52 | PÚBLICO, SEX 28 DEZ 2012
O memorando
Debate O acordo com a troika
António Monteiro Fernandes
E
ntre “cumprir o memorando”
e “rasgar o memorando”, vaise agitando o magro debate
político em Portugal. Quem
defende que o “memorando”
pertence ao domínio da Palavra
sagrada precisa absolutamente
dele como precioso álibi para
todas as contingências. Quem
quer rasgar o dito papel, está à
margem: não falou com a troika, não quis
saber do assunto — também ninguém os quis
ouvir —, não assinou nada, sente-se livre
de dizer e fazer o que convier, mesmo que
sem sentido. No meio, o Partido Socialista
remete-se — relativamente ao memorando —
a um silêncio que, tal como as suas enérgicas
abstenções, significa que assume a situação
de encurralado e ainda não viu como pode
escapar-se dela.
Quem conhece a história e a matriz
ideológica desse partido — por muito
escassa que seja a sua densidade e por
muito errática que seja a sua afirmação na
prática política — sabe que o memorando da
troika, especificamente na parte referente
aos assuntos sociais, equivale a uma radical
negação. É certo que o documento — de
que nem sequer existe uma versão oficial
em português — não foi o produto de uma
verdadeira negociação entre a troika e o
Governo da época. Era um triste Governo
de gestão que só queria encontrar uma
escapatória para a terrível situação do país
— situação para a qual terá contribuído
sobretudo com alguma incompetência, um
crónico negacionismo e o retardamento
de verdadeiras resoluções. Assinou aquele
documento como, no fundo, poderia assinar
outro qualquer que os credores lhe pusessem
na frente. Ao fazê-lo, o Partido Socialista
vendeu uma boa parte da sua alma, negouse a si próprio, comprometeu o seu crédito
político futuro (como se tem visto) — mas, em
termos nacionais, não tinha outro remédio.
Fez o que restava fazer – e imolou-se.
A verdade é que o memorando está
muito para além dos limites até aos quais
um partido social-democrata atento às
compatibilidades económicas pode ir sem
alienar o que resta da sua identidade — e isso,
mais tarde ou mais cedo, acabará por ter
consequências, num sentido ou noutro.
Durante as pseudo-negociações, o
débil Governo de então foi ouvido com
paciência, mas nada do que disse mereceu
qualquer consideração. Do lado português,
“negociaram” outras pessoas a quem o
memorando convinha perfeitamente.
Tornou-se, assim, possível alcançar um
quadro político de sonho para o Governo
seguinte, que estava escrito nos astros
muito antes das eleições: dispor de um
compromisso internacional coincidente
com o programa político próprio, e ao
qual o principal partido da oposição ficaria
acorrentado. Faltava somente um retoque
para a perfeição: o chamado “consenso
social”. Para o alcançar, mostrou-se
necessário perder ainda algum tempo a
ameaçar uma confederação sindical de que
tudo seria muito pior sem acordo; foi possível
convencê-la, e assim se criou, em sede de
concertação social, o desejado “consenso”.
Está-se, pois, perante um verdadeiro case
study. Um núcleo central de forças políticas
— nacionais e internacionais —, onde o poder
está concentrado, gerou em torno de si, de
modo engenhoso, um sistema gravitacional
que “elimina” oposição, forçando outras
forças políticas e sociais a manteremse, formalmente, em órbitas próximas e
regulares, sem riscos de colisão nem de
fuga. A “energia” que mantém o sistema
provém desse núcleo central e é feita de
grandes “evidências” mil vezes expressas
em tom pausado: “bancarrota iminente”,
“credibilidade” e “absoluta ausência de
alternativas”. O processo desenvolve-se
sobretudo no plano das “formas” (reuniões,
audiências, avaliações, previsões) e tudo
assenta num documento, o memorando,
que assume, sabe-se lá como, valor paraconstitucional. (Pensando bem, até mais do
que isso: a Constituição revê-se, o memorando
é intocável — e o sistema também). A coberto
dele, mas não por
imposição dele, já
se fizeram coisas
extraordinárias. O
Estado português,
em nome da
“credibilidade”,
empenhou-se em
mostrar que sabe
honrar os seus
compromissos —
todos, com excepção
dos contratos que
tem com os seus
empregados e os
que assumiu perante
os pensionistas
oriundos dos
sectores público e
privado. Bagatelas.
Há, em tudo
isto, motivos de
sobra para “análise” e para “comentário”,
nomeadamente dos pontos de vista da ética
e da ciência política. A vasta operação em
curso está muito longe de ser uma simples
acção de “reajustamento”: corresponde
manifestamente a um projecto cuja
imperatividade explica a obstinação cega e
surda, quase demencial, de quem a conduz.
Mas falta muita coisa. Falta praticamente
tudo o que é necessário para o êxito de
uma política de regeneração económica e
financeira. E o que falta tem-se visto — na rua.
A operação
em curso
está muito
longe de ser
uma simples
acção de
“reajustamento”
Professor de Direito do Trabalho no ISCTE
Sem rei nem roque: a crise
da soberania em Portugal
MANUEL ROBERTO
Debate Crise e poder
Patrícia Vieira e Michael Marder
O
uvimos dizer com frequência
que o país está sem rei nem
roque, expressão que denota,
em linguagem corrente,
uma posição periclitante na
sequência do colapso das
estruturas do poder político.
Vale a pena determo-nos na
análise desta locução que
sintetiza de forma exemplar
a atual situação em Portugal. É que se,
efetivamente, perdemos o metafórico “rei”,
símbolo tradicional da soberania de um
estado, desapareceu também o “roque”, ou
seja, as proteções sociais à população que
eram, em última instância, garantidas pela
autoridade soberana do “rei”.
A expressão “sem rei nem roque”
remonta ao antigo jogo de xadrez, oriundo
do Oriente, no qual a torre era uma
carruagem ou carro de guerra (rokh, em
persa). Sem torre(s), cuja função é proteger
as outras peças, e em especial o rei, um
jogador de xadrez terá uma mais reduzida
margem de manobra; a perda do rei implica
a derrota e o final do jogo.
É revelador que no xadrez a expressão
“xeque-mate” (shãh mãt, em persa), que
indica a conquista do rei de um jogador por
uma das peças do adversário, signifique
literalmente “o rei está morto”. Se Portugal
está “sem rei nem roque” quererá isto dizer
que o país está politicamente morto, sem
soberania, a viver uma vida póstuma?
Um dos efeitos mais preocupantes da
atual crise económica é precisamente
uma transformação profunda da noção
de soberania nacional. Tradicionalmente,
a soberania de um país encarnava no rei,
simultaneamente entidade física e metafísica
que personificava toda a nação, como nos
recorda Hobbes com a sua imagem do
leviatã. Nas modernas democracias liberais e
parlamentares, a soberania é dividida pelos
poderes legislativo, executivo e judiciário,
sendo os políticos meros representantes do
povo, no qual reside, em última análise, o
poder soberano.
0 resgate financeiro da economia
portuguesa levou a uma progressiva
erosão da soberania nacional, na medida
em que um crescente número de decisões
centrais para o país são tomadas pelas
instituições credoras. Um exemplo desta
perda de soberania é o famoso memorando
da troika, que tanto o PSD e o CDS/PP
como o PS se comprometeram a respeitar
antes das últimas eleições em 2011. Ou
seja, independentemente dos resultados
eleitorais, as linhas de força da política
nacional estavam já definidas.
Quais as consequências desta crise
da soberania nacional? Por um lado, os
principais partidos, eviscerados do seu
papel de agentes políticos, transformamse em meros órgãos executores de
decisões externas. Compreende-se assim a
convergência do PS e do PSD para o centro,
sendo a verdadeira política, entendida
como uma discussão sobre a melhor forma
de organizar a sociedade, relegada para as
margens do espectro partidário: Partido
Comunista, Bloco de Esquerda, Partido
Popular Monárquico, etc.
Por outro lado, a soberania perde os
vínculos que ainda
tinha, mesmo
que apenas
nominalmente,
com a população de
um país. Não está
aqui em causa um
desaparecimento
do poder soberano:
alguém terá sempre
que tomar uma
decisão, mesmo
que seja a decisão
de não decidir. O
que verificamos
é uma alteração
da soberania, já
que muitas das
diretrizes da política
portuguesa são
definidas a nível
internacional por
representantes nãoeleitos da troika.
Recorrendo à
metáfora do xadrez, depois do xeque-mate,
o jogo continua num outro nível, com o rei
morto mas com os peões a receberem ainda
instruções de uma qualquer peça fora do
tabuleiro da política nacional.
0 mais grave nesta conjuntura é a
completa separação entre os que decidem
e os que são obrigados a acatar as decisões,
já que, ao contrário dos partidos políticos,
os membros da troika não são responsáveis
perante a população pelas suas decisões
soberanas. Assumindo-se, se não de jure
pelo menos de facto, como a entidade
soberana em Portugal, a troika rejeita as
obrigações que o exercício da soberania
habitualmente acarreta.
A situação paradoxal da soberania no
país não é, no entanto, um caso isolado.
Assistimos a nível mundial ao emergir
de um novo paradigma de soberania que
Os parâmetros
do jogo da
soberania não
podem ser
determinados
a priori, sob
pena de
cairmos numa
renovada
imposição
de medidas
de coação à
população
PÚBLICO, SEX 28 DEZ 2012 | 53
Há algo a aprender
com Ratan Tata?
passa por um declínio do poder de cada
estado e por uma transferência da soberania
nacional para instituições supranacionais,
sejam elas de cariz político-económico,
como a União Europeia, ou meramente
económico, como associações de livre
comércio (Mercosul, NAFTA, etc.) e, cada vez
mais frequentemente, grandes companhias
multinacionais. A recente crise económica
limitou-se a revelar mais claramente um
processo de mutação do poder soberano que
decorria já há algum tempo.
Este novo paradigma de soberania
supranacional fez-se acompanhar por
uma ideologia que apresenta a economia
como um facto bruto, terminus ad quem
de quaisquer explicações utilizadas para
justificar decisões políticas. A economia,
véu por detrás do qual se ocultam os
verdadeiros decisores, é elevada à categoria
de poder soberano e transforma-se num
novo “rei” (ou imperador), cujas decisões
não deixam margem para discussão na
medida em que são supostamente ditadas
por necessidades materiais.
No contexto deste novo xadrez nacional
e internacional, é urgente repensar os
moldes em que se exerce o poder soberano.
Num mundo globalizado, a solução não
será um retorno nostálgico à soberania do
passado, limitada pelas fronteiras de um
estado. Mas se o “rei” da nação está morto e
não há outro que lhe suceda, não devemos
simplesmente ceder o seu lugar ao primeiro
candidato internacional que apareça, seja
este uma vaga ideia dos imperativos da
economia ou os tecnocratas da troika.
Caminhando a soberania estritamente
nacional para a obsolescência, cabe-nos
refletir sobre a configuração do novo jogo
de poder. 0 desafio é, neste caso, reinventar
a soberania local, nacional e transnacional,
de forma a promover a transparência e a
responsabilização do poder soberano. Uma
solução possível seria a implementação de
formas de participação direta dos cidadãos
nas decisões políticas através de referendos e
utilizando as novas tecnologias informáticas.
Esta soberania popular funcionaria segundo
o modelo de círculos concêntricos, de
acordo com o qual as decisões, das mais
locais às internacionais, seriam tomadas
pelas pessoas por elas afetadas.
Os parâmetros do jogo da soberania não
podem ser determinados a priori, sob pena
de cairmos numa renovada imposição de
medidas de coação à população.
Estas regras emergirão à medida que
os cidadãos jogarem este novo xadrez,
definidas não por pressões económicas
ou pela troika mas pelos diferentes
intervenientes no processo da tomada de
decisões soberanas.
Universidade de Georgetown
www.patriciavieira.net
Ikerbasque / Universidade do País Basco,
www.inichaelmarder.org
FABRICE COFFRINI/AFP
Tribuna Modelos económicos
Eugenio Viassa Monteiro
T
eve grande impacte o processo
de selecção do sucessor de Ratan
Tata na presidência do Grupo
Tata. Estava em causa o futuro
do grupo, que, no ano 2011/12,
ultrapassou a facturação de
100.000 milhões de dólares; com
este procedimento, terá ficado
mais claro que sobre a empresa
recai uma “hipoteca social”,
e ela não é um brinquedo nas mãos dos
proprietários ou dirigentes. Ratan deixou
já um objectivo orientativo ambicioso ao
próximo presidente: facturar 500.000
milhões de dólares em 2020/21!
Num país que, até 1991, estava encalhado
num modelo económico socialista e
retrógrado, matando a iniciativa com
favoritismos e corrupção, Ratan Tata foi
capaz de apanhar a nova onda da livre
iniciativa, modernizando o seu grupo e
dando-lhe uma dimensão global, com
uma presença invejável em mais de 80
países dos cinco continentes, e com mais
de 50% das receitas a provirem hoje
de fora da Índia. Ratan Tata dizia que a
globalização do grupo “não era apenas
para aumentar a facturação, mas sobretudo
para estar em locais onde possamos criar
uma presença significativa e participar no
desenvolvimento do país”. No ano fiscal
1991/92, quando Ratan foi nomeado CEO, o
grupo facturava apenas 5.800 milhões de
dólares, todos na Índia.
Algumas das empresas do grupo laboram
em novas tecnologias, na ponta do saber,
discutindo a primazia com empresas
americanas avançadas, de existência
muito mais antiga. É o caso da TCS-Tata
Consultancy Services, com mais de 250.000
trabalhadores muito especializados, que
incorporou 66.000 no ano passado e cerca
de 60.000 este ano, tendo facturado 10.170
milhões de dólares em 2011/12.
A outra empresa do grupo que ganhou
notoriedade foi a Tata Motors. Fez duas
proezas que demonstram a capacidade de
lançar desafios, por parte dos dirigentes,
e de lhes corresponder, por parte dos seus
trabalhadores. Comprou uma empresa
estagnada, a Jaguar Land Rover, à Ford,
que não sabia que destino lhe dar, por ela
própria estar à beira da falência. O Grupo
Tata deu-lhe um formidável impulso, a
ponto de ser hoje uma das empresas mais
rentáveis do grupo.
Ao mesmo tempo, na Tata Motors, o
próprio Ratan desafiou-a a algo que nunca
tinha ocorrido na indústria do automóvel:
a projectar e construir “o carro mais
barato”, acessível na Índia a quantos faziam
da scooter o meio de locomoção familiar,
transportando quatro pessoas em condições
muito precárias. Fixou-lhe o preço de 1 lakh
de rupias, equivalente a 2.200 dólares; o
carro é muito vendido na Índia e, em breve,
sê-lo-á também na Europa e nos EUA.
O Grupo Tata teve desde a sua criação,
há 144 anos, uma vertente marcadamente
patriótica e filantrópica. A Tata Sons
participa no capital de 182 empresas; 66%
do capital da Tata Sons são propriedade
de fundações filantrópicas ligadas à família
Tata. Realizações de grande alcance nacional
desta prática remontam aos primórdios do
grupo: por exemplo, em 1909, foi criado o
Tata Institute of Sciences, em Bangalore, um
centro de investigação em Química, Física,
Biologia, etc., oferecendo uma plataforma
para mestrados e
doutoramentos,
que já formou uma
plêiade de cientistas
de nomeada
nos campos
nuclear, espacial,
em biologia,
neurociências,
tecnologias,
etc. Com a
independência
da Índia, a famíla
Tata achou que já
não tinha sentido
ostentar o nome
Tata, ficando então a
designação reduzida
a Indian Institute of
Sciences.
Algo parecido
se deu com o Tata
Memorial Hospital,
fundado em 1941,
em Mumbai,
dedicado ao cancro,
onde qualquer doente era muito bem
tratado, sem encargos. Em 1952, logo após a
independência, passou a chamar-se Cancer
Research Institute (CRI), deixando de parte
“Tata”, que era importante antes, para
marcar distâncias, mas já não o era depois;
a partir de 1957, o hospital é gerido pela
Ratan Tata
foi capaz de
apanhar a
nova onda da
livre iniciativa,
modernizando
o seu grupo
e dando-lhe
uma dimensão
global
Comissão de Energia Atómica Índiana. Cerca
de 70% dos milhares de doentes são hoje
tratados gratuitamente.
No campo das artes, foi criado o National
Centre for the Performing Arts, que
impulsionou a investigação e a difusão
desses saberes. Todos os centros de
trabalho do grupo — fábricas, aciarias,
etc. — têm um ambiente de segurança
exemplar no trabalho, mormente nas suas
implicações com a saúde.
Na onda expansionista, alguma aquisição
revelou-se desastrosa, pelo elevado custo, na
euforia económica, e pela queda da procura
com a crise europeia e dos EUA. Exemplo
disso é o grupo siderúrgico Corus, com mais
de 30.000 trabalhadores, que tem dado
elevados prejuízos. Nas telecomunicações
fixas e móveis, o grupo entrou na fase da sua
liberalização na Índia, mas a competição
dura entre os operadores ainda não lhe deixa
margem confortável. Na hotelaria, a marca
Taj é uma referência na Índia; contudo, os
retornos podem ser melhorados.
No conjunto da sua obra, Ratan
pode sentir-se orgulhoso de deixar um
conglomerado dinâmico, inovador, com
muito boa imagem, virado para o futuro,
empenhado na criação de riqueza e de
trabalho. O grupo ocupava mais de 460.000
trabalhadores em Maio de 2011. A sua
dimensão e o sentido de responsabilidade
levaram Ratan a nomear uma comissão
para lhe encontrar um sucessor. Os
procedimentos de transição, de grande
pedagogia, são próprios de uma instituição
séria que quer honrar as suas obrigações
perante o país, e são um modelo a seguir
por qualquer conglomerado, indiano ou
não, socialmente responsável. Foi escolhido
Cyrus Mistry, de 44 anos, filho de um dos
accionistas e administradores da Tata Sons,
ele próprio administrador, mas não da
família Tata. Tomará posse como presidente
hoje mesmo, 28 de Dezembro.
Professor da AESE e autor do livro
O Despertar da Índia
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- Michael Marder