalho. Foi uma honra ter sido sua orientanda. Agradeço aos professores do mestrado Valdei Lopes de Araújo, Ronaldo Pereira de Jesus, Francisco Eduardo Andrade e Maria do Carmo Pires pela competência com a qual me mostraram caminhos possíveis para a escrita da história. Agradeço a Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Federal de Ouro Preto (PROPP/UFOP), pela bolsa de pesquisa que me foi concedida, possibilitando a realização deste trabalho. Agradeço ao Marcos, meu amor, pelos sorrisos, abraços, beijos e cafunés. Obrigada por ter acreditado, confiado e esperado o mestrado terminar pro casamento começar. Obrigada por ter sido meu oásis nos momentos mais difíceis da pesquisa. Agradeço à amiga Alexandra Nascimento por dividir comigo sua experiência de já ter passado pelo mestrado (quantos conselhos, hein?), pelos livros emprestados (ih, será que já devolvi todos?), pelo conhecimento compartilhado. À amiga Camila Costa agradeço pelos momentos de diversão que aliviaram as tensões da minha mente dominada pela escrita da dissertação. Obrigada as duas, queridonas do meu coração, pelas saídas estratégicas, pelas risadas, pelas festas particulares, almoços feitos pela chef de cozinha e por não me deixarem sozinha na mesa mesmo depois de duas horas me ouvindo falar sobre Dona Joaquina! Agradeço à amiga Raquel que me socorreu nos “45 minutos do segundo tempo”. TKS! Agradeço ao professor Euclides Couto por todas as oportunidades que me concedeu durante a graduação, pelas aulas magníficas e pela amizade. Saudações! Ao professor Rodrigo Almeida Ferreira, meus sinceros agradecimentos por ter me incentivado a continuar na luta com a Dona Joaquina e encarar o mestrado. Seu conhecimento, conselhos e sugestões foram muito importantes para minha formação. Agradeço às companheiras do mestrado Iara, Karine, Lídia, Melina, Pérola e Suziely pela companhia em Mariana e nos congressos Brasil a fora. Por fim, mas não menos importante, agradeço às minhas “Três Mosqueteiras” – mãe, Jaque e Nata – que aguentaram os relatos intermináveis das histórias de Dona Joaquina do Pompéu nos últimos anos. O documento não é inócuo. É, antes de mais nada, o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziu, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio. O documento é uma coisa que fica, que dura; o testemunho, o ensinamento que ele traz devem ser em primeiro lugar analisados desmistificando-lhe o seu significado aparente. O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias. No limite, não existe documento-verdade. Todo o documento é mentira. Jacques Le Goff RESUMO Oliveira, Laizeline Aragão de. Nos domínios de Dona Joaquina do Pompéu: negócios, família e elites locais (1764-1824)/ Laizeline Aragão de Oliveira – 2012. Dissertação (Mestrado) Universidade Federal de Ouro Preto. Instituto de Ciências Humanas e Sociais. Departamento de História. Programa de Pós-Graduação em História Este trabalho tem como objetivo discutir a organização do núcleo familiar liderado por Dona Joaquina do Pompéu e como esta se sobressaiu à frente do comando de seus negócios e de sua família. Por ter se destacado em uma sociedade onde as mulheres ficavam, na maioria das vezes, relegadas as atividades domésticas, buscamos apresentar a vida dessa distinta senhora tentando identificar elementos que pudessem nos dar indícios de como se deu sua atuação. A documentação analisada formada correspondências pessoais, recibos de compra e venda, testamentos, inventários, entre outros, permitiu vislumbrar aspectos das relações comerciais da matriarca. Com isso conseguimos perceber que em torno de Dona Joaquina foram se articulando uma série de alianças, comerciais e parentais, que refletiam o seu poder na região da Vila de Pitangui. Procuramos ainda problematizar a questão da formação das elites coloniais no interior da América portuguesa descrevendo como a família da matriarca aqui se estabeleceu. As balizas cronológicas definidas foram o ano de 1764, quando Dona Joaquina se casou, e 1824, ano do seu falecimento. Palavras-chaves: Abastecimento e comércio. Dona Joaquina do Pompéu. Elites. Família. Pitangui. Pompéu. ABSTRACT This project discusses the organization of the family nucleus being led by Dona Joaquina do Pompéu and how she protruded being at the helm of her family business. For having stood out in a society where women should be, most of the time, at home doing the household chores, we attempted to present the life of this distinct lady trying to identify elements that could give us indications of her performance. The documentation analyzed composed by personal letters, bills of sales, wills and final instructions, inventories, among others, enable us to discern indistinctly the aspects of the matriarch’s commercial relation. In this manner we could realize that a number of alliances were built around Dona Joaquina such as commercials and parental, and they reflected her power in the region of Vila de Pitangui. Moreover, we sought to discuss the issue of the formation of colonial elites inside the portuguese America, describing how the matriarch's family establish here. The chronological beacons defined were the years of 1764, when Dona Joaquina got married, and 1824, the year of her death. Key-words: Supply and trade. Dona Joaquina do Pompéu. Elites. Family. Pitangui. Pompéu. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 01 – Localização da Vila de Pitangui ................................................................. 55 Figura 02 – Mapa da Capitania de Minas Gerais com a divisa das comarcas ............... 56 Figura 03 – Caminhos para a Vila de Pitangui .............................................................. 57 Figura 04 – Limites da propriedade Fazenda do Pompéu .............................................. 70 Figura 05 – Árvore Genealógica Família Rodrigues Velho + Campos Bicudo + Oliveira ............................................................................................................................ 87 Figura 06 – Árvore Genealógica Família Castelo Branco + Silva Sobral ..................... 89 Figura 07 – Árvore Genealógica Família Inácio de Oliveira Campos e Dona Joaquina do Pompéu ....................................................................................................................... 91 Figura 08 – Árvore Genealógica Família Inácio de Oliveira Campos e Dona Joaquina do Pompéu – Parte I ........................................................................................................ 92 Figura 09 – Árvore Genealógica Família Inácio de Oliveira Campos e Dona Joaquina do Pompéu – Parte II ....................................................................................................... 93 Figura 10 - Representação de um fragmento da rede comercial/familiar de Dona Joaquina do Pompéu ....................................................................................................... 105 LISTA DE ABREVIATURAS AHP – Arquivo Histórico de Pitangui. APM – Arquivo Público Mineiro. CMPI – Câmara Municipal de Pitangui, APM. FCMP – Fundo da Câmara Municipal de Pitangui, AHP. FJBP – Família Joaquina Bernarda do Pompéu, APM. IHGB – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. IJBP – Inventário de Joaquina Bernarda da Silva de Abreu Castelo Branco, AHP. RAPM – Revista do Arquivo Público Mineiro. RIHGB – Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. SC – Seção Colonial, APM. SG – Secretaria de Governo, APM. SUMÁRIO Introdução .............................................................................................................................. 12 1. O matriarcado no sertão mineiro: Senhora Dona Joaquina Do Pompéu 1.1. O avesso do matrimônio: nasce a matriarca do Pompéu .................................... 26 1.2. Patriarcal ou matriarcal? Como caracterizar o núcleo familiar do Pompéu? ..... 32 2. Mulheres e negócio: Dona Joaquina é quem manda! 2.1. Abastecimento e comércio na formação da economia colonial mineira ............ 55 2.2. A fazendeira e comerciante Dona Joaquina do Pompéu .................................... 68 3. Família, elite e poder: a trajetória do núcleo familiar de Dona Joaquina do Pompéu 3.1. A família de Dona Joaquina do Pompéu ............................................................ 83 3.2. A formação de uma elite colonial na Vila de Pitangui e suas redes de poder .... 95 Considerações Finais ............................................................................................................. 115 Fontes e Bibliografia ............................................................................................................. 118 12 INTRODUÇÃO Os caminhos da história da mulher não se contam de modo claro e definido. São percursos sinuosos, intricados, ao longo dos quais o historiador precisa dispersar cargas de muito preconceito presente nas fontes, desconfiar de suas lacunas, duvidar de suas verdades. Luciano Figueiredo O interesse pelo estudo sobre Dona Joaquina do Pompéu, surgiu ainda na graduação, quando percebi que havia poucos estudos que discutissem o trabalho das mulheres brancas da elite colonial. A matriarca do Pompéu mostrou ser a personagem ideal para as questões que eu vinha levantando. Inicialmente o foco do trabalho seria discutir exclusivamente sobre a condição feminina no século XVIII, mas na medida em que a pesquisa se desenvolveu aspectos novos surgiram e abriram um leque de possibilidades de análises. Os primeiros documentos analisados mostraram que, muito mais do que apenas auxiliar o marido, houve uma efetiva participação de Dona Joaquina na administração das fazendas e das casas comerciais. A continuidade da pesquisa foi revelando a presença recorrente de certos nomes e sobrenomes nas correspondências, e, diante disso ficou claro que havia um grupo de indivíduos com os quais a matriarca se relacionava com maior proximidade. Ao pesquisar sobre esses sujeitos descobri que muitos deles tinham laços de parentesco com Dona Joaquina e seu marido, Capitão Inácio. Essa constatação me instigou a pensar sobre a possibilidade de considerar esses sujeitos como membros de um determinado grupo que se destacava na Vila de Pitangui. Mas que grupo seria esse? Como ele se formou? Quem seriam seus membros? Como nomeá-lo e caracterizá-lo? Essas foram algumas das questões que contribuíram para dar forma ao presente trabalho. A partir dessas questões tracei três hipóteses principais sobre as quais o trabalho foi construído e pensado. Primeiro: Há uma relação direta entre a formação e consolidação do patrimônio material de Dona Joaquina do Pompéu e o fortalecimento e solidificação do poder, prestígio e influência de sua família na região da Vila de Pitangui. Segundo: os arranjos matrimoniais que ligaram a família de Dona Joaquina do Pompéu a outras famílias da elite mineira colonial são reflexos das relações de poder consolidadas por estes grupos durante o século XVIII. E terceiro: a organização do núcleo familiar de Dona Joaquina do Pompéu apresenta elementos característicos do que chamamos de princípio senhorial das mulheres no 13 sertão1, ou seja, a existência de grandes e poderosas famílias chefiadas por mulheres que adquirem prestígio e influência na região onde estão localizados. As discussões ocorridas no âmbito acadêmico trouxeram novos elementos que auxiliarão na estruturação das minhas discussões. A partir da temática da linha de pesquisa Poder, Espaço e Sociedade, cujo foco é a compreensão das relações culturais e políticas em diferentes contextos históricos. O eixo temático, Poder e Linguagens, direciona o olhar para as múltiplas e descontínuas redes sociais por meio das quais os sujeitos definem estratégias de atuação e se posicionam diante da sociedade. Nesse sentido, o intuito desta pesquisa é, entre outros, contribuir para os avanços da historiografia nacional que discutem principalmente as questões ligadas ao universo feminino do trabalho, formação das elites coloniais, e estratégias utilizadas para a manutenção do poder dessas elites. As análises direcionadas para Dona Joaquina do Pompéu e sua família, para a Vila de Pitangui e para a Fazenda do Pompéu permitirão lançar luz sobre elementos do cotidiano desses sujeitos e assim responder as questões que tanto me inquietam. Neste trabalho a escala da pesquisa foi reduzida diante da possibilidade de examinar as particularidades das alianças protagonizadas por Dona Joaquina e seus pares, e que talvez não possam ser apreciadas em análises amplas. Haverá então uma busca por estruturas sobre as quais, o que nos é conhecido das relações comerciais e de poder no entorno da matriarca, se articulam. E nesta perspectiva, a escolha do individual não é contraditória com a do social, mas “torna possível uma abordagem diferente deste último. Sobretudo, permite destacar, ao longo de um destino específico, a complexa rede de relações, a multiplicidade dos espaços e dos tempos nos quais se inscreve” (REVEL, 2000, p.17). Alguns procedimentos metodológicos da micro-história foram mais adequados para a elaboração deste projeto, já que o que se pretende aqui não é realizar uma obra biográfica, mas sim compreender aspectos deste personagem histórico que só poderão ser percebidos por meio de um exame micro2. Também não pretendo afirmar que a partir da análise das relações comerciais e de poder de Dona Joaquina será possível entender tudo sobre relações de poder, abastecimento e comércio no período colonial. Muito pelo contrário, a intenção é de descobrir 1 Adotamos o uso da expressão “princípio senhorial das mulheres no sertão”, porque nos permite pensar na existência de diversos núcleos familiares liderados por mulheres em todo o interior da América portuguesa. Essas mulheres assumem o comando das famílias e dos negócios atuando de forma efetiva e muitas vezes ampliando consideravelmente suas fortunas. 2 Baseados nos apontamentos de Revel, identificamos elementos que nos auxiliarão na construção da pesquisa, a saber: privilégio a redução de escala, interesse por destinos específicos, desejo de “estudar o social não como um objeto dotado de propriedades, mas sim como um conjunto de inter-relações móveis dentro de configurações em constante adaptação” (REVEL, 2000, p.7-37). 14 elementos particulares que componham, aí sim, as mais variadas práticas comerciais, sociais e políticas deste período. As análises vão dizer sobre um indivíduo e seus pares, e não sobre toda uma sociedade. No entanto, não posso deixar de considerar que mesmo se tratando de uma análise individualizada, esses sujeitos não se encontram isolados, eles fazem parte de um meio muito maior, e também o representam. Não proponho o estabelecimento de regras e modelos, quero apenas observar o comportamento de um sujeito histórico num determinado contexto com a intenção de responder algumas questões e de contribuir, em alguma medida, para o enriquecimento da história de Minas Gerais. Os objetivos definidos a partir das hipóteses levantadas, centram-se em discutir a organização do núcleo familiar liderado pela matriarca a partir da ideia de princípio senhorial das mulheres do sertão; investigar a configuração e articulação de alianças em torno da figura de Dona Joaquina do Pompéu e sua família; analisar o processo de produção e abastecimento de gêneros na capitania de Minas Gerais, e a partir desse universo compreender a atuação de Dona Joaquina como produtora e comerciante. Mas, afinal de contas, quem foi Dona Joaquina Pompéu? Joaquina Bernarda da Silva de Abreu Castelo Branco era filha do doutor Jorge de Abreu Castelo Branco e dona Jacinta Teresa da Silva, ambos portugueses. Nasceu em 20 de agosto de 1752 na cidade de Mariana, e faleceu em dezembro de 1824, aos 72 anos, na Fazenda do Pompéu. Mudou-se com o pai e os irmãos para a Vila de Pitangui após o falecimento da mãe. Casou-se com o Capitão Inácio de Oliveira Campos, em 1764, fixando residência na fazenda Lavapés nas proximidades da vila. O fato de Inácio ser Capitão-Mor3, o obrigava a passar longos períodos longe da fazenda e com isso Dona Joaquina acabou assumindo, além do cuidado da família, a administração dos negócios. Inicialmente sob o comando do Capitão Inácio e com a ajuda de Dona Joaquina, e posteriormente sob o comando da matriarca, a fazenda do Lavapés, onde o casal morava, cresceu significativamente. A expansão das atividades tornou necessária a aquisição de uma propriedade maior. Ao buscarem novas terras para comprar, receberam proposta do fazendeiro Manoel Gomes da Cruz que ofereceu as terras da Fazenda do Pompéu. O negócio se concretizou em 1784, quando a família passou a residir nas ditas terras. Foi a partir da transferência para a fazenda que Joaquina passou a ser chamada de Dona Joaquina do Pompéu. 3 Subordinado ao governador da Capitania, o cargo de capitão-mor era o mais importante, pois apesar de não ser remunerado pelo governo, “era quem governava as vilas e povoados durante o período de três anos ou mais”. A escolha do capitão-mor era realizada pela câmara e pelo capitão-general da seguinte forma: a câmara indicava três nomes e o capitão-general ficava incumbido de definir o escolhido. ALMEIDA, 1981, p.135. 15 De acordo com Cláudia Chaves (1999), nos livros do registro da Vila de Pitangui, referentes aos anos de 1765 a 1767, logo após o casamento de Dona Joaquina, já consta a passagem da produção da fazenda Lavapés. Os registros estão em nome de seu marido, e demonstram um considerável volume de mercadorias saindo da região de Pitangui destinado ao abastecimento de outras partes da capitania. No período compreendido entre os anos de 1768-69, Capitão Inácio aparece como segundo maior produtor da região. Em 1804, havia na fazenda um centro de criação e engorda de gado, e o engenho fabricava açúcar e cachaça. Demonstrando a sua perspicácia administrativa, Dona Joaquina mandou fazer plantações de algodão e mantinha um imenso rebanho de ovelhas, utilizados para a produção de roupas para a escravaria. Percebe-se que suas fazendas eram, em grande medida, auto-suficientes, e também um importante núcleo fornecedor de produtos para o abastecimento da Vila de Pitangui e circunvizinhança, bem como de outras regiões da capitania. Toda essa atividade favorecia cada vez mais sua visibilidade social e a ampliação de sua rede de influência. A presença dessas relações de poder, por ela alcançado, chamam a atenção por se tratar de uma sociedade colonial patriarcal, onde, na maior parte dos casos eram os indivíduos do sexo masculino quem estavam a frente dos negócios. Qual era a condição da mulher da elite neste período? De que forma ela se relacionava com os outros comerciantes? Como eram constituídas as redes formais e informais de poder no entorno dela? Como ela construía suas estratégias de produção, negociação e comercialização de gêneros alimentícios? O que dizer dos núcleos familiares estruturados sob a figura feminina? Como incluir Dona Joaquina do Pompéu nas relações patriarcais do século XVIII? Estas são apenas algumas das questões que foram tomadas como indicadoras do caminho a ser seguindo na pesquisa. Como a pesquisa tem uma mulher como sujeito histórico, serão apresentadas algumas referências sobre a história das mulheres. Em pesquisas já realizadas sobre o gênero feminino no Brasil, percebe-se o estabelecimento de imagens estigmatizadas e generalizantes, isto ocorre principalmente nas discussões sobre a mulher nos séculos XVI, XVII e XVIII. Pensar sobre o papel social feminino no período colonial, em especial na região de Minas Gerais, remete-nos a uma imagem de que estavam vinculadas ao trabalho essencialmente doméstico, não desempenhando nenhuma outra atividade. A construção desta imagem é, em grande parte, 16 influência da obra Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre (2006)4, que realiza as primeiras análises sobre a estrutura familiar brasileira. No entanto, é importante ressaltar, que o autor analisava um contexto específico, onde a organização da sociedade patriarcal determinava a condição da mulher naquele modelo, tão cuidadosamente descrito por ele. Contudo, historiadores fizeram uso dos conceitos discutidos por Freyre, empregando-os de maneira ligeiramente distintas e com designações diferenciadas, para legitimarem e reforçarem suas impressões sobre o papel feminino na sociedade brasileira na América Portuguesa. Assim, não se deve atribuir exclusivamente a Freyre a criação, na historiografia brasileira, de uma imagem feminina frágil e preguiçosa, ou sensual e despudorada. A partir da década de 1980, importantes publicações referentes ao período colonial, como as obras de Miriam Leite (1984), Mary Del Priore (1995) e Luciano Figueiredo (1999), começam a romper com essa “não-verdade”. As análises propostas por estes autores demonstram uma nova perspectiva para se estudar a história das mulheres no Brasil, destacando uma ativa participação delas na sociedade colonial, seja no comércio local das cidades ou na administração de fazendas. Estes historiadores discutem a história das mulheres trazendo elementos que vão além de uma análise exclusiva do núcleo doméstico. Temas como economia, trabalho, maternidade, sexualidade, entre outros, são convergidos para as mulheres, afirmando sua existência como sujeito histórico. E elas passam a ser vistas como agentes capazes de desempenhar os mais variados papéis na sociedade, independente de sua condição. Um desses papéis é o de “dona”, proprietária. De acordo com José Capela (1995) “dona” tornou-se um título adquirido pelas mulheres e foi enraizado na consciência coletiva. Outros trabalhos trazem um mesmo entendimento para o uso da palavra “Dona” antes do nome de distintas e importantes senhoras, representando o prestígio de determinadas mulheres na sociedade colonial5. Neste sentido, buscarei compreender a representatividade e a força adquirida pelo vocábulo “Dona” ao ser usado antes do nome de Joaquina. Parece que o vocábulo representa além da distinção social, um símbolo de reforço do poder familiar na região da Vila de Pitangui. Dona da Fazenda do Pompéu, dona de fazendas em Paracatu do Príncipe, dona de gados, de engenhos, de plantações, de escravos, de casas 4 Lançado em 1933, o livro Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freire, pode ser compreendido como um imenso painel da formação da sociedade brasileira. O autor discute os espaços sociais no início da colonização, os modos de existência familiar, o sistema econômico, político e cultural. 5 Ver, entre outros, GOLDSCHMIDT, Eliana Rea. Famílias Paulistanas e os casamentos consangüíneos de ‘donas’, no período colonial. Anais da 17º Reunião da S.B.P.H. São Paulo, 1997; SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Donas e plebéias na sociedade colonial. Lisboa: Editorial Estampa, 2002; ZANATTA, Aline Antunes. Justiça e representações femininas: o divórcio entre a elite paulista (1765-1822). Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual de Campinas. Campinas-SP, 2005. 17 comerciais. E a representatividade desse título é tão significativa que ela passa a ser conhecida como “Dona Joaquina do Pompéu”, aquela que é proprietária de um imenso patrimônio representando pela sede da fazenda (Pompéu), que foi morada também dos primeiros habitantes da região. Há aqui uma simbologia no próprio espaço da fazenda, no edifício. E o título de “DONA”, não é concedido no espaço oficial, mas num outro lugar, num lugar para além do oficial, e que no caso da matriarca trouxe uma significação bastante sólida. É neste ponto que identificamos o poder simbólico que emana de Dona Joaquina, uma mulher em uma sociedade masculina, que se destaca como fazendeira e comerciante. Que organiza e administra arranjos familiares que se elevam a uma categoria de arranjos políticos, sociais e econômicos. Neste caso o título não recai sobre uma descendente de casa nobre portuguesa, mas sobre uma mulher que conquista distinção, status social e poder devido à atuação da família em terras coloniais, numa esfera local. É inegável a importância sócio-econômica da exploração aurífera no século XVIII, contudo, é imprescindível demonstrar a existência de importantes redes de comércio e/ou produção que se desenvolveram como atividades subjacentes em Minas Gerais e foram, assim como a mineração, essenciais para o desenvolvimento da sociedade colonial. Para tanto, foram analisados, além da atuação da matriarca, aspectos da economia mineira nos setecentos com o intuito de possibilitar um amplo entendimento do funcionamento do comércio e abastecimento colonial, e assim, introduzir nesse cenário a discussão sobre as relações econômicas, políticas e sociais protagonizadas por Dona Joaquina. A agricultura, pecuária e comércio ganharam fôlego e reconhecimento na medida em que se mostraram essenciais para a sobrevivência das vilas e dos arraiais mineradores. Podese pensar também que, com o desenvolvimento da mineração e a dificuldade de se conseguir novas datas6, algumas pessoas perceberam no mercado do abastecimento a possibilidade de riqueza sem os riscos da atividade mineradora. E, mesmo com as divergências historiográficas sobre a existência ou não de um mercado voltado para o abastecimento interno, e a possibilidade ou não de acumulação de capital por parte dos produtores e comerciantes, percebe-se que a atividade agropecuária e comercial movimentou em Minas quantia 6 “Designação da área de terra concedida pela Coroa Portuguesa a indivíduos dispostos a praticar a mineração. Segundo as Ordenações Filipinas, após a descoberta do veio, notificada ao provedor das minas, proceder-se-ia à demarcação (...). Segundo o Regimento dos Superintendentes Guardas-Mores e Oficias Deputados para as Minas de Ouro, inicialmente cabia ao superintendente distribuir as datas. Mais tarde, esse poder foi atribuído aos guardas-mores, cabendo aos ouvidores dirimir conflitos quanto à posse da terra” (ROMEIRO, 2003, p.95-96). 18 significativa de riqueza, permitindo a acumulação de bens7. Tendo em vista a própria trajetória de Dona Joaquina. Diante desse acúmulo de bens e enriquecimento, o surgimento de uma elite, e ao seu redor alianças, é evidente. Neste trabalho, o núcleo familiar chefiado por Dona Joaquina do Pompéu, é entendido como um grupo de sujeitos pertencentes à elite colonial. E, o termo elite está sendo utilizado partindo da ideia de que Dona Joaquina e aqueles indivíduos que estabeleceram alianças com ela ocupam importantes posições sociais dispondo de poderes, influência e privilégios exclusivos. Ou seja, eles são um grupo que detêm diferentes tipos de poder na Vila de Pitangui, como poder político, econômico, militar e etc. O tema do poder será outra importante questão que permeará todo o debate realizado nesta pesquisa. Ao discutir sobre esse tema será imprescindível conceituá-lo demonstrando de que forma ele aparece nas relações sociais protagonizadas por Dona Joaquina. Entende-se que o poder e a influência atribuídos à matriarca estão ligados a uma herança familiar de prestígio, tanto de sua família quanto do seu esposo. Há nesse emaranhado de questões sobre poder, influência, favores, elementos mais subjetivos, impossíveis de serem captados em análises puramente econômicas ou políticas. Por esse motivo serão utilizadas obras como O poder simbólico de Pierre Bourdie (1989), A Herança Imaterial de Giovanni Levi (2000) e O enigma do dom de Maurice Godelier (2001), para auxiliarem na compreensão de elementos que assumem o valor máximo de uma sociedade exatamente pelo fato de não circularem, por não se materializarem em notas promissórias ou cartas de dívidas. Colocar a figura de Dona Joaquina do Pompéu em discussão possibilita uma análise interessante do contexto social e econômico do período colonial em Minas Gerais. As relações de poder e a representatividade desse poder sob a figura da matriarca e sua família, podem contribuir para a construção de um complexo mosaico sobre as elites nas diferentes regiões da colônia. Indicando assim, como essas elites se estruturaram no seio do Antigo Regime português dentro da lógica colonial estabelecida na América. As questões a serem levantadas não pretendem ser elucidadas com uma única afirmativa, e tampouco definitiva. Pretende-se apresentar perspectivas de análise e possíveis olhares sobre o objeto em um determinado momento. Compreender, por meio da análise documental, esses arranjos 7 De acordo com Deusdedit Campos (2003), baseado no inventário de Dona Joaquina, suas propriedades atingiram cerca de 100.000 alqueires, 60.000 cabeças de gado vacum, 10.000 equinos; 2.500 juntas de bois carreiros, cerca de 1.000 escravos. Havia uma grande quantidade de imóveis, prataria, ouro em barra, móveis, veículos de transporte, títulos de dívidas de fazendeiros vizinhos e outros bens. Segundo o historiador Gilberto Cezar Noronha, o valor total de sua fortuna na época do seu falecimento, podia chegar, nos dias atuais, a um valor aproximado de 2 bilhões de reais (NORONHA, 2007a, p.56). 19 políticos, econômicos e sociais na capitania de Minas a partir da atuação de Dona Joaquina poderá permitir a abertura para novos questionamentos sobre a vida na América Portuguesa. Metodologia da Pesquisa As fontes documentais utilizadas foram variadas e de diversos tipos. A documentação referente à Dona Joaquina do Pompéu8, disponível no Arquivo Público Mineiro/APM (Belo Horizonte/MG), mostrou-se essencial para a construção da pesquisa. O acervo foi doado por Coroliano Pinto Ribeiro9 ao Arquivo em 1954, e é formado por correspondências de natureza pessoal, política e econômica como: requerimentos, procurações, escrituras, recibos de compra, venda e partilha de bens, pagamentos de dízimos dentre outros. Os documentos pessoais da família de Dona Joaquina do Pompéu estão em quatro caixas, assim organizados: na primeira, que se refere aos anos de 1728 a 1905, encontram-se 63 documentos ao todo, entre cartas, recibos e outras correspondências, destes, 48 são correspondências de Dona Joaquina. Na segunda caixa há 82 documentos, entre cartas, recibos e escrituras, referentes à família Cordeiro Valadares, datados de 1787 a 1908. A terceira caixa corresponde aos documentos da família Oliveira Campos10, com datas limites entre 1813 a 1901, perfazendo um total de 55 documentos com conteúdo semelhante ao das outras duas caixas. Por fim, a caixa quatro contém apenas 15 documentos de conteúdo variado, como resultados de jogos de futebol, receitas médicas, código de posturas da Câmara de Pitangui entre outros, e datam de 1746 a 1940. Destes documentos utilizaremos na pesquisa os que se referem ao período delimitado por nosso recorte temporal, 1764 data do casamento da matriarca e 1824 ano do seu falecimento. É datado de 1728 o primeiro documento da caixa 1 do Fundo, e refere-se a uma Certidão de posse de terras para requerimento de sesmaria por Inácio de Oliveira Campos, marido de Dona Joaquina. O documento seguinte de 1775 é um parecer sobre a validade da venda de parte das terras do capitão Inácio de Oliveira Campos para Joaquina. O primeiro documento dirigido à matriarca é de 1795, uma carta enviada por Manoel Gomes da Cruz 8 Arquivo Público Mineiro/APM. Fundo de Origem Privada. Fundo Joaquina Bernarda de Pompéu. FJBP 1.Cx.01-04. 9 A reunião desses documentos, por Coriolano, deu-se com o objetivo de escrever a obra Dona Joaquina do Pompéu, publicada em 1956 pela Imprensa Oficial. 10 Os arquivos referentes a família Cordeiro Valadares encontram-se no fundo Joaquina Bernarda de Pompéu pois além de serem parceiros comerciais, dois de seus membros eram genros da matriarca: João Cordeiro Valadares e Joaquim Cordeiro Valadares. Ao se casarem com as filhas de Dona Joaquina, elas e seus descendentes passaram a usar este sobrenome. Já Oliveira Campos, era o sobrenome do capitão Inácio, marido de Dona Joaquina, e sobrenome de todos os seus 10 filhos. 20 tratando de assuntos pessoais e negócios de gado. No APM diversas outras correspondências trocadas entre Dona Joaquina, parentes, amigos e comerciantes revelam suas práticas sociais, políticas e administrativas. Dentre as correspondências, destaca-se como mais intrigante uma certidão negativa emitida em 1822, em nome de Dom Pedro I, atestando a não participação da matriarca no episódio da fuga de presos da cadeia da Vila de Pitangui. Há também a necessidade de análise de outros documentos disponíveis no APM, como o fundo da Casa dos Contos e o fundo da Câmara Municipal de Pitangui. No fundo da Casa dos Contos11, identificamos vários documentos que ajudam a desvendar a organização política, administrativa e social da capitania de Minas Gerais e em especial da Vila de Pitangui. Alguns são correspondências pessoais que tratam sobre o abastecimento de gêneros; outros são avisos do governador sobre taxas e impostos; requerimentos de todos os tipos: impossibilidade de exercer o ofício de vereador, pagamento; listas de receita e despesa da câmara da Vila de Pitangui; atestados; certidões; pedidos de sesmaria; livro da guarda-moria de Pitangui; mapa da população da Vila de Pitangui. O fundo da Câmara Municipal de Pitangui12 guarda documentos referentes a obras públicas, instrução pública, eleições, compra de imóveis, ações cíveis, entre outros. No Arquivo Histórico de Pitangui/AHP (Pitangui/MG) tive acesso a dois documentos que foram fundamentais para as análises da pesquisa: o testamento e o inventário de Dona Joaquina. O testamento de apenas 6 folhas contrasta com os 3 volumes do inventário, sendo que apenas o segundo e terceiro volume encontram-se no Arquivo. O inventário é, no fim das contas, a compilação de contestação sobre contestação durante a partilha dos bens. Apesar de higienizados, muitos documentos estão bastante degradados o que dificulta imensamente a leitura. Contudo, foi possível encontrar preciosas informações entre as incontáveis páginas que o compõe. Outros documentos, como o testamento do Capitão Inácio, testamentos dos filhos de Dona Joaquina, ações cíveis, notificações também foram analisados e ajudaram a compor esta pesquisa. Os documentos acima mencionados foram selecionados na medida em que se traçaram as diretrizes para construção da pesquisa: objeto, objetivos, problemas e hipótese. A análise desta documentação me permitiu compreender alguns elementos que permeiam as relações sociais, políticas e econômicas protagonizadas por Dona Joaquina do Pompéu e sua família. Dessa forma, a documentação disponível no fundo privado da matriarca (principalmente as 11 Arquivo Público Mineiro/APM. Documentação de Origem Pública. Fundo Casa dos Contos. CC. Arquivo Público Mineiro/APM. Documentação de Origem Pública. Fundo da Câmara Municipal de Pitangui. CMPI. 12 21 correspondências) será averiguada e/ou contrastada com as escrituras e os documentos oficiais, interessando ao trabalho identificar uma escala de poder, riqueza e patrimônio de Dona Joaquina e de outros membros desse restrito grupo do qual ela fazia parte. A documentação fornece também, elementos que esclarecem sobre a formação de uma elite na região da Vila de Pitangui, e apontam qual o lugar ocupado pela matriarca no grupo. Neste processo de análise, procurei também, por elementos que demonstrem as práticas produtivas e comerciais de Dona Joaquina, como por exemplo: produção das fazendas (O que era produzido nas fazendas? Açúcar, café, carne, leite e derivados, etc.?); produtos comercializados (Ela vendia tudo o que era produzido na fazenda? Comercializava produtos importados da Corte ou de outras regiões da colônia?); locais de comercialização (Vila de Pitangui? Vila Rica? Rio de Janeiro?); quem era responsável pela venda desses produtos?; havia atravessadores?; qual o valor da venda dos produtos ou qual o valor de arrecadação total?; em algum documento há descrição dos bens patrimoniais como casas, fazendas, terrenos?; quantidade de escravos que possuía, nomes de indivíduos com quem fazia negócios. Concomitantemente à análise documental, foi realizada uma revisão bibliográfica temática com prioridade para obras historiográficas que contribuíram para a construção de um panorama das Minas Gerais nos setecentos. Podem ser destacadas àquelas referentes às práticas econômicas e comerciais na América portuguesa; análises sobre a conformação social da época, elites, poder e patriarcalismo; história de Pitangui e Pompéu. Estas referências foram imensamente importantes não só para a compreensão do ambiente econômico, mas também do político, do social, do cultural, do trabalho. Aliado a historiografia, utilizei também obras biográficas e genealógicas sobre Dona Joaquina do Pompéu, na tentativa de melhor dimensionar sua trajetória de vida. As genealogias foram instrumentos importantes para traçar a ligação entre a matriarca e os indivíduos cujos nomes apareciam na documentação. As obras biográficas sobre a matriarca, em sua maioria escritas por seus descendentes, revelam sem pudor todas as boníssimas qualidades de uma senhora que se fez grande proprietária nos sertões das Minas Gerais. Para alguns desses biógrafos há uma excepcionalidade no fato de Joaquina ter se tornado fazendeira e comerciante. Talvez essa impressão tenha ocorrido porque essas obras antecederam os trabalhos historiográficos que apresentaram a atuação das mulheres à frente de seus negócios. E esses genealogistas podem não ter tido a oportunidade de comparar a trajetória da matriarca com a de outras mulheres. Por outro lado, esse engrandecimento pode ser também uma tentativa de manter viva a memória de um antepassado por meio da 22 exaltação de sua trajetória de vida. Importante ressaltar, contudo, que a historiografia nos apresenta que não era incomum a existência de unidades domésticas chefiadas por mulheres. No caso desta pesquisa, os biógrafos com os quais trabalho afirmam a todo momento que suas obras foram construídas embasadas nas informações contidas em documentos e em relatos orais. Eles deixam claro que suas narrativas são retratos fidedignos da realidade vivida por Dona Joaquina e sua família. E é justamente por eles afirmarem essa fidelidade aos fatos, que senti uma enorme dificuldade em encontrar um equilíbrio entre aquilo que realmente pode ser corroborado com a documentação, daquilo que parece ter sido tirado de um conto de fadas. Além disso, os relatos orais inundam os municípios nos quais Dona Joaquina viveu de histórias sobre sua vida, e muitas vezes esses relatos acabam dentro das obras biográficas. Temos então uma história construída a partir de relatos orais e documentos, onde ambos se misturam de forma a ser quase impossível separá-los. Somado a isso aparece bem ao fundo do texto a personalidade do escritor orgulhoso de descender da matriarca e ávido por contar ao mundo os feitos de sua antepassada ilustre. E em meio a tudo isso, o historiador, neste caso eu, me vejo envolta por informações valiosíssimas sobre Dona Joaquina, ao mesmo tempo sem saber qual delas seguir. Sem dúvidas confiar cegamente nos relatos biográficos significaria a contestação de minhas hipóteses, por outro lado, existem informações nessas biografias que são importantes, porque associadas aos documentos corroboram para a construção de uma determinada imagem da matriarca. E é nesta perspectiva que venho caminhando, entre os tênues limites da história e da memória, tentando criar uma narrativa histórica capaz de contribuir para a construção da história de Minas e do Brasil. Percebi que escrever sobre um determinado personagem coloca o historiador diante de problemas muitos maiores do que simplesmente analisar e relatar a história de vida de um indivíduo. A pesquisa pautada em fontes biográficas precisa ser alicerçada também em fontes documentais analisadas minuciosamente na tentativa de não se criar uma ideia incorreta da realidade na qual aquele personagem estava inserido. As obras biográficas, sejam elas escritas por historiadores ou não, apresentam-se como um importante grupo de fontes que permite ao historiador balancear e ponderar sobre os diferentes momentos da vida do indivíduo a ser estudado. A bibliografia que serviu de referencial para a construção do trabalho, foi selecionada, obviamente, a partir daquilo que se propôs discutir: economia, Dona Joaquina do Pompéu, elites, poder, patriarcalismo, gênero, abastecimento, comércio. A partir desses termos estabelecemos outros, e outros, e assim sucessivamente. Nomes de comerciantes, produtores, amigos e parentes serviram também como palavras-chave para a seleção dessas obras. A 23 leitura desses textos selecionados foi realizada tentando sempre manter uma relação entre a historiografia e a análise documental, em busca de soluções para as questões levantadas durante a pesquisa. As reflexões desenvolvidas, principalmente, por Cláudia Chaves (1999), Gilberto Freyre (2006), Júnia Furtado (1999), Maria Beatriz N. Da Silva (2002), Mary Del Priore (1995), Silvia Brugger (2007), José Antônio Maravall (1979), Pierre Bourdie (2003), dentre outros historiadores, contribuíram para a análise das fontes e o entendimento do contexto histórico em que elas e os sujeitos históricos estavam inseridos. O texto, nada mais é, do que o resultado obtido a partir do confronto das informações contidas nos documentos, nas biografias e nas obras historiográficas. Sem dúvidas esse diálogo contribuiu para que houvesse uma ampliação das possibilidades de análise não somente para a atuação de Dona Joaquina, mas também dos indivíduos que estando ao seu redor fazem parte dessa história. Organização dos capítulos A pesquisa será estruturada em três capítulos: no primeiro capítulo discutiremos a atuação de Dona Joaquina como chefe de família, procurando desvendar as configurações matriarcais no sertão mineiro, e discutindo como ela se constituiu uma matriarca forte e poderosa. No subtítulo inicial, O avesso do matrimônio: nasce a matriarca do Pompéu, apresentaremos a história de Dona Joaquina do Pompéu, uma pequena biografia que se faz essencial para que o leitor conheça a matriarca e compreenda, nos outros capítulos, informações e análises que serão colocadas. A abordagem de aspectos econômicos e políticos relacionados à Dona Joaquina e sua família, que são, entre outros, objetivos nesse trabalho, não fariam nenhum sentido se não apresentássemos primeiramente sua história de vida. Pensar em uma história sobre as mulheres brancas da elite, atuando como chefe de família, nos obriga a refletir sobre a condição delas desde o início do período colonial. No segundo subtítulo, Patriarcal ou matriarcal? Como caracterizar o núcleo familiar do Pompéu?, discutiremos a caracterização do núcleo familiar de Dona Joaquina, tentando compreende-lo a partir de alguns elementos da lógica patriarcal debatidos por Gilberto Freyre. Trataremos também da condição feminina no século XVIII a fim de entender o universo social ao qual pertencia a matriarca e quais mecanismos ela pode ter usado para conseguir se manter, com sucesso, diante da condução dos negócios da família. Dentre as obras consultadas para elaboração deste capítulo podemos citar: Brügger, (2006); Campos, (2003); Capela (1995); Chequer, (2002); Del Priore, (1995); Figueiredo, 24 (1999); Freyre (1961); Freyre, (2006); Leite, (1984); Menezes, (2005); Noronha, (2007); Ribeiro e Guimarães, (1956); Soihet, (1997); Souza, (1997); Vasconcelos, (1966); Zanatta (2005); entre outras. No segundo capítulo trataremos, inicialmente, das atividades comerciais responsáveis pelo abastecimento de gêneros na capitania de Minas Gerais, principalmente no século XVIII, demonstrando a existência de uma atividade econômica, diferente da mineração, capaz de promover o enriquecimento de grandes produtores e comerciantes. Pretendemos ainda desvendar a cadeia de negócios estabelecida e gerida pela matriarca a fim de conhecer os mecanismos usados por ela para conquistar seu prestígio. O que ela produzia? Como comercializava? Aonde vendia seus produtos? Estas e outras questões serão abordadas ao longo deste capítulo. Dentre as obras consultadas podemos citar: Carrara (2007); Chaves, (1999); Fragoso, (1992); Furtado, (1999); Guimarães e Reis, (1986); Ivo (2009); Lenharo (1979); Meneses, (2000); Souza, (2004); Zemella, (1951); entre outras. Por fim, no terceiro capítulo, discutiremos a formação das elites coloniais mineiras a partir da análise da família de Dona Joaquina do Pompéu. Inicialmente analisaremos aspectos que caracterizam a elite na América portuguesa, em especial sua formação nos sertões das Minas. Isto porque acreditamos que nas regiões mais remotas da colônia a formação desses grupos de mando ocorre de maneira um pouco diferente das regiões litorâneas. Posteriormente, apresentaremos um panorama da chegada da família da matriarca e do seu marido a região de Pitangui demonstrando o processo de construção e solidificação do prestígio desfrutado por eles na região. Neste último subtítulo discutiremos ainda questões referentes a articulação de alianças no entorno da matriarca, evidenciando ser ela o centro da família. Dentre as obras consultadas para elaboração deste capítulo podemos citar: Almeida (2001); Andrade (2008); Barros (2001); Bourdieu (2003); Costa e Olival (2005); Dias (1984); Faoro (2000); Gouvêa (1998); Lewcowicz (1992); Monteiro, Cardim, Cunha (2005); Monteiro (2009); Ricupero (2009); Samara (1983), Silva (1998), Vainfas (1989), entre outras. 25 Capítulo 1. O MATRIARCADO NO SERTÃO MINEIRO: SENHORA DONA JOAQUINA DO POMPÉU 26 A história das mulheres não é só delas, é também aquela da família, da criança, do trabalho, da mídia, da literatura. É a história do seu corpo, da sua sexualidade, da violência que sofreram e que praticaram, da sua loucura, dos seus amores e dos seus sentimentos. Mary Del Priore 1.1. O avesso do matrimônio: nasce a matriarca do Pompéu Chegamos assim, a Fazenda do Pompéu, que possui uma superfície de 150 léguas quadradas, pelos menos, é ela habitada somente pela família da proprietária deste principado, cujos súditos seriam as 40mil cabeças de gado que habitam estas regiões despovoadas e anunciam ao viajante a proximidade de habitações humanas. (...) No Pompéu, em virtude de inúmeros pedidos, tivemos de permanecer alguns dias na residência da generosa matrona, viúva Dona Joaquina da Silva de Abreu Castelo Branco, que conta entre seus descendentes 70 netos (ESCHWEGE, 1979, p.279280). Foi entre os anos de 1810 e 1811 que o viajante alemão Wilhelm Ludwing Von Eschwege, o Barão de Eschwege, passou pelos domínios de Dona Joaquina do Pompéu. Sua narrativa aguça nossa curiosidade sobre a “generosa matrona” e nos leva a pensar sobre essa mulher: quem foi ela? Como se tornou proprietária de tantas terras? Quem cuidava de tudo? Qual era o valor de sua fortuna? Essas e outras questões tentaremos elucidar ao longo deste trabalho. Não pretendemos, contudo, realizar uma obra biográfica, nossas propostas caminham na direção de uma abordagem de aspectos econômicos e políticos relacionados à Dona Joaquina e sua família. No entanto, não seria possível discutir as relações comerciais e políticas protagonizadas pela matriarca, sem ao menos saber sobre sua história de vida. Nesta primeira parte do capítulo, apresentaremos a matriarca do Pompéu. Em 1747, Jorge de Abreu Castelo Branco, natural da cidade lusa de Viseu, advogado, formado na Universidade de Coimbra, veio para a América acompanhando seu primo D. José Luis de Menezes Abranches Castelo Branco e Noronha, o Conde de Valadares, que assumiria como governador da Capitania das Minas Gerais. Jacinta Teresa da Silva nasceu na ilha do Faial, arquipélago de Açores. Já em terras americanas, Jorge e Jacinta se casaram em dezembro de 1748 em Santo Antônio do Bacalhau, capela freguesia de Guarapiranga, diocese de Mariana. Fixaram residência em Mariana onde doutor Jorge atuava como advogado. Tiveram ao todo nove filhos13. A quinta filha do casal Joaquina Bernarda da Silva de Abreu Castelo Branco nasceu em 20 de agosto de 1752 na mesma cidade. 13 Em ordem de nascimento: Eufrásia Leonor Guedes da Silva Sobral Abreu Castelo Branco, Ana de Abreu Castelo Branco, José de Abreu Castelo Branco, Agostinho de Abreu Castelo Branco, Joaquina Bernarda da Silva 27 Minha filha Joaquina nasceu em um domingo à meia-noite que contarão vinte de agosto de mil setecentos e cinquenta e dois; foi batizada nessa sé de Mariana em um domingo que se contarão três de setembro do dito ano. Realizou o Reverendo Cônego Francisco Xavier da Silva; foi padrinho o doutor Caetano da Costa Matoso14 – os avós constam do assento de sua irmã Eufrásia (RIBEIRO; GUIMARÃES, 1956, p.49). Após o falecimento da mãe, em 1762, seu pai retomou os estudos eclesiásticos, ordenou-se padre e mudou com a família para a Vila de Pitangui, onde assumiu como vigário encomendado15. Em Pitangui, Joaquina casou-se com o Capitão Inácio de Oliveira Campos16, no ano de 1764. Nos arredores da Vila arrendaram uma fazenda chamada Lavapés, onde iniciaram a construção do seu patrimônio. Logo nos primeiros anos após o casamento, entre 1765 e 1769, capitão Inácio aparece como importante comerciante nos livros de Registro de Passagem da Vila de Pitangui, transportando principalmente gado. De acordo com Cláudia Chaves (1999), em Pitangui existia um grande matadouro para onde os comerciantes levavam o gado para o abate, o que inferimos como uma das justificativas para a presença do nome de Inácio nos registros. Ou seja, o gado criado na fazenda era levado para a Vila onde seria abatido e a carne comercializada no açougue de propriedade da família e em outras partes da Capitania. Joaquina foi uma jovem criada dentro das normas sociais que regiam os costumes coloniais, como pode ser percebido pela análise dos documentos de instrução17 deixados por seu pai antes de morrer. Ela sabia bordar, costurar, cozinhar, enfim, conhecia perfeitamente a rigorosa regra de etiqueta do século XVIII, alicerçada na polidez para receber as pessoas e tratá-las com cortesia. Também se destacou pelo domínio da escrita, que diferentemente do seu uso instrumental corrente à época, muitas vezes limitado ao entendimento dos livros de de Abreu Castelo Branco, Francisco Jorge de Abreu Castelo Branco, Florinda de Abreu Castelo Branco, Domiciano José de Abreu Castelo Branco e Germano de Abreu Castelo Branco. 14 Caetano da Costa Matoso foi ouvidor geral e corregedor da Comarca do Ouro Preto, nos anos de 1749 a 1752. Suas memórias foram reunidas no Códice Costa Matoso, uma obra de grande valor histórico, que reúne informações sobre os primeiros descobrimentos das minas de ouro na América Portuguesa. Consta também legislação, dados econômicos, tributários, administrativos e documentos relacionados aos temas de grande significado da época, como o acesso às minas, as terras em disputa com a Espanha, as riquezas, os rendimentos da Fazenda Real e do bispado mineiro. 15 Provisões régias e cartas de sesmarias. Revista do Arquivo Público Mineiro, 1912. vol. 17, p.583. 16 Inácio de Oliveira Campos era Comandante da Companhia de Ordenanças, parte da Milícia dos Dragões das Minas Gerais. Foi responsável pela bandeira que, sob ordens de Conde de Valadares, governador da capitania, desbravou os sertões mineiros e goianos. Considerado o fundador da atual cidade de Patrocínio - MG. Foi juiz ordinário da Vila de Pitangui. 17 A parir da análise dos documentos de instrução deixados por Jorge de Abreu Castelo Branco a seus filhos, percebeu-se que havia um modelo social a ser seguido. Neste sentido compreendeu-se que a educação de dona Joaquina foi baseada nas regras e costumes da época. Para mais detalhes ver RIBEIRO; GUIMARÃES, 1956, p.52-58. 28 reza (LUCCOCK, 1942), conforme se constata da vasta documentação produzida em sua administração, entre correspondências, recibos, petições. A princípio, a educação recebida por Dona Joaquina era a mesma das outras jovens que viviam na América portuguesa. A ela seria destinado, muito provavelmente, um bom casamento e o papel de esposa dedicada e responsável pelos cuidados domésticos. A ociosidade seria sua principal ocupação, ou melhor, desocupação, se pensarmos que existe um forte estereótipo, principalmente nos relatos dos estrangeiros atribuído as mulheres brancas e ricas18. No entanto, seu marido Inácio, além de fazendeiro era Capitão-Mor da Guarda19, e frequentemente passava longos períodos longe da fazenda. Essas ausências fizeram com que a matriarca desde o início do casamento, tivesse que se dedicar aos negócios, gerenciando e administrando tanto a vida doméstica – com seus 10 filhos20 –, quanto as responsabilidades da fazenda. Algumas ausências foram longas como a que ocorreu nos anos de 1771 a 1779, por ter sido designado pelo governador da capitania, Conde Valadares, para uma bandeira no interior do sertão. De acordo com Diogo de Vasconcelos (1984), o governador mandou organizar bandeiras em Pitangui e Paracatu, sendo esta última, chefiada pelo Capitão Inácio de Oliveira Campos. As bandeiras se dirigiam aos territórios do Rio Negro e dos Dourados e, com excelentes resultados conseguiram descobrir importantes minas auríferas. Inácio possuía também propriedades na região de Paracatu, que herdaria oficialmente de seus pais em meados de 1774. De acordo com o documento de separação de sociedade e venda, entre Inácio e Dona Joaquina, as terras compreendiam cinco fazendas, a saber: a Serra, a Cotovelo, a Barra do Rio Preto, a Novilha Brava e a fazenda Gado Bravo. Nessas fazendas havia cerca de oito mil cabeças de gado, mais de trezentos eqüinos, cerca de trinta escravos, além de plantações. Em 1782, o capitão Inácio, por meio de uma carta de separação de sociedade e doação, passou à esposa suas propriedades: Digo eu Capitão Inácio de Oliveira Campos, que sendo casado passo carta da metade para Dona Joaquina Bernarda da Silva de Abreu Castelo Branco, e 18 Sobre a educação e a condição feminina nos séculos XVIII e XIX ver: FIGUEIREDO, 1999; LEITE, 1984; LUCCOCK , 1942; MENEZES, 2007; SAINT-HILAIRE , 1957; SILVA, 2002; SOIHET, 1997; entre outros. 19 Subordinado ao governador da Capitania, o cargo de capitão-mor era o mais importante, pois apesar de não ser remunerado pelo governo, era a “autoridade que, em uma cidade ou vila, comandava a milícia chamada ordenança. O capitão-mor era responsável pela ordem na sua jurisdição e, durante o regime escravista, ordenava expedições contra quilombos quando as câmaras solicitavam ou quando ele mesmo julgava necessário” (MOURA, 2004, p.84). A escolha do capitão-mor era realizada pela câmara e pelo capitão-general da seguinte forma: a câmara indicava três nomes e o capitão-general ficava incumbido de definir o escolhido. 20 Em ordem de nascimento: Ana Jacinta de Oliveira Campos, Félix de Oliveira Campos, Maria Joaquina de Oliveira Campos, Jorge de Oliveira Campos, Joaquina de Oliveira Campos, Isabel Jacinta de Oliveira Campos, Inácio de Oliveira Campos, Ana Joaquina de Oliveira Campos, Antônia de Oliveira Campos, Joaquim Antônio de Oliveira Campos. 29 possuindo com ela todos os meus bens em comum, temos contratado dissolver. Como por esta dissolvemos a sociedade que tínhamos comprando um a parte do outro. (...) dissolvendo a sociedade que tinha deferido e para o futuro faço a venda de hoje para todo o sempre, a referida (...) com que de nossa livre vontade nos ajustamos, e dela a hei empossado [ilegível] de todo o domínio, e como nos mesmos bens tinha a referida compradora sua metade, fica somente obrigada à satisfação da minha parte (...) [Vila de Pitangui, maio de 1782] (APM. FJBP 1. Cx.01- Doc. 04)21. Depois de vinte anos residindo na fazenda Lavapés o casal resolveu adquirir uma propriedade maior para a expansão de sua produção. Em 1784 compraram a fazenda do Pompéu de Manoel Gomes da Cruz, por 11.200$000 (onze mil e duzentos contos de réis). As terras compreendiam as fazendas do Pompéu, Mato Grosso, Santa Rosa, Monte Serrate e Diamante com seus respectivos retiros, casas, currais, gado vacum e cavalar, e escravos. Apesar da compra ter se realizado em 1784, a escritura de compra e venda só foi lavrada por volta de julho de 1792, no arraial de Catas Altas da Noruega. Tem-se como hipótese que, neste caso, houve um acordo verbal entre as partes para efetuar o negócio. Nas terras da fazenda do Pompéu foi construído um sobrado com 79 cômodos, onde a família passou a residir22. A fazenda já possuía uma criação de gado, que foi ampliada pelos novos moradores. Além disso, investiram em plantações e na criação de eqüinos. É neste ponto da história da matriarca que seu nome ficará conhecido na capitania de Minas, já que ela será uma das responsáveis pelo abastecimento de gêneros alimentícios de diversas vilas. Foi quando se mudou para esta localidade que ganhou o apelido de “Dona Joaquina do Pompéu”, uma referência ao local onde estava a propriedade. Desde o início do casamento percebemos que Dona Joaquina auxiliava seu marido no trato das propriedades, no entanto é a partir da mudança para a fazenda do Pompéu que a matriarca passa a cuidar com maior autonomia dos negócios da família. De acordo com a análise documental, nos parece correto afirmar, que mesmo nos períodos em que o Capitão Inácio estava presente na fazenda do Pompéu, era a matriarca quem continuava cuidando dos negócios. Inferimos que isso ocorria em função de outras atividades desempenhadas pelo Capitão, como o exercício do cargo de juiz ordinário. Em 1795 capitão Inácio é acometido por uma doença e fica de cama até o seu falecimento em 1804. Após o falecimento do marido, Dona Joaquina não contraiu segundas núpcias, viveu sozinha até 1824 quando faleceu. 21 Na transcrição dos documentos, modernizou-se a grafia a fim de facilitar a compreensão do leitor. Foram respeitados os arcaísmos e a pontuação sempre que possível. 22 O mencionado sobrado foi passado por herança à Ana Jacinta de Oliveira Campos, filha de Dona Joaquina do Pompéu. A propriedade foi sucessivamente herdada até o ano de 1943, quando o então governador de Minas Gerais, Benedito Valadares, adquiriu o casarão por meio do Decreto Lei n. 959 de nove de novembro de 1943. Em 1953 o governador Juscelino Kubitschek, doou o terreno à União para que fosse construído um posto agropecuário. Em 1954, o sobrado foi demolido a mando do Ministério da Agricultura. 30 Durante os quarenta anos que morou no Pompéu, a matriarca foi responsável pela ampliação do rebanho e das áreas de plantio, solidificando um imenso patrimônio. Acolheu em sua casa ilustres viajantes, como o Barão de Eschwege, e mostrou ser uma fiel vassala da Família Real. No ano de 1805 o Comandante Domingo Gonçalves Pereira passava à matriarca um recibo sobre doações, “Recebi da Ilustríssima Senhora Dona Joaquina Bernarda da Silva de Abreu Castelo Branco a importância de cento e cinquenta mil réis da contribuição voluntária que ofereceu a Sua Alteza Real para provisão do Estado (...)” [Vila de Pitangui, 01 de janeiro de 1805]. Em março de 1808, por intermédio de Diogo Pereira Vasconcelos enviou ao Rio de Janeiro 200 bois para auxiliar o abastecimento da família real, “(...) além dos duzentos [bois] de Sua Alteza Real. (...) já remeteu a sua carta a Real Presença de Sua Alteza, abonando o seu Patriotismo” [Vila Rica, 18 de março de 1808]. Dona Joaquina também apoiou a independência do Brasil oferecendo escravos, mantimentos, gado para auxiliar Sua Majestade Imperial, “Ilustríssima Senhora Dona Joaquina Bernarda da Silva de Abreu Castelo Branco. Para eu saber decidir sobre a sua oferta de cem bois que ofereceu nas suas fazendas do Paracatu para socorro da Bahia (...) subirá a Augusta presença de Sua Majestade Imperial (...)” [Vila de Pitangui, 26 de agosto de 1823]23. De acordo com Ribeiro e Guimarães, em discurso entusiasmado, o filho mais jovem da matriarca, Capitão Joaquim Antônio de Oliveira Campos anunciou: “contai igualmente com os bens de Dona Joaquina Bernarda da Silva de Abreu Castelo Branco, minha Mãe, por quem estou autorizado a fazervos este puro oferecimento (...)” [Vila de Pitangui, janeiro de 1823] (RIBEIRO; GUIMARÃES, 1956, p. 297). À primeira vista a figura de Dona Joaquina do Pompéu pode parecer uma exceção a regra patriarcal da sociedade colonial: uma mulher que chefia e provê a família. No entanto, não era incomum a existência de unidades domésticas chefiadas por mulheres, como afirma Miriam Moreira Leite, “as mulheres dos fazendeiros, freqüentemente quando ficam viúvas, administram sozinhas as fazendas e os escravos, assumindo integralmente as responsabilidades dos maridos” (LEITE, 1984, p.57). Luciano Raposo Figueiredo (1999) ao discutir sobre o cotidiano e o trabalho feminino no século XVIII, demonstra que a sociedade na região das Minas não teria sido exclusivamente patriarcal, no sentido de ser chefiada apenas por indivíduos do sexo masculino. Ao contrário, houve casos, não raros, de mulheres no comando dos núcleos domésticos. 23 APM. FJBP 1. Cx. 01. Doc. 29; 36; 44. 31 A partir do estudo desses núcleos domésticos [núcleos familiares urbanos da região das Minas], constatar-se-ia a freqüência com que ocorria uma redefinição dos papéis sexuais no interior do grupo, ao passo que a comunidade em geral se encontraria composta por um expressivo número de domicílios organizados em termos matrifocais (FIGUEIREDO, 1999, p.125). Mas, se outras mulheres também se tornaram chefes de família, qual a relevância de uma análise específica sobre Dona Joaquina do Pompéu? A justificativa é que alguns elementos que marcaram a trajetória dessa senhora são demasiados intrigantes e despertaram nosso interesse em investigá-los. Como por exemplo, o fato dela ter assumido o comando das fazendas mesmo antes do falecimento do marido; o fato do capitão Inácio ter passado para o nome da matriarca as propriedades que já possuía antes do matrimônio; o conteúdo das correspondências trocadas por ela e comerciantes; entre outros elementos. Além disso, alguns trabalhos debatem sobremaneira o universo feminino das escravas e alforriadas, recaindo em segundo plano, reflexões sobre as mulheres brancas da elite colonial. Quando as discussões ocorrem no sentido de abordar questões comerciais, novamente há o destaque para as negras de tabuleiros e as forras vendeiras. A mulher branca costuma aparecer como o Imbelicitus Sexus24, ou seja, o sexo imbecil, aquele que não consegue realizar nenhuma atividade racional, sendo sua capacidade limitada a atividades como bordar e costurar. Contudo, ao nos determos na análise sobre Dona Joaquina do Pompéu, percebemos que sua capacidade vai muito além da execução de atividades domésticas. Identificamos uma mulher que pode exemplificar a realidade de tantas outras que também assumiram fazendas e negócios. Maria Odila Leite da Silva (1984), ao estudar as mulheres paulistas, já indicava a presença de mulheres de famílias abastadas cuidando dos negócios. A administração feminina ia além da simples transferência de bens, elas herdavam o comando das famílias, liderando seus descentes e influenciando a vida social, econômica e política, ainda que não pudessem ocupar cargos nas Câmaras Municipais. E é nesta perspectiva, de um comando pleno da família, que entendemos a atuação de Dona Joaquina. 24 Expressão usada por Jeannie da Silva de Menezes ao discutir as representações femininas no século XVIII. De acordo com ela, “o sexo imbecil aparece como caracterização a incapacidade feminina e tal noção é ampliada na legislação eclesiástica que lhe dá suporte e nos tratados como é o caso do Espelho dos casados, de João de Barros, além de Ruy Gonçalves com o seu Dos privilégios e das prerrogativas que o gênero feminino tem por direito comum e ordenações do reino que o gênero masculino” (MENEZES, 1995, p.230). 32 1.2. Patriarcal ou matriarcal? Como caracterizar o núcleo familiar do Pompéu? Pensar em uma história sobre as mulheres brancas da elite colonial, atuando como chefe de família, nos leva a refletir sobre sua condição na sociedade. Desde o início do processo de colonização do Brasil, houve uma sensível diferença na relação entre homens e mulheres, brancos e portugueses, que vieram para a colônia. No entanto, já estava presente no pensamento europeu as diferenças e hierarquias entre os gêneros, e essa diferenciação não era uma especificidade da sociedade colonial americana. Antonio Manuel Hespanha (2010) em obra intitulada Imbecillitas, discute sobre as bem-aventuranças da inferioridade nas sociedades de Antigo Regime. Loucos, crianças, selvagens, pobres e mulheres são alguns dos “diferentes” tratados pelo autor a partir do discurso jurídico. A inferioridade da mulher diante do homem possui uma justificação que vai além do direito, e remonta do discurso bíblico da Criação. Os juristas e filósofos, muitos deles católicos, buscavam nas Escrituras elementos de diferenciação entre os gêneros. “Existindo na Criação um modelo de perfeição que é o próprio Deus, esse modelo não se refletia igualmente em todas as criaturas. O homem, por exemplo, fora criado à imagem e semelhança de Deus. Já a mulher não teria essa natureza de espelho divino. A sua dignidade seria menor” (HESPANHA, 2010, p.57). A incapacidade feminina para as funções de mando, por exemplo, se justificaria na sua menor dignidade. Segundo Hespanha (2010), o texto fundador dessa prerrogativa foi de Ulpianus inserido no Digesto25, daí passa pelo Decreto de Graciano, Aristóteles, Platão, São Tomás de Aquino, entre outros. “As mulheres são infelizes acidentes da natureza”, “é da ordem natural que as mulheres sirvam os homens e os filhos, os pais”, “a mulher é algo de deficiente e ocasional”, são estas as impressões que vigoram na Europa sobre as mulheres e que refletirão nas colônias americanas. Na Primeira epístola de São Paulo a Timóteo, podemos observar um exemplo das atitudes que eram mais recomendáveis às mulheres, e que serviram, aliadas a outros textos, para a criação de uma imagem feminina de fraqueza, debilidade intelectual, indignidade, imbecilidade, etc. Recomendações às mulheres. Do mesmo modo, quero que as mulheres usem traje honesto, ataviando-se com modéstia e sobriedade. Seus enfeites consistam não em primorosos penteados, ouro, pérolas, vestidos de luxo, e sim em boas obras, como convém a mulheres que professam a piedade. A mulher ouça a instrução em silêncio, com espírito de submissão. Não permito à mulher que ensine nem que se arrogue autoridade sobre o homem, mas permaneça em silêncio. Pois, o primeiro a 25 Compilação bizantina de doutrina jurídica romano-clássica, incluída no Corpus iuri civilis, obra central em toda a tradição jurídica europeia (Hespanha, 2010). 33 ser criado foi Adão, depois Eva. E não foi Adão que se deixou iludir, e sim a mulher que, enganada, se tornou culpada de transgressão. Contudo, ela poderá salvar-se, cumprindo os deveres de mãe, contanto que permaneça com modéstia na fé, nas caridades e na santidade (Timóteo, I, 2,9-15)26. Diante das recomendações da Bíblia, do pensamento jurídico e filosófico, entendemos que a possibilidade de salvação para as mulheres estaria ligada ao matrimônio e a geração dos filhos. Dessa forma, podemos estabelecer uma relação entre a condição feminina nas sociedades de Antigo Regime e o papel das mulheres na América portuguesa. Uma vez que elas serão, em alguma medida, responsáveis pelo auxílio na constituição de núcleos familiares legítimos, ou seja, formados por portugueses, brancos e cristãos. Gilberto Freyre (2006), afirma que havia uma grande dificuldade em estabelecer nos trópicos uma organização familiar de acordo com o modelo europeu, devido a escassez de mulheres brancas. Afirma ainda que, a base da sociedade brasileira no início do século XVI era “constituída com um pequeno número de mulheres brancas e larga e profundamente mesclada de sangue indígena” (FREYRE, 2006, p.73). As análises realizadas por Freyre referem-se aos primeiros colonizadores do século XVI, no entanto, a escassez de mulheres portuguesas no Brasil também será um problema enfrentado por aqueles que, no século XVII e XVIII, se lançaram ao interior da colônia para, entre outras coisas, encontrar metais preciosos. Na região das minas de ouro, a presença das mulheres brancas, nos primeiros anos da exploração era pequena, já que houve um deslocamento muito maior de homens a fim de descobrirem os veios auríferos27. Além disso, desbravar os sertões repletos de índios e de mata virgem era uma atividade desempenhada quase que exclusivamente pelos bandeirantes, pois para as mulheres estas longas jornadas seriam deveras penosas. Reiterando Freyre, Maria Odila Leite da Silva afirma que no início do povoamento da região mineradora também se registrou uma efetiva falta de mulheres brancas. Havia um desequilíbrio significativo “entre os sexos na população, cerca de 1800 homens para cada 100 mulheres, de que resultava a valorização social da mulher portuguesa e toda uma política de integração de mulheres brancas no processo de colonização” (SILVA, 1984, p.73). A integração destas mulheres se deu, principalmente, via casamentos, já que havia uma necessidade, por parte dos organismos 26 Bíblia Sagrada. 50 ed. São Paulo: Editora Ave Maria, 2004. Em nota Freyre esclarece: “Tive o gosto de ver confirmadas por esses dados, generalizações a que arriscara, na primeira edição deste trabalho, sobre a formação da família naquelas zonas do Brasil [área mineradora] onde foi maior a escassez de mulher branca” (FREYRE, 2006, p.61). 27 34 reguladores portugueses28, de que se estabelecessem núcleos familiares legítimos. Ou seja, “havia que espalhar a presença feminina na consolidação de um projeto demográfico que preenchesse os vazios da terra recém-descoberta” (DEL PRIORE, 1995, p.24). Esta necessidade de organização familiar ocorreu também devido ao grande número de uniões entre portugueses e mulheres negras. De acordo com Raquel Chequer (2002), havia um temor entre os portugueses de que a impossibilidade de pessoas brancas se casarem com outras do seu grupo social, dada à desproporção entre homens e mulheres existente, dificultaria a formação de uma base familiar sólida, que auxiliaria Portugal em seu empreendimento colonizador. Tem-se, neste caso, o estabelecimento da importância do papel feminino na conquista ultramarina, tanto para o Estado português, quanto para a Igreja Católica. Por um lado, a Igreja pretendia ampliar a difusão e defesa do catolicismo, e as mulheres brancas podiam auxiliar este processo difundindo a religião e os costumes morais no seio familiar. Por outro lado, o Estado precisava da presença destas mulheres na colônia, na esperança de que as uniões estáveis pudessem ordenar os núcleos mineradores. A presença das mulheres no Brasil era tão importante para a Coroa que desde o início houve “uma política quase oficial de fixação de mulheres, a fim de suprir uma lacuna vital para o processo de colonização” (SILVA, 1984, p.73). Importar órfãs, condenadas ou mulheres de qualquer procedência social era muito importante, desde que fossem brancas e europeias. Nas Minas, a Igreja e o Estado mantinham-se vigilantes a fim de assegurarem o estabelecimento de uma sociedade familiar, nos mesmos moldes vigentes na tradição portuguesa. A limitação da saída das jovens para a Europa a fim de estudarem em conventos, e a proibição da construção destes, nos domínios portugueses na América, foram outras formas encontradas para o desenvolvimento deste modelo de sociedade nos núcleos mineradores e em outras partes da colônia. Luciano Figueiredo (1999) também discute a conduta do Estado e da Igreja no que diz respeito à presença feminina na colônia, onde ambos se preocuparam em estimular a realização de matrimônios, principalmente entre os portugueses que possuíam uma condição econômica melhor. Assim como outros historiadores, Figueiredo aponta, como principal razão desta intervenção, o temor dos órgãos eclesiásticos e estatais de uma progressiva difusão do concubinato entre os homens brancos e as mulheres negras e mulatas. É interessante perceber como a administração portuguesa na América tinha receio destes relacionamentos. A justificativa para tal comportamento era que, caso a população de mestiços aumentasse, a 28 Entende-se por organismos reguladores as doutrinas eclesiástica e estatal portuguesa que regiam, regulamentavam e ditavam as normas de conduta civil, política e jurídica em Portugal e suas colônias. 35 dominação da colônia ficaria comprometida, pois este grupo era dado à indisciplina social. Com relação à falta de mulheres brancas disponíveis para o matrimônio, Figueiredo afirma que isto ocorreu devido à forma como se desenvolveu o processo de colonização brasileiro. E, citando Caio Prado Júnior, reforça que a colonização não se deu por famílias portuguesas estruturadas, mas, geralmente, por indivíduos isolados, e que mesmo tendo uma família, esta foi deixada para trás, ficando a espera de uma oportunidade mais segura para então se deslocar para a colônia (FIGUEIREDO, 1999). Decretos disciplinadores, como o Concílio de Trento e as Ordenações Filipinas, foram amplamente utilizados para a legitimação das práticas da Igreja e do Estado no que tange o controle do comportamento feminino na colônia. Aliado a estes decretos, o uso do discurso médico reafirmava a função natural da mulher que era a de procriar. A ideia de que o corpo feminino fora da maternidade tendia a luxúria e aos prazeres do pecado, reforçava a necessidade do matrimônio e do consequente nascimento da prole, um filho após outro. A Igreja, detentora do monopólio ideológico, usando da medicina conseguiu disciplinar as mulheres para o ato da procriação. Na perspectiva sacramental e mística, a sexualidade encontrava sua única justificativa na procriação. E este era o dever absoluto dos esposos. O uso dos corpos no casamento possuía uma perspectiva escatológica, pois somente nas penas da vida conjugal e no sofrimento e angústia do parto encontrava-se a redenção dos pecados e a via ressurreicional; a procriação só tinha legitimidade na expectativa da multiplicação de criaturas comprometidas à beatitude eterna (DEL PRIORE, 1995, p.30). Nessa mesma lógica de submissão feminina diante do homem, a Igreja difundia a ideia de que à mulher cabia a propagação do cristianismo no interior da família. E, um dos caminhos que usou para atingir este objetivo foi incentivar a devoção a Nossa Senhora, ao que Mary Del Priore (1995) chama de “surto mariológico”. Sendo assim, o incentivo a devoção a Nossa Senhora era uma tentativa de renovar o espírito cristão, e com isso estabelecia-se uma relação íntima entre devotos e devotados. Esta relação entre as mulheres e Maria é discutida por alguns autores, que destacam aspectos daquele que seria o comportamento de Maria, nas atitudes das moças portuguesas no Brasil. Freyre (2006) ressalta a conduta das moças de família, que mantém o ano todo o ar humilde das filhas de Maria, ou seja, meninas acanhadas, dedicadas à família e à religião, moldadas à imagem da Virgem Santa29. Emanuel Araújo, em artigo publicado no livro História das Mulheres do Brasil (2002), também demonstra a percepção da sociedade em relação à condição da mulher grávida. Estar 29 Freyre, 2006, p.510. 36 grávida, ser mãe, correspondia ao grande momento da vida das mulheres, pois era quando elas se distanciavam da condição de pecadoras e se aproximavam das virtudes de Maria, mãe do filho de Deus. Essa atitude pode ser uma das justificativas para o fato de que na América portuguesa os casamentos ocorriam tão cedo. Freyre (2006) ao analisar as impressões de estrangeiros na colônia, destaca a surpresa de vários deles diante das meninas de 12 e 13 anos já casadas e com filhos. Aos 18 anos já eram maduras e, cercadas de crianças, demonstravam que haviam cumprido sua missão de procriar. Elas ocuparam seus corpos com a maternidade, e depois dos filhos nascidos novas responsabilidades lhes foram conferidas. As mulheres-mães tinham “o papel decisivo na origem e preservação dos rituais de cortesia, que afinam as maneiras e ajudam a separar, em camadas distintas, os componentes da sociedade” (HOLANDA, apud FIGUEIREDO, 1999, p.124). E é a mulher, dentro da casagrande, com seu oratório e altares quem ensina aos negros as rezas, os nomes dos santos e o temor ao Deus cristão. É ela quem ensina às filhas as regras disciplinadoras às quais estão submetidas, e mantém estável a sociedade familiar da América portuguesa. Del Priore (1995) aponta que a relação estabelecida entre os homens que estavam nas colônias e as mulheres que eram enviadas para estas regiões, exclusivamente para o matrimônio, legitimava a desigualdade nas relações de gênero. E esta desigualdade foi importante tanto na constituição dos papéis femininos, quanto na construção de estereótipos utilizados amplamente pelo Estado e pela Igreja, para legitimar e justificar esses papéis. As doutrinas eclesiástica e estatal portuguesa fundamentaram a formação da sociedade durante o processo de colonização do Brasil. Em todo caso, não podemos desconsiderar que nem sempre esta legislação era cumprida, e havia uma distância entre a norma e a prática social, como observa Gilberto Freyre: “(...) quando é que as leis de proibição portuguesas e brasileiras foram escritas para ser cumpridas à risca?” (FREYRE, 2006, p.502). Mas isto não quer dizer que houve o rompimento com essas instituições, os indivíduos apenas adaptaramse a realidade na qual viviam, como é o caso das mulheres que atuaram como chefe de família. Se por um lado, as duas grandes alternativas que prevaleceram para as mulheres foram o casamento e o recolhimento, as necessidades cotidianas impeliram um grande número delas ao trabalho, ainda que mal visto e ainda que mal vistas na condição de trabalhadoras. (..) a generalização de Imbelicitus Sexus não parece ter vingado na prática de mulheres que tiveram por necessidade a manutenção do patrimônio familiar e daí o registro de mulheres cabeças de casal, uma condição generalizada para os homens e prevista para as mulheres em situações específicas (MENEZES, 2005, p.233-234). 37 Percebe-se então que, apesar da existência de normas regulamentadoras tanto por parte do Estado quanto por parte da Igreja, havia pontos de coincidência e outros de divergência, no que diz respeito a sua atuação reguladora. Um desses aspectos seria a questão do trabalho, ou seja, para a Igreja o trabalho feminino de mulheres pertencentes a elite não era muito apropriado; para o Estado, ao contrário, era importante que a mulher assumisse os negócios do marido mantendo em dia o pagamento dos impostos e das taxas. E justamente para isso o governo, por meio das Ordenações Filipinas30, legitimou a participação feminina no trabalho permitindo que a mulher se mantivesse como chefe da família em situações específicas, como no caso de viuvez. No entanto, algumas vezes, práticas que eram permitidas apenas em casos específicos passavam a valer como regra em toda sociedade colonial. Jeannie da Silva Menezes exemplifica bem essa situação, ao analisar o caso da restauração portuguesa no século XVII, “quando cessada a ocupação holandesa, as mulheres que tinham assumido a condução do patrimônio familiar continuaram a fazê-lo e a atuar nas questões de confirmação de suas propriedades e posses na capitania de Pernambuco” (MENEZES, 2005, p.234). No caso de Dona Joaquina do Pompéu, podemos estabelecer que houve um ponto de coincidência entre as normas da Igreja e do Estado. Se por um lado ela é mãe de dez filhos, avó, senhora dedicada aos cuidados domésticos e cristã fervorosa, por outro, assumiu a administração da fazenda cuidando do rebanho, das plantações e dos escravos, negociando e comercializando seus produtos. Sendo reconhecida como a “dona” do Pompéu, não somente a proprietária, mas aquela que manda, que dá as ordens e é obedecida. Nesta perspectiva a matriarca é citada por Silva, quando a autora discute a atuação feminina no processo de colonização, “eram fundadoras de capelas, curadoras, mulheres de negócios, administradoras de fazendas e líderes políticas locais. (...) como chefes políticas, algumas ficaram famosas como Joaquina do Pompéu” (SILVA, 1984, p.73). Segundo o historiador Gilberto Cezar de Noronha (2007b), Dona Joaquina supera um dos papéis esperados da mulher, ainda que de forma limitada, e vive uma condição instável diante de avaliações frequentes de seu comportamento. Para o autor, diante da conduta exemplar da matriarca, a imagem de dama do sertão se sobrepõe às imagens negativas surgidas por meio da oralidade ao longo dos anos. E, essa imagem de dama do sertão reflete uma adaptação da matriarca com relação às normas estatais e da igreja. É a representação da 30 Ordenações Filipinas, 1985. 38 dualidade entre a mulher responsável pela família no ambiente privado do lar, em contraposição a mulher fazendeira e negociante na esfera pública. Entende-se que a Dama do sertão é uma mulher brava, “enérgica, forte e varonil”, mas que não é braba, quer dizer, sua bravura é vista como um valor positivo, enaltecedor, ao contrário da brabeza, que traz um significado intrínseco de maldade – valor negativo. Dessa forma, trata-se de uma mulher que traz no sangue a nobreza europeia, e como herança a educação castelã. No coração cultiva os sentimentos cristãos, nas ações a fidalguia. Portadora dos valores morais católicos da altivez, da riqueza e da cortesia. Dama fundadora de uma civilização – da civilização do povo do oeste de Minas –, que promove o combate à barbárie, desafia o isolamento e o marasmo do sertão com força e dinamismo. Matriz de uma classe política destinada a conduzir os rumos da região num esforço de integração à nação, com mãos de ferro, com tino político, capacidade administrativa, e culto aos valores patrióticos. Essa dama do sertão constitui um verdadeiro divisor de águas na história da região, numa perspectiva linear de progresso, uma mulher que viveu fora do seu tempo e de seu lugar porque alia a força do homem às qualidade da mulher. Outras imagens vêm subsidiar a imagem dominante de dama do sertão: mulher “viril”, porque nas agruras do sertão, as damas têm que ter virilidade; mulher-matriz: política, civilizadora, bandeirante (NORONHA, 2007b, p.148). Essa confluência de qualidades descritas por Noronha (2007b), nos permite avançar nas discussões e debater sobre um elemento que nos parece fundamental na construção e consolidação da figura da matriarca. O que distingue Joaquina das outras mulheres? Que mecanismos ela utilizou consciente ou inconsciente para se distinguir das outras mulheres e para se colocar frente aos homens? Os indivíduos do sexo masculino usavam os títulos dos cargos para se diferenciarem: capitão, tenente, sargento, coronel. Que títulos poderia uma mulher usar para se diferenciar? Será que não podemos pensar que o termo “Dona” na frente do seu nome passou a ser usado como uma forma de distinção, como um título? Quer dizer, ela não era qualquer mulher, mas uma mulher dona, proprietária de terras, escravos, e gado. Será que neste caso “Dona” não pode ser visto como um título carregado de simbolismos ligados a valores morais e poder? De acordo com Pierre Bourdieu (1987), os títulos sejam eles de nobreza, acadêmicos, ou militares, por exemplo, representam verdadeiros títulos de propriedade simbólica que permitem vantagens de reconhecimento para os agentes que os ostentam. Esses títulos podem ser instituídos oficialmente, como no caso dos títulos de nobreza, no entanto eles também podem ser conquistados e reconhecidos socialmente. Inferimos neste caso, que “Dona” usado na frente do nome da matriarca não significa apenas sinal de respeito ao se dirigir a uma mulher, o termo “senhora”, por exemplo, poderia ser mais adequado se fosse esse o caso. Mas, de acordo com nossas análises acreditamos que “Dona” tem um valor muito mais forte e 39 bem definido, ainda que tenha sido recorrente seu uso para o tratamento a senhoras da elite colonial. Alguns estudos têm discutido o trabalho feminino sob a perspectiva de mulheres ricas e o termo “Dona” tem sido utilizado para caracterizá-las. Os autores têm demonstrado considerações bastante relevantes e utilizaremos algumas delas em nossas análises. Em Donas, Senhores e Escravos, José Capela (1995) estuda o sistema de propriedade da Zambézia, marcado pela participação feminina no sistema senhorial. As Donas zambezianas foram importantes proprietárias de terras e escravos e exerceram significativo poder político na região. Segundo o autor as donas adquiriram seu status de poder e distinção a partir da posse de terras e escravos, e “Dona” tornou-se um título adquirido por elas e enraizado na consciência coletiva. As donas passaram à História, ficaram na lenda. Sua projeção atingiu o comportamento de êmulos, em nossos dias. Viragos do sertão, fazendo valer pretensões a poder de pistolim (o corpete de coldre) e vencendo picadas extensas a biciclo de pedal, como Dona Ana do Chinde. É que as donas da Zambézia não se ficaram pela titularidade passiva dos latifúndios. Por absentismo do cônjuge de casamento de conveniência, por viuvez ou por qualidade de caráter endurecido nas circunstâncias de precariedade da ordem legal e da arbitrariedade do poder de ocasião – o pão nosso daquele cotidiano –, as donas afirmaram personalidade, exibiram altivez, exerceram senhoria e praticaram violência sempre que acharam necessário a ela recorrer (CAPELA, 1995, p.67). Outro trabalho que discute sobre essa temática é o de Selma Pantoja, cujo objetivo é analisar as chamadas “Donas” em Luanda, “poderosas e ricas comerciantes de escravos que, através de várias gerações de mulheres, conduziram as grandes empresas atlânticas, como proprietárias de navios e administrando agências entre os dois continentes” (PANTOJA, 2004, p.79). Segundo a autora, as Donas de Luanda, apropriaram-se do termo e o incorporaram aos seus nomes atribuindo significado diferente ao que era usado em Portugal. Em Luanda, as Donas, eram as mestiças e negras que detinham grande concentração de poder. Ainda sobre o uso do vocábulo “Dona”, Marize Helena Campos (2008) investiga a atuação das “senhoras donas” no Maranhão, mulheres proprietárias de escravos e terras. A autora demonstra que na América portuguesa o “Dona” foi apropriado para fazer referência a mulheres brancas pertencentes a elite colonial. Carlos de Almeida Prado Bacellar (1990) apresenta uma informação interessante sobre o uso do “Dona” pelas mulheres paulistas. Entre as mulheres, ou, mais precisamente, entre as esposas desses grandes proprietários, difunde-se a adoção do tratamento Dona enquanto diferenciador social. Este tratamento, todavia, era reservado apenas, a tão somente, às esposas ou viúvas desses proprietários, ou, então, às filhas que ainda residiam, solteiras, junto 40 aos pais. Não encontramos casos de mulheres solteiras, chefiando um domicílio, recebendo tal tratamento. Assim, o status de Dona seria inerente à mulher regularmente casada, de acordo com todas as normas sociais (BARCELLAR, 1990, p.367). Estes e outros trabalhos trazem um entendimento semelhante para o uso da palavra “Dona” antes do nome das senhoras que viveram nas colônias portuguesas31. Ou seja, o termo foi utilizado diante do nome de mulheres que tinham posses ou pertenciam a uma família abastada. Segundo o dicionário de língua portuguesa de Antonio de Morais e Silva, datado de 1813, “Dona” quer dizer: “título de mulher nobre, que tanto vale como senhora. Senhora de alguma coisa, proprietária” (SILVA, 1813, p.638). Significado semelhante aparece em Raphael Bluteau, onde “Dona” significa: Título de mulher nobre. (...) Privilégio de Damas que se comunica às Donas. (...) Mulher viúva de qualidade, que no palácio assiste a uma rainha, ou a uma princesa. Mulher de idade, que serve em uma casa de capela, à diferença das donzelas. (...) Título das Cônegas Regrantes de Santo Agostinho, por duas razões, a primeira porque os Cônegos da dita Regra se chamam com pronome de Dom; a segunda, porque as religiosas que professam nela eram senhoras ilustres, ou viúvas nobres, e neste Reino, semelhantes pessoas sempre foram chamadas de Dona. (...) Dona como derivado do latim Domina quer dizer senhora, com este título de Domina eram tratadas geralmente entre os Romanos mais cortesãos as mulheres moças, ou donzelas, sendo nobres (BLUTEAU, 1712-1728, p.287-288). Diante desses significados relativamente semelhantes, mas que tiveram seu uso particularizado de acordo com o objeto de análise, buscaremos agora, demonstrar qual é o nosso entendimento sobre este termo e como temos aplicado nas análises sobre Dona Joaquina do Pompéu. Entendemos que de maneira geral o termo “Dona”, significava no vocabulário português do Antigo Regime, uma forma de tratamento que diferenciava as mulheres nobres das plebeias. Compreendemos a partir deste significado que, em Portugal o vocábulo “Dona” estava relacionado a um tratamento honorífico dado a uma senhora nobre. No entanto, ele foi apropriado nos domínios ultramarinos e adaptado de acordo com as necessidades de cada local. O tratamento Dona significava em todo o mundo luso uma forma de prestígio, diferenciando nobres e plebeus. (...) No entanto, nas áreas africanas e americanas esse tratamento ganhou maior significado em um mundo demarcado pelas hierarquias de classe e cor. (...) Esse tratamento estava reservado às mulheres brancas, ou consideradas brancas, e ricas. No entanto, as Donas [de Luanda] aqui apresentadas raramente são brancas. Portanto, outras conotações são dadas ao tratamento Dona nos espaços do litoral africano. Na verdade, essas mulheres incorporaram o tratamento Dona aos seus nomes pela atuação em papéis de tamanha 31 Ver, entre outros: GOLDSCHMIDT, 1997; ZANATTA, 2005. 41 importância, dando, assim, outros significados a essa forma de tratamento. (PANTOJA, 2004, p.80). Por outro lado, acreditamos que na América portuguesa, o uso do termo “Dona” ocorreu para caracterizar as mulheres brancas pertencentes à elite colonial. Aline Antunes Zanatta (2005) ao discutir os processos de divórcio da elite paulista, busca identificar quais elementos poderiam justificar o uso de “Dona” pelas mulheres paulistas. No entanto, ela afirma que é impossível esta definição, uma vez que estas mulheres estavam ligadas por matrimônio a representantes de uma elite composta por indivíduos que exerciam diferentes atividades na sociedade. Para a autora, as mulheres poderiam ter herdado a nobreza dos pais, ou ter se casado com homem nobre; poderiam também provir de um grupo não nobre que conseguiu ascender economicamente e que, conseqüentemente, adquiriu prestígio. Logo, a riqueza era apenas um dos critérios possíveis para a obtenção de nobreza, mas não uma categoria estática de definição das “Donas” paulistas, pois muitas destas mulheres poderiam ter empobrecido e continuarem sendo identificadas como “donas” pela sociedade em que viviam. Se as “donas” paulistas envolvidas nos processos de divórcio estavam ligadas aos principais da terra (senhores de engenho, homens com cargos políticos, administrativos e militares), concordamos com a definição de Eliana Goldschmidt em que a “dona” era a mulher de condição nobre no Brasil colonial e que “fazer parte dos quadros da nobreza significava pertencer à elite, de origem hereditária ou ainda militar, judiciária, administrativa, acadêmica, agrícola e comercial, que concentrava poder e prestígio no grupo formado por brancos de sangue limpo que não tivessem a mancha do trabalho manual (ZANATTA, 2005, p.38-39). No caso de Dona Joaquina, entendemos que o vocábulo representa além da distinção social, um símbolo de reforço do poder familiar na região da Vila de Pitangui. Ela converge o principal elemento apontado por Zanatta (2005) para legitimar o uso do “Dona” como título distintivo: estava ligada aos principais da terra. Seu marido além de fazendeiro e negociante possuía minas de ouro, era capitão-mor da guarda e foi juiz ordinário na Vila de Pitangui. Seus filhos e genros também ocupavam cargos militares como capitão, sargento, coronel e tenente, além de cargos políticos como vereadores na Câmara. Por sua vez, ela, Joaquina, é também dona e proprietária, mas certamente não receberia títulos nobiliárquicos nem patentes militares. Como ela se distinguiria de outras mulheres? Segundo Maria Beatriz Nizza da Silva, “embora destituídas do poder político que cabia aos homens de sua condição, as donas detinham um poder econômico não esquecido pelas autoridades” (SILVA, 2002, p.65). E é justamente essa constatação da autora, que nos faz reafirmar a importância e força do uso do “dona” diante do nome de Joaquina. Para nós o uso do vocábulo “Dona” foi demasiadamente adequado para definir o status social que a 42 matriarca ocupava na sociedade. Entendemos o uso do “Dona” em seu significado usual na América portuguesa, como sinal de distinção, por ela pertencer a uma família de posses, por ser esposa de um militar. No entanto, se pensarmos o “Dona”, derivado do latim Domina, relacionado a domínio, vislumbraremos uma carga simbólica mais forte: o domínio, a posse, a propriedade de terras e escravos. Ser proprietária, possuir terras, ser dona de escravos confere ao sujeito um caráter diferenciado, e se pensarmos no tamanho das propriedades que Dona Joaquina tinha, podemos calcular a força que esse termo adquire. Parece-nos que “Dona” diante do nome possuía por si só um significado forte o suficiente para destacar a matriarca na sociedade, sem a necessidade de ser legitimado pelo poder do Estado. E a representatividade desse título é reforçada pela inclusão de uma outra referência ao seu nome: Pompéu. Neste caso, há ainda, uma simbologia do próprio espaço da fazenda, do edifício. É a casa-grande! Ela é “Dona Joaquina do Pompéu”, aquela que é proprietária de um imenso patrimônio representado pela sede da fazenda (Pompéu), que foi morada dos primeiros habitantes da região, e que representou, nos quarenta anos que a matriarca viveu lá, a base de todo o seu domínio. Joaquina não é qualquer dona, e nem é dona de qualquer coisa. Ela é a Dona do Pompéu, uma mulher em uma sociedade masculina, que se destaca como fazendeira e comerciante. Que organiza e administra arranjos familiares que se elevam a uma categoria de arranjos políticos, sociais e econômicos. O título “Dona” é tão importante e significativo para diferenciar estas mulheres ricas, e aqui especificamente no caso de Dona Joaquina, que na documentação analisada sobre a matriarca, “Dona” sempre aparece diante do seu nome, seja em cartas pessoais, de negócios ou oficiais. É recorrente ainda o uso de “senhora” antecedendo o “Dona” o que nos parece indicar ainda mais distinção. Por exemplo, em um dos documentos, uma escritura de afastamento de sociedade e venda, o capitão Inácio se refere a ela da seguinte maneira: “(...) minha esposa Dona Joaquina Bernarda da Silva de Abreu Castelo Branco como abaixo descrevo. Digo eu Capitão Inácio de Oliveira Campos, que sendo casado passo carta da metade para Dona Joaquina Bernarda da Silva de Abreu Castelo Branco (...).” [Vila de Pitangui, maio de 1782] (APM. FJBP 1. Cx. 01. Doc. 04). Outros documentos seguem o mesmo princípio de usar “Dona” diante do nome da matriarca, e alguns ainda acrescentam “senhora”, o que parece conferir ainda mais respeito e distinção ao tratamento. A seguir apresentamos alguns excertos destacando o uso do título “dona”: “Recebi da Senhora Dona Joaquina da Silva de Abreu Castelo Branco (...)” [Vila de Pitangui, 22 de outubro de 1797] (APM. FJBP 1. Cx. 01. Doc. 19); “Diz Dona Joaquina Bernarda da Silva de Abreu Castelo Branco, moradora do Distrito de Pitangui (...)” [Vila 43 Rica, 19 de março de 1799] (APM. FJBP 1. Cx. 01. Doc. 23); “Recebi da Ilustríssima Senhora Dona Joaquina Bernarda da S. de Abreu Castelo Branco a importância de cento e cinquenta mil réis (...)” [Vila de Pitangui, 01 de janeiro de 1805] (APM. FJBP 1. Cx. 01. Doc. 29); “Ilustríssima Senhora Dona Joaquina Bernarda da Silva de Abreu Castelo Branco. Minha Camarada, Mãe e Senhora. (...)” [Vila Rica, 18 de março de 1808] (APM. FJBP 1. Cx. 01. Doc. 36); “Minha mana e senhora, minha maior veneração e respeito. (...) pelos grandes motivos que tenho de ser obrigado a ilustríssima Senhora Dona Joaquina de cuja bondade e grandeza nunca me esquecerei (...)” [09 de janeiro de 1819] (APM. FJBP 1. Cx. 01. Doc. 41); “(...) Ouvidor e Corregedor José Antônio da Silva Maya enviou o dizer a Dona Joaquina Bernarda da Silva de Abreu Castelo Branco e outro por uma petição (...) [Sabará, 07 de junho de 1822] (APM. FJBP 1. Cx. 01. Doc. 43). Sem dúvida o destaque alcançado por Dona Joaquina na administração de suas propriedades está, de alguma forma, relacionado a educação diferenciada que recebeu, já que ela aprendeu a ler e a escrever, o que não era tão comum entre as jovens de sua época. Durante a análise de seus documentos, percebemos uma habilidade considerável na escrita, reconhecida pelo teor e a pertinência das correspondências por ela redigidas. Acredita-se que possuía a mesma habilidade para a leitura. Não é possível afirmar que todas as mulheres não sabiam ler ou escrever, mesmo porque, é sabido que algumas jovens aprendiam a ler, porém o suficiente para entenderem as orações dos livros das rezas (LUCCOCK, 1942). A educação de Dona Joaquina se fez diferenciada desde sua infância até a vida adulta, e parece que seu caráter e personalidade, aliados a boa administração, também contribuíram para que ela se tornasse uma mulher bem sucedida nos negócios. De acordo com Hespanha o chefe da família tinha três deveres para com os filhos: educá-los espiritualmente, moralmente e civilmente, “fazendo-lhes aprender as letras (pelo menos, os estudos menores), ensinar um ofício, (...) dotá-los para matrimônios carnais ou religiosos” (HESPANHA, 2010, p.128). Parece-nos que o doutor Jorge de Abreu Castelo Branco, pai de Joaquina cumpriu bem seus deveres. Ele deixou para os filhos um livro de instruções com recomendações sobre como estes deveriam se apresentar na vida32. O livro é na verdade uma compilação de 15 documentos onde o autor discursa sobre como gostaria que seus filhos, incluindo as mulheres, deveriam se comportar na vida social e privada. 32 Os documentos estão transcritos em duas obras sobre Dona Joaquina, a saber: RIBEIRO; GUIMARÃES, 1956, p. 52-58; CAMPOS, 2003, P.102-104. O manuscrito original não foi localizado. 44 Os primeiros documentos têm um caráter religioso, como amar a Deus sobre todas as coisas e acreditar unicamente na Igreja Católica. Como as instruções servem tanto para os filhos quanto para as filhas, alguns documentos chamam a atenção por podermos identificálos nas ações de Dona Joaquina, e porque, justificam ao mesmo tempo, o que estamos inferindo com relação à sua educação. No documento de número nove, doutor Jorge pede que os filhos cuidem dos bens que possuem e não sejam demasiadamente ambiciosos ou miseráveis, mas que tenham qualidades de bons administradores. No décimo primeiro documento ele discursa sobre a importância da educação, pede que os filhos amem e dediquem-se as letras, mesmo que não se tornem doutores. E no de número doze sugere que os filhos ao lidarem com os outros sejam sempre sérios e honestos. O que pretendemos com a apresentação dessas instruções é demonstrar que Dona Joaquina foi criada dentro de uma família preocupada com a educação dos filhos, inclusive das mulheres. E muito provavelmente, esses documentos escritos por seu pai, a aconselharam e orientaram na administração dos negócios e na sua conduta diferenciada em relação a outras mulheres que viveram no período colonial. De acordo com Araújo (2002), a educação destinada às meninas era diferente da dos meninos. A elas cabia o aprendizado mínimo da leitura e escrita voltadas não só para o “livro das rezas”, mas para realizar eficazmente algumas tarefas da casa, como escrever listas de compras, calcularem medidas para costura e etc. Sendo que estas qualidades eram vistas com bons olhos, pois os maridos sabiam que suas casas estavam sendo comandadas de acordo com a tradição familiar. Ainda referente à educação, é interessante perceber nos relatos de estrangeiros a impressão que estes tinham das mulheres que moravam nos trópicos. Aos olhos deles as mulheres brancas que aqui viviam eram, em sua maioria, ignorantes: “(...) o pouco contato que os costumes com elas permitem, dentro em breve, põem a nu a sua falta de educação e instrução” [1813] (LUCCOCK, 1942, p.75). Mais interessante ainda é perceber como os estereótipos contidos nestes relatos foram sendo absorvidos pela historiografia ao caracterizarem as mulheres do século XVIII e XIX. Charles Expilly (1977) demonstra em seu relato sua surpresa em relação a ignorância das mulheres que viviam no interior do país. Já o artista Jean Baptiste Debret (1975) analisa a educação das brasileiras, e sua fala é bastante parecida com o que se costuma ouvir sobre as mulheres do período colonial. Segundo o artista, a educação “se restringia, como antigamente, a recitar preces de cor e a calcular de memória, sem saber escrever nem fazer as operações. Somente o trabalho de agulha ocupava seus lazeres, pois os demais cuidados relativos ao lar 45 são entregues sempre às escravas.” [1816] (DEBRET, 1975, p.17). Novamente, a presença do estereótipo feminino ligado à falta de instrução e a não execução dos serviços domésticos recai sobre as mulheres brancas. Entendemos que as impressões desses estrangeiros e as descrições da educação das mulheres no Brasil, não são simples estereótipos. É preciso perceber em suas narrativas que se trata de uma generalização da condição destas mulheres, mas nem por isto estas informações tornam-se menos valiosas, já que o que descrevem são as impressões que vivenciaram no cotidiano. No entanto, não se pode ignorar que existiram algumas mulheres que não obedeceram a estes estereótipos. Ao analisar a história de mulheres que se destacaram à frente de seus negócios, vê-se claramente o rompimento com este que parecia ser o padrão feminino para a época. Mas um rompimento, não no sentido de que estas mulheres eram revoltadas com sua condição e por isso procuraram se destacar. Pelo contrário, o rompimento surge porque elas precisaram se adaptar a novas situações para sobreviverem. Diferentemente do que observaram os estrangeiros aqui citados, e outros tantos, a viajante Adéle Toussaint-Samson, citada por Leite (1984), apresenta outro olhar sobre as mulheres, pois podia conviver com elas mais intimamente, ao contrário dos viajantes do sexo masculino. De acordo com ela, as mulheres brasileiras realmente não faziam nada, mas davam ordens aos escravos para que estes fizessem. Passando o dia todo delegando tarefas aos escravos, desde a fabricação de doces para serem vendidos nas ruas, até a confecção de roupas para a escravaria, para as crianças, roupas de cama e mesa. Há ainda as ordens para a arrumação e providências para as refeições da casa, e mais outros tantos afazeres organizados e comandados por elas. Interessante nas observações de Toussaint-Samson, é que a mulher descrita por ela, é totalmente diferente daquelas mencionadas por outros observadores estrangeiros. Ela conseguiu observar uma mulher no seio da vida doméstica, com seus intermináveis afazeres. A observação não foi feita apenas durante uma refeição ou conversa formal na presença do marido. A viajante participou do cotidiano dos cuidados domésticos, evidenciando que por trás de uma dita falta de educação e instrução, as mulheres cuidavam muito bem de suas casas. O Barão de Eschwege (1979) também pôde ver de perto a vida de várias mulheres em suas viagens pela América portuguesa. No segundo volume de seu livro Pluto Brasiliensis, o Barão narra, a sua passagem pelo “principiado” de Dona Joaquina, por volta do ano de 1811. Ele e sua comitiva ficaram hospedados na fazenda do Pompéu, onde apreciaram a generosidade da matriarca e admiraram sua eficaz administração no trato de mais de quarenta 46 mil cabeças de gados, escravos, plantações e ainda o cuidado com a casa, os filhos, netos e hóspedes. Eschwege destaca ainda a ativa participação da matriarca em lutas políticas, na defesa de suas propriedades e no processo de independência do Brasil. Elizabeth C. Agassiz, em sua narrativa sobre o universo feminino, no século XIX, e Coroliano Pinto Ribeiro (1956), em sua obra sobre Dona Joaquina, apresentam informações sobre a condição feminina, que merecem destaque. No primeiro excerto apresenta-se a condição geral das mulheres brancas da elite. A passagem seguinte refere-se à Dona Joaquina. Com esta comparação, pretendemos demonstrar as diferenças de conduta entre essas mulheres que pertenciam a um mesmo grupo social, mas que viviam em situações diferentes: Em geral, no Brasil, pouco se cuida da educação das mulheres (...). Não há uma só mulher brasileira, que, tendo refletido um pouco sobre o assunto, não se saiba condenada a uma vida de repressões e constrangimentos. Não podem transpor a porta de sua casa, senão em determinadas condições, sem provocar escândalo (...). Nunca vi em parte alguma, para as pessoas do meu sexo, condição tão triste como a das mulheres dessas pequenas localidades [cidades do norte e do interior do Brasil]. É uma existência horrivelmente monótona, privada desses prazeres sadios que proporcionam vigor; um sofrimento passivo, entretido, é verdade, mais por falta absoluta de distrações do que por males positivos, mas que nem por isso é menos deplorável; um estado de completa estagnação e inércia (AGASSIZ; AGASSIZ, apud. LEITE, 1984, p.74-76). Não quis ela seguir o perfil das damas de salão da nobreza de uma vida de toucadores últimos figurinos das Cortes de então. Preferiu a roça, a criação de gado, e a indústria das invernadas, o rodeio dos rebanhos em campos a perder de vista, ela montada em seu veloz “puro-sangue”, de botas e esporas, armada de escopetas, e terçando, chapeirão de palha e um chicote a mão acompanhada de filhos, netos, escravos fiéis, galopando pelos desertos (RIBEIRO; GUIMARÃES, 1956, p.382383). Levando em consideração a última citação, pode-se enumerar uma série de atitudes de Dona Joaquina que reafirmam sua condição diferenciada. Os registros documentais33 disponíveis sobre ela dão conta de sua atuação como negociante, e ao mesmo tempo sua atuação como mãe e dona de casa, preocupada em resolver problemas domésticos relacionados aos filhos e netos. A análise de sua documentação permite também perceber sua preocupação com aqueles com quem negociava. Nas correspondências remetidas à Dona Joaquina são recorrentes os assuntos de cunho pessoal, como notícias sobre a família do remetente, e questionamentos destes sobre a família da matriarca. De acordo com Júnia Furtado, era por meio da correspondência constante que as informações chegavam a diferentes partes das capitanias: “O domínio da informação era vital não só para o bom 33 APM. FJPB 1. Cx. 01-04. 47 desempenho dos negócios, como para ter notícias dos familiares e colocar-se a par de diversos assuntos” (FURTADO, 1999, p.106). Em carta assinada por Diogo Pereira Ribeiro Vasconcelos, datada de 1808, o destinatário questiona sobre a saúde da “ilustríssima senhora Dona Joaquina. Minha camarada, mãe e senhora” e tece longos elogios sobre suas virtudes. Faz uma breve menção ao período em que sua esposa e filhos passaram hospedados na fazenda do Pompéu. Por fim discorre sobre negócios: produtos que está mandando de Vila Rica para Pompéu; venda de gado que não foi bem sucedida, devido ao excesso de gado proveniente da Comarca do Rio das Mortes; o sucesso no envio de duzentas cabeças de gado para a “Sua Alteza Real” no Rio de Janeiro, juntamente com a carta levada a “Real Presença de Sua Alteza, abonando o seu Patriotismo” (APM. FJBP 1. Cx. 01. Doc. 36). Na carta observamos alguns elementos que estamos discutindo neste trabalho, a convergência da “dona de casa” e da “dona do Pompéu”. Vale ressaltar que, a matriarca conseguiu conciliar em si qualidades essenciais para uma boa moça da América portuguesa, segundo os manuais. Ao mesmo tempo em que conseguiu adotar uma postura forte e determinada para administrar seu patrimônio. Na administração, Dona Joaquina montava a cavalo e saía pelos currais e fazendas de suas propriedades dando ordens e cuidando para que tudo corresse de acordo com sua vontade. Para percorrer os caminhos da capitania de Minas Gerais, solicitou autorização para andar armada, como demonstra o documento a seguir. Interessante no documento é que ao final das explicações sobre os perigos do interior da capitania, há uma menção a existência de inimigos na Vila de Pitangui, mas que a solicitação do porte de armas não tem nenhuma relação com este fato. Neste aspecto, andar armada significava para a matriarca garantir sua segurança pessoal, tanto na Vila quanto em viagens mais distantes. Sendo assim, pode-se perceber mais uma vez as particularidades que cercavam o cotidiano desta senhora. Como pede, Vila Rica, 19 de março de 1799. Ilustríssimo, Excelentíssimo Senhor. Diz D. Joaquina Bernarda da Silva de Abreu Castelo Branco, moradora do Distrito de Pitangui, que lhe sendo preciso tratar de seus negócios por várias partes desta Capitania e Sertões dela infestados de assassinos, é obrigada a trazer pistolas e outras armas para sua defesa tão, somente, e não para ofender a pessoa alguma. O que nem o sexo, nem as qualidades, nem os grandes teres da Suplicante deixam lugar a recear, e como lhe consta que seus inimigos da Vila de Pitangui entendam culpada com este pretexto. Seja Servido conceder-lhe licença para a suplicante poder trazer as ditas armas que nesta declara. [rubricado por E.R.M] (APM. FJBP 1. Cx.01 – Doc.23). Os documentos apresentam ainda, uma Dona Joaquina influente politicamente. Um dos registros documentais analisados trata de uma procuração assinada por ela, conferindo 48 poderes a Manoel Ferreira da Silva e a João Evangelista F. Lobato, para que pudessem representá-la em qualquer tipo de ação. Além disso, no documento, citado acima, consta uma solicitação para que fosse enviado à Vila de Pitangui um juiz de fora para resolver problemas “jurídicos” da região. Ribeiro e Guimarães (1956) afirmam que, nos domínios de Dona Joaquina, na falta de autoridade legal, era ela em pessoa quem aplicava castigos aos negros, efetuava prisões e inquéritos, perdoava ou indultava. Percebe-se aqui a fragilidade da autoridade do Estado português nos sertões da Colônia defendida por Gilberto Freyre (2006) e por Caio Prado Júnior (1979), e que legitima a existência de uma sociedade patriarcal baseada nas relações de poder, onde a autoridade está representada na figura do grande proprietário. Sendo que neste caso específico a autoridade encontra-se vinculada à Dona Joaquina do Pompéu. Se por um lado Freyre e Prado Júnior defendem uma atuação frágil do governo na América portuguesa, Raimundo Faoro (2000) acredita num Estado forte e presente. Segundo o autor, a metrópole instala “amplos tentáculos” na colônia, “as peças do Estado português atravessam o oceano, firmando-se no litoral e nos sertões. Despreza-se a realidade americana, as peculiaridades locais são esmagadas” (FAORO, 2000, p.78). No entanto, é preciso mensurar esses dois extremos (Estado frágil e Estado Forte), e perceber que uma vez na colônia, os funcionários reais, passavam a fazer parte daquela sociedade. Com isso articulavam-se junto a elite local por meio de alianças matrimoniais e de compadrio como demonstra Silvia Brügger: “no que diz respeito à administração das Minas, os poderes metropolitanos não podiam eximir-se de alianças com os poderes locais. Concediam benesses, privilégios e cargos a potentados, buscando inseri-los na ordem administrativa” (BRÜGGER, 2007, p.59). Parece-nos que, ainda que dependam do poder central e estejam submetidas a ele, as câmaras dos longínquos sertões da colônia parecem ter maior autonomia e maior possibilidade de privilegiar seus membros no âmbito local. As câmaras, na América portuguesa, podem ser tidas então, como locais de articulação política, onde seus membros, muitas vezes ligados por meio de laços de parentesco, agem em benefício de seus próprios interesses. Assim, segundo João Fragoso, Maria de Fátima Gouvêa e Fernanda Bicalho (2000), muitas vezes, os vereadores usavam a câmara para definirem práticas econômicas, intervindo no mercado e controlando preços e serviços ligados ao abastecimento da cidade, por exemplo. Com atitudes como essa as elites locais beneficiavam-se enormemente e mantinham seu poder e controle. 49 Na Câmara da Vila de Pitangui, por exemplo, identificamos, desde a sua fundação em 34 1718 , a presença de inúmeros parentes e amigos de Dona Joaquina ocupando cargos. Neste sentido, entendemos a matriarca como a representação de uma autoridade extra-oficial, já que ela não podia ocupar cargos camarários, mas nem por isso ela deixava de estar presente na esfera oficial do poder. Seu marido, filhos, genros e outros parentes ocuparam esses cargos e muito provavelmente atuaram em benefício da família. Ressaltamos que as discussões sobre o poder e a atuação do Estado na colônia serão abordadas com maior ênfase no terceiro capítulo, onde trataremos da formação de uma elite regional e a representatividade do seu poder. Ainda que, reportando especificamente aos séculos XVI-XVII e ao nordeste brasileiro, sabe-se que a estrutura familiar descrita por Freyre (2006), organizada em torno de um núcleo patriarcal, perdurou no Brasil até meados do século XIX. A organização da família em torno de uma figura masculina forte, que zela por todos que vivem sob seu teto, encontrou nos trópicos um local propício para se desenvolver. Tendo como base econômica a agricultura ou a extração mineral, a escravidão como modo de produção, e as regras metropolitanas e eclesiásticas como legisladoras da moral e dos bons costumes, o pai ou patriarca concentrou em si todos os poderes de mandar e desmandar nos seus domínios fosse pelo nome de Deus, do Estado e, principalmente, em nome da sua família. O que podemos dizer então dos núcleos familiares estruturados sob a figura feminina? Como caracterizar a organização familiar chefiada por Dona Joaquina do Pompéu? Temos na historiografia brasileira uma série de discussões sobre os diversos tipos de organização familiar na América portuguesa35. Alguns compartilham com a lógica da família patriarcal proposta por Gilberto Freyre no clássico Casa-grande e senzala, outros preferem uma linha de análise onde as particularidades regionais deram a medida da organização familiar. Há ainda os que concordam parcialmente com uma ou outra linha, respaldados em ressalvas. Parece-nos que há uma lógica interessante em cada um desses raciocínios já que a realidade de cada objeto estudado pode apresentar uma nova forma de organização familiar, num determinado período e num determinado local. Nesta pesquisa, percebemos uma organização familiar bastante peculiar, ainda que não seja exclusiva, que se inicia com figuras masculinas, mas que tem no momento de maior prosperidade econômica o mando de uma mulher. Uma família do interior das Minas, 34 Em 1718, Antônio Rodrigues Velho, conhecido também como "Velho da Taipa", um dos primeiros bandeirantes a chegarem a Pitangui, tornou-se Capitão-mor e elegeu-se o primeiro juiz ordinário da Câmara da vila. Era avô do Capitão Inácio, marido de Dona Joaquina (DINIZ, 1965). 35 Ver, entre outros, CORRÊA, 1982; DIAS, 1984; FREYRE, 2006; SAMARA, 1983; VAINFAS, 1989. 50 formada a partir da atividade mineradora associada à agricultura, mas que acaba solidificando seu poder por meio da agricultura, pecuária e ocupação de cargos políticos e militares. Um núcleo familiar que descortina outras diversas famílias ligadas entre si por laços matrimoniais e de parentesco consanguíneo. Que arranjos familiares são esses, cujo chefe da família é uma “Dona”? Para nós, sem dúvida, algumas características apresentadas por Freyre para determinar o conceito de patriarcalismo cabem perfeitamente na estrutura familiar de Dona Joaquina do Pompéu. Mas nem por isso deixamos de acreditar que outras formas de organização familiar coexistiram com o patriarcalismo ao longo do período colonial brasileiro. Procuraremos a partir de agora determinar características comuns entre o modelo patriarcal descrito por Freyre (2006) e a família da matriarca. Ao mesmo tempo demonstraremos alguns elementos particulares dessa família e que podem nos ajudar a justificar a importância que tiveram. De acordo com Sheila de Castro Faria, no Dicionário do Brasil Colonial, “em geral, os termos patriarcal e patriarcalismo são utilizados nas ciências sociais como referência a uma sociedade em que o homem exerce o poder de liderança na família tendo a mulher uma condição inferior” (FARIA, 2000, p.470). Ora, a condição da inferioridade feminina no período colonial é bastante relativa, o que nos leva a problematizar esse conceito e refletir sobre ele. No mesmo verbete, Faria completa, “(...) mesmo tendo existido certa opressão das mulheres na colônia, ela só poderia ser efetivada nos estritos grupos da elite, justamente nas famílias patriarcais, e mesmo assim de maneira matizada” (FARIA, 2000, p.471). As críticas a Freyre com relação ao domínio do homem sobre a mulher na sociedade patriarcal, não são pertinentes já que o autor não faz nenhuma afirmação nesse sentido. Para Noronha (2007), Freyre nega a existência de um matriarcado no Brasil, mas reconhece a existência de matriarcas como equivalentes de patriarcas. Além disso, ele cita núcleos familiares comandados por mulheres inserindo-os na sua concepção de patriarcalismo. Uma das matriarcas citada em nota é justamente Dona Joaquina do Pompéu: “parece ter sido do mesmo feitio, por assim dizer, matriarcal, de Da. Francisca do Rio Formoso – que era uma Wanderley – Da. Joaquina do Pompéu, de Pitangui e Paracatu (Minas Gerais), onde foi dona de grandes fazendas e, com a doença do marido, o “homem da casa” (FREYRE, 2006, p.344. [grifo meu]). Segundo Silvia Brügger (2007) o que é realmente relevante no conceito de patriarcalismo proposto por Freyre é a representação do poder familiar. Associado a isso, tem a ideia de que os sujeitos se percebiam muito mais como membros de uma determinada família do que como indivíduos. Neste caso, o chefe da família ser do sexo masculino ou 51 feminino não interfere na caracterização da família como patriarcal. O que justifica o uso do conceito de patriarcalismo é a força, influência e o poder da família em uma determinada região, aliado aos valores e aos laços familiares. Neste sentido, a conformação da família de Dona Joaquina explicita laços familiares muito fortes e dependentes entre si, como mencionou o próprio Freyre. Merece destaque então, a posição privilegiada da família no centro das relações, ou seja, a família, não o indivíduo, nem o Estado, nem nenhuma companhia de comércio, é desde o século XVI o grande fator colonizador no Brasil, a unidade produtiva, o capital que desbrava o solo, instala as fazendas, compra escravos, bois, ferramentas, a força social que se desdobra em política, constituindo-se na aristocracia colonial mais poderosa da América (FREYRE, 2006, p.81). É justamente nesse sentido que identificamos o núcleo familiar de Dona Joaquina como patriarcal, uma vez que o centro das relações é a família. Família que representava o poder político, econômico e social, liderado por um indivíduo e cercado por uma extensa rede de parentes, amigos, dependentes, etc. O chefe da família, geralmente do sexo masculino, o pater famílias, é em nosso estudo substituído pela atuação da mulher, da matriarca. Amoroso Lima afirma que “a família é o centro da sociedade mineira e a hierarquia patriarcal o centro da vida doméstica mineira”, e, para ele não é impossível a presença feminina frente aos negócios: “se houver exceções, é que há muita mineira varonil, embora muito poucos mineiros efeminados” (LIMA, 1945, p. 191). Quando em Sobrados e Mucambos, Freyre (1961) reconhece a existência de matriarcas como equivalentes de patriarcas, ele poderia querer dizer que na sociedade colonial, quando uma mulher da elite precisava assumir o comando da família, ela não pretendia romper com nenhum padrão, nem ser uma contraventora, estava apenas se adaptando a uma situação específica. E isto nos parece claro ao analisarmos o fato de que nenhuma das seis filhas de Dona de Joaquina aparece ajudando a mãe ou tendo atitudes diferentes das esperadas para as mulheres na América portuguesa. Casaram-se cedo, constituíram família e viveram ao lado de seus maridos enquanto a mãe se ocupava de cuidar dos negócios da família. Segundo Eni de Mesquita Samara, o chefe da família ou do grupo de parentes era responsável por cuidar dos negócios e preservar a linhagem e a honra familiar, procurando exercer sua autoridade sobre seus dependentes. “A casa-grande foi o símbolo desse tipo de organização familiar que se implantou na sociedade colonial, sendo o núcleo doméstico para onde convergia a vida econômica, social e política” (SAMARA, 1983, p.12). A autora discute 52 ainda sobre certa influência destas famílias patriarcais sobre o Estado e a Igreja ao nível local. Desses apontamentos feitos por Samara (1983), podemos buscar na documentação sobre Dona Joaquina elementos que corroborem para a validação dessas afirmações dentro da perspectiva da nossa pesquisa, que é, entre outras coisas, demonstrar elementos patriarcais nesse núcleo familiar. A Fazenda do Pompéu, a casa-grande da matriarca, sem dúvidas, foi o símbolo maior do poder de Dona Joaquina. Nos Autos do Inventário, registrado em Pitangui, podemos mensurar a dimensão da propriedade que abrangia o que hoje são mais de dez municípios mineiros, cerca de 6.220 alqueires de terras produtivas. A propriedade possuía ainda, uma morada de casa de sobrado, engenho de cana, paiol, currais, senzalas, dois moinhos, quatro monjolos, regos de água, engenho de serra descobertado, uma casa velha de sobrado, uma horta cercada de muros, cercas de aroeiras rochadas, três pastos fechados, [ilegível] ranchos de bezerros, sevos de porcos, árvores de espinhos, jabuticabeiras, marmeleiras, vários pés de café, tudo avaliado depois de visto e examinado pelos ditos locados na quantia de 13 contos e 200 mil réis (...) (CAMPOS, 2003, p.161). Como chefe da família, Dona Joaquina cuidou de conservar a linhagem de sua família buscando para seus filhos e filhas casamentos com indivíduos pertencentes ao seu círculo de amizades e familiares. Seus genros e noras eram também sobrinhas, primos, primas, irmão e até uma de suas netas. O núcleo familiar liderado pela matriarca mostrou com isto contornos estáveis, permanentes e tradicionais da sociedade colonial. “Nesse contexto era quase uma contingência para os indivíduos se incorporarem às famílias ou grupos de parentesco, que funcionavam ao mesmo tempo como organizações defensivas e centros de propulsão econômica” (SAMARA, 1983, p.11-12) Dessa forma manteria tanto a fortuna quanto o prestígio social seguros no seio familiar. O núcleo central da família formado pelos filhos(as), genros, noras e netos(as) era o que sustentava a representatividade da figura de Dona Joaquina. Sem a família e seus laços, consolidados ao longo de anos de arranjos matrimoniais, econômicos, etc., a matriarca é apenas uma mulher. Seu poder é o poder da família e vice-versa. O patriarcado regido por ela só é possível tendo em vista a noção de família enquanto parentela, rede de poder e dependência, sugeridos por Antônio Cândido e discutidos por Ronaldo Vainfas (1989). Por esse motivo, percebemos ainda a anexação de uma série de outros sujeitos ao núcleo central da família formando uma camada periférica de dependentes. Esses eram parentes mais distantes, afilhados, amigos, agregados, escravos, todos, em alguma medida, dependentes de Dona Joaquina. E, para estes indivíduos era essencial ter e manter a proteção de uma grande 53 família, por outro lado, para a matriarca ter ao seu redor toda essa gente “significava projeção política em um tipo de sociedade em que o prestígio era medido pela quantidade de pessoas sob sua influência” (SAMARA, 1983, p.14). Concordamos com Samara que a família patriarcal assumiu características diferentes, regionalmente e que ela mudou com o tempo. No entanto, em nossas análises percebemos que alguns elementos permaneceram inalterados e se reproduziram em diversos lugares. Vemos na conformação da família de Dona Joaquina do Pompéu a representação da família patriarcal se pensarmos no poder da família em relação aos indivíduos que a compõe. A condução da família por um membro forte e que provem a todos de sustento, respeito, prestígio e influência também encontramos no Pompéu. O fato desse sujeito ser uma mulher não altera drasticamente o conceito proposto por Freyre (2006), já que ele mesmo apresenta famílias patriarcais liderados por mulheres. Por fim, acreditamos que devemos entender o patriarcalismo “como um conjunto de valores e práticas que coloca no centro da ação social a família” (BRUGGER, 2007, p.63). 54 CAPÍTULO 2. Mulheres e negócio: Dona Joaquina é quem manda! 55 (...) a agricultura foi a solução para a implantação e crescimento da empresa e da sociedade mineradoras, bem como foi a solução para a crise que se apresentou com a decadência da mineração. Em outras palavras, a agricultura permitiu a montagem, e garantiu a expansão da atividade mineradora bem como foi a alternativa adotada quando da crise dessa mesma atividade. A dependência da mineração para com a agricultura se expressa na própria necessidade de reprodução da força de trabalho utilizada naquela atividade. Carlos Magno Guimarães e Liana Maria Reis 2.1. Abastecimento e comércio na formação da economia colonial mineira Localizada a noroeste da Vila de Sabará, sede da Comarca do Rio das Velhas, a Vila de Pitangui possuía um vasto território. De acordo com Silvio Gabriel Diniz (1965) os limites da Vila iam além da margem esquerda do Rio São Francisco, a oeste; limitava com o Rio Paraopeba na direção leste e norte; e ao sul a cordilheira do Itatiaiuçu indicava a fronteira entre a Comarca do Rio das Velhas e a Comarca do Rio das Mortes. A oeste da Vila o grande sertão se estendia até encontrar os limites com a Comarca de Paracatu (Figura 01 e 02). Fonte: COSTA, Antônio Gilberto (org.). Cartografia da Conquista do território de Minas Gerais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. p.204. [Acervo da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa] Figura 01 – Localização da Vila de Pitangui 56 Fonte: ROCHA, José Joaquim da. MAPA DA CAPITANIA DE MINAS GERAES COM A DEVIZA DE SUAS COMARCAS. [S.l.]: 1778. Coleção de documentos cartográficos do APM. Preto e branco. 46,5 x 39,0cm. [Em destaque, Vila de Pitangui]. Figura 02 – Mapa da Capitania de Minas Gerais com a divisa das comarcas 57 Os caminhos que levavam a Vila passavam pelos principais núcleos mineradores e eram amplamente utilizados para o transporte principalmente de alimentos (Figura 03). Partindo da Vila de Sabará margeando o rio das Velhas e seguindo em direção noroeste, havia um caminho que levava a Pitangui, a Paracatu e se estendia ao longo dos rios Pará e Paraopeba até chegar ao rio São Francisco. Neste ponto, iniciava o caminho da Bahia, que ligava os currais do sertão às terras das capitanias da Bahia e de Pernambuco. Este caminho margeava o leito do rio São Francisco e foi um dos responsáveis pelo estabelecimento de várias fazendas de gado nesta região. Legenda Caminho Novo Caminho Velho Caminho para Pitangui via Sabará/Serra de Itatiaiuçu/Rio Pará Caminho para Pitangui via Sabará/Rio das Velhas/Rio Paraopeba Fonte: Adaptado de, COSTA, Antônio Gilberto (org.). Cartografia da Conquista do território de Minas Gerais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. p.204. [Acervo da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa] Figura 03 – Caminhos para a Vila de Pitangui 58 Podemos dizer que esses foram os principais caminhos utilizados pelos primeiros povoadores dessa região. Se inicialmente a Vila de Pitangui se destacou pela exploração aurífera, num segundo momento foram as atividades agropecuárias que movimentaram sua economia. Segundo Magno Guimarães e Liana Reis (1986), o vale do São Francisco, onde se localiza a Vila de Pitangui, base dos domínios de Dona Joaquina do Pompéu, foi uma das regiões responsáveis pelo abastecimento de toda a capitania e muitos de seus fazendeiros se destacaram no cenário político e econômico. Antes de discutirmos sobre as atividades econômicas de Pitangui é necessário pensarmos sobre a ocupação deste território iniciada em fins do século XVII. Esta discussão nos fornecerá elementos que ajudam a explicar o processo de desenvolvimento e as transformações ocorridas na região ao longo do período colonial e dos anos iniciais do período imperial. Carlos Henrique Davidoff (1986) informa que na ausência de uma atividade agrícola nos moldes mercantis da colonização portuguesa, como no caso do açúcar pernambucano, os paulistas buscaram em novas atividades, como a caça aos índios e a busca de metais e pedras preciosas, uma maneira de sobreviver. E, foram estes primeiros bandeirantes, com auxílio dos índios, que abriram caminhos para as bandeiras que se sucederam até a descoberta do ouro. Para Francisco Eduardo de Andrade, os paulistas foram os principais empreendedores dessas incursões aos sertões, pois haviam alcançado fama de “sertanistas hábeis, prudentes e valorosos, faziam de suas expedições ao sertão verdadeiros feitos de expansão do domínio luso” (ANDRADE, 2008, p. 59). A esperança portuguesa da existência de metais e pedras preciosas no interior do território, assim como havia nas colônias da América Espanhola, favoreceu para que a Coroa incentivasse os bandeirantes, prometendo-lhes recompensas e mercês caso encontrassem as tão sonhadas minas. Com a descoberta das primeiras minas em fins do século XVII, Ilana Blaj (1998) afirma que a articulação ocorrida entre São Paulo e as áreas mineradoras possibilitou o surgimento de grandes comerciantes de gêneros alimentícios. Foram estes sujeitos que identificaram no abastecimento e comércio da região mineradora uma oportunidade única para o estabelecimento de rentáveis negócios. Organizou-se então, uma rede de abastecimento que contava com produtores de São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia no início do século XVIII e que depois foi reforçada, por produtores da própria capitania de Minas. Com o aparecimento de vários núcleos produtores nas Minas em meados dos setecentos houve uma redução significativa na importação de produtos de outras capitanias. 59 A Vila de Pitangui, que se tornou um desses importantes núcleos abastecedores, teve seu surgimento ligado a mineração. Foi na primeira década do século XVIII, que se fixaram na região os primeiros habitantes. Os relatos sobre esses povoadores da região são bastante variados. Não há registros precisos sobre a passagem dos primeiros sertanistas, e há muitas divergências sobre quando foram encontradas as minas. De acordo com Carla Anastasia, em texto publicado no livro Pitangui Colonial36, no início dos setecentos os paulistas instalaram os primeiros serviços minerais. Em algumas obras37 sobre a história de Pitangui, uma das versões sobre a chegada dos primeiros habitantes é a “Lenda do Velho do Caruru”. Segundo relatos, por volta de 1709 foram descobertas as minas de Pitangui por Domingos Rodrigues do Prado e Bartolomeu Bueno da Silva, paulistas que vinham de Sabará e Caeté. Um dos guias da expedição, um velho, morreu as margens do Córrego Caruru, e como ele era o único que sabia o caminho certo para o destino final da expedição, os paulistas resolveram retornar. No caminho de volta ainda nas proximidades do dito córrego avistaram no morro chamado Batatal, um grão dourado, ao examinarem a terra descobriram abundância do metal precioso e ali se estabeleceram. Segundo Diogo Vasconcelos (1947), os descobridores de Pitangui vieram por volta de 1695 liderados por Bartolomeu Bueno de Siqueira. Contudo, dados levantados por Francisco de Assis Carvalho Franco, a partir de inventários, demonstram que nesta data Bartolomeu Bueno já havia falecido. Silvio Gabriel Diniz (1965) apresenta indícios que a região já devia ser conhecida desde 1601, de acordo com informações contidas num roteiro elaborado pelo viajante holandês Guilherme Glimmer, e analisado por Orville Derby. Mas, conforme aponta o autor, os principais fundadores da futura Vila de Pitangui, Antônio Rodrigues Velho e José de Campos Bicudo, vieram de Itu em São Paulo e fixaram-se na região próxima ao Rio Pará após descobrirem uma mina de ouro. Em todas essas narrativas, o que nos parece mais relevante é o fato de que, no início do século XVIII esta região já estava ocupada. Ainda sobre a presença dos paulistas nas regiões próximas ao rio São Francisco, é interessante destacar as novas perspectivas propostas por estudos historiográficos realizados desde fins do século XX e início do século XXI. Estas análises demonstram que mais importante do que saber quem chegou primeiro a região, é perceber que a conquista desse sertão ampliou as fronteiras interioranas da América portuguesa e possibilitou a estruturação de atividades econômicas diferentes da mineração, como a pecuária e a agricultura. Tais 36 37 CATAO (org.), 2011. DINIZ, 1965; SILVA, 1919; SOARES, 1972. 60 estudos38 têm demonstrado ainda, que a fixação dos bandeirantes paulistas no sertão do São Francisco e a formação de núcleos pecuaristas, contrapõe a ideia da mobilidade bandeirante defendida durante décadas pelos historiadores, pelo menos nessa região. De acordo com Márcio Santos, A movimentação dos sertanistas por esses espaços interiores, que é muito mais antiga do que a segunda metade do Seiscentos, parece ter se voltado, a partir de então, também para a ocupação, fixação e valorização econômica dos sertões centrais e setentrionais. Por razões distintas, antigos caçadores de índios, combatentes mercenários de tribos tapuias e aventureiros exploradores de riquezas minerais deixam, em alguns casos, o ritmo itinerante dessas atividades e assentam núcleos pioneiros de ocupação do interior, dando início à territorialização dos sertões (SANTOS, 2004, p.56). Certamente a descoberta de metais preciosos contribuiu inicialmente para a fixação desses indivíduos numa determinada região. Contudo, podemos inferir, que nas regiões sertanejas da futura capitania das Minas Gerais, onde a extração mineral não obteve o mesmo sucesso dos núcleos mineradores da região central, como Vila Rica, foi necessário que os bandeirantes buscassem outras atividades econômicas. E é nessa lógica de ocupação, fixação e desenvolvimento econômico que surge a Vila de Pitangui. Conforme foi dito anteriormente, a Vila foi fundada por paulistas, mas é relevante destacar a presença de várias famílias baianas na região. Isto porque muitos baianos seguiram o curso do rio São Francisco em direção a sua nascente, e se estabeleceram na região do Alto São Francisco, como criadores de gado, segundo aponta Urbino Viana (1935). Destacamos a presença de paulistas e baianos nessa região, porque foram estes primeiros povoadores que formaram a família da qual fez parte nossa personagem Dona Joaquina do Pompéu. E, mais especificamente, foi a partir do casamento de Antônio Rodrigues Velho com a filha de José Campos Bicudos que este tronco familiar se desenhou. Mas sobre isto falaremos com mais detalhes ao longo do capítulo 3. O arraial recém fundado e que depois se tornaria a “sétima vila do ouro”, foi batizada com um nome derivado da língua indígena tupi. Nas proximidades da região onde os paulistas se estabeleceram, havia um rio de águas volumosas, rápidas e impetuosas que foi chamado por eles de Pitangui39, cujo significado é rio das crianças, rio de meninos. O nome pode ter sido dado por dois motivos bastante semelhantes: primeiro, porque quando a expedição se 38 Sobre bandeirantismo e a presença paulista em Pitangui consultar: PEIXOTO, 2006; SANTOS, 2004, entre outros. 39 Pitangui do tupi pitang, de pele tenra, corado, vermelho, ou como substantivo, criança e ii, rio, rio das pitangas ou rio das crianças.. DINIZ, 1966, p.21-23. Atualmente o rio é chamado de rio Pará. 61 aproximou das margens havia um grupo de mulheres e crianças indígenas, as mulheres assustaram-se e correram deixando as crianças para trás; segundo, porque na região havia uma aldeia com muitas crianças40. Por volta de 1715 constam solicitações dos moradores de Pitangui para que o arraial fosse elevado a categoria de vila. Em carta enviada ao então Governador Da Capitania de São Paulo e Minas do Ouro, Dom Brás Baltazar da Silveira, os moradores solicitavam a elevação do arraial. Como resposta aos moradores o governador atende a solicitação: Representando-me segunda vez os Paulistas a necessidade que tinham de que o Arraial de Pitangui fosse erigido em Vila, não só para melhor expedição da cobrança dos reais quintos, pedindo-me anexasse à dita Vila a essa Comarca, porque além de lhe ser mais vizinha, tinha a Vossa Mercê nela por Ouvidor geral, cuja retidão os persuadia da igualdade com que havia de deferir aos seus requerimentos e nestes termos parece conveniente que Vossa Mercê vá fazer a dita ereção, pois só com as suas direções poderá ter excelente forma e ficarem satisfeitos aqueles povos, e quando Vossa Mercê queira levar em sua companhia alguns oficiais lhe dou a Vossa Mercê a permissão para que acompanhem quantos Vossa Mercê quiser, mas no caso que não seja possível que Vossa Mercê vá, mandará as instruções necessárias ao Superintendente Antonio Pires de Ávila para que faça esta diligência, a quem escrevo siga pontualmente o que Vossa Mercê lhe ordenar, e em tudo que for do agrado de Vossa Mercê me achará sempre com a mais pronta vontade; a denominação da Vila há de ser de Nossa Senhora da Piedade. Deus guarde a Vossa Mercê muitos anos. – Vila de Nossa Senhora do Carmo, 6 de fevereiro de 1715 (Revista do APM, Ano II, Fascículo 1, p.90). Apesar do registro de elevação da vila, informações sobre os primeiros anos da ocupação de Pitangui são bastante escassos. Vagner da Silva Cunha (2009) sugere que essa falta de informações documentais seja decorrente do fato de que os primeiros exploradores da área buscaram manter em segredo a descoberta de minas auríferas. Isto porque a notícia atrairia não somente a atenção da Coroa, que viria cobrar seus impostos, como de forasteiros. Além disso, o “Regimento das Minas, re-elaborado e teoricamente em vigor desde o ano de 1702, não chegou a ser respeitado em Pitangui, não havendo divisão das datas minerais e nem a designação de Guarda-mor, prevalecendo a lei do mais forte” (CUNHA, 2009, p.63). Esta observação reintegra a escassez de documentos para esta região neste período o que dificulta o aprofundamento da história de Pitangui nos seus anos iniciais. Por outro lado, parece-nos que as primeiras minas descobertas não atenderam as expectativas dos moradores, obrigando, de certa forma, que esses sujeitos buscassem outras formas de sobrevivência. Um exemplo da diversidade de atividades econômicas desempenhadas por um morador, fica explicita no pedido de sesmaria do Capitão Antônio Rodrigues Velho41: 40 DINIZ, 1965; DINIZ, 1966; SOARES, 1972. 62 Faço saber aos que esta minha carta de sesmaria virem que tendo respeito ao que por sua petição me enviou a dizer o Capitão Antônio Rodrigues Velho morador no Pitangui que ele tem povoado e cultivado há anos uma fazenda de gados, no sertão do Rio São Francisco no riacho chamado Bambuí, que parte da banda Leste com Domingos Rodrigues Neves e do Norte com o Rio São Francisco, e do oeste e sul com sertões ainda por cultivar e porque queria acrescentar a dita fazenda de que resultava grande aumento aos reais Dízimos a possuía com justo título para viver livre de contendas e com quitação [grifo meu] (RAPM, 1912, p. 850). O documento acima é datado de 1737, contudo, é mencionado que o Capitão Antônio “tem povoado e cultivado há anos uma fazenda de gados”, ou seja, associado a mineração a atividade pecuária já estava presente na Vila de Pitangui desde seus anos iniciais. Interessante ainda é confrontar esse pedido de sesmaria com o de José Campos Bicudo, sogro do Capitão Antônio, datada de 1715, onde se menciona os limites das fazendas. (...) hei por bem de fazer mercê ao suplicante em nome de Sua Majestade de quatro léguas de terra em quadra de sesmaria, que principiam da Lagoa dos Patos junto do Rio do Pará verdadeiro até chegar ao Rio Indaiá, a qual fica rio acima da outra banda do Rio de Pitangui, fazendo frente com a sesmaria que pediu Antônio Rodrigues Velho, compreendendo também a parte de campo que fica da mesma banda do rio até se inteirar das ditas quatro léguas em quadro [grifo meu] (APM, SC. Livros da Secretaria de Governo – códice 9.165). Podemos perceber que o Capitão Antônio utilizava o terreno mesmo sem ter a concessão oficial da sesmaria, que só receberia em 1737. Além disso, Diniz (1965) informa que ambos os senhores acima mencionados povoaram fazendas e mantiveram grandes empresas de mineração na região e ainda atuaram no cargo de Juiz Ordinário. E é nesta perspectiva, de aliar a mineração a outras atividades que a Vila de Pitangui se desenvolve e posteriormente se transformará num dos principais centros abastecedores da Capitania. Analisar esses dois documentos nos permite perceber que a atividade agropecuária já fazia parte da vida desses primeiros moradores de Pitangui. Andrade demonstra que foi concedida “aos exploradores do sertão de Pitangui, sesmarias maiores, cuja extensão era de até três léguas em quadra, para currais de gado” (ANDRADE, 2008, p.220). Há ainda a solicitação de Dom Lourenço de Almeida, governador da Capitania, para que se abrisse um caminho para Pitangui a fim de que chegasse a Vila Rica maiores quantidades de gados e de 41 Antônio Rodrigues Velho é conhecido em Pitangui como o Velho da Taipa. Em 1705 casou-se, em Itu, com Margarida de Campos, filha de José de Campos Bicudo. Coloca-se, juntamente com seu sogro, entre os descobridores da região pitanguiense. Residiu na Vila até sua morte em 1765. Serviu o cargo de Juiz Ordinário diversas vezes. (DINIZ, 1965, p.75). 63 mantimentos vindos daquela região42. Com isso percebemos a importância econômica que a criação de gado teve para a região, sendo reconhecida inclusive pela administração colonial. José Joaquim Rocha, autor de várias memórias sobre a Capitania de Minas Gerais, descreve a Vila de Pitangui mencionando aspectos geográficos e econômicos da região: “em terreno bastante fértil de peixe, caça, gados e tudo o mais que se necessita para o sustento da vila. Na vizinhança desta, tem muitas fazendas de gado vacum, que não só fornecem de carne a mesma Vila, mas ainda as mais da Capitania e suas povoações” (ROCHA, 1995, p.117). Outros autores também demonstram o quanto a região foi responsável pelo abastecimento da capitania de Minas Gerais. Ao descreverem características do solo e relevo, cuja formação calcária e localização em uma vasta planície de cerrados, recortada por córregos, demonstram que essas especificidades tornavam as terras da região férteis e favoráveis para a criação de gado e o cultivo de variados gêneros, sobretudo grãos e cereais43. Sabemos que a produção que saía da Vila de Pitangui circulava pela Capitania passando por diferentes regiões. Qualquer que fosse o trajeto os comerciantes passavam por postos fiscais, instalados pela Coroa com intuito de impedir o contrabando de metais preciosos, ao mesmo tempo em que gerava fundos para a administração portuguesa com a cobrança de impostos sobre as mercadorias transportadas. Esses postos conhecidos como registros de passagem, foram estudados por Cláudia Chaves (1999). A autora apresenta os registros da capitania de Minas no século XVIII, as mercadorias registradas e os comerciantes que por eles passavam. Destacamos as informações referentes a um dos postos pertencentes à comarca do Rio das Velhas, o posto de Pitangui. Constam nos registros que os principais produtos que saíam desta vila eram o gado vacum, peixe fresco e seco, carne seca, potros e cavalos, sal, couro, açúcar, fumo e sabão. Com base na documentação disponível sobre as fazendas de Dona Joaquina do Pompéu, infere-se que em suas propriedades estes itens citados eram produzidos, confirmando a contribuição que a matriarca tem para o abastecimento mineiro no final do século XVIII e início do século XIX. Nos livros do registro de Pitangui, referentes aos anos de 1765 a 1767, imediatamente após o casamento de Dona Joaquina, já consta a passagem da produção de sua fazenda. Os registros estão em nome de seu marido, Capitão Inácio de Oliveira Campos, e demonstram um considerável volume de mercadorias saindo da região de Pitangui destinado ao abastecimento de outras partes da capitania. Neste período, o Capitão Inácio não aparece nos registros como um dos grandes comerciantes, contudo, no período seguinte (1768-69) sua 42 43 APM. SC. 20.l37. RIBEIRO; GUIMARÃES, 1956. ESCHWEGE, 1979. VASCONCELOS, 1994. 64 atuação o coloca como segundo maior produtor, ao lado de Manoel Gomes da Cruz. Este, por sinal, amigo da família e parceiro de grandes negócios com Dona Joaquina, como comprova ampla correspondência comercial entre eles44. Além disto, foi de Manoel Gomes da Cruz, que o capitão Inácio e a matriarca compraram a fazenda do Pompéu. Entre 1757 a 1767, Manoel Gomes da Cruz aparece como sendo o principal movimentador do registro: “Manoel Gomes da Cruz movimentou, apenas com o gado, 45,7% do total da arrecadação do posto no período e 65,5% do total de impostos sobre o gado vacum, somando 691 cabeças, transportadas de sua fazenda em Pompéu” [grifo meu] (CHAVES, 1999, p.121). Com isso percebe-se que a Fazenda do Pompéu, ao ser adquirida por Dona Joaquina e Capitão Inácio, já era produtiva, cabendo ao casal administrá-la. À produção desta fazenda somam-se às produções das outras propriedades do casal, e tem-se dimensão do que foi produzido e administrado pela matriarca. Ainda referente aos registros de 1768-69, a atuação conjunta do Capitão Inácio, que figura como segundo negociante da região, e de Manoel Gomes da Cruz, soma 72,29% do total arrecadado pelo posto da Vila de Pitangui. Cerca de 90% do total de impostos arrecadados sobre o gado vacum foram pagos por estes dois fazendeiros. De acordo com nossas análises entendemos que apesar da sociedade setecentista ter se constituído em torno da atividade mineradora quase exclusiva para a exportação, foi por meio da atividade agrícola e comercial que ela se consolidou. De acordo com Chaves “a atividade comercial em Minas estava intimamente ligada ao setor produtivo, sobretudo o agropecuário” (CHAVES, 1999, p.163), e com o desenvolvimento da capitania e a estruturação do abastecimento interno surgem indivíduos que vão produzir e comercializar seus próprios produtos nas vilas e arraiais. Neste caso, percebe-se que o comércio e a atividade agrícola caminhavam lado a lado na economia mineira dos setecentos. Além disso, várias famílias que viviam da atividade rural estavam envolvidas, de alguma forma, com o comércio como fonte adicional de ganhos. Ou seja, a atividade comercial estava presente na vida dos mineiros como importante suporte econômico. Aqueles comerciantes atentos ao mercado tiveram a oportunidade de lucrarem consideravelmente com seus negócios. Era bastante comum, no período colonial, a utilização de cartas de crédito, recibos e notas promissórias para a movimentação da economia. E um dos serviços implementados pela Coroa que favoreceu enormemente os comerciantes, foi a instalação do serviço de correio em 44 Na documentação disponível no APM – FJBP. CX.01, dos 47 documentos datados entre 1775 a 1824, 16 são cartas trocadas entre Inácio e Joaquina com Manoel Gomes da Cruz. 65 meados da segunda metade do século XVIII. Isto porque a informação e os negócios passaram a caminhar juntos. Para Júnia Furtado “Além de facilitar os negócios, as cartas faziam parte de um conjunto de códigos escritos em que saberes e poderes eram intercambiados e se reproduziam de maneira informal” (FURTADO, 1999, p.119). As cartas que circulavam entre os comerciantes traziam informações de cunho pessoal, sobre os produtos mais procurados, os mais vendidos, os que estavam sem saída. Traziam também sugestões de novos produtos, informações sobre dívidas e pagamentos, notícias gerais sobre uma determinada vila ou arraial, ou ainda sobre a metrópole: As correspondências comerciais do século XVIII tinham, entre outras, importante função como vetor de informação. Com nenhum objetivo outro do que o de aperfeiçoar o sistema de trocas que abrangia espaços cada vez mais distanciados, os comerciantes procuravam criar um eficiente sistema privado de informações. (FURTADO, 1999, p. 167). A correspondência comercial auxiliou também o uso da escrita para o registro e pagamento de negócios, neste sentido é essencial compreender como ocorria o pagamento dos produtos adquiridos. Os estudos historiográficos sobre esta temática apresentam duas possibilidades de análise, uma de que havia uma circulação intensa e contínua de moeda: o ouro; e outra que não havia esta circulação de moedas, mas sim de recibos e cartas de créditos. Neste caso, entende-se que esta oposição de análises é bastante complexa, já que existem indícios documentais da existência destas duas formas de movimentação da economia. Para o presente trabalho foi mais viável adotarmos a segunda vertente como forma de pagamento, já que a documentação consultada, em especial os recibos e notas promissórias de pagamento, indicam ter sido esta a modalidade de negócios praticada por Dona Joaquina. Furtado demonstra que a palavra escrita e o comércio caminharam lado a lado na América portuguesa sendo inclusive importante mecanismo de distinção social. A palavra escrita afirmava-se na condução dos negócios, como forma de permitir a troca de informações e compensar as distâncias, além de imprimir maior profissionalização à escrituração comercial. O domínio da palavra e de técnicas mais modernas de escrita era forma de notabilização dos negociantes, promovida em Portugal principalmente a partir da política pombalina. Palavra e comércio desenvolviam-se e completavam-se, um tornando o outro possível (FURTADO, 1999, p.131-132). Júnia Furtado (1999) e Cláudia Espírito Santo (2004) esclarecem que na capitania de Minas havia uma escassez de moeda corrente em função das restrições impostas pelas autoridades coloniais e pelas práticas sociais da época. Devido à proibição da circulação de 66 ouro em pó, criou-se “um sistema de empréstimos baseados em recibos e letras de crédito, a palavra escrita tornou-se muito importante” (FURTADO, 1999, p.107). Cláudia Espírito Santo ratifica a existência dos recibos passados em troca de produtos e empréstimos: (...) empenhavam sua palavra, escrita ou falada, como moeda para as transações comerciais cotidianas, e o não-cumprimento dela resultava em demandas judiciais. Sua aceitação como instrumento monetário estava respaldada nas crenças e valores da sociedade mineira setecentista, que concebia o empenho da palavra como forma de circulação monetária para a obtenção de crédito, na medida em que era uma promessa de pagamento fundamentada na confiança depositada no emitente. Portanto, em Minas Gerais é possível acompanhar o surgimento de uma “moeda” especial, aquela feita pela “palavra” (ESPIRITO SANTO, 2004, p.3). Ao analisar a elite escravista no Sul de Minas, em meados do século XIX, Marcos Ferreira Andrade (2008), também informa sobre a falta de moedas correntes e a recorrente presença dos títulos de dívidas ativas nos testamentos analisados. Diante desta informação, reforça-se a importância desempenhada por esta prática durante o século XVIII e até meados do século XIX. Como se constata nos documentos a seguir, as transações comerciais de compra e venda de escravos, mercadorias diversas e terras, tinham como cotação de preço as oitavas de ouro45. Não obstante, caso o comprador não dispusesse da quantia de imediato, era por meio do empenho de sua palavra que o negócio era realizado. O primeiro documento refere-se a uma dívida de Dona Joaquina, e o segundo é um recibo de pagamento: Devo que pagarei ao Sr. Manoel Cordeiro a quantia de cem oitavas de ouro procedidas de um escravo por nome Manoel Místico, que comprei a meu contento tanto em preço como em vontade, sem embargo de ter o vício de fujão. E, se vou fazer deste, em ano corrente no qual recebi cuja quantia pagarei a ele dito, ou a quem este me mostrar o recibo deste, há um ano, sem a isso por dívida alguma para clareza. Escrevi este que a meu rogo escreveu o Padre João Pereira Guimarães e o assinei em presença das testemunhas abaixo assinadas. Vila de Pitangui a 6 de setembro de 1798. [Assinado por] Joaquina Bernarda da Silva de Abreu Castelo Branco Como testemunha, que este fiz a sobredita o Padre. João Pereira Guimarães. Fui presente [Assinado por] José Francisco Valladares. Fui presente [Assinado por] Caetano José Alvez (APM. FJBP 1. Cx.01 – Doc.21). Recibo dado à Dona Joaquina por Manoel Cordeiro: Recebi da Senhora D. Joaquina da Silva de Abreu Castelo Branco, vinte e uma oitava e (ilegível) de ouro a saber sete oitavas e um fustão para meu mano Sebastião e outra sete e um fustão para meu mano José e outra sete e um fustão para eu do resto das casas e para sua clareza lhe passo este. 45 “Cada oitava correspondia em média a 1.500 reis (ou 15 tostões), mas as variações cambiais deste metal reduziam seu valor até a 1.200 reis” (CHAVES, 1999, p.38). 67 Vila de Pitangui 22 de outubro de 1797. [Assinado por] Manoel Cordeiro. (APM. FJBP 1. Cx.01 – Doc.19) O primeiro documento demonstra uma preocupação constatada na maior parte dos recibos emitidos por Dona Joaquina: a assinatura de testemunha a fim de legitimar o acordo. Sendo assim, corrobora-se a importância econômica da utilização de cartas de crédito, recibos e notas promissórias para a movimentação da economia colonial, já que com a proibição da circulação do ouro em pó em 172546 e a criação das Casas de Moeda47, houve grandes dificuldades para que os consumidores pudessem pagar aos comerciantes. A utilização do crédito na aquisição de produtos de primeira necessidade fez-se essencial. Para muitos as cartas de crédito eram a única forma de aquisição de produtos. Por outro lado, as cartas de crédito e títulos de dívidas adquiridos eram também um negócio lucrativo, já que um determinado indivíduo poderia comprar a dívida de outros e depois cobrar-lhe juros sobre o negócio. Consta nos documentos de Dona Joaquina do Pompéu que na época de sua morte ela possuía diversos títulos de dívidas de fazendeiros, estes acabaram sendo reclamados por seus herdeiros. Entendemos, diante dos objetivos propostos para este trabalho, que apesar da mineração ter sido durante todo o período colonial a principal atividade econômica em Minas, a agricultura, pecuária e comércio tiveram significativa participação na economia. Ainda que tímidas no início do século XVIII, estas atividades ganharam fôlego e reconhecimento na medida em que se mostraram essenciais para a sobrevivência das vilas e dos arraiais mineradores. Pode-se pensar também que, com o desenvolvimento da mineração e a dificuldade de se conseguir novas datas48, algumas pessoas perceberam no mercado do abastecimento a possibilidade de riqueza sem os riscos da atividade mineradora. Apesar das divergências historiográficas sobre a existência de um mercado voltado para o abastecimento interno e a possibilidade ou não de acumulação de capital por parte dos produtores e comerciantes, fica evidente diante das análises dos documentos de Dona Joaquina do Pompéu que a atividade agropecuária e comercial movimentou em Minas quantia significativa de 46 FURTADO, 1999, p.107; 121. “Local onde o ouro extraído das minas era recolhido, fundido e, após a dedução do quinto, reduzido a barras marcadas com o selo real, indicando seu peso, quilate e ano da fundição.” ROMEIRO, 2003, p.71. 48 “Designação da área de terra concedida pela Coroa Portuguesa a indivíduos dispostos a praticar a mineração. Segundo as Ordenações Filipinas, após a descoberta do veio, notificada ao provedor das minas, proceder-se-ia à demarcação (...). Segundo o Regimento do Superintendente Guardas-Mores e Oficias Deputados para as Minas de Ouro, inicialmente cabia ao superintendente distribuir as datas. Mais tarde, esse poder foi atribuído aos guardas-mores, cabendo aos ouvidores dirimir conflitos quanto à posse da terra.” (ROMEIRO, 2003, p.95-96) 47 68 riqueza. Essa grande movimentação econômica permitiu a acumulação de bens e o enriquecimento de produtores e comerciantes. 2.2. A fazendeira e comerciante Dona Joaquina do Pompéu Existem distintas narrativas sobre a atuação de Dona Joaquina a frente dos negócios da família, desde relatos biográficos de seus descentes, muitos dos quais ajudaram a construir a personagem “Dona Joaquina do Pompéu”, aos estudos acadêmicos que se apoiaram em um vasto acervo documental. Em todos eles um fato é unânime: Joaquina Bernarda da Silva de Abreu Castelo Branco assumiu integralmente a administração das propriedades da família a partir de 1795. No período anterior a esta data ela auxiliou seu marido Capitão Inácio de Oliveira Campos cuidando principalmente dos negócios na Vila de Pitangui e na Fazenda do Pompéu. Assim como informou Gilberto Freyre, ao mencionar que a matriarca foi dona de grandes fazendas e, com a doença do marido, o homem da casa. De acordo com a documentação disponível no APM sobre a matriarca, é datada de novembro de 1795 a primeira carta enviada para Dona Joaquina. A correspondência refere-se a “assuntos pessoais e negócios de gado” e foi enviada por Manoel Gomes da Cruz, antigo proprietário da Fazenda do Pompéu. A esta carta segue-se uma série de outras com a temática sempre voltada para “negócios de gado, lavras, cargas” e eventualmente assuntos pessoais. Há ainda recibos de pagamento, cobranças, doações. Podemos dizer que essa compilação de documentos reforça, em alguma medida, o quão efetiva foi a atuação de Dona Joaquina nos negócios após a doença de seu marido. Anteriormente já foram feitos apontamentos sobre alguns dos produtos comercializados na capitania de Minas. No entanto, faz-se necessário retomar esta abordagem para que seja possível discutir a produção específica da matriarca. Para compreender o abastecimento em Minas é importante identificar que tipos de produtos eram comercializados de forma geral, e destes quais eram comercializados por Joaquina do Pompéu. De acordo com Mafalda Zemella (1951)49, os gêneros alimentícios essenciais para a sobrevivência dos mineiros eram os cereais, a carne de boi ou peixe, o sal, açúcar, toucinho, cachaça e tabaco. Havia os produtos de uso doméstico e no trabalho, como utensílios de ferro, aço e madeira, pólvora, armas, ferramentas para a lavoura, arreios para animais; roupas e calçados, móveis e 49 Pioneiro nos estudos sobre o abastecimento de Minas Gerais no período colonial, o trabalho de Mafalda Zemella é de importância inegável. Contudo, devemos nos atentar que ao discutir a produção interna de gêneros a autora o faz tendo em vista apenas o contexto da crise da mineração. Na nossa pesquisa a presença constante de menções a Zemella deve-se ao fato de que sua exímia descrição dos produtos consumidos na Capitania referenda as informações contidas na documentação pesquisada, no que se refere ao consumo de gêneros alimentícios. 69 utensílios domésticos. Os artigos de luxo também se faziam presente nas vilas mineiras setecentistas, como louças, porcelanas e tapeçarias da Índia e da China; tecidos ingleses, vinhos e presuntos europeus50. No inventário e nos autos de partilha de Dona Joaquina consta que em suas propriedades eram criados principalmente o gado vacum ou de corte, mas havia também vacas leiteiras, cavalos, muares, porcos e galinhas. Cultivavam cana de açúcar, feijão, milho, arroz, café, mandioca, mamona, e diversas árvores frutíferas. E, a partir desses, produziam açúcar, rapadura, aguardente, fubá, farinha de mandioca, óleo de mamona, entre outros. Esses produtos eram utilizados tanto para o suprimento das necessidades internas das fazendas, quanto para serem vendidos nas vilas mineiras, principalmente na casa de comissão que a matriarca tinha na Vila de Pitangui. Levando em consideração apenas a Fazenda do Pompéu, sua descrição no inventário assusta devido às dimensões da propriedade, o que por outro lado evidencia a significativa produção da fazenda: Acharão os ditos louvados dentro destas divisas haverem terras de cultura em matos virgens trezentos e vinte alqueires de plantação de milho que sendo por eles vistos e examinados acharão valer a razão de oito mil réis cada um alqueire a quantia de dois contos quinhentos e setenta mil réis – 2:570$000. Acharão mais os ditos louvados haver em Capoeiras na mesma fazenda trezentos alqueires de planta que sendo por eles vistos e examinados acharão valer a razão de seis mil reis cada um alqueire a quantia de um conto e oitocentos mil reis – 1:800$000. Acharão mais as sobreditas louvados haverem os campos desta mencionada fazenda cinco mil e seiscentos alqueires que sendo por eles vistos e examinados acharão valer a razão de mil e duzentos reis cada um alqueire a quantia de seis contos setecentos e vinte mil reis – 6:720$000, que todas estas parcelas acima juntas pertencentes a esta fazenda fazem a total soma de onze contos e oitenta mil reis – 11:080$000 (...) (apud CAMPOS, 2003, p.161). Destacamos a criação de gado e a produção de seus derivados (carne, couro, leite, etc.) como sendo a principal atividade comercial de Dona Joaquina em suas fazendas51. A região do Alto São Francisco em que estão localizadas suas terras é próxima à capitania da Bahia, cujos currais abasteceram a região mineradora no início do século XVIII. Margeando o rio São Francisco as boiadas iam da Bahia em direção às vilas mineiras, encontrando na região mais próxima ao mencionado rio, local propício para a criação do gado. Associado a isso o 50 Sobre os produtos comercializados e produzidos na Capitania de Minas consultar: CHAVES, 1999; HOLANDA, 1957; MENEZES, 2000; SILVA, 2008; ZEMELLA, 1951; entre outros. 51 Nos arredores da Vila de Pitangui estavam as seguintes fazendas: Santa Rosa, Passagem, Mato Grosso, Quati, Chôro, Água Doce, Pompéu, Três Barras e Pari. Na Vila de Paracatu estavam: Cotovelo, Barra, Novilha Brava e Gado Bravo (IHP. FCMP. IJPB. Vol 2). 70 clima, relevo e vegetação da região são alguns dos fatores que ajudam a explicar o desenvolvimento da atividade pecuária na região do Alto São Francisco52. Fonte: Adaptado de, BARBOSA, J.M. Mapa Do Estado De Minas Gerais, Município De Pompéu. Belo Horizonte, 1939. Fundo Secretaria de Viação e Obras Públicas do APM. Colorido. 113 x 86cm. Figura 04 - Limites da propriedade Fazenda do Pompéu53 52 “Na segunda metade do século XVIII, o termo da Vila de Pitangui, na comarca do Rio das Velhas, transformou-se num importante pólo da pecuária regional no interior da Capitania, graças ao estímulo dado pelas autoridades através da concessão de cartas de sesmaria aos moradores interessados em estabelecer currais de gado naquela região” (SILVA, 2008, p.135). 53 A demarcação da Fazenda do Pompéu foi feita a partir da descrição dos limites geográficos da propriedade contidos na documentação pesquisada. 71 O Capitão Inácio, marido de Dona Joaquina, antes do casamento já possuía experiência na criação de gado devido influência de seu pai, Inácio Campos, e de seu avô materno, Antônio Rodrigues Velho. Um dado interessante sobre a entrada do casal na produção e comércio de carne, é que apenas um ano após o casamento o capitão é registrado no posto fiscal de Pitangui transportando gado. De acordo com Cláudia Chaves (1999), entre 1765 e 1767, Inácio passou cinco vezes pelo posto movimentando mais de 8% do valor total de impostos no registro neste período. E no período seguinte, entre 1768 e 1769, movimentou mais de 29% do valor total de impostos, sendo o segundo maior comerciante a passar pelo posto. Toda essa produção de gado saía da Fazenda Lavapés, primeira propriedade do casal, tendo como destino principal a Vila de Pitangui. A carne de boi era essencial na alimentação dos mineiros, podia ser consumida fresca, quando o animal era abatido na hora para venda nos açougues das vilas. Havia ainda o tipo salgada ou carne seca, própria para o transporte a longa distância. De acordo com Chaves, “além da carne, do sebo e do leite – utilizado entre outras coisas, para se fazer o queijo –, do gado se aproveitava ainda o couro” (CHAVES, 1999, p. 98). Este era amplamente utilizado na confecção de objetos diversos como chicotes, cintos, sapatos, sacolas, arreios, chapéus, selas, além de servirem também na mineração54. Quando Inácio e Dona Joaquina adquirem a Fazenda do Pompéu ampliam ainda mais o rebanho bovino, pois além dos animais que possuíam, compraram a fazenda com cerca de nove mil cabeças de gado vacum55. Retomando alguns apontamentos feitos na primeira parte deste capítulo, reforçamos que ao adquirirem a Fazenda do Pompéu, esta já era bastante produtiva conforme foi demonstrado pela análise dos registros de passagem. No libelo feito pelo filho e testamenteiro Capitão-mor Joaquim Antônio de Oliveira Campos, após a morte de Dona Joaquina, é mencionado mais de 45 mil cabeças de gado a serem repartidas entre os herdeiros. “(...) se repartirão entre os herdeiros 45.560 cabeças, entre gado de criar, bois de corte, de carro e ainda existe gado para se subpartilhar e ainda não se concluíram as entregas dos gados aos herdeiros” (IHP. FCMP. IJBP. Vol 2). A criação de gado da matriarca não estava restrita à sua propriedade do Pompéu. Nas terras da Vila de Paracatu do Príncipe, atual cidade de Paracatu, também havia uma imensa propriedade pertencente à Dona Joaquina. Em 1782, Capitão Inácio transfere para sua esposa 54 Para mineração em rios profundos, os cativos utilizavam uma ferramenta chamada pá de saco, confecciona em couro cru. Essa ferramenta se compunha de uma bolsa, anel e pá de cabo comprido, normalmente de ferro. Com ela o escravo retirava cascalhos do leito até encher a canoa, depois esvaziada nas margens do rio; ver ROMEIRO, 2003, p.301. 55 CAMPOS, 2003, p.147; NORONHA, 2008, p.97; RIBEIRO; GUIMARAES, 1956, p.71. 72 a posse destas terras, herdadas dos pais, que abrangia um total de quatro fazendas56. Nestas havia cerca de oito mil cabeças de gado vacum avaliados em dois mil réis cada. Confrontando informações disponíveis sobre essas propriedades do casal em Paracatu, com a documentação dos registros de passagem levantadas por Chaves (1999), nos deparamos com uma informação valiosa. Nos registros do posto fiscal de Ribeirão da Areia – que fazia ligações com a Comarca do Rio das Mortes, com o rio São Francisco e com a região de Paracatu – aparece o nome de ‘Inácio O. Campos’ transportando carne seca. Chaves (1999) pondera não poder afirmar se este é o mesmo comerciante que aparece no registro de Pitangui ou se trata apenas de um homônimo. Contudo ela afirma que ele estava saindo de Pompéu. Ora, se este registro ligava a Comarca do Rio das Velhas, entre outras regiões, a Paracatu, podemos inferir que se tratava realmente do Capitão Inácio. Neste caso, ele estaria transportando carne seca da Fazenda do Pompéu para a Vila de Paracatu, onde também possuía propriedades. Da mesma forma, no retorno ele poderia trazer produtos de Paracatu para Pompéu e Pitangui. Entre os anos de 1785 a 1787, ele passa 5 vezes pelo registro, movimentando cerca de 3% sobre o valor total de impostos (10,5%) sobre o produto. Isto representa uma quantia significativa comparada aos outros produtores. Vale ressaltar, que a primeira vez que o Capitão passa pelo registro é apenas um ano após a compra e mudança da família para a Fazenda do Pompéu que se deu em 1784. E que antes disto, entre os anos de 1771 a 1779, foi designado pelo governador da capitania, Conde Valadares, para uma missão no interior do sertão a fim de capturar índios e negros fugidos57. Ou seja, podemos inferir duas coisas, primeiro: é absolutamente normal que depois de um longo período longe de suas propriedades, mesmo tendo sua esposa a frente de tudo, o Capitão precise visitá-las e certificar-se de que tudo corria bem. E, aproveitando a viagem levou um carregamento de carne seca. Segundo: ao invés de usar um intermediário para o transporte e comercialização dos seus produtos, preferiu ele mesmo transportar e providenciar a venda, já que possuía propriedades na região e conhecia muitas pessoas na Vila Paracatu. Por outro lado, talvez as diferentes atividades exercidas pelo Capitão Inácio não anulem uma a outra. Quer dizer, ele pode perfeitamente ter desempenhando essas diferentes funções de capitão, de negociante, de 56 APM. FJBP. Cx. 01. Doc. 01 – Certidão de posse de terras para requerimento de sesmaria solicitada por Inácio de Oliveira Campos. 57 De acordo com Diogo de Vasconcelos (1984), o governador mandou organizar bandeiras em Pitangui e Paracatu, sendo esta última, chefiada pelo Capitão Inácio de Oliveira Campos. As bandeiras se dirigiam aos territórios do Rio Negro e dos Dourados e, com excelentes resultados conseguiram descobrir importantes minas auríferas. 73 fazendeiro simultaneamente, já que no triênio analisado ele passa 5 vezes pelo registro, média de passagem semelhante a dos outros comerciantes. De qualquer forma, em meados de 1790, Dona Joaquina administrava, na presença ou ausência do marido, cerca de dez fazendas na região da Vila de Pitangui e na Vila de Paracatu do Príncipe. Cuidava ainda da comercialização dos produtos de suas fazendas. Segundo Deusdedit Ribeiro de Campos, “Dona Joaquina freqüentava, constantemente, Pitangui e ali possuía seguramente 3 [casas], uma de residência, outra onde vendia carne, o açougue, e uma terceira chamada de Comissão, em que vendia outros gêneros” (CAMPOS, 2003, p.95). Outro autor que informa sobre a existência da Casa de Comissão da matriarca é Silvio Gabriel Diniz, ao descrever a Vila de Pitangui: “(...) continuava a rua com a frente de cinco casas, medindo 19 braças e meia e 4 palmos, e, em seguida, vinha a Casa de Comissão, de Dona Joaquina do Pompéu, fronteira aos chãos da cruz...” (DINIZ, 1965, p.190). Em 1804, Dona Joaquina foi citada em uma Notificação para aferir as medidas de suas “balanças, pesos e medidas” 58. Segundo o documento era necessário que aferição fosse feita já que as balanças tinham sido acrescidas de novas partes, uma vez que as antigas haviam se deteriorado. Além disso, é informado que a matriarca nunca havia pagado as aferições anuais. Nas mais de 30 páginas do documento, entre outras coisas, são listados os principais produtos comercializados pela matriarca na Vila de Pitangui. A casa de Comissão vendia ao público não somente as “manufaturas de suas lavouras” como fubá, farinha, milho, feijão, arroz, cachaça, açúcar, rapadura, sabão, carne seca e toucinho, mas também gêneros importados, como queijos, fumo, sal, farinha de trigo, facas, vinho, entre outros. Ainda que as plantações de cana nos sertões das Minas Gerais não pudessem, nem de longe, serem comparadas aos imensos latifúndios de Pernambuco, por exemplo, seu cultivo era suficiente para prover as vilas com seus subprodutos. De acordo com Marcelo Magalhães Godoy havia uma série de elementos que diferenciavam a atividade açucareira para exportação e aquela feita em Minas para o consumo interno, como por exemplo: o tamanho média dos engenhos, a variedade de técnicas de cultivo, a ausência de especialização produtiva, a diversificada agenda agrícola e produção preferencialmente destinada ao autoconsumo e mercados locais são atributos que conferiam identidade ao espaço canavieiro mineiro e contrastavam com as características dos grandes espaços canavieiros exportadores do litoral59. 58 59 IHP. FCMP. Séc.XIX. Notificação. GODOY, 2007, p.20. 74 Interessante perceber que a produção do açúcar e de seus derivados tem uma importância fundamental nas Minas, e a sua coexistência com outras atividades agrícolas era perfeitamente natural. Miguel Costa Filho demonstra que a maioria das fazendas mineiras possuía roças variadas e lavras e aponta algumas especificidades da produção açucareira nas Minas: A maioria das fazendas estabelecidas em Minas Gerais possuía conjuntamente roças e lavras; eram essas fazendas, simultaneamente, de agricultura e mineração. Os mesmos escravos que mineravam também roçavam e plantavam no devido tempo. Podemos acrescentar, baseado em outros documentos, que fazendas havia em grande número ainda mais complexas, com plantações de feijão, milho e outros ‘mantimentos’, canaviais, engenho de cana, moinhos, de farinha, fubá, etc., gado e mineração. A essas fazendas que possuíam minas e lavouras ou criações chamamos fazendas mistas. Estabelecidas no século XVIII, desde que a extração do ouro no centro do Brasil provocou a formação de arraiais e povoados sem conta, essas fazendas caracterizaram a paisagem econômica de Minas, assinalando uma diferença nítida com a de outras regiões ou capitanias como as de Pernambuco e Bahia, com os seus engenhos de açúcar e, mais tarde, nos sertões, as suas fazendas de criação e os seus currais (...) (Costa Filho, 1963, p.160). Conforme foi dito anteriormente, derivados do cultivo da cana, a aguardente e a rapadura eram considerados produtos importantes no cotidiano das vilas e arraiais mineradores, já o açúcar era um produto de primeira necessidade na América portuguesa. É importante considerar que, para se produzir o açúcar e a aguardente, necessitava-se de engenho, mesmo que pequeno. E ter esta licença, bem como condições para construí-lo e custeá-lo implicava posição de relativo destaque sócio-econômico. No inventário de Dona Joaquina do Pompéu na descrição da Fazenda do Pompéu contam os seguintes equipamentos da roça: engenho de cana, engenho de serra “descobertado”, dois moinhos e quatro monjolos. O açúcar, “base da riqueza colonial” como dizia Gilberto Freyre (2006), foi produzido nas propriedades de Dona Joaquina e vendido em abundância em sua casa de Comissão. A rapadura e a aguardente eram produtos bastante apreciados pelos mineiros, Zemella afirma que “a aguardente era vital para os negros”, e completa que “a aguardente produzida nos arredores de Pitangui era apreciada em toda a capitania” (ZEMELLA, 1951, p.205). As aguardentes de cana, que se fazem nas vizinhanças de Pitangui são as mais nomeadas em todas as Minas e a de que usam a maior parte de seus povoadores. Igual singularidade tem o açúcar, fabricado nos mesmos engenhos e conduzido por vários negociantes que costumam vende-lo pelas Comarcas vizinhas (ROCHA, 1995, p.118). Nas fazendas de Dona Joaquina também produzia algodão, destinado para a confecção de roupas para seus escravos, além de peças de cama e mesa. Segundo nos informa Chaves 75 (1999), era bastante comum a cultura do algodão em Minas, já que seu cultivo era simples e sem a necessidade de cuidados excessivos. Em um documento, onde o filho testamenteiro de Dona Joaquina, Capitão Joaquim Antônio de Oliveira Campos, informa suas despesas com a administração dos bens da sua finada mãe, consta dados sobre a produção de algodão e tecidos do ano de 1826: “412 varas de pano de algodão que se fiaram das 30 arrobas de algodão não inventariado que se colheram no ano de 1826 (...). 468 varas de pano de algodão fiadas de 34 arrobas que tirei das 659 arrobas e meia de algodão já inventariado (...)” (IHP. FCMP. IJBP. Vol 2)60. Havia ainda a criação de muares, ou seja, as bestas de carga, responsáveis pelo transporte das mercadorias. Ter sua própria frota reduziria os custos com o transporte, permitindo a ela oferecer melhores preços, uma vez que, o custo do transporte em lombo de muar variava na casa dos 146 réis por tonelada/por quilômetro61. Além disso, os principais fornecedores desses animais eram provenientes do sul, o que acarretava a demora na chegada dos animais e, muitas vezes, estes chegavam em péssimas condições. Nas fazendas da Vila de Paracatu constam, segundo a “escritura de afastamento de sociedade e venda” entre Capitão Inácio e Dona Joaquina, 270 éguas de várias raças, 60 potros e 100 cavalos62. Nos documentos referentes às propriedades próximas a Vila de Pitangui, também observamos frequentemente menção a criação de gado cavalar e de carga. Um outro produto das fazendas da matriarca é o peixe. Este era, provavelmente, usado em abundância para o abastecimento da própria fazenda e também vendido no açougue, na forma fresca ou seco. O peixe seco do sertão, nome que aparecia nas listas de preços dos registros de passagem, foi descrito por Auguste de Saint-Hilaire, na sua obra Viagens pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais: Põe-se a secar ao sol o peixe do Rio S. Francisco, principalmente os surubis e os dourados. Comi desse peixe seco, e achei-o infinitamente superior ao bacalhau da Terra Nova, que é preferido, no entanto, no país, sem dúvida por que é por aí mais raro. O peixe seco do Rio S. Francisco exporta-se pelos arredores de Salgado e pra o interior da Província de Minas (SAINT-HILAIRE, 1975, p.340). De acordo com Chaves (1999), os peixes constituíam-se como um importante alimento do cardápio dos mineiros, ainda que fossem menos consumidos que as carnes de galinha, porco e carne seca. No Registro de Pitangui vários produtores, entre eles o capitão Inácio, 60 Para se ter ideia do volume dessa produção, uma vara corresponde a 1,10 metros; uma arroba equivale a 14,7 kg. (CHAVES, 2001, p.300). 61 ZEMELLA, 1951. 62 APM. FJBP 1. Cx. 01. Doc. 04. 76 pagavam pelo peixe seco que saía da região em direção as outras vilas. Além disto, nas descrições das terras de Dona Joaquina constata-se que a região era cercada por rios e riachos que deveriam ser abundantes em peixes, sendo uma das possíveis justificativas para a prática da comercialização e consumo deste alimento63. Produto que não faltava na alimentação dos mineiros era o milho. Segundo Sérgio Buarque de Holanda (1957), havia uma preferência geral dos homens brancos, de consumir o produto em grãos, já que o fubá (milho moído) era o principal ingrediente da alimentação dos cativos. Fosse assado em espigas, socado e cozido no leite (curau), do bagaço amassado e posto sob as cinzas do fogão (pamonha), a farinha de milho ou qualquer outra forma de consumo, o milho “nas minas, era o verdadeiro pão da terra” 64. O milho conquistou os mercados porque além de ser um produto bastante versátil em seu preparo, o transporte e armazenamento não eram dispendiosos. Segundo Holanda, “além de poder ser transportado a distâncias consideráveis, em grãos, que tomavam pouco espaço para o transporte, oferecia a vantagem de já começar a produzir cinco e seis meses ou menos depois da sementeira” (HOLANDA, 1957, p.222). Nas terras do Pompéu foram medidos 320 alqueires de milho plantado, quando da elaboração do inventário de Dona Joaquina. A plantação estava avaliada em 8$000 (oito mil reis) – cada alqueire, num total de 2:560$000 (dois contos quinhentos e sessenta mil reis). E mais uma vez o documento, citado anteriormente, sobre as despesas do testamenteiro no trato das propriedades da finada matriarca, informa sobre 96 alqueires de milho usados para o sustento da fábrica da Fazenda do Pompéu. Se esta quantidade de milho estava sendo enviada para o “sustento da fábrica”, e sabendo que no Pompéu haviam 2 moinhos e 4 monjolos, podemos inferir que estes 96 alqueires seriam processados e transformados provavelmente em fubá e farinha de milho. Produtos estes vendidos na Casa de Comissão de Dona Joaquina na Vila de Pitangui e em outras partes da capitania por meio de seus caixeiros. Dos produtos comercializados, mas não produzidos por Dona Joaquina temos um registro interessante presente em carta trocada com Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcelos: “(...) o seu Francisco nada quer de [cirurgiões]: Leva os dois barris de vinho, o chumbo sortido, tabaco e freios, conforme a sua ordem. Ele lhe dirá, que faltaram quatorze bois mortos, ou extraviados no caminho (...)” [grifo meu] (APM. FJBP 1. Cx. 01. Doc. 36). A correspondência foi enviada de Vila Rica e o remetente menciona ainda sua ida ao Rio de 63 64 ESCHEWEGE, 1979; ROCHA, 1995; SAINT-HILAIRE, 1975; VASCONCELOS, 1994. HOLANDA, 1957, p.215-225. 77 Janeiro. Podemos supor que muito provavelmente Diogo Vasconcelos era um dos comerciantes parceiros de Dona Joaquina na aquisição de produtos importados de outras localidades. O vinho e o chumbo certamente vindos da Europa deveriam ser negociados no Rio de Janeiro e depois enviados a Vila de Pitangui. Interessante perceber que apesar de sabermos que esses produtos eram comercializados na Casa de Comissão de Dona Joaquina, a importação não deveria ser freqüente, já que o produto não aparece entre os itens registrados no posto fiscal de Pitangui. Por outro lado, podemos pensar que estes produtos, em especial o vinho, eram consumidos apenas pela população mais abastada das principais vilas. Daí na necessidade de tê-los para venda, mas em quantidade bem inferior a cachaça, por exemplo, bebida muito consumida pela população mais pobre. Acreditamos que a produção das propriedades de Dona Joaquina era tão variada, porque além de produzir para a subsistência de cada fazenda, ela precisava ter uma variedade de produtos que suprisse a necessidade do mercado das vilas mineradoras. O arroz, feijão, frutas, legumes e etc., ainda que produzidos em menor escala eram também vendidos na casa de Comissão. Muitos desses produtos não apareciam nos registros de passagem porque eram cultivados e produzidos para atender especificamente aquela região e por isso não precisavam se deslocar passando pelos postos. Por outro lado, inferimos que ao passar pelo registro, um determinado produto estava indo para uma região onde ele não era produzido ou era produzido em quantidade insuficiente para atender a demanda, como é o caso do gado vacum. E é justamente neste caso, de se tratar de um produto específico, que Dona Joaquina garantiu sua fama para além das fronteiras da Capitania de Minas Gerais. Foi a imensa criação de gado e o lucro obtido de sua venda, que proporcionou a matriarca a oportunidade de ampliar a fortuna da família. Se antes de adquirir a produtiva Fazenda do Pompéu o casal já aparecia entre os grandes comerciantes que passavam pelo registro de Pitangui, após a compra da fazenda muito provavelmente se tornaram os maiores produtores e comerciantes de gado da região65. Dona Joaquina fazia parte de um grupo de comerciantes que produzia, transportava e vendia suas próprias mercadorias, além de comercializar produtos importados, como o caso do vinho. Podemos dizer que ela se tornou uma “proprietária de terras/tropeira”66, ou seja, 65 Não foram localizados os livros de registro de passagem para a Vila de Pitangui no período posterior a 1769. A expressão “tropeiro/proprietário de terra” foi utilizada por Alcir Lenharo (1979), para caracterizar os tropeiros/comerciantes que a partir do sucesso de suas vendas passam a adquirir terras e começam a cultivar os produtos que eles mesmos venderão. Neste trabalho tomo de empréstimo a expressão para caracterizar uma 66 78 produzia e comercializava sem intermediários. Isso ocorria porque a matriarca contava com tropas próprias especializadas em transportar mercadorias e vendê-los nas vilas e arraiais. Cláudia Chaves aponta que os fazendeiros passaram cada vez mais a transportar e comercializar os seus produtos no mercado local com suas próprias tropas, criando uma relação mais direta com a população mineradora. A existência das tropas de muar no interior dos domínios rurais dificultou, por sua vez, a atuação dos atravessadores, tornando direta a relação entre produtor e consumidor (CHAVES, 1999, p.66). Temos neste ponto que chamar atenção para duas reflexões: primeiro, as fontes nos mostram a presença de funcionários nos serviços de transporte e venda dos produtos das fazendas de Dona Joaquina: “(...) e vendem por seus caixeiros em casas de Comissão nesta Vila (...)”; “(...) fiz apartar treze [reses], que entreguei ao ajudante Bento Joaquim, e que o Cunha não quis comprar (...)”; “(...) o seu escravo, condutor da boiada que há pouco saiu (...), ele leva seu crédito (...)” [grifos meu] 67 . Esses funcionários, caixeiros e boiadeiros, são de vital importância para o funcionamento do mercado do abastecimento, pois são eles que se deslocam nos caminhos tortuosos da Capitania vendendo os produtos e retornando às fazendas de origem trazendo os pagamentos recebidos. Sua atuação coibia a ação dos atravessadores, pois, muitas vezes, eram eles mesmos que se ocupavam das vendas. Isso garantia a aproximação entre o produtor e o consumidor, contribuindo para prática de preços melhores e o conseqüente aumento do lucro do produtor. Além disso, possuir suas próprias tropas permitia a matriarca vender diferentes tipos de produtos, já que juntamente com uma boiada, ela poderia enviar uma série de outros produtos para serem comercializados. Segundo: ainda que tenha funcionários trabalhando nos comboios, inferimos que Dona Joaquina, por vezes, se aventurava nas tropas, conforme demonstra um documento de solicitação de porte de arma de fogo68. A solicitante informa que “sendo preciso tratar de seus negócios por várias partes desta Capitania e Sertões dela infestados de assassinos, é obrigada a trazer pistolas e outras armas para sua defesa tão somente” (APM. FJBP 1. Cx.01 – Doc.23). Fica evidente neste excerto a efetiva atuação da matriarca na condução dos negócios da família, não só nos arredores da Vila, mas em diferentes partes da Capitania. E nessa discussão sobre a comercialização da produção, não podemos esquecer de mencionar uma questão bastante complexa durante o período colonial: a cobrança de proprietária de terras que passa a comercializar sua produção diretamente com os consumidores finais, sem o auxílio de atravessadores. 67 APM. FJBP 1. Cx. 01. 68 Documento citado integralmente no capítulo 1, p.47. 79 impostos. De acordo com Cláudia (1999) os impostos passaram a ser uma das principais fontes de arrecadação para a administração da capitania. Apesar de existirem uma série de leis e decretos que ditavam normas sobre a cobrança, a administração colonial tinha grandes dificuldades para controlar a atividade comercial. As Câmaras Municipais impunham uma série de exigências a serem cumpridas pelos comerciantes, entre elas: tabelamento de preços, proibição de venda nas ruas sem licença, proibição de venda fora das vilas, padronização de pesos e medidas. Apesar da existência dessa legislação sobre os produtos comercializados, “não havia, pois, critérios preestabelecidos para a cobrança de impostos. Toda a arbitrariedade cometida contra a população mineira provinha de uma instância superior e inatingível: a Coroa Portuguesa” (CHAVES, 1999, p.79). Para driblar os excessos de algumas cobranças os produtores/comerciantes chegavam a boicotar determinados mercados a fim de não pagarem impostos sobre as mercadorias e obter melhores preços nas negociações. Outra forma encontrada pelos comerciantes para transpor as imposições portuguesas era a retenção das mercadorias a fim de provocar um aumento de preços. Era comum que os produtores estocassem sua produção, nas próprias fazendas e sítios, até que os preços tivessem uma melhora. Ou que os donos de estabelecimentos comerciais também estocassem gêneros com o mesmo objetivo dos produtores. Segundo apresenta Flávio Marcus da Silva (2008), em 1723 os roceiros foram acusados de estocarem milho nos arredores de Vila Rica. Percebendo a falta de um produto tão essencial na alimentação, o então governador das Minas, D. Lourenço de Almeida mandou que os oficiais da Câmara, acompanhados por juízes ordinários, fossem a todos os paiois e depósitos nos arredores de Vila Rica em busca de milho estocado. Caso fossem encontrados estoques desse produto, estes deveriam ser levados a Vila onde seriam vendidos69. Ao que parece, a matriarca do Pompéu também usou destes artifícios não só para conseguir melhores preços de venda, mas para diminuir os altos impostos cobrados sobre as mercadorias. Em 1804, a Vila de Pitangui passou por um período de crise e fome devido a ocorrência da peste das bexigas70, que atacou os moradores de tal forma que houve um temor 69 SILVA, 2008, p.115-116. A varíola, conhecida popularmente como doença da bexiga, é transmitida pelo vírus Poxvirus variolae. Seu contágio se dá de forma direta, pelo suor, espirro, enfim, as secreções de um doente podem causar o contágio em outra pessoa que não esteja imunizada por vacinas. Como não havia nenhum tratamento específico para este mal, a solução encontrada era manter o doente afastado dos demais membros sadios a fim de evitar o contágio. Isto quase nunca era conseguido devido às condições de vida da população que eram muito precárias. Desta forma, a varíola encontrava um excelente campo para se disseminar. 70 80 generalizado em toda a vila. Na mesma proporção que a doença se disseminava, diminuíam os mantimentos disponíveis para a população e a fome se alastrava pelas famílias. Nesta época, Dona Joaquina já residia na Fazenda do Pompéu e sua família não foi diretamente atingida pela peste. Mas ocorreu uma divergência política entre ela e o administrador de Aferição do Conselho, que algum tempo antes havia proibido a baldeação de suas tropas de mantimentos, por ela não querer pagar impostos tão altos sobre os produtos comercializados. A matriarca, indignada com a postura do administrador e afirmando que as elevadas taxas eram “um capricho do mesmo”, deixou de enviar os mantimentos para a Vila de Pitangui. A briga foi encaminhada para a justiça da Bahia, mas resolvida de forma mais pessoal, por meio de um pedido do Desembargador, Ouvidor Geral e Corregedor da Comarca de Sabará, Pereira da Cunha, importante político da época: A suspensão da tropa era um capricho do administrador, Senhora Dona Joaquina, que eu não me persuado de que semelhante capricho possa decidir Vossa Mercê a tomar uma semelhante vingança, contra as leis divinas e os próprios sentimentos de humanidade e beneficência, que acompanham a uma Senhora de sua qualidade e merecimento. Estou, por isso entre Vossa Mercê, assim para acudir a humanidade oprimida pela fome e remir o vexame do povo, como por me fazer, parar as necessárias providências para que continue a baldeação, deixando me muito obrigado, pois receberei como próprio este favor. Espero que este meu pedido tenha todo rigor e aceitação e que Vossa Mercê, dando esta prova de generosidade, aceite os votos de meu agradecimento e pronta vontade para tudo quanto for de seu serviço. E, Deus o guarde a Vossa Mercê por muitos anos. [Assinado por Pereira da Cunha, futuro Marques de Inhambupe] (in: RIBEIRO; GUIMARÃES, 1956, p.61; CAMPOS, 2003, p.157). Esta pendência entre Dona Joaquina e o administrador da Aferição, pode estar ligada a um outro processo, já citado aqui71, quando ela foi notificada a aferir as balanças de sua Casa de Comissão. No processo consta ainda que a matriarca não pagava os impostos devidos, ora sabemos que havia uma série de imposições a serem cumpridas pelos comerciantes ao abrirem suas casas de comissão, se Dona Joaquina não os estava pagando, nada mais justo do que ser notificada. Contudo, as relações envolvendo a elite colonial eram muito mais complexas e iam além do cumprimento da lei. Jogos de poder, influência política, pedido e concessão de favores eram os caminhos mais fáceis para a resolução de determinados problemas. E foi exatamente isso que ocorreu, devido ao tamanho prestígio de Dona Joaquina e sua família, o próprio Ouvidor pediu a ela que retomasse o fornecimento de gêneros para Pitangui. Discutimos nesse capítulo, entre outras coisas, sobre a ocupação dos sertões mineiros numa região conhecida como Alto São Francisco. Percebemos que esta região privilegiada por sua geografia, muitos rios e riachos, e sua terra fértil se despontou ao descobrir suas 71 IHP. FCMP. Séc.XIX. Notificação. 81 potencialidades para o desenvolvimento da pecuária e agricultura. Se no início dos setecentos a recém-fundada Vila de Pitangui lançava toda sua energia para a mineração, ao longo do século novas possibilidades econômicas vão surgindo. Os negócios ligados à produção e comercialização, principalmente, de gêneros alimentícios ganham destaque e proporcionam o desenvolvimento de muitas famílias da região. A família de Dona Joaquina do Pompéu é um desses exemplos. A criação de gado, a produção de víveres e a comercialização contribuem para o enriquecimento da família. Somente as propriedades de Pitangui, somam 9 fazendas cada uma valendo entre 11 e 18 mil contos de reis, e todas unidas medindo “de 18 a 20 léguas de comprimento, e de 8 a 10 léguas de largura”. Além das terras, propriamente ditas, há o gado vacum e cavalar, os escravos, as plantações, os imóveis em Pitangui, barras de ouro, móveis, utensílios de ouro e prata, louças importadas e mais uma infinidade de itens que demonstram o quão valiosa foi a fortuna deixada por Dona Joaquina. O complexo e interminável inventário é recheado de anexos onde os ditos herdeiros contestavam os bens de direito uns dos outros; informavam o recebimento ou não de uma parcela da herança; contestavam a descrição e o valor dos bens inventariados; contestavam a legalidade do inventariante. Satisfeitos ou não o inventário foi concluído por volta de 1837. Contudo, ainda encontramos, cem anos depois, um processo movido na justiça de Pitangui para a divisão das terras do “Pompéu Velho” entre os herdeiros dos herdeiros. Dona Joaquina do Pompéu nos 60 anos entre seu casamento em 1764 e seu falecimento em 1824, atuou, assim como tantas outras mulheres na América portuguesa, como mãe, esposa, devota e trabalhadora. Com a ajuda ou não do marido e dos filhos ela cuidou da manutenção e ampliação da fortuna da família, contribuindo ainda para o fortalecimento do poder político e econômico daqueles que faziam parte da grande família do Pompéu. E é justamente sobre a organização dessa família e suas alianças que representavam poder e influência que trataremos no próximo capítulo. 82 CAPÍTULO 3. Família, elite e poder: a trajetória do núcleo familiar de Dona Joaquina do Pompéu 83 (...) a definição do poder não pode ser separada da organização de um campo onde agem forças instáveis e que estão sempre sendo reclassificadas. Novamente, o poder (ou certas formas de poder) é a recompensa daqueles que sabem explorar os recursos de uma situação e tirar partido das ambigüidades e das tensões que caracterizam o jogo social. Giovanni Levi Escrever sobre Dona Joaquina do Pompéu, não é escrever apenas sobre um indivíduo, é escrever sobre uma família, é escrever sobre homens e mulheres. Impossível falar sobre o sujeito “Joaquina Bernarda da Silva de Abreu Castelo Branco”, ou melhor, “Dona Joaquina do Pompéu”, sem conhecer aqueles que antes dela começaram a construir o patrimônio que mais tarde ela administraria. É fundamental ficar claro que apesar dela estar no comando das ações que aqui estamos discutindo, outras pessoas auxiliaram, cooperaram, contribuíram de diversas maneiras para que ela se tornasse a Dona do Pompéu. A história dessa “digníssima senhora”, como os biógrafos gostam de chamá-la, só se tornou o que ela é hoje porque além das ações da própria matriarca, toda uma sociedade reconheceu, legitimou e lhe conferiu importância. Em Pitangui e em Pompéu principalmente, mas também em outras cidades da região do Alto São Francisco, ainda hoje, 188 anos após o seu falecimento o nome de Joaquina e de sua família ainda permanecem vivos na memória. Nessas cidades muitas figuras públicas chamam para si a descendência da matriarca, reiterando a força do poder dessa família ao longo dos séculos XVIII e XIX e até os dias atuais, ainda que com uma força bem menor. Para tentarmos entender a história da matriarca, ou pelo menos parte dela, precisamos pensar em toda a sua estrutura familiar. Não somente ela, o marido e os filhos são relevantes nesse estudo, mas lançamos também o nosso olhar para seus antepassados (pais, sogros, tios), pois estes são sujeitos ativos na construção dessa história. 3.1. A família de Dona Joaquina do Pompéu Carlos de Almeida Prado Bacellar (1997) ao discutir sobre as configurações familiares dos grandes proprietários do Oeste Paulista, demonstra que muitas vezes o casamento representa uma complexa estratégia de reprodução e preservação do status familiar. Dessa forma os arranjos matrimoniais podem ser entendidos também como “o ato de criação de um 84 novo empreendimento econômico, ou a retomada de um empreendimento econômico antigo, ou a entrada em uma comunidade econômica preexistente” (GOUBERT in BACELLAR, 1997, p.60). Um dado importante para se pensar o casamento refere-se a idade média dos nubentes, principalmente as mulheres, ao contraírem suas primeiras núpcias. Os viajantes estrangeiros que estiveram nas Minas Gerais em fins do século XVIII e ao longo de todo o século XIX, notaram com certa estranheza a precocidade com a qual as meninas se casavam72. “Casam-se cedo e logo se deformam pelos primeiros partos”, foi a impressão do Conde de Suzannet ao observar as famílias do interior (LEITE, 1984, p.43); “(...) aos dezoito anos, já matronas, atingiam a completa maturidade. Depois dos vinte decadência.” (LUCCOCK, 1942, p.112), constatava John Luccock. O núcleo familiar de Dona Joaquina, no interior das Minas Gerais, onde as mulheres se casaram com menos de 15 anos, está em conformidade com a perspectiva mais tradicional da ideia dos casamentos precoces. A própria matriarca casou-se aos 12 anos, enquanto seu marido já estava na casa dos trinta anos. Após o segundo ano de casamento veio a primeira filha, enquanto os outros seguiram ano após ano até completar os 10 filhos nascidos vivos. Entre as famílias analisadas por Bacellar (1997) no Oeste Paulista, os casamentos ocorridos entre parentes foram efetivos e ocorreram frequentemente entre os membros da elite. A opção por casamentos consanguíneos na América portuguesa, será a principal estratégia adotada pelas famílias para que diante da prole numerosa a fortuna da família não se fracionasse. Além disso, esse tipo de matrimônio garantia a hegemonia de uma determinada família sobre a região em que moravam e um maior enraizamento na sociedade local. Apesar de diversos autores73 se referirem a essas práticas matrimoniais, é importante deixar claro que nossas análises referem-se a um grupo familiar específico e que não pretendemos aqui criar um modelo. Contudo essas estratégias familiares, de casamentos precoces e preferencialmente consanguíneos, foram observadas no núcleo familiar de Dona Joaquina de Pompéu. Quando, em 9 de junho de 1715 foi erigida a Vila de Nossa Senhora da Piedade do Pitangui, muitas famílias já haviam se estabelecido nesta região desde o início do século, como é o caso das famílias Rodrigues Velho e Campos Bicudo. Estas duas famílias se uniram por meio de matrimônio e seus descendentes, ao longo do século XVIII e XIX, tornaram-se 72 AGASSIZ, 1975; EXPILLY , 1977; FREYRE, 2006; LEITE, 1984; LUCCOCK, 1942. Sobre as práticas matrimoniais no período colonial consultar: ALMEIDA, 2001; 2005; BACELLAR, 2007; FRAGOSO, 2001; 2005. 73 85 cada vez mais influentes nos assuntos da Vila. Retomemos a ordem das coisas a partir dos dados disponíveis na documentação do APM, do AHP e das obras de Leme (1903), Leme (1980), Diniz (1965), Ribeiro;Guimarães (1956) e Campos (2003). A família materna do Capitão Inácio de Oliveira Campos veio da ilha de São Miguel, Portugal. De sobrenome Bicudo, eles foram alguns dos responsáveis pelo povoamento do litoral da colônia recém-descoberta, na região da Capitania de São Vicente. Um dos descendentes desta família, morador da Vila de Itu, o português José Campos Bicudo se estabeleceu em Pitangui com a esposa Inês Monteiro, por volta de 1714 depois de receber a concessão de um pedido de sesmaria74. Naquelas terras dedicou-se a mineração, e também atuou como importante figura política, ocupando o cargo de Juiz Ordinário em 1720. A filha do casal, Margarida Campos casou-se em Itu com Antônio Rodrigues Velho, e posteriormente foram para a Vila de Pitangui. Antônio Rodrigues Velho ficou conhecido em Pitangui como Velho da Taipa. Sua atuação na atividade mineradora associada a ocupação de cargo público conferiu a ele grande destaque na região75. Segundo Gabriel da Silva Diniz (1965), ao lado de seu sogro José Campos Bicudos e outros paulistas, foi um dos descobridores das minas nesta região. Em Pitangui possuía significativo rebanho de gado vacum e diversas minas, mas apenas em 1737 solicitou carta de sesmaria das terras que já ocupava há anos76. Foi Capitão-mor da Vila e atuou como Juiz Ordinário em 1718, quando atendeu aos apelos do então governador Conde de Assumar, para que recebesse o Brigadeiro João Lobo de Macedo em Pitangui. Neste episódio foi considerado por Assumar como um dos homens “mais confiáveis e afeitos à ordem pública” 77. Do casamento de Antônio e Margarida nasceram dez filhos, destes destacaremos duas filhas, Gertrudes de Campos e Ana Margarida de Campos, que por meio dos enlaces matrimoniais foram ajudando a definir os contornos da família. É imprescindível ressaltar aqui, que estes casamentos são importantes mecanismos de fortalecimento e manutenção do poder da família. Isto porque foram agregados na mesma família uma série de sujeitos que desempenham importantes papéis na sociedade. Aqui, temos um vereador associando-se pelo matrimônio de sua filha com o juiz ordinário da Vila de Pitangui. Gertrudes casou-se com o Capitão-mor João Veloso de Carvalho. A filha do casal, Maria Teresa Joaquina de Campos casou-se com o Sargento-mor João Cordeiro Valadares 74 Carta de sesmaria José Campos Bicudo. APM, SC. Livros da Secretaria de Governo – códice 9:165. Antônio Rodrigues Velho atuou como juiz ordinário na Vila de Pitangui. 76 Carta sesmaria Antonio Rodrigues Velho. APM, SC. Livros da Secretaria de Governo – códice 9:166. 77 CUNHA, 2009, p.104. 75 86 natural de Sintra, Portugal. Deste casamento nasceram três filhos João Cordeiro Filho, Pedro Nolasco Cordeiro e Rita Maria de São José Cordeiro, esta contraiu matrimônio com o português José Fernandes de Valadares, capitão das ordenanças. De poder político bastante relevante na Vila essa família uniu-se aos Oliveira através do casamento de Ana Margarida com Inácio de Oliveira. Este último era natural da cidade da Bahia e possuía diversas fazendas de criação de gado. O casal teve, entre outros filhos, Inácio de Oliveira Campos, o Capitão-mor que em 1764 se casou com Dona Joaquina. Diferentemente do pai, Capitão Inácio atuou diretamente na vida política da Vila de Pitangui, dando continuidade na ocupação do cargo de Juiz Ordinário que já havia sido ocupado por seu avô e por seu bisavô. No quadro abaixo podemos observar a configuração inicial dessa família78. 78 A elaboração da árvore genealógica teve como fontes principais a documentação do APM, do AHP e a obras de Deusdedit P. Ribeiro de Campos (2003), Pedro Taques A.P.Leme (1980) e Luiz G.S.Leme (1903). Alguns indivíduos foram suprimidos devido a pouca relevância para o trabalho. 87 Isabel Bicudo Garcia Rodrigues Velho (Bisneto) Ana Maria Bicudo João Veloso de Carvalho (Capitão Mor) Antônio Rodrigues Velho (Velho da Taipa) Gertrudes Campos Margarida Campos Garcia Rodrigues Velho Antônio Rodrigues Velho José de Campos Monteiro Pedro Nolasco Cordeiro João Cordeiro Filho Rita Maria de São José Cordeiro Ana Margarida Campos Izabel Pires Monteiro Gonçalo Pires de Campos Maria Teresa Joaquina Campos João Cordeiro (Sargento Mor) Inês Monteiro José Campos Bicudo Inácio de Oliveira Josepha de Campos Inês de Campos Monteiro Margarida de Campos Antônio de Oliveira Campos Inácio de Oliveira Campos (Capitão Mor) (1734-1804) José Fernandes Valadares (Capitão) Joaquina Bernarda da Silva de Abreu Castelo Branco (1752-1824) Legenda Casamento Descendentes Homem Mulher Figura 05 – Árvore Genealógica Família Rodrigues Velho + Campos Bicudo + Oliveira 88 Ao buscarmos a origem da família de Dona Joaquina atravessamos o oceano rumo à metrópole. Naturais de Viseu, José Rabelo Castelo Branco e Isabel Maria Guedes Pinto casaram-se na província da Beira Alta. Um de seus filhos, Jorge de Abreu Castelo Branco, veio para a América portuguesa por volta de 1747, onde se casou com Jacinta Teresa da Silva, natural da Ilha do Faial, arquipélago dos Açores. Seus pais eram Gaspar José da Silva Sobral e Bernarda Maria da Conceição. Jorge e Jacinta tiveram ao todo nove filhos, entre eles Joaquina Bernanda da Silva de Abreu Castelo Branco79. O que é mais instigante nessas árvores genealógicas é que a partir delas podemos contemplar alguns elementos da complexa organização social portuguesa e que se reproduziu no sertão da colônia. Ou seja, uma tentativa da manutenção da unidade familiar em busca de apoio e favores. Com isso mantinha-se o domínio político e econômico concentrado nas mãos de uma única família. Ainda que atuassem em diferentes atividades o conjunto das fortunas das famílias permanecia sempre com eles por meio de alianças que se sucediam de geração em geração e se ramificavam por diferentes partes da América portuguesa. Nas gerações que viriam subseqüentes ao matrimônio de Dona Joaquina e Capitão Inácio, encontramos diversos casamentos entre parentes e percebemos que com isso há um fortalecimento do poder da família na região. O desenho dessa complexa rede familiar ilustra bem um dos aspectos mais importantes que pretendemos discutir, que consiste em investigar a configuração e articulação dessas alianças em torno da figura de Dona Joaquina do Pompéu. Vemos indícios de que existe uma relação direta entre a formação e consolidação do patrimônio material da matriarca e o fortalecimento e solidificação do poder, prestígio e influência de sua família na região da Vila de Pitangui. 79 Para maiores detalhes sobre a genealogia completa da Família de Dona Joaquina ver: CAMPOS, 2003; RIBEIRO, GUIMARÃES, 1956. 89 Isabel Maria Guedes Pinto José Rabelo Castelo Branco Jacinta Teresa da Silva Jorge de Abreu Castelo Branco Dr. Manoel Ferreira da Silva Eufrásia Maria da Silva Campos (ou Maria E.A.C.B) (S-DJP 01) (NR-DJP 01) Eufrásia Leonor G. S. S. A. Castelo Branco Ana de Abreu Castelo Branco José de Abreu Castelo Branco Bernarda Maria da Conceição Gaspar José da Silva Sobral Agostinho de Abreu Castelo Branco (GN-DJP 04) Joaquina Bernarda da Silva de Abreu Castelo Branco (1752-1824) Francisco Jorge A. Castelo Branco Floriana de Abreu Castelo Branco Domiciano de Abreu Castelo Branco Germano de Abreu Castelo Branco Legenda 1°Casamento Antônio Dias Teixeira (Capitão) Isabel Jacinta de Oliveira Campos (F-DJP 06) 2°Casamento Félix de Oliveira Campos (F-DJP 02) Casamento Inácio de Oliveira Campos (Capitão Mor) Descendentes F-DJP Filho(a) de Dona Joaquina do Pompéu GN-DJP Genro de Dona Joaquina do Pompéu 2°Casamento Antônio Álvares da Silva (Coronel)(GN-DJP 03) Jacinta Thereza da Silva de Abreu Castelo Branco (S-DJP 02) NR-DJP Nora de Dona Joaquina do Pompéu S-DJP Sobrinho(a) de Dona Joaquina do Pompéu Homem Mulher Figura 06 – Árvore Genealógica Família Castelo Branco + Silva Sobral 90 Refletindo sobre alguns apontamentos propostos por Bacellar (1997) sobre os arranjos matrimoniais dos troncos familiares do Oeste Paulista, percebemos semelhanças significativas na Vila de Pitangui. Segundo o autor os indivíduos classificados como chefes de domicílios pertencentes a uma mesma ascendência genealógica se concentrariam numa mesma área. Ou seja, “indivíduos primos entre si estariam residindo no mesmo local, ou muito próximos, tornando mais prováveis os casamentos consanguíneos” (BACELLAR, 1997, p.89). Ana Joaquina de Oliveira Campos, oitava filha de Dona Joaquina, casou-se com seu primo o Sargento-mor João Cordeiro Valadares. Sua irmã Antônia Jacinta de Oliveira Campos casou com o Capitão-mor Joaquim Cordeiro Valadares, também seu primo. Sendo que os dois eram irmãos. Já o filho caçula da matriarca, Joaquim Antônio de Oliveira Campos casou-se pela segunda vez com sua sobrinha Ana Cordeiro Campos, filha de sua irmã Ana Joaquina e do Sargento João Cordeiro. Isabel Jacinta de Oliveira Campos, casou-se com seu tio, irmão de Dona Joaquina, Agostinho de Abreu Castelo Branco. Após o falecimento do marido contraiu segundas núpcias com o Tenente Coronel Martinho Álvares da Silva. A filha do casal, Cloriana Umbelinda foi entregue em matrimônio ao irmão de sua mãe, o Capitãomor Félix de Oliveira Campos. Estes são alguns dos arranjos matrimoniais consanguíneos protagonizados pela família do Pompéu. Se estendermos mais a descrição desses casamentos, veríamos uma repetição nos casamentos entre primos, tios e sobrinhas. Mas, além da predominância desse tipo de casamento, observamos que os casamentos ocorridos fora da família restringiam-se a algumas famílias específicas, o que também foi percebido por Bacellar. Se, por um lado, os casamentos restritos ao âmbito de uma única vila não eram limitados às uniões entre primos, por outro notamos que eram apenas algumas determinadas famílias, que aparentadas ou não, que tinham seus filhos cedidos para matrimônio com determinadas outras. Isto, é, acima das necessidades de obtenção de cônjuges para seus filhos, pairavam obstáculos sérios, de ordem provavelmente econômica e política, que afastavam determinadas famílias do convívio diário, e, portanto, de uniões entre seus filhos (BACELLAR, 1997, p.89). Jorge de Oliveira Castelo Branco, quarto filho de Dona Joaquina casou-se com Antônia Maria de Jesus, filha de Antônio Álvares da Silva. Este casou mais dois filhos no Pompéu: o Tenente Coronel Martinho com Isabel Jacinta; e o Coronel Antônio Álvares da Silva com Joaquina de Oliveira Campos. O sétimo filho de Dona Joaquina, Tenente Inácio de Oliveira Campos casou-se com Bárbara Umbelinda de Sá e Castro, filha do Capitão Felipe de Cunha Sá e Castro e Maria do Carmo Ribeiro de Vasconcelos, esta era parente de Diogo Ribeiro de Vasconcelos, amigo e parceiro comercial da matriarca. 91 Inácio de Oliveira Campos (Capitão Mor) (1734-1804) Ana Jacinta de Oliveira Campos (F-DJP 01) Félix de Oliveira Campos (F-DJP 02) Joaquina Bernarda da Silva de Abreu Castelo Branco (1752-1824) Maria Joaquina de Oliveira Campos (F-DJP 03) Jorge de Oliveira Castelo Branco (F-DJP 04) Joaquina de Oliveira Campos (F-DJP 05) Isabel Jacinta de Oliveira Campos (F-DJP 06) Inácio de Oliveira Campos (F-DJP 07) Ana Joaquina de Oliveira Campos (F-DJP 08) Antônia Jacinta de Oliveira Campos (F-DJP 09) Joaquim Antônio de Oliveira Campos (F-DJP 10) Legenda Casamento Descendentes F-DJP Filho(a) de Dona Joaquina do Pompéu Homem Mulher Figura 07 – Árvore Genealógica Família Inácio de Oliveira Campos e Dona Joaquina do Pompéu 92 Inácio de Oliveira Campos (Capitão Mor) (1734-1804) Timóteo Gomes Valadares (GN-DJP 01) Joaquina Bernarda da Silva de Abreu Castelo Branco (1752-1824) 1ºCasamento Eufrásia Maria da Silva Campos (S-DJP 01) (NR-DJP 01) Antônio Álvares da Silva (Coronel) (GN-DJP 03) Joaquina de Oliveira Campos (F-DJP 05) Ana Jacinta de Oliveira Campos (F-DJP 01) Félix de Oliveira Campos (Capitão Mor) (F-DJP 02) Jorge de Oliveira Castelo Branco (F-DJP 04) Antônia Maria de Jesus (NR-DJP 02) Legenda 2ºCasamento Cloriana U. O. Castelo Branco (NT-DJP 01) (NR-DJP 05) Casamento Descendentes F-DJP Luiz Joaquim de Souza Machado (Capitão) (GN-DJP 02) Maria Joaquina de Oliveira Campos (F-DJP 03) Filho(a) de Dona Joaquina do Pompéu GN-DJP Genro de Dona Joaquina do Pompéu NR-DJP Nora de Dona Joaquina do Pompéu NT-DJP Neta de Dona Joaquina do Pompéu S-DJP Sobrinho(a) de Dona Joaquina do Pompéu Homem Mulher Figura 08 – Matrimônio dos filhos de Inácio de Oliveira Campos e Dona Joaquina do Pompéu (1ª parte) 93 Inácio de Oliveira Campos (Capitão Mor) (1734-1804) Agostinho de Abreu Castelo Branco (Capitão)(GN-DJP 04) Joaquina Bernarda da Silva de Abreu Castelo Branco (1752-1824) 1ºCasamento Claudina C. L. França (NR-DJP 04) Joaquim Antônio de Oliveira Campos (F-DJP 10) Isabel Jacinta de Oliveira Campos (F-DJP 06) Antônia Jacinta de Oliveira Campos (F-DJP 09) Martinho Álvares da Silva (Tenente-Coronel) (GN-DJP 04) Joaquim Cordeiro Valadares (Capitão Mor) (GN-DJP 06) Inácio de Oliveira Campos (F-DJP 07) Bárbara U. Sá e Castro (NR-DJP 03) 2ºCasamento Ana Cordeiro Campos (NT-DJP 02) (NR-DJP 06) Legenda Casamento Descendentes João Cordeiro Valadares (Sargento Mor) (GN-DJP 05) Ana Joaquina de Oliveira Campos (F-DJP 08) F-DJP Filho(a) de Dona Joaquina do Pompéu GN-DJP Genro de Dona Joaquina do Pompéu NR-DJP Nora de Dona Joaquina do Pompéu NT-DJP Neta de Dona Joaquina do Pompéu S-DJP Sobrinho(a) de Dona Joaquina do Pompéu Homem Mulher Figura 09 – Matrimônio dos filhos de Inácio de Oliveira Campos e Dona Joaquina do Pompéu (2ª parte) 94 Se pensarmos então nos casamentos dos 10 filhos de Dona Joaquina e Capitão Inácio observaremos o seguinte: 6 casamentos ocorreram com parentes consanguíneos (entre primos e tio e sobrinha); 3 ocorreram com parceiros comerciais, sendo que pertenciam a uma mesma família, os Álvares da Silva; 4 ocorreram entre famílias com as quais a matriarca mantinha relações comerciais. Foram ao todo 13 casamentos, tendo em vista que alguns dos filhos casaram-se uma segunda vez. Dos 6 genros, 3 ocuparam cargos na Câmara da Vila de Pitangui e todos possuíam patentes. Segundo Diniz (1965), foi recorrente a ocupação de cargos no Senado da Câmara da Vila de Pitangui por parentes de Dona Joaquina. O cargo de juiz ordinário foi ocupado de 1718 a 1720 por Antônio Rodrigues Velho, depois assumiu, por mais alguns anos, José Campos Bicudo. No período entre 1763 a 1765 foi Inácio de Oliveira Campos quem assumiu o cargo conforme o excerto a seguir: “Aos onze dias do mês de julho de mil setecentos e sessenta e três, nesta Vila de Nossa Senhora da Piedade de Pitangui, em casa de residência do Juiz Ordinário, o licenciado Inácio de Oliveira Campos (...)” (DINIZ, 1965, p.216). Nas duas primeiras décadas do século XIX, o cenário na Câmara da Vila não muda muito, continua sendo os parentes de Dona Joaquina a ocuparem os principais cargos camarários. Com estes matrimônios a família reforçou sua influência na região e cada indivíduo contribuiu para este fortalecimento. Diante disso é possível desenhar um circuito de alianças que perpassavam por diversos setores da sociedade e proporcionavam decisivamente a interferência dos membros dessa família nas decisões da Vila. A presença destes homens na Câmara, o fato da matriarca ser a principal responsável pela produção de alimentos comercializados em Pitangui e a presença de inúmeros parentes na atividade militar refletem uma organização familiar que com certeza seria bem sucedida na conquista de fortuna e poder. Essa cuidadosa seleção dos cônjuges pelos pais, pode ser vista como uma estratégia pensada para que ocorresse a estruturação de uma rede de relações familiares que estava relacionada às ligações de cunho comercial. O casamento dos filhos de famílias abastadas refletia então, a complexa ordem social do século XVIII e XIX. O patrimônio econômico, político e social que cada cônjuge trazia, havia sido herdado dos pais, e não poderia de maneira alguma ser dispersado, mas sim acrescido a outro. Dessa forma, afirma Bacellar, “um casamento poderia significar o reforço de uma aliança política ou econômica, ou mesmo a criação de uma nova aliança” (BACELLAR, 1997, p.91). O casamento nos domínios de Dona Joaquina do Pompéu fazia parte de um quadro mais amplo, em que se buscava a construção, manutenção e transmissão da fortuna. A lógica 95 da sociedade colonial não permitia que o sucesso de Dona Joaquina nos negócios fosse ligado apenas ao seu bom desempenho administrativo ou a um mercado favorável. Seu sucesso estava ligado também, ao seu bom relacionamento com comerciantes, produtores, autoridades políticas e administrativas. Nesse complexo emaranhado de relações, o parentesco era usado frequentemente como uma garantia extra para a boa conclusão dos negócios. Se por um lado os casamentos ocorriam voltados para o viés da união sanguínea. Por outro lado, as alianças economicamente vantajosas é que atraíam as famílias da elite ao unirem seus filhos. Contudo, a escolha dos cônjuges era balizada por um parâmetro fundamental: “o cônjuge selecionado deveria advir do meio socioeconômico semelhante ao de seus sogros. A endogamia social era, assim, critério essencial na escolha conjugal” (BACELLAR, 1997, p.98). 3.2. A formação de uma elite colonial na Vila de Pitangui e suas redes de poder A partir desses arranjos matrimoniais, apresentados anteriormente, o casamento de Dona Joaquina do Pompéu e Capitão Inácio representa, a nosso ver, o ponto mais alto do poder e influência da família. E, juntamente com seus filhos e filhas, genros e noras, irmãos e irmãs, sobrinhos e sobrinhas formam um grupo forte e aparentemente coeso. Por uma série de implicações conceituais não gostaríamos de chamá-los de nobreza da terra ou principais da terra80, acreditamos que podemos defini-los melhor se usarmos o termo elite. Não que este conceito seja menos problemático, no entanto consideramos que ele representa melhor o conjunto de características identificadas na família e no contexto analisado. Maria Fernanda Bicalho afirma que o conceito de nobreza da terra “ligava-se não apenas às qualidade inatas, como a ascendência familiar ou a pureza de sangue, ou à posição adquirida por via econômica ou política, como o ser senhor de terras e de escravos, e o ter acesso à câmara” (BICALHO, 2005b, p.30). Para a autora a constituição de uma nobreza da terra na América portuguesa estava ligada principalmente à conquista, povoamento e defesa da colônia. O uso dessa expressão está ligado ao aparecimento de um discurso genealógico, onde um grupo de homens que detinham poder, riqueza e influência, passou a reivindicar um diferencial ainda maior para o seu status social. O fato de serem descendentes dos primeiros conquistadores e/ou povoadores, por si só, atribuía a eles um caráter diferenciado dos demais membros da sociedade. E, por terem sido responsáveis pela ocupação da colônia, esses antepassados foram também aqueles que 80 Sobre o termo nobreza da terra ver: FRAGOSO, 2001; MELLO, 1997; MONTEIRO, CARDIM, CUNHA, 2005. 96 primeiro ocuparam os cargos régios na colônia, nomeados pelo próprio rei. Todo esse discurso visava legitimar um status social que garantisse a esses homens ricos privilégios. Porque segundo Nuno Monteiro “a nobreza não era apenas uma dignidade, mas uma dignidade à qual correspondiam privilégios” (MONTEIRO, 2005, p.5). Talvez o uso do termo nobreza da terra coubesse melhor na análise daqueles precursores da família, aqueles que primeiro chegaram a região e “dispunham suas vidas e fazendas em prol de uma causa que não era apenas sua ou dos grupos que representavam; tornando-se, enquanto vassalos do rei de Portugal, agentes da construção da soberania lusa no Atlântico Sul” (BICALHO, 2005a, p.79). Se, nos séculos XVI e XVII esses homens mais abastados passaram a reivindicar o estatuto de uma nobreza da terra, como demonstra Bicalho (2005a) ao analisar a obra de Evaldo Cabral de Mello, percebemos que os sujeitos pertencentes à família que estudamos, em fins do século XVIII e início do XIX, não tinham essa mesma preocupação. Isto porque a sua diferenciação social já estava tão legitimada na sociedade que todos já os consideravam um grupo superior aos demais. E aqui usamos a expressão superior no sentido de serem mais ricos, influentes e com isso terem atingindo um status social diferenciado. Só que é importante ressaltar que a conquista desse diferencial não aconteceu repentinamente, mas após anos de construção de todo um imaginário social. Sendo assim, reforçamos que usaremos o termo elite para nos referir a esse grupo familiar específico, ainda que conceituá-lo não seja uma tarefa das mais fáceis e sua utilização deva ser cercada de cuidados. Na América portuguesa as elites ganharão um sentido usual um pouco diferente do seu uso em Portugal, uma vez que existem certas particularidades na organização social e econômica da colônia. Estamos tratando de uma sociedade colonial que nada mais é do que um produto de relações mercantis e escravistas. Para Bicalho “podemos conceituá-las [as elites] a partir de um critério econômico, de acordo com o qual as elites coloniais seriam os segmentos que mais riquezas teriam acumulado. Certamente o acúmulo de riquezas é a garantia de status e poder na sociedade colonial” (BICALHO, 2005a, p.74). Antonio Manuel Hespanha (2005) ao discutir sobre novas perspectivas de análise para a história das elites, enumera pontos importantes para a reflexão do historiador. Como: a emergência de grupos antes esquecidos das análises; o fato de que as elites e suas formas de representação não podem ser reduzidas a um modelo único aplicável a todas as realidades; adaptar as análises a diferentes escalas de observação, uma vez que determinadas características do grupo só aparecem se analisadas em macro estruturas, ao mesmo tempo em que outros elementos são perceptíveis apenas se analisados numa esfera micro. E, por fim, pensar nas maneiras como as elites se relacionam na sociedade. Hespanha conclui que: 97 O que se pode dizer é que, considerando as coisas assim, todos, em algum sentido (em algum plano) são tendencialmente elites. E que, com isso, o conceito deixa de ser operativo. (...) ora, no caso do poder, a experiência de investigação já demonstrou que este alargamento do conceito, de modo a abarcar as suas múltiplas formas, só tem enriquecido a análise política, acrescentando-lhe dimensões e viabilizando aspectos até agora ocultos dos mecanismos de poder. É sensato esperar que o mesmo se passe no campo das elites. Mas, mais substancialmente, na verdade, em algum sentido, todos somos elites; porque todos temos algum grupo que nos reconhece, para o bem ou para o mal, como detentores de uma legitimidade para dirigir, em algum dos infindáveis planos da interação social” (HESPANHA, 2005, p.44). A análise de Hespanha (2005) é bastante relevante porque aponta aspectos importantes que devem ser levados em consideração nas análises historiográficas que pretendem estudar as elites. Parece-nos imprescindível na nossa pesquisa fugir de uma conceituação que de alguma forma torne o conceito imperativo. Não partimos do princípio de que todos são elites, ainda que possa haver alguma verdade nessa afirmação. Neste texto, entendemos por elites um grupo específico que detêm certo poder e que podem se apresentar como produto de uma seleção social ou intelectual. Dessa forma, o que chamamos de “elite” nada mais é do que os membros da família de Dona Joaquina do Pompéu, composta por três gerações antecessoras ao nascimento dela e do marido, e uma geração posterior. A escolha dessas gerações foi necessário primeiro para demonstrar que houve, ao longo da formação da família, a construção de um discurso de que eles constituíam um grupo superior ao restante da sociedade, daí o retorno às gerações iniciais. E segundo pelo fato de que acreditamos que o ponto alto do poder dessa família se vislumbrou na administração de Dona Joaquina, não sendo necessário nos estendermos por muitas gerações posteriores a ela. Mesmo porque, com o falecimento da matriarca percebemos uma tensão nas constantes brigas geradas em função da partilha de bens. A família começa a se desmembrar. Segundo Flávio M. Heinz tem sido usado frequentemente, nos estudos sobre a elite, a noção de um grupo específico que detêm certo poder, ou seja, “grupos de indivíduos que ocupam posições-chave em uma sociedade e que dispõem de poderes, de influência e de privilégios inacessíveis ao conjunto de seus membros” (HEINZ, 2006, p.8). Deve ficar claro que em nenhum momento pretendemos adotar impressões contemporâneas para conceituar e caracterizar o termo. O conceito foi incorporado justamente por caber dentro das condições sociais, políticas e econômicas de fins do século XVIII e início do século XIX. Nessa perspectiva podemos vislumbrar uma assimetria de poderes que atuam na construção dos lugares sociais que essas elites ocupam. E a hierarquização social como elemento definidor do 98 grupo que chamamos de elite, reflete e demonstra as estratégias usadas por eles para se reproduzirem ao longo dos anos. Ainda nesse sentido, Jose Antonio Maravall (1979) propõe uma definição de elites que se associa perfeitamente ao conceito de Heinz (2006). Para Maravall as elites constituem um fenômeno político de projeção social, ou seja, ela fornece diretamente agentes de ação política que atuam a seu favor. “Las elites: un conjunto de individuos enlazados que penetra en la esfera de toma de decisiones sobre la acción conjunta del grupo, esto es, en la esfera en donde de ejerce lo que en amplio sentido puede llamarse mando” (MARAVALL, 1979, p.156). As perspectivas conceituais propostas por Heinz (2006) e Maravall (1979) se mostraram as mais adequadas para as discussões e análises que propomos. Estamos tratando de um grupo de indivíduos ligados, por laços familiares, e que ocupam posições-chave nas esferas de decisões oficiais, e porque não dizer, nas extra-oficiais. Na região da Vila de Pitangui detêm poder, influência e privilégios, que outros grupos possuíam em menor escala ou não possuíam. Ou seja, a discussão é sobre a representação dessa elite, sob a perspectiva da família de Dona Joaquina do Pompéu, que foi ao longo do século XVIII e XIX ocupando e acumulando posições privilegiadas. Algumas considerações propostas por Maravall (1979) foram baseadas em experiências analisadas na Espanha do século XVII, contudo percebemos as mesmas características no grupo analisado em fins dos setecentos. As indicações do autor são extremamente elucidativas e só corroboram para nossa definição e caracterização da família de Dona Joaquina como um grupo pertencente à elite colonial. Destacaremos algumas características apresentadas por Maravall (1979). Primeiramente, a elite é um grupo minoritário, e apesar de seu caráter político não tem um caráter institucional. Enquanto grupo possui hierarquização própria e possibilidade de mobilidade em seu interior, além de permitir a entrada de novos membros. No entanto, prioriza um caráter duradouro e recorrente, e o indivíduo que mais se destaca e, em certo sentido, lidera o grupo, não é substituído aleatoriamente e a qualquer momento. Por outro lado, a elite não pode ser tida simplesmente como um grupo de pressão que atua por um ou outro interesse, ela projeta sua influência sobre uma ampla zona de aspectos da vida, mas que também é afetada. Outro aspecto importante da elite, segundo Maravall é, un sentimiento de superioridad política y social y hasta moral le da cohesión. No hay propriamente una élite sin la convicción (no necessariamente compartida por los demás) de que, para assumir la función de clase dirigente, posee los valores, los recursos de autoridad moral, y no sólo de fuerza material, el mérito de estar capacitada pra la intervención que reclama y ejerce. (MARAVALL, 1979, p. 162) 99 A percepção da coesão pelo grupo garante que eles se reconheçam e atuem voltados para um mesmo objetivo, determinando aquilo que de mais importante os une, seja o valor do herói da guerra, da riqueza material, etc. Ressaltamos que não entendemos o termo elite caracterizado apenas por posse de bens materiais, riqueza econômica, mas por um conjunto de posses materiais e imateriais. Destacamos ainda que os valores, os comportamentos, as formas de vida são outros elementos capazes de gerar um sentimento de pertencimento aos indivíduos que integram a elite. Esse sentimento é que permite que esse grupo minoritário se destaque, se afirme e reafirme sobre os outros, por meio da confluência de uma série de elementos como a posição social, riqueza, força militar e influência religiosa por exemplo. Mas, uma vez que o grupo se reconheça enquanto tal, para que sua influência se estabeleça em toda a sociedade, é imprescindível o reconhecimento público. Podemos pensar que este reconhecimento começa, muitas vezes, pela ocupação dos cargos administrativos e militares, associados ao recebimento de benefícios concedidos pelo rei que também significavam ascensão social. Nesta perspectiva, ser capitão-mor, ser governador, ser juiz ordinário é muito mais do que ocupar um cargo político, administrativo ou militar, significa confiança e reconhecimento do monarca. E, consequentemente, o reconhecimento da sociedade diante do caráter excepcionalmente distinto daquele sujeito. No entanto, a reprodução das hierarquias sociais portuguesas nos domínios imperiais não ocorre de maneira idêntica à metrópole. É perceptível que os modelos de comportamento das elites metropolitanas foram tomados como referência na formação e afirmação das elites americanas, embora com limitações. De acordo com Mafalda Soares da Cunha e Nuno Gonçalo Monteiro, em artigo sobre a hierarquia nobiliárquica portuguesa, “as elites sociais e institucionais do Brasil, estruturadas em hierarquias próprias fortemente diferenciadas no espaço, procuravam, apesar disso, aceder aos signos de distinção definidos pelo centro do império e alcançar as honras que de lá dimanava” (CUNHA; MONTEIRO, 2005, p.197). Se pensarmos no Brasil, e em especial nas Minas setecentistas, ainda que nos altos cargos encontremos nobres portugueses, os poderes locais são dominados, em grande parte, por uma elite formada a partir de famílias que não são mais tão próximas da nobreza metropolitana, salvo algumas exceções. Essa elite será formada por descendentes dos primeiros conquistadores, grandes proprietários de terras, e de negociantes com grandes cabedais, como é o caso da família de Dona Joaquina do Pompéu. Identificamos então que a partir da associação desses grupos, há o surgimento de uma elite plural que se espalha pelos territórios imperiais na América. Uma elite que não é mais formada pela primeira nobreza 100 portuguesa e que vai cada vez mais se afastando de suas origens genéticas, por assim dizer, mas que reforça sua identidade pelos laços de parentesco adquiridos dentro do espaço colonial. Retomando a discussão inicial, o desejo, ou melhor, a necessidade de fazer parte da câmara está diretamente ligada ao reconhecimento, à titulação do que a qualquer outro motivo. Na América portuguesa, ocupar cargos na administração camarária local significava status social, prestígio e poder. De acordo com Maria Fernanda Baptista Bicalho, se foram raros os naturais da colônia que se aproximaram do centro de decisão política da Coroa; se a obtenção de distinções superiores da monarquia foi praticamente vedada às elites coloniais; se a clivagem que no território peninsular se verificou entre as elites da corte e as das províncias foi acentuada não somente pela distância entre colônias e metrópole, mas principalmente pelo fato de serem colônias; se os governos das capitanias fugiram progressivamente ao alcance dos que se viam como conquistadores, restava-lhes a câmara como lugar e veículo de nobilitação, de obtenção de privilégios e, sobretudo, de negociação com o centro – com a Coroa – no desempenho do governo político do Império. (...) no ultramar, o acesso aos cargos camarários surgia como objeto de disputas entre grupos economicamente influentes nas localidades (BICALHO, 2005b, p.29). Entendemos estas disputas como indicativos da importância da ocupação destes cargos, tanto como espaço de distinção das elites, quanto de negociação com a Coroa. As câmaras aparecem então, como umas das principais vias de acesso a um conjunto de privilégios almejados por esses indivíduos. Contudo, apesar de vários almejarem os cargos das câmaras, essa elite, buscou apoio no rei para limitar o acesso aos cargos camarários apenas àqueles que fossem seus pares. O discurso deles baseava-se na valorização da condição de conquistadores em nome do rei, “a conquista, o povoamento e a defesa da colônia foram argumentos recorrentemente utilizados por seus moradores como moeda de troca em suas negociações com o poder central” (FRAGOSO; GOUVEA; BICALHO, 2000, p.78). As câmaras, na América portuguesa, podem ser tidas então, como locais de articulação política, onde seus membros, muitas vezes ligados por meio de laços de parentesco, agem em benefício de seus próprios interesses. Assim, segundo João Fragoso, Maria de Fátima Gouvêa e Fernanda Bicalho (2000), muitas vezes, os vereadores usavam a câmara para definirem práticas econômicas, intervindo no mercado, controlando preços e serviços ligados ao abastecimento da cidade, por exemplo. Com atitudes como essa as elites locais beneficiavamse enormemente e mantinham seu poder e controle. No caso da Vila de Pitangui, a presença de membros da família de Dona Joaquina na câmara da Vila começa na primeira metade do século XVIII quando Antônio Rodrigues Velho, avô de seu marido Capitão Inácio, se torna 101 juiz ordinário e outros parentes se tornam vereadores. Desde então a câmara de Pitangui teve frequentemente membros dessa família. Em artigo publicado no livro Modos de Governar (2005), Carla Maria Carvalho de Almeida apresenta alguns apontamentos sobre os homens ricos em Minas colonial. Segundo dados da autora a Comarca do Rio das Velhas, da qual a Vila de Pitangui fazia parte, possuía o maior número de homens ricos atuando como fazendeiros de gado, negociantes e mineradores. Dos 1061 homens listados, 50 foram identificados como fazendeiros de gado, destes, 49 pertenciam a Comarca do Rio das Velhas; 529 foram identificados como mineradores, destes, 251 pertenciam a mesma Comarca. 272 foram identificados como negociantes, destes, 144 pertenciam a Comarca do Rio das Velhas. Os dados de Almeida (2005) corroboram para demonstrar a presença de um número significativo de homens ricos e a conseqüente formação de uma elite local na região da Vila de Pitangui. Ainda que os dados sejam referentes a toda Comarca do Rio das Velhas, podemos mensurar que parte desses homens ricos deveriam pertencer a Pitangui, já que esta era uma vila importante. Outros indicativos apresentados pela a autora demonstram que: a quase totalidade deles era composta por portugueses que migraram para a colônia vindos da região norte de Portugal, e, no momento de sua morte, quase todos eram proprietários de terras e escravos; predominavam os homens casados com prole; grande parte deles estava relacionada aos primeiros povoadores ou era deles descendentes. Eram homens que se destacavam na sociedade mineira, fosse pelos bens que possuíam, pelas patentes militares que a maioria ostentava, pelos pleitos que moviam junto ao Conselho Ultramarino ou pelos cargos da administração colonial que ocupavam (ALMEIDA, 2005, p.384). Ao escolhermos a família de Dona Joaquina do Pompéu para nortear nossas análises, procuramos identificar na sua trajetória os elementos acima enunciados. Tanto os pais de Joaquina, quanto os do Capitão Inácio haviam vindo de Portugal; os antepassados do Capitão foram os primeiros povoadores da região; possuíam terras, escravos e cargos na administração. Sem contar as patentes militares exibidas com orgulho pelos homens da família. De acordo com seus biógrafos um dos eventos mais significativos envolvendo a matriarca refere-se a uma fuga dos presos da cadeia da Vila de Pitangui. Segundo consta, a matriarca e seu filho ajudaram um grupo de escravos, que haviam sido presos injustamente, a fugir da cadeia e deu a eles abrigo em sua fazenda81. O fato é que há um documento de 1822 no qual Dona Joaquina e o Capitão Joaquim Antônio solicitam uma certidão negativa 81 CAMPOS, 2003; RIBEIRO, GUIMARÃES, 1956. 102 inocentando-os “de uma devassa a que se procedeu pelo fugido dos presos que se achavam recolhidos na cadeia da mesma Vila de Pitangui” (APM. FJBP 1. Cx. 01. Doc. 43). A carta é datada de 7 de junho de 1822, e assinada pelo escrivão Manoel da Silva, funcionário da Câmara da Vila Real de Nossa Senhora da Conceição de Sabará, Comarca do Rio das Velhas. Ela foi enviada pelo “Príncipe Real Regente do Reino do Brasil” por intermédio do Doutor José Antônio da Silva Maia, Juiz de Fora, Ouvidor Geral e Corregedor da Comarca do Rio das Velhas. O conteúdo do documento revela ainda que a carta foi emitida para assegurar a matriarca e seu filho de quaisquer acusações ao longo de um ano não somente para o caso descrito da fuga dos presos, mas também por outros quaisquer que pudessem ser livrados. Podemos constatar então que há na concessão dessa certidão certo favorecimento a Dona Joaquina, já que ela poderia ter sido inocentada somente daquele crime. No entanto, por alguma razão, a certidão a deixa segura por um ano de qualquer devassa em que ela fosse citada. Mas, no caso dela ser realmente culpada de ajudar os presos, como afirmam seus biógrafos, a certidão torna-se um indício de sua força e influência. Afinal de contas o próprio regente estava inocentando-a de um delito que ela realmente tinha cometido. A nossa perspectiva de análise, a maneira como selecionamos e mapeamos essa família, parte da mesma lógica enunciada por Giovanni Levi (2000) em A Herança Imaterial. Falaremos de família no sentido de grupos não-co-residentes mas interligados por vínculos de parentela consangüínea ou por alianças e relações fictícias que aparecem na nebulosa realidade institucional do Antigo Regime, como cunhas estruturadas que serviam de auto-afirmação diante das incertezas do mundo social (...). A sua base era a procura de segurança, na qual a conservação de um status era a sua transmissão de geração em geração. Não se tratava de um objetivo, e sim de um vínculo preliminar de comportamentos que tentavam melhorar o controle sobre o ambiente social e natural. (LEVI, 2000, p.98-99) Apesar do período e do espaço social analisado por Levi (2000) ser diferente do nosso, consideramos suas afirmações bastante pertinentes. O grupo que tomamos como elite é formado por indivíduos de uma mesma família que não dividem a mesma residência, mas que estão ligados por laços de sangue e alianças matrimoniais. É Dona Joaquina e o Capitão Inácio que residem na Fazenda do Pompéu, seus filhos e genros que moram na Vila de Pitangui e em fazendas espalhadas por toda a região. Esses indivíduos herdam e ao mesmo tempo ampliam um status de poder e importância que os permite obter e conceder benefícios. E, esses benefícios, privilégios, vantagens, não estão voltados somente para a esfera econômica, muitas vezes o econômico estava subordinado as relações sociais, e eram estas últimas que tinham mais representatividade na sociedade colonial. 103 O poder que emana dessa matriarca nada mais é do que o reflexo dessa estrutura familiar, caracterizada pela união de diferentes famílias. Não é só Dona Joaquina que é poderosa, mas o conjunto das famílias que ao longo de décadas se uniram e consolidaram esse poder. São os Oliveira Campos, os Cordeiro, os Valadares, os Castelo Branco, os Rodrigues Velhos, os Álvares da Silva, um conjunto de famílias que se uniram por laços matrimoniais e também por laços comerciais e que representaram o controle político, econômico e social de Pitangui no século XVIII e XIX. E Dona Joaquina acabou se tornando o elemento de maior destaque porque a ela coube a responsabilidade de guiar esta família garantindo a manutenção de seu status. Ela não foi responsável por nenhum rompimento com a conduta social, ela não fez com que sua filha primogênita atuasse ao seu lado no mando das fazendas, ao contrário, ela garantiu que suas filhas permanecessem no interior do lar, se preparando para o casamento. Ela agiu como um bom chefe de família e cuidou de reproduzir a estrutura familiar colonial. Com isso possibilitou a ampliação da fortuna da família e a manutenção do status social diferenciado daqueles que estavam ligados a ela por laços familiares. Ao longo de nossas análises observamos o estabelecimento de uma série de alianças entre Dona Joaquina e outros sujeitos, sendo que, essas associações serviram na maioria das vezes para beneficiar a matriarca e sua família. Diante disso, percebemos a existência de um conjunto de indivíduos que atuavam de forma coletiva com o intuito de alcançarem um determinado objetivo. No caso em que estamos analisando o objetivo desse grupo de indivíduos era justamente a ampliação e manutenção da fortuna familiar. José Maria Imizcoz Beunza (2009) afirma que esses indivíduos estão ligados por laços de parentescos, de amizade, profissionais, comerciais, entre outros. E, essas alianças entre os indivíduos, que acabam se tornando uma complexa rede, só são possíveis por serem relações duradouras. Nesta lógica, conseguimos perceber a coerência com a qual Dona Joaquina vai “tecendo” sua rede, associando, por exemplo, o parentesco com a economia. Para sermos mais específicas: na documentação pesquisada encontramos uma série de correspondências trocadas entre Dona Joaquina e os homens membros da família Cordeiro Valadares, sobre assuntos relacionados aos negócios82. Com José Fernandes Valadares, esposo de uma prima do Capitão Inácio, o assunto é sobre compra e venda de escravos. Com um dos filhos desse casal, Manoel Cordeiro, a matriarca negocia propriedades, mantimentos e escravos: “Devo 82 APM. FJBP 1. Cx. 01. Doc. 19; 21; 24; APM. FJBP 2. Cx. 02. Doc. 04; 06; 08. 104 que pagarei ao Sr. Manoel Cordeiro a quantia de cem oitavas de ouro procedidas de um escravo por nome Manoel Místico (...)” (APM. FJBP 1. Cx. 01. Doc. 21). Outro que negocia frequentemente com Dona Joaquina é Domiciano Ferreira de Sá e Castro pai de uma das noras da matriarca. Suas correspondências são sempre extensas, tratam de assuntos pessoais inicialmente e depois sobre os negócios. Ago 9 de janeiro de 1819. Minha mana e senhora, minha maior veneração e respeito. Cheio de amor e gratidão vou a sua presença, não só beijar lhe as mãos, como procurar saber da sua saúde, na qual muito me interesso, pelos grandes motivos que tenho de ser obrigado a ilustríssima Senhora Dona Joaquina de cuja bondade e grandeza nunca me esquecerei. O seu escravo, condutor da boiada que há pouco saiu me participou de ordem de vossa senhoria para eu mandar buscar o dinheiro do nosso contrato que passo por meu compadre Antonio Gomes Pereira, a quem Vossa Senhoria poderá integrar. Ele leva o seu crédito, assim como também leva o crédito de Francisco Dias do Nascimento de quem nada pude cobrar, pois já achei muito enfermo e por sua morte nada deixou a herdeira sua mãe, isto me asseguram. Agora é também que dou os parabéns a minha Mana e ao ilustríssimo senhor Capitão-mor cuja oposição não foi pequena, porém foi sempre superior a muita Justiça do Senhor. Capitão-mor é maior que tudo, o nome e merecimento da ilustríssima senhora D. Joaquina Bernarda, a quem desejo as maiores vantagens e de quem sou a maior veneração e respeito. Mano o mais obrigado e fiel criado. [Assinado por] Domiciano Ferreira de Sá e Castro (APM. FJBP 1. Cx. 01. Doc. 41). Se pensarmos que cada aliança estabelecida entre Dona Joaquina e um de seus parceiros representa um ato de comprometimento e fidelidade mútua, compreenderemos a ideia de duração sugerida por Beunza (2009). O laço estabelecido não é simplesmente pelo fato de terem comprado ou vendido um escravo, mas sim, pelo fato de que, sempre que tiveram que comprar ou vender escravos esses dois sujeitos optaram por fazer negócios um com o outro. Daí a freqüência das correspondências entre eles na documentação. Esses negócios feitos dentro da esfera familiar acabam por auxiliar na permanência da fortuna dentro da família. Dois filhos de José Fernandes Valadares casam-se com filhas de Dona Joaquina, o dinheiro advindo dos negócios feitos entre eles acaba então ficando na família já que os filhos são os herdeiros. Tendo em vista que além de estabelecer essa aliança com os Cordeiros Valadares Dona Joaquina também se ligou a outros parceiros comerciais, vislumbraremos uma rede formada por diversas alianças. Para Beunza (2004) a rede se concebe como um conjunto específico de conexões entre um grupo de pessoas, e as características destas conexões podem ser utilizadas para interpretar o comportamento social das pessoas envolvidas. El análisis de red social procura um instrumento de primer orden para medir la red de relaciones entre actores sociales y lãs características y formas de ésta. Esto se formaliza mediante lá representación del campo social como una estructura en red, 105 materializada por un grafo o diagrama, en el cual los individuos son representados por puntos o nodos y las relaciones entre ellos por líneas. De este modo, el concepto de red pasa de ser una metáfora a una herramienta analítica operativa para medir y representar las relaciones entre individuos (BEUNZA, 2004, p.122). É justamente nesse sentido que propomos tratar a questão da rede de poder, ou seja, para este trabalho especificamente, ela representa o conjunto de uma série de alianças firmadas entre Dona Joaquina e outros sujeitos que estão ligados a ela principalmente pelo parentesco. A seguir observaremos uma representação dessa rede, onde a matriarca está no centro e as alianças são estabelecidas em uma “via de mão dupla”, a partir dela. Pereira da Cunha, Marquês de Inhambupe Antônio Teodoro de Mendonça João Evangelista de Faria Lobato Luiz da Cunha e Castro Manoel Gomes da Cruz Coronel Antônio Álvares de Araujo Comandante Domingos Gonçalves Pereira Francisco José da Silva Capanema Domiciano Ferreira de Sá e Castro Dona Joaquina do Pompéu Tenente Coronel Martinho Álvares da Silva Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcelos Capitão Antônio Álvares da Silva José Fernandes Valadares Sargento mor João Cordeiro Valadares Fonte: Elaborado pela autora. Timóteo Gomes Valadres Capitão mor Joaquim Cordeiro Valadares Manoel Cordeiro Valadares 106 Figura 09 – Representação de um fragmento da rede familiar/comercial de Dona Joaquina do Pompéu As relações estabelecidas pelos membros dessa rede foram organizadas por pautas e expectativas próprias da relação que acabavam gerindo o seu funcionamento coletivo. Beunza (2004) afirma que estas pautas não eram exteriores ao grupo e aos indivíduos que o formavam, somente os valores, mais ou menos compartilhados, de sua própria economia moral, é que correspondiam aos seus hábitos de funcionamento, a seus costumes, ou seja, as práticas e experiências mais habituais de seus membros83. Los vínculos personales de aquella sociedad comportabam geralmente un alto grado de dependencia del individuo: dependencia del superior jerárquico – del “pater familias”sobre la “casa grade”, del señor feudal sobre sus dependientes, del maestro de taller sobre los oficiales y aprendices, del amo sobre los criados, etc. – y dependencia de las costumbres, normas y obligaciones por las que se regían las comunidades o grupos a los que el individuo pertenecía. Al mismo tiempo, estos vínculos no eran realidades estáticas ni sustantivas, sino relaciones que conocían una intensa vida interna, la propria vida de los hombres en sociedad y, por lo tanto, en su seno se observa una amplia gama de variabilidad y ambivalencia en los comportamientos personales (BEUNZA, 2004, p.131-132). O pertencimento a uma rede de relações era fundamental para os indivíduos na sociedade colonial, o que significava fazer parte de algo maior que o próprio sujeito. Fossem as relações de amizade, parentesco, ou outra qualquer, esse tipo de aliança simbolizava que aquele sujeito pertencia um determinado grupo organizado por uma hierarquia, com direitos e deveres e etc. Um desses grupos apresentado por Beunza (2004) é justamente uma elite espanhola em ascensão que se especializou em atividades administrativas, financeiras e comerciais. Esses grupos de famílias se reproduziram e renovaram mantendo suas relações de parentesco sempre fortes por meio da inserção de parentes nos negócios em diferentes esferas. “Son elites polivalentes: grupos familiares cuyos miembros se elevan em carreras diferentes pero que, al mismo tiempo, están relacionados y actúan muchas veces con interesses comunes e intercambios significativos” (BEUNZA, 2004, p.135). E é justamente por este ângulo que enxergamos a família de Dona Joaquina e a rede de poder constituída em seu interior. É uma família cujos membros atuam em diferentes áreas, mas que estão interligados pelos laços de parentesco. O poder que emana dessa família, o poder adquirido a partir do fortalecimento dessa rede de alianças apresenta-o como uma característica dessas relações a ser analisado com mais 83 BEUNZA, 2004, p.131. 107 cuidado. Ao discutir sobre o poder, um dos aspectos que talvez melhor o caracterize, é justamente o fato dele só existir quando há uma relação entre dois ou mais agentes, ou entre agente(s) e instituições como Igreja, Estado. O poder é o funcionamento, é a engrenagem que movimenta estas relações e não o resultado delas. O poder emerge das práticas sociais, por isso é mutável e dinâmico apresentando diversas formas de se realizar. Ao compreendermos a família de Dona Joaquina do Pompéu como elite, entendemos também que ao se relacionarem com outros agentes, eles buscaram evidenciar de diversas maneiras o seu poder. Seja influenciando os moradores da Vila de Pitangui ou negociando com a Câmara taxas e impostos. E numa relação mais complexa, provendo uma determinada capela com apoio financeiro. Mas, neste caso, o que parece mais ser um dever cristão, expressa simbolicamente o seu poder. Quanto mais ajudava a Igreja mais reforçava sua posição econômica e social. Dessa forma, a atuação de Dona Joaquina para o bom funcionamento da capela, não representava apenas sua hierarquia social, mas favorecia significativamente a construção ou representação, de uma imagem de devoção. Se pensarmos que estamos nos referindo a uma sociedade cujo catolicismo era a única religião permitida, ela precisava dar exemplo e se mostrar piedosa, isso é claro demonstrava superioridade e qualidade. A manutenção e o cuidado com a capela representavam o cuidado com a casa de Deus, e como nem todos tinham condições para tais cuidados, os que tinham destacavam-se dos demais. Essa atitude inspirava respeito e significava que havia um diferencial entre Dona Joaquina do Pompéu e outros fiéis que não podiam fazer o mesmo tipo de doação. Inferimos que essa conduta da matriarca era um instrumento de poder, onde garantia a manutenção e o exercício de sua influência na esfera religiosa. (...) no mundo português do Antigo Regime, a sociabilidade das capelas modelava a vida social das comunidades. Na demarcação do poder, o funcionamento litúrgico das capelas, mantidas por irmandades ou por agentes familiares, consagrava as posições políticas e sociais dos fiéis e promovia o sentimento de corpo. Assim, não somente exprimiam a hierarquia social do poder, mas contribuíam com eficácia para a sua construção ou representação. O ritual mais costumeiro da missa assumia um papel político de disciplinar as vontades dos assistentes, angariar respeito para os poderosos e conferir autoridade. [grifo meu] (ANDRADE, 2007, p.154-155). Tendo em vista que o poder depende da ocorrência de relações interpessoais, podemos pensar de uma maneira ampla, na existência de poderes sociais. Segundo Pierre Bourdieu, Esses poderes sociais fundamentais são, (..) o capital econômico, em suas diferentes formas, e o capital cultural, além do capital simbólico, forma de que se revestem as diferentes espécies de capital quando percebidas e reconhecidas como legítimas. 108 Assim, os agentes estão distribuídos no espaço social global, na primeira dimensão de acordo com o volume global de capital que eles possuem sob diferentes espécies, e, na segunda dimensão, de acordo com a estrutura de seu capital, isto é, de acordo com o peso relativo das diferentes espécies de capital, econômico e cultural, no volume total de seu capital. (BOURDIEU, 1987, p.154) O que se pretende demonstrar com essa passagem, é que ao identificarmos as relações de poder estabelecidas pela família da matriarca notamos que há essa distribuição dos agentes de acordo com o que Bourdieu chama de capital. Ao analisarmos cada tipo de capital mencionado, verificamos os motivos pelos quais acreditamos na importância de sua família na Vila de Pitangui. Por exemplo, no caso do capital econômico, aqui usado no sentido de posse de riquezas materiais, capitão Inácio possuía um patrimônio, por volta de 1780, compreendido por imóveis na vila e na área rural, centenas de cabeças de gado, escravos, quatro grandes fazendas na Vila de Paracatu, entre outros bens; há os que detêm um maior capital cultural, como por exemplo, Jorge de Abreu Castelo Branco, pai de Dona Joaquina, bacharel em direito formado em Portugal, tornou-se padre após o falecimento da esposa e assumiu como vigário encomendado da Freguesia de Nossa Senhora do Pilar da Vila de Pitangui do bispado de Mariana84. Para Bourdieu há ainda um outro capital, o simbólico, que existe somente a partir do reconhecimento do outro, “o capital simbólico é um crédito, é o poder atribuído àqueles que obtiveram reconhecimento suficiente para ter condição de impor o reconhecimento (BOURDIEU, 1987, p.166)”. A grosso modo, o capital simbólico pode ser explicado como uma característica, como o carisma ou prestígio que um determinado sujeito possui. Essa característica especial, digamos assim, que o indivíduo apresenta é praticamente invisível, contudo ela permite que este ocupe posições de destaque e/ou liderança numa determinada sociedade, por exemplo. O capital simbólico – outro nome da distinção – não é outra coisa senão o capital, qualquer que seja a sua espécie, quando percebido por um agente dotado de categorias de percepção resultantes da incorporação da estrutura da sua distribuição, quer dizer, quando conhecido e reconhecido como algo de óbvio. (BOURDIEU, 2003, p.145) Parece-nos que a matriarca possuía esse capital simbólico, pois, de acordo com alguns documentos85 analisados, fica evidente sua influência na Vila de Pitangui. Um desses episódios ocorreu em 1804 quando a matriarca interrompeu o fornecimento de alimentos para a Vila devido a sua insatisfação com a cobrança de taxas. Somente após receber um pedido do 84 85 Provisões régias e cartas de sesmarias. Revista do Arquivo Público Mineiro, 1912. vol. 17, p.583. Arquivo Público Mineiro – APM. Família Joaquina Bernarda de Pompéu. Código: FJBP 1 – Cx. 01-04 109 Ouvidor Pereira da Cunha, Marquês de Inhambupe foi que ela retomou a venda de mantimentos. Esse prestígio, esse poder que parece emanar da figura de Dona Joaquina só existe porque por trás dela tem todo um histórico familiar. Uma família abastada, repleta de políticos, letrados, militares, grandes proprietários. Mas também porque outras pessoas legitimam esse poder. De acordo com Bourdieu, “o poder simbólico é um poder de construção da realidade” (BOURDIEU, 2003, p.9), realidade construída a partir da vontade do outro, daí o fato de que para a eficácia do poder simbólico tem que haver uma conformação entre os agentes que protagonizam a relação de poder. Ou seja, “o poder simbólico é um poder que aquele que lhe está sujeito dá àquele que o exerce, um crédito com que ele o credita, uma fides, uma auctoritas, que ele lhe confia pondo nele a sua confiança. É um poder que existe porque aquele que lhe está sujeito crê que ele existe” (BOURDIEU, 2003, p.188). O que se percebe é que a associação desses vários tipos de capital vai derivar um poder simbólico. Poder este que é compartilhado pelos membros da família de Dona Joaquina, em maior ou menor proporção, mas que demonstra a importância da família na região. Não é ela sozinha, nem o marido, nem os filhos, mas é o conjunto da família que representava esse poder. Ainda que ele acabasse se explicitando na figura da matriarca. Dessa forma, a família de Dona Joaquina do Pompéu exerceu na Vila de Pitangui um poder simbólico que agiu nas esferas do social, político e econômico. Seus membros se identificavam como a família mais importante da região, da mesma forma que os moradores, salvo poucas exceções, os reconheciam como tal. Uma das formas que conseguimos perceber isso foi verificando que na maioria dos registros judiciais contra Dona Joaquina e seus filhos, ou eles saem inocentes, ou a denúncia é arquivada. Isso ocorreu no caso da fuga de presos da cadeia, no caso em que a matriarca e seu filho Capitão Joaquim Antônio foram acusados de ameaçar moradores da Vila. Considerando que eles configuraram uma família poderosa, vêem-se dois desdobramentos interessantes de análise: o primeiro consiste em pensar que mesmo detendo muito poder, a família vai querer mantê-lo e ampliá-lo. E segundo, fazer parte dessa família representava ter algum poder. Assim, inferimos que o estabelecimento de laços familiares, por meio de arranjos matrimoniais, beneficiava tanto Dona Joaquina, quanto aqueles que se associavam a ela. Consideramos então, a formação desses laços como trocas de favores. Mas, talvez seja mais adequado pensá-los nos moldes propostos por Bourdieu (2008), como uma economia dos bens simbólicos. 110 A economia dos bens simbólicos pressupõe uma espécie de acordo subjetivo entre os agentes da troca, que indica que não há obrigatoriedade de reciprocidade, mesmo quando há. Uma vez que é dado um presente, espera-se a reciprocidade, no entanto esta não é dita claramente, ela esta implícita na própria estrutura das relações de troca. Segundo Bourdieu, “dizer do que se trata, declarar a verdade da troca ou, como dizemos, às vezes, “quanto custou” (quando damos um presente, retiramos a etiqueta do preço...), é anular a troca” (BOURDIEU, 2008, p.162). Neste sentido, quando Dona Joaquina concedia a mão de uma de suas filhas a um político da região, por exemplo, de alguma maneira ela estava concedendo uma dádiva. Aquele homem ia passar a fazer parte de sua família e com isso poderia ampliar seu poder político e principalmente econômico. Da mesma forma, implicitamente no ato, ou não, Dona Joaquina e sua família se beneficiavam, pois um homem da política podia oferecer-lhes benefícios. Com isso ambos se beneficiavam e tornavam-se simultaneamente o que presenteia e o presenteado, e os benefícios agregados nessa troca se mantém implícitos e não são entendidos conscientemente como os motivadores da troca. Assim, a troca de dádivas (ou de mulheres, de serviços, etc.), concebida como paradigma da economia dos bens simbólicos opõe-se ao “toma lá, dá cá” da economia econômica, já que não tem como princípio um sujeito calculista, mas um agente socialmente predisposto a entrar, sem intenção ou cálculo, no jogo da troca. É nesse sentido que ela ignora ou recusa sua verdade objetiva de troca econômica. Outro modo de demonstrá-lo está em que, nessa economia, ou deixamos o interesse econômico em estado implícito, ou, se o enunciarmos, é através de eufemismos, isto é, em uma linguagem de recusa. O eufemismo é o que nos permite dizer tudo, dizendo que não o dizemos; o que permite nomear o inominável, isto é, em uma economia de bens simbólicos, o econômico, no sentido usual do termo, o “toma lá, dá cá” (BOURDIEU, 2008, p.164-165). Compreendemos as ligações matrimoniais entre os herdeiros(as) de Dona Joaquina com membros de famílias importantes, nessa lógica da economia do bens simbólicos. E mais, essas ligações representavam também o fortalecimento familiar, já que os casamentos eram realizados, em alguns casos, entre parentes. Essas alianças matrimoniais não podem ser entendidas simplesmente como uma escolha aleatória, muito pelo contrário, parece que há nesses arranjos, uma tentativa clara de manter os bens materiais condensados dentro da família, e por outro lado de fortalecer o poder político que se solidificou sob a representação do Pompéu. Dessa forma, o espaço “fazenda do Pompéu” representava o local onde se organizava o poder político local, mesmo porque, tanto alguns dos filhos da matriarca quanto seus genros fizeram parte da câmara da Vila de Pitangui, e traziam a frente de seus nomes 111 insígnias militares como capitão, coronel, sargento, tenente e guarda-mor. Ou seja, há uma concentração muito grande de poderes locais na mesma família. Inferimos que um dos elementos simbólicos utilizados na consolidação do poder dessa família são os títulos. No caso dos homens os títulos de capitão, tenente, coronel; no caso da matriarca, o uso do “Dona” como um vocábulo de afirmação do poder. Este nos parece não ser simplesmente uma forma de tratamento, mas uma forma de distinção, como já apresentamos no primeiro capítulo. As relações estabelecidas entre Dona Joaquina e seus parentes, amigos, parceiros comerciais e autoridades podem ser entendidas ainda a partir da lógica das redes clientelares86. Essas redes foram analisadas por Hespanha (1993) e definidas como um conjunto de relações sociais constituídas de formas variadas, onde prevalece a troca de interesses pessoais e reais. Era freqüente que o prestigio político de umas pessoas estivesse estreitamente ligado à sua capacidade de dispensar benefícios, bem como à sua fiabilidade no modo de retribuição dos benefícios recebidos. (...) O que provocava um contínuo reforço econômico e afetivo dos laços que uniam, no início, os atores, numa crescente espiral de poder, subordinada a uma estratégia de ganhos simbólicos, que se estruturava sobre os atos de gratidão e serviço. (...) As relações assimétricas de amizade (relações de poder) teriam tendência para derivar em relações do tipo clientelar que, apesar de serem informais, apareciam, pela obrigatoriedade da reciprocidade acrescentada (impossível de elidir), como o meio mais eficaz para concretizar não só intenções políticas individuais, como para estruturar alianças políticas socialmente mais alargadas e com objetivos mais duráveis (HESPANHA, 1993, p.382). Evidentemente que este tipo de relação que obedece a uma lógica clientelar eram situações sociais cotidianas e refletiam a própria conduta da sociedade. Oferecer a um amigo um favor, no caso do monarca conceder mercês, eram situação rotineiras na vida diária da colônia. É interessante perceber que, no seu leque de amizades, havia importantes autoridades, tanto na Vila de Pitangui, quanto em Vila Rica, Vila do Paracatu do Príncipe e até no Rio de Janeiro, como demonstra o documento a seguir. Diogo Pereira de Vasconcelos, quando estava encarregado da organização e administração do Quartel Geral do Indaiá e Paracatu, em 1807, deixou sua esposa e filho sob os cuidados de Dona Joaquina, durante alguns meses. O documento mostra o intermédio de Diogo Vasconcelos em assuntos comerciais da matriarca em Vila Rica, e sua relação com a família real portuguesa. Percebe-se também a solicitação de Vasconcelos a matriarca que o recomendasse aos seus filhos, 86 Sobre redes clientelares ver HESPANHA, 1984; HESPANHA, 1993; MONTEIRO, 1993; XAVIER, HESPANHA, 1993. 112 provavelmente para intermediar negociações em Vila Rica e no Rio de Janeiro. O documento data de março de 1808, período em que Dona Joaquina já havia enviado ao Rio de Janeiro suas tropas para alimentar a corte portuguesa recém-chegada de Lisboa, esclarecendo a menção do envio de uma carta a “Sua Alteza Real”: Ilma Senhora. Dona Joaquina Bernarda da Silva de Abreu Castelo Branco. Minha Camarada, Mãe e Senhora. Recebi a sua com que folguei pela certeza de sua saúde. Que o Céu lhe continue, conforme os meus desejos, pois sabe quais eles são. Depois de confiar de sua amizade e virtude à minha família, que me não sai jamais da lembrança, e cuido que só verei para fins de Maio, ou principio de Junho, quando tenho de ir ao Rio de Janeiro, porque do contrário mais cedo nos veremos. Faça V.S. às vezes de mãe, e de avó, e não é muito, que tendo tantos Filhos e Netos acrescente meia dúzia mais a aquele número. O seu Francisco nada quer de cirurgião: Leva os dois barris de vinho, o chumbo sortido, tabaco e freios, conforme a sua ordem. Ele lhe dirá, que faltaram catorze bois, mortos ou extraviados no Caminho, e que além dos duzentos de S.A.R. fiz apartar treze, que entreguei ao Ajude Bento Joaquim e que o Cunha não quis comprar, desfazendo muito. Neles, como lhe dirá seu escravo, bem como as pessoas, a quem pertencem estas treze cabeças. Fico de acordo a procurar compradores, e a pedir ao D. Ajude, que entenda na máxima diligência, pois a Fazenda Real não compra, porque tem muito dos sertões e da Comarca do Rio das Mortes. Resta-me dizer lhe que em toda a parte hei de executar as suas Ordens e que me recomende a todos os seus Filhos, e particularmente a Senhora. D. Maria. Já tarda a proposta do Sr. Felix. Bom era que se vá ter com o Capitão-mor em que a tem, tanto assim que já remeteu a sua carta a Real Presença de Sua Alteza, abonando o seu Patriotismo: Tudo isto me satisfaz muito. Porque sou de Vossa Senhora. Atento e Venerador e (ilegível). Muito Obrigado. P.S. Os nossos amores lhe envia saudades, foi agora para N. Senhora das Dores encomendar-nos a Deus. [Assinado por] Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcelos.Villa Rica, 18 de Março de 1808. (APM. FJBP 1. Cx.01 – Doc.36.) A formação de uma rede clientelar em torno de dona Joaquina do Pompéu pode ser o ponto de partida para analisar e demonstrar como ocorriam suas relações comerciais, e ainda para reafirmar as idéias propostas por Silvia Brügger (2006) sobre o patriarcalismo em Minas Gerais. Neste sentido, entende-se que o poder e a influência atribuídos à matriarca estão ligados a uma herança familiar de prestígio, tanto de sua família quanto do seu esposo. E sua relação com a Coroa mostra, como afirma João Fragoso (2001), que o Estado e as elites locais atuavam em parceria, marcada pelo privilégio e reciprocidade. Segundo Júnia Furtado (1999), as correspondências comerciais eram essenciais para o desempenho da atividade, mas era também importante para estruturar laços sociais e políticos, ligando os homens por meio de uma rede de favores e dependência: “A distância social entre os membros de uma rede social hierárquica ficava preservada pelo jogo das palavras (...) o que permitia o reconhecimento e a distinção entre eles” (FURTADO, 1999, p.59). 113 O valor da amizade e reciprocidade de favores pode ser facilmente mensurado na correspondência de Dona Joaquina, inclusive na carta citada acima. A amizade costumava ser cobrada em troca de favores e em situações específicas. Em 1804, a matriarca recebeu uma carta de pedido de ajuda do rei: Ilustríssima Senhora D. Joaquina Bernarda da Silva de Abreu Castello Branco. Por aviso que agora tive a honra de receber do Exmo. General tenho de fazer remessa dos Donativos que os moradores deste Termo concorrerão com animo generoso para as reconhecidas necessidades do Estado, e como onde remetidos nos fins deste mês aos cofres Reais em razão de irem na náo D. João de Castro que há de partir do Porto do R. Ta. lá até fins do mês de janeiro próximo. Portanto participo a vosmecê para mandar a sua oferta que são cento e cinqüenta mil réis que generosamente prometeu para as referidas necessidades. E quem trouxer o dinheiro levará recibo meu. O quanto muito espero de sua honra e zelo pelo Real Serviço. Ds. Ge. Avm. Pitangui, 17 de dezembro de 1804. Certo Vemro. Comte muito afetuoso. [Assinado por] Francisco José da Silva Capanema (in: CAMPOS, 2003, p.213)87 Em pouco tempo Joaquina já tem em mãos um recibo confirmando a chegada de sua doação: Recebi da Ilustríssima Senhora Dona Joaquina Bernarda da S. de Abreu Castello Branco a importância de cento e cinqüenta mil réis, da contribuição voluntária que ofereceu a Sua Alteza Real para as necessidades do Estado em conseqüência da Ordem Régia de seis de abril de 1804; A saber de cento e um escravos que declarou possuir, sessenta mil e seiscentos réis. E de Donativo de sua distinta pessoa oitenta e nove mil e quatrocentos réis. Que ambas as parcelas somam a referida quantia de 150$000, que ficam orçados em um L. Rubricado pelo conselheiro do Conselho Ultramarino José Carvalho de Andrade, a fim com a competente declaração do Escrivão Deputado da Junta Real Fazenda assim mais recebe na mesma forma acima dos seus casados e agregados cinqüenta mil e oitocentos que igualmente ficam lançados em mesma linha e folha em firma do que mandei passar o presente que assinei. Villa de Pitangui a 1 de janeiro de 1805. S. do 200$800 [Assinado por] Domingos Gonçalves Pereira, Comandante. (APM. FJBP 1. Cx.01 – Doc. 29) Tem-se como hipótese que com esta oferta Dona Joaquina poderia posteriormente solicitar algum tipo de favor da coroa, como benefícios políticos e comerciais, ainda que houvesse sido um pedido oficial real e o seu não acato poderia acarretar problemas. Este tipo de relação pode ser visto como uma eficiente e sutil estratégia para garantir privilégios. Segundo Alexandre Mendes Cunha (2006), o clientelismo vai ser marcado por relações de amizade caracterizadas tanto pela reciprocidade entre iguais, como por exemplo, dois grandes comerciantes; ou ainda na relação entre governante e governados, como Dom Pedro I e Dona Joaquina do Pompéu. Característica interessante das relações clientelares é que surge, neste universo de troca de favores, um sentimento de dependência em que seria impossível o pagamento de uma determina dívida, já que as trocas de favores vão sucedendo 87 Documento citado por Deusdedit Campos, 2003. Contudo, não foi localizado nos arquivos pesquisados. 114 umas as outras. Além disto, este sistema subordina tanto os governados quanto o governante, uma vez que o rei também fica ligado aos seus súditos por meio de favores prestados. O que se pretendeu expor foram apontamentos e reflexões sobre as formas como a família de Dona Joaquina do Pompéu estabeleceu relações de poder e solidificou sua influência e prestígio na região da Vila de Pitangui. As relações de poder e a representatividade desse poder sob a figura de Dona Joaquina e sua família, podem contribuir para a construção de um complexo mosaico sobre as elites nas diferentes regiões da América portuguesa. É certo que esse texto não é de forma alguma uma tentativa de representação de todo esse mosaico, mas de uma parte dele que pode servir para trazer a tona outras. Indicando assim, como essas elites se estruturaram no seio do Antigo Regime português dentro da lógica colonial estabelecida na América portuguesa. 115 Considerações Finais ... a formação de uma comunidade mercantil não passava apenas pelo exercício da mercancia em si ou pelo estabelecimento de sociedades comerciais formais. Passava igualmente pelo estabelecimento de alianças políticas via matrimônio. Nesse aspecto, embora os homens fossem os grandes protagonistas dessa história, era através das mulheres que se criavam os liames entre os mesmos. Antônio Carlos Jucá Sampaio Ao longo desta pesquisa procuramos discutir alguns aspectos da vida de Dona Joaquina do Pompéu e daqueles que ao seu lado fizeram parte da família e dos negócios. Ao buscarmos uma relação entre Dona Joaquina e a produção e abastecimento da capitania não tínhamos a dimensão do quão árduo seria. Poucos são os trabalhos de historiadores sobre a matriarca, as demais obras não problematizaram a história da vida dessa senhora e dedicaramse a exaltação de sua memória. Não procuramos fazer uma narrativa biográfica nem nos ativemos às muitas histórias que contam sobre ela em Pitangui e Pompéu. Foi a partir do rico acervo documental que baseamos nossos apontamentos e reflexões. Esses documentos, associados às obras historiográficas, permitiram que construíssemos os argumentos apresentados ao longo da dissertação. Percebemos que a organização do núcleo familiar de Dona Joaquina do Pompéu apresentou algumas especificidades em relação a outros núcleos familiares chefiados por mulheres. Talvez um desses elementos é que a atuação da matriarca a frente dos negócios não é ocasionada pelo falecimento do marido. O Capitão Inácio estava saudável quando Dona Joaquina começou a cuidar dos negócios. Ela não ficou relegada às funções domésticas, pelo contrário, ela assumiu o comando das fazendas. Ela tratou de negócios de gado, compra e vende escravos, administrou a casa de comissão e o açougue na Vila de Pitangui. Sua ampla atuação como “proprietária de terras/tropeira” só vem reforçar a presença de mulheres brancas e ricas como chefes de família na América portuguesa, fossem viúvas ou não. E, são essas senhoras que atuando plenamente na administração da fortuna de suas famílias, vão ganhando destaque na sociedade na qual estão inseridas adquirindo prestígio e influência. São as Senhoras do açúcar de Itu, as Senhoras da elite maranhense, as Senhoras proprietárias de minas e escravos, as Senhoras fazendeiras e comerciantes. Dona Joaquina, quando se casou foi aos poucos assumindo os negócios do casal, até passar a administrar tudo sozinha. Durante os anos que esteve no comando de suas 116 propriedades, foi responsável pela ampliação de sua fortuna. Mas em contrapartida, dedicouse também a criação dos filhos e netos. No fim de sua vida é seu filho mais novo, capitão Joaquim Antônio de Oliveira Campos, quem aparece como seu apoio e substituto. Diante disto, percebemos que a matriarca se dividiu entre duas funções: a de fazendeira, e a de mãe. Se por um lado ela pode aparecer na historiografia como uma mulher que cuidou dos negócios da família, por outro ela enquadrou-se perfeitamente no padrão feminino da América Portuguesa, de mulher dedicada à casa, à família e a Deus. Percebemos ainda que, Dona Joaquina não desejou para suas filhas o mesmo destino de fazendeira, já que todas se casaram muito cedo e nenhuma delas aparece exercendo qualquer atividade ligada à fazenda ou ao comércio na documentação consultada. Neste caso existe um paradoxo nos valores externados pela matriarca. De um lado ela aparece como parte de um grupo minoritário de mulheres, diante da sociedade majoritariamente masculina do século XVIII no que diz respeito às relações produtivas e comerciais. Por outro, parece que ela teve uma preocupação para que suas filhas não seguissem o seu caminho, mas que cumprissem sua função dentro da sociedade setecentista, de mulheres ligadas ao cotidiano doméstico. Neste sentido, é preciso que reforcemos a ideia de patriarcalismo, discutida por Freyre (2006) e Brügger (2007), com a qual trabalhamos ao longo de toda a dissertação. Nós entendemos a conformação familiar de Dona Joaquina como patriarcal, porque o mais importante não é o sexo do indivíduo chefe da família, mas sim a força da família, a força da representação do poder familiar. Além disso, percebemos que os indivíduos membros dessa grande família não se percebiam como sujeitos separados, para eles mais importante do que ser alguém, era pertencer a uma determinada família. Ser identificado pela sociedade como membro dessa ou daquela família é que trazia para esse indivíduo um status social diferenciado. Dona Joaquina do Pompéu viveu e sobreviveu inserida em uma sociedade patriarcal, na qual ela exerceu a posição de chefe, o representante da família. Era ela o núcleo e, por ser a grande responsável, sua obrigação era manter as tradições e os bons costumes portugueses na colônia, o que ajuda a explicar seu comportamento diante da educação das filhas. Ao analisarmos as atividades econômicas desempenhadas pela matriarca do Pompéu, percebemos que a agricultura, pecuária e comércio tiveram significativa participação na economia ao longo do século XVIII e XIX. Descobrimos então, que a família de Dona Joaquina foi ao longo dos setecentos mudando o foco de suas atividades. Se num primeiro momento a mineração foi a principal atividade dessa família, aos poucos a agricultura, a 117 pecuária e o comércio tornam-se prioridade. E é justamente sob o comando da matriarca que a família vai passar pelo seu momento de maior acumulação de riquezas, poder e influência na Vila de Pitangui. E, ainda que haja divergências historiográficas sobre a possibilidade ou não de acumulação de riquezas por parte dos produtores e comerciantes, fica evidente diante das análises dos documentos de Dona Joaquina do Pompéu que a atividade agropecuária e comercial movimentou em Minas quantia significativa de riqueza. Essa grande movimentação econômica permitiu a acumulação de bens e o enriquecimento dessa família que por vias comerciais ou matrimoniais conseguiu manter a fortuna dentro da família. A articulação de uma série de alianças comerciais e/ou matrimoniais no entorno da matriarca permitiu que analisássemos as relações de poder presente nelas. Dessa forma, algumas informações que possuíamos passaram a fazer mais sentido, como sua ligação com Diogo Pereira R. Vasconcelos, os casamentos de suas filhas com os Cordeiro Valadares e Álvares de Silva, a passagem do naturalista Barão Wilhelm Ludwing von Eschwege. A presença destes nomes na história de Dona Joaquina indica que ela soube construir, consolidar e manter importantes laços de amizade, de forma a se beneficiar política e economicamente. A existência destas alianças, associada à força e influência política da matriarca e de sua família, só reforçam a existência de uma organização social sob a forma do patriarcalismo nos domínios de Dona Joaquina. Neste caso, o patriarcalismo não se refere ao indivíduo do sexo masculino como peça central da organização familiar, mas há uma família cuja força, influência e poder aliado aos valores e aos laços familiares se sobressaem numa determinada região. Família que representava o poder político, econômico e social, liderado por um indivíduo e cercado, justamente, por uma extensa rede de parentes, amigos, dependentes. A figura e atuação de Joaquina do Pompéu ainda não foi de todo esclarecida. Vários momentos de sua vida continuam guardados nas entrelinhas da história a espera de historiadores que possam revelá-las. Assim também a história de Minas Gerais no século XVIII/XIX, apesar de amplamente estudada, ainda pode surpreender. Com a elaboração deste trabalho pretendemos, de certa forma, contribuir para a construção da história de Minas Gerais nos setecentos, e demonstrar que existem muitas possibilidades de estudo. Dona Joaquina do Pompéu é só uma, entre tantos sujeitos-agentes históricos que podem revelar importantes informações sobre o passado colonial brasileiro. 118 FONTES E BIBLIOGRAFIA 1. Fontes 1.1. Manuscritas Arquivo Público Mineiro – APM Documentação de origem privada: Família Joaquina Bernarda de Pompéu. Código: FJBP 1 – Cx. 01 [série: Família Joaquina Bernarda do Pompéu]. Família Joaquina Bernarda de Pompéu. Código: FJBP 1 – Cx. 02. [série: Família Cordeiro Valadares]. Família Joaquina Bernarda de Pompéu. Código: FJBP 1 – Cx. 03. 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ES12/PR03 – Cx03 – Testamento de Capitão Inácio de Oliveira Campos. Cód. ES12/PR03 – CX03 – Codicílio (Testamento de Capitão Inácio de Oliveira Campos). Cx 85. Doc. 002 - Inventário de Joaquina Bernarda da Silva de Abreu Castelo Branco. (Existem dois volumes do inventário de Dona Joaquina em Pitangui. As centenas de folhas que o compõe estão higienizadas, mas não foram separadas e organizadas por tipo de documento. Por esse motivo não podemos precisar a localização de cada folha dentro da caixa). Séc.XIX. Notificação. (Os documentos referentes ao século XIX ainda estão em processo de higienização e organização, por esse motivo ainda não tem referência de localização dentro do AHP. Contudo, foi permitido que eu tivesse acesso a essa notificação, por se tratar de um documento importante sobre Joaquina do Pompéu). 1.2. Impressas ANNAES da Escola de Minas de Ouro Preto: Minas de ouro de Pitangui. Revista Do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, v. 20, p.57-60/70, 1924. 120 COLEÇÃO das memórias arquivadas pela Câmara da Vila de Pitangui, e resumidas por Manuel José Pires da Silva Pontes (...). Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 6, p. 284-291, 1844. CRIAÇÃO da Vila de Pitangui. Revista Do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, Ano II, fascículo 1, p.90-92, 1912. DERBY, Orville A. Os primeiros descobrimentos de ouro em Minas Gerais. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. v. 5, p. 240-295. São Paulo, 1901. MEMÓRIAS histórias da Província de Minas Gerais. Revista Do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, v. 13, p.523-639, 1908. PROVISÕES régias e cartas de sesmarias. Revista Do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1912. UM beija-mão que provoca barulho em Pitangui, por Onofre Mendes Júnior. Revista Do Arquivo Público Mineiro. 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