UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR – CES VII CURSO DE DIREITO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA ALEXIS DE TOCQUEVILLE: DESCENTRALIZAÇÃO, PODER LOCAL E LIBERDADE POLÍTICA. Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel em Direito na Universidade do Vale do Itajaí ACADÊMICO(A): IG HENRIQUE QUEIROZ GONÇALVES São José (SC), maio de 2005 2 UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR – CES VII CURSO DE DIREITO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA ALEXIS DE TOCQUEVILE: DESCENTRALIZAÇÃO, PODER LOCAL E LIBERDADE POLÍTICA. Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito, sob orientação do Prof. MSc. Luis Magno Bastos Junior. ACADÊMICO(A): IG HENRIQUE QUEIROZ GONÇALVES São José (SC), maio de 2005. 3 UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR – CES VII CURSO DE DIREITO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA ALEXIS DE TOCQUEVILE: DESCENTRALIZAÇÃO, PODER LOCAL E LIBERDADE POLÍTICA. IG HENRIQUE QUEIROZ GONÇALVES A presente monografia foi aprovada como requisito para a obtenção do grau de bacharel em Direito no curso de Direito na Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. São José, 16 de junho de 2005. Banca Examinadora: _______________________________________________________ Prof. MSc. Luiz Magno Bastos Junior - Orientador _______________________________________________________ Prof. MSc. Volney Campos dos Santos- Membro _______________________________________________________ Prof. MSc. Daniela M.L. de Cademartori - Membro 4 Ao meu avô Ignácio Queiroz. 5 AGRADECIMENTOS Primeiramente dedico aos meus pais, por seu esforço incansável em minha educação, por sempre apostarem em meus sonhos, e me fazerem compreender que nada serei sem os estudos, agradeço também pelos exemplos que são, que me obriga a estar sempre querendo mais, para poder fazer jus a tê-los como pais. Aos meus irmãos e amigos Bruno e Rafa, com quem posso contar em todos os momentos. A minha namorada Roberta por apesar de também estar envolvida com sua monografia, pacientemente me escutou falar durante horas e horas durante a elaboração do presente trabalho, o que me ajudou grandemente a organizar meus pensamentos, e também a sua família que hoje soma-se a minha. Aos amigos que fiz na faculdade, em especial ao Nado, amizade que levarei para a vida. Aos professores que durante a faculdade esforçaram-se para abrir meus olhos: Ricardo Stanziola, Leonardo Vales Bento, Argemiro, Carla Seeman sem a qual não teria conhecido o grupo de pesquisa. Em especial ao professor Volney com quem muito aprendi durante o início do meu trabalho. E finalmente o professor Luis Magno, que me acompanha desde meus primeiros passos no estudo de Aléxis de Tocqueville, e brilhantemente me orientou com sua sabedoria e paciência, a quem serei eternamente grato. 6 “O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo da vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas. O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia política. Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado, o assaltante e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e lacaio das empresas nacionais e multinacionais. ” Bertold Brecht. 7 SUMÁRIO RESUMO............................................................................................................8 INTRODUÇÃO..................................................................................................9 1 INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO DE ALÉXIS DE TOCQUEVILLE.12 1.1 Pensamento liberal na França e contexto histórico....................................... 12 1.2- Apresentando Tocqueville...........................................................................20 1.3 Fundamentos Epistemológicos de Tocqueville.............................................. 25 2 A DEMOCRACIA AMERICANA DE TOCQUEVILLE: SINGULARIDADE HISTÓRICA, MODELO UNIVERSAL........................30 2.1 Traços gerais que marcam a “Democracia na América”. ............................. 30 2.2 Democracia: liberdade política e tirania da maioria. .................................... 35 2.3 Descentralização administrativa e centralização governamental. .................41 3 DESCENTRALIZAÇÃO E PODER LOCAL: DESENVOLVIMENTO DAS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS NO BRASIL. ..............................50 3.1 Estado social brasileiro: os desafios à democracia. ...................................... 50 3.1.1 Desigualdade material e democracia individualista................................... 54 3.1.2 Descentralização, poder local e representação política. ............................. 59 3.2 Descentralização e liberdade política: caminhos para a democracia. ............63 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 73 REFERÊNCIAS ............................................................................................... 77 ANEXOS........................................................................................................... 80 I -CRONOLOGIA............................................................................................80 8 RESUMO O presente trabalho tem por objetivo transportar alguns princípios desenvolvidos por Alexis de Tocqueville, no início do século XIX, para a democracia brasileira contemporânea. Acreditando que estes ainda hoje possuem um forte poder explicativo para melhor compreensão da realidade hodierna e, ainda, tentar aproveitar suas idéias para incrementar o debate acerca da democracia. Porém mais de um século e meio se passaram desde a publicação de sua obra, o que força um certo cuidado ao fazer tal transporte, correndo o risco de serem distorcidas suas teorias se não forem feitas algumas considerações como, por exemplo, o estudo do contexto histórico em que viveu, suas motivações políticas, a transição do Antigo Regime para o Estado na forma como conhecemos hoje, enfim, tudo que tenha influenciado o autor em sua produção intelectual. 9 INTRODUÇÃO Passaram-se dezessete anos desde a promulgação da Constituição brasileira de 1988, neste período ganhamos uma nova moeda e uma relativa estabilidade economia. Foram quatro eleições diretas, quatro presidentes, um impechament. O Brasil alcançou a posição de maior referencia política e econômica da América Latina, aparentemente com uma democracia consolidada pelo menos em seus aspectos formais. Mas, por outro lado, possuímos uma das mais injustas distribuições de renda no planeta, que faz com que nosso estado social seja marcado por uma extrema desigualdade tanto econômica quanto de oportunidades. Um país que se esforça para parecer internacionalmente estável, para que possa ter credibilidade econômica, e atrair investimentos internacionais, mas, internamente, a população se encontra, em grande desamparo, em sua maioria, largada a uma situação precária. O Estado, com toda sua estrutura burocrática, recolhe uma pesada carga tributária dos contribuintes mas não realiza a contraprestação devida à população, que, de um modo geral, não possui saúde, segurança ou educação pública de qualidade, sem falar em casos mais extremos dos que não têm nem o que comer. Enquanto isso, do outro lado da balança, temos uma minoria que, de quatro em quatro anos, se articula com seus patrocinadores para, avidamente lutarem pelos votos da população, a fim de que ingressem ou permaneçam no poder por mais quatro anos. Elegem-se pregando os ideais democráticos, o combate às desigualdades sociais e o aumento dos empregos. Mas, depois de eleitos, o que vemos é um governo que não governa para o povo mas, ao contrário, distancia-se de seus eleitores e usa a maquina do Estado para gerir seus interesses privados. Por parte do povo, a apatia política tende a aumentar conforme aumenta a valorização da importância da vida privada e na busca de saciar os desejos do consumismo e do materialismo, o homem contemporâneo dedica-se cada vez mais ao desfrute de seu bem estar material e, cada vez mais, se distancia da sociedade. Como se vivesse sozinho no mundo, ou melhor, depois que restringe seu círculo de relacionamentos a um pequeno grupo, formado por seus familiares e amigos, larga, de bom grado, a sociedade a ela mesma. Para ele o Estado só existe para lhe possibilitar a liberdade necessária a seu progresso pessoal. Os miseráveis, os 10 famintos e os excluídos não lhe interessam, a não ser quando fatalmente algum deles lhe invade a propriedade ou lhe perturbam em sua liberdade. No momento que é agredido (assalto, roubo, ou outra violência), o homem contemporâneo olha para o Estado e lhe cobra segurança, reclama da polícia pois, afinal, ele paga impostos e a segurança realmente é devida, porém raramente percebe que a relação entre o seu descaso social e a agressão é muito estreita. Alexis de Tocqueville desenvolveu algumas idéias e conceitos importantes, que ainda hoje possuem um grande força explicativa para entendermos a democracia contemporânea. E, mais que isso, observa meios para tentar frear os perigos a que está sujeita a democracia durante seu desenvolvimento no mundo ocidental, entre eles a apatia política. Porém um século e meio se passou desde o surgimento das idéias de Alexis de Tocqueville até os problemas atualmente enfrentados pela democracia brasileira. O que força um grande cuidado, ao tentar transportar suas idéias do século XIX para o século XXI. É exatamente o que pretende o presente trabalho, e para tal fim, organiza-se em três capítulos: no primeiro capítulo é apresentado o autor, o pensamento político de seu tempo e sua fundamentação epistemológica, no segundo capítulo, a América empírica analisada com sagacidade por Tocqueville o que lhe rendeu, interessantes considerações. E, por fim, no terceiro capítulo, a partir do entendimento do autor e do contexto histórico em que foram desenvolvidas suas idéias, tentar valer-se de alguns princípios universais para o debate atual acerca da democracia brasileira. Seu pensamento foi desenvolvido, depois de uma observação perspicaz da democracia nos Estados Unidos durante o nascimento da mesma. O que para um aristocrata, filho do Antigo Regime francês, apresentava-se como um mundo inteiramente novo, um mundo onde reinava a igualdade entre os cidadãos, realidade extremamente oposta à da sociedade de castas a que a Europa ainda se vinculava. Diante desta cena, Tocqueville percebe ser necessária à criação de “uma nova ciência política para um mundo inteiramente novo”. Sua reflexão basicamente consistiria em tentar responder a pergunta de como seria possível garantir a liberdade política nos tempos de igualdade. Para o autor, a liberdade política é único meio de evitar o aparecimento de um novo “tipo de despotismo”, que trabalharia em função da apatia política de seus cidadãos e comprometeria o futuro das nações democráticas. Apresentado o autor, o pensamento político do seu tempo e suas observações, será feita uma breve reflexão sobre as instituições brasileiras e as dificuldades para se estabelecer 11 uma democracia legítima no Brasil e, por fim tentar demonstrar a importância das teorias de Tocqueville para incrementar os debates atuais acerca da reforma do Estado. 1 1.1 INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO DE ALÉXIS DE TOCQUEVILLE. Pensamento liberal na França e contexto histórico. Antes de adentrar no estudo do pensamento liberal, cabe salientar que o século XVIII foi o momento culminante das sucessivas transformações culturais vividas a partir do século XIV pela sociedade européia. Desde o Renascimento1, o homem moderno foi ampliando a confiança em si mesmo, no poder da razão e da liberdade de pensar. Inspirados pelo mundo clássico muitos pensadores passaram a lançar teorias sobre os mais diversos assuntos: filosofia, astronomia, teologia, política entre outros.2 A igreja, os reis absolutistas e a nobreza conservadora, todos muito criticados, não gostavam dos ataques ao Antigo Regime. Mas as novas idéias foram se espalhando por toda Europa3, originando o chamado Iluminismo, que apresentava pequenas variações em seus ideais pelas regiões européias, mas basicamente consistia em um movimento cultural também baseado na capacidade da razão humana, mas desejava ainda resultados práticos no combate às injustiças e desigualdades promovidas pelas instituições e crenças estabelecidas pelo regime absoluto. O iluminismo forneceu a base intelectual para a “Revolução Francesa” e foi de fundamental importância para história contemporânea, influenciando vários ramos da ciência e, na política, constitui a origem do pensamento liberal. 4 O germe do pensamento liberal surge na Inglaterra, na figura de nobres e burgueses que reivindicam contra o Estado absolutista, maior liberdade política para o parlamento, e limitações ao poder do rei. O que só é alcançado depois de um longo processo que se divide 1 Renascimento é o termo aplicado ao movimento de renovação intelectual e artística iniciada na Itália, no século XIV, e atingiu seu apogeu no século XVI, influenciando varias outras regiões da Europa. A noção de renascimento diz respeito à restauração dos valores do mundo clássico. Este conceito foi sistematicamente desenvolvido por Giorgio Vasari, que acreditava ter a arte decaído esteticamente durante a Idade Média. Para Vasari, a expressão artística só conseguiu encontrar um verdadeiro caminho com Giotto di Bondone e Michelangelo Buonarroti, foi o ponto culminante desta renovação. O ideal de “homem renascentista” era marcado pela crença em uma capacidade ilimitada da criação humana. Esta idéia foi personificada por Leonardo da Vince e por Leon Battista Albert entre muitos outros. O Renascimento significou uma fase de alargamento dos limites humanos. O novo espírito de investigação proporcionou progressos técnicos e conceituais, além de questionamentos religiosos que abriram caminhos para as reformas religiosas. Nova Enciclopédia Ilustrada Folha. São Paulo. Folha. 1996. v.2 p.830. 2 COTRIM,Gilberto. Historia e consciência do mundo.. 5ª ed.. São Paulo. Saraiva. 1997.p.243. 3 O iluminismo ou política da razão deve muito de sua divulgação pela Europa às Lojas Maçônicas, ver CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do pensamento político - o declínio do Estado-Nação monárquico. 1983. v.2, p.103-110. 4 COTRIM,Gilberto. Historia e consciência do mundo.. 1997.p.243. 13 em quatro momentos principais; Guerra civil (1642-1648); República de Cromwell (16491658); Restauração Monárquica (1660-1688) e a Revolução Gloriosa (1688-1689). Chevalier comenta que os ingleses estavam fadigados por vinte anos de agitação civil e que não guardavam boas recordações da experiência republicana, reencontraram com alívio a monarquia tradicional. Carlos II é reposto no trono Inglês em 1660, e as condições de entendimento entre ele e o parlamento pareciam preenchidas.5 Carlos II consegue terminar o seu reinado, resistindo às turbulências do governo principalmente na esfera religiosa entre católicos e protestantes. Quem o sucede no trono é seu irmão Jaime II, que não possui a mesma habilidade para o governo, e deixa ruir a relação da monarquia com o parlamento, o que culmina na Revolução Gloriosa e a fuga de Jaime II, frente ao exército de Guilherme de Orange que é acolhido como libertador, em seus estandartes estão inscritas estas palavras: pela liberdade, pelo parlamento, pela religião protestante.6 Mediante a aceitação de uma Declaração de Direitos redigida pelo parlamento inglês de acordo com a Carta Magna e a Petição de Direitos, Guilherme e Mary (filha do primeiro casamento de Jaime II) tornam-se conjuntamente soberanos da Inglaterra em fevereiro de 1689. É o triunfo da monarquia constitucional e do parlamento sobre o direito divino e o absolutismo.7 André Jardin comenta este momento da revolução: Foi o rei Jaime II que, ao renovar as intenções absolutistas dos Stuarts, desencadeou a revolução que o condenou ao exílio. Sua filha e seu genro, Guilherme, pertencente a realeza dos países baixos, tiveram que aceitar os princípios impostos pela Petition of Rights preparada pelo parlamento, antes de subirem ao trono. Esta declaração fixou os limites do poder real e garantiu as liberdades do cidadão. Ademais estabeleceu um regime representativo, em que o parlamento votava as leis e aprovava os impostos sobre tudo. O parlamento era composto por duas Câmaras, a dos Lordes, composta por aristocratas de forma hereditária, e a outra a dos Comuns, que era eleita pelos súditos que tinham direito ao voto. Inspirada na velha tradição política inglesa, que defendia os interesses absolutistas de um lado, a Petition of Rights consagrou a colaboração da monarquia, da aristocracia, e do povo, e ainda, dividiu o poder do estado em três: Legislativo, Executivo e Judiciário. Durante o século XVIII, este sistema não eliminou nem conflitos, nem abusos, porém seus mecanismos despertaram os interesses dos liberais franceses. Montesquieu o demonstrou em rodas e engrenagens, e logo inspirou vários escritores políticos, na França, e na própria Inglaterra, um milagre de equilíbrio e moderação.8 5 CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do pensamento político. 1983. v.2, p.73 CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do pensamento político. 1983. v.2, p.73 7 Para saber mais sobre a origem do liberalismo político e os Motivos que levaram a Revolução Inglesa, ver CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do pensamento político. 1983. v.2 , 11-53. 8 JARDIN, André. História del liberalismo político. México: Fondo de cultura econômica. 1998. p.13. 6 14 Há uma grande diferença entre a aristocracia inglesa e a francesa. No primeiro caso a aristocracia compartilhava interesses “liberais” com a burguesia, tinham laços estreitos de ligação, formando uma só força contra o poder absoluto do rei, lá a nobreza manteve-se na direção dos negócios públicos, inclusive reduzindo seus privilégios pecuniários com a abolição da desigualdade de impostos que a favorecia. Conseguindo manter-se no comando.9 A aristocracia comportou-se de modo diverso na França, a fim de manter seus privilégios, lutou pela manutenção da imunidade de impostos para compensar a perda do controle do poder para o governo absoluto e centralizado. Inclusive Tocqueville, anos mais tarde, ao estudar o processo que levou à Revolução na França, conclui que o abandono da nobreza de seu lugar de mando e de proteção às comunidades, foi responsável por parte substancial das mazelas do Antigo Regime.10 Portanto, na França, as idéias liberais se desenvolveram mais lentamente. O liberalismo francês foi considerado um “liberalismo nobre”, de essência aristocrática pura 11. Aliás, ele questiona menos o absolutismo em seu princípio (o qual no fim de contas, parece consolidado) do que em seu exercício por Luís XIV, rei da França na época. Destacam-se neste período os seguintes pensadores: Sant-Simon, Fénelon e o Conte Henri de Boulainvilliers.12 Eram influenciados pela produção intelectual inglesa, porém ainda mantinham vínculos diretos com o Antigo Regime. Anos mais tarde, a França sofre uma nova influência inglesa, Chevallier chama a atenção para a estada forçada de Voltaire na Inglaterra, depois que o cavaleiro de Rohan o mandou indignamente espancar por sua gente, onde permaneceu de maio de 1726 a outubro de 1728. As Cartas filosóficas, publicadas em 1734, vão, em conseqüência dessa viagem, fornecer ao público culto de Paris e da província em geral exatamente o que precisavam: uma informação, atual, rápida, perspicaz e espiritual acerca do país vizinho e rival, próspero e de espírito avançado. Um país que diferia em muitos pontos e vantajosamente (subentenda-se de bom grado) da França do cardeal Fleury, ministro do jovem Luís XIV.13 Voltaire comenta em suas cartas o panorama inglês: as letras e as artes na Inglaterra são respeitáveis aos olhos do povo e mais prestigiadas do que na França. Os 9 JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. Rio de Janeiro: ACCESS, 1997.p.293304. 10 JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.293. 11 Este termo “liberalismo nobre” é usado por Chevallier para descrever a aristocracia francesa, a quem interessa em primeiro lugar, à sociedade nobre, ver Capitulo III- Na França: o liberalismo nobre. CHEVALLIER, JeanJacques. História do pensamento político.1983. p.54-55 12 CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do pensamento político. 1983.p.67. 13 CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do pensamento político. 1983, v.2, p.73. 15 escritores desfrutam a consideração que lhes é devida. E quanto ao teatro, a arte dramática, quem poderia sonhar em condená-los, em nome de uma severidade cristã que Voltaire qualifica de “barbárie gótica”. Em política:14 [...] a nação inglesa é a única da terra que chegou a regulamentar o poder dos reis resistindo-lhes, e que de esforço em esforço chegou, enfim, a estabelecer um governo sábio, onde o príncipe, todo poderoso para fazer o bem, tem as mãos atadas para fazer o mal; onde os senhores são grandes sem insolência e sem vassalos, e onde o povo participa do governo sem confusão [...] aqui não ouvireis falar em alta, média e baixa justiça, nem dos direitos de caçar nas terras de um cidadão, que não pode dar um tiro se quer em seu próprio campo. Porque nobre ou padre, um homem não esta isento de pagar certos impostos.15 Escandalosa, contrária à religião, aos bons costumes e ao respeito que se deve aos poderosos - tal foi o veredicto do parlamento de Paris contra a obra. Essas cartas chamadas inglesas, que indiretamente atentavam contra as instituições fundamentais do Antigo Regime francês(“a primeira bomba” – dirá G. Lanson- lançada contra ele), foram condenadas ao fogo e decretada a detenção do autor. Voltaire escondeu-se em Cirey, na Champagne, na residência de Mme du Châtelet.16 Tempos depois na França, Montesquieu, filósofo moralista, historiador e teórico político, alias, junto com Rousseau e Pascal, era um dos autores mais apreciados por Tocqueville e provavelmente aquele que mais influenciou seu trabalho cientifico17. Montesquieu irá exercer uma influência tão considerável quanto paradoxal nas assembléias constituintes revolucionárias francesas. De sua reflexão sobre o espírito das leis, ele induz uma nova classificação dos regimes políticos, ao cabo da qual o governo moderado, onde é assegurado uma separação dos poderes, revela-se a única solução institucional da liberdade política. O método comanda um projeto. Mas qual? Pra alguns, Montesquieu – apesar de suas nostalgias feudais – tomava resolutamente partido pelo liberalismo; para outros, o barão de La Bréde tornou-se objeto de uma recuperação revolucionária por causa de um mal entendido: destinados a preservar os privilégios da nobreza, sua teoria política e jurídica foi desviada de seu significado a fim de ser posta a serviço da “causa do povo”, ou, pelo menos, do Terceiro Estado burguês.18 Nas palavras de Marcelo Jasmin, Montesquieu fora um sistematizador de uma nova concepção de ordem social no século XVIII. Revertendo o argumento contratualista da 14 CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do pensamento político. 1983.v.2, p.73 VOLTAIRE, Essai sur lês Moeurs. Apud: CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do pensamento político. 1983. v.2. p.67. 16 CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do pensamento político .1983. v.2. p.67. 17 JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política.1997.p.251. 18 CHÂTELET, François. Historia das idéias políticas. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro. 1985.p.61. 15 16 impossibilidade do conhecimento verdadeiro a partir da observação empírica, propôs que a diversidade do direito e dos costumes não era fruto do capricho humano, mas sim resultado de princípios e leis que ordenavam o comportamento social e suas instituições. Sua definição de lei como relação, e não como mandamento, supunha a existência de ligações imanentes entre variáveis fenomênicas, de unidade sob diversidade empírica dos fatos. A realidade histórica aparecia ordenada por uma legalidade que não fora criada ou imposta pela vontade humana: eram imposições objetivas derivadas das relações necessárias entre as coisas ou sua natureza. O contingente submetia-se assim a causas gerais e o acidente não poderia explicar o desenvolvimento das instituições humanas.19 Para ilustrar esta idéia de Montesquieu, palavras suas: A lei, em geral, é a razão humana, na medida em que governa todos os povos da terra, e as leis políticas e civis de cada nação devem ser apenas os casos particulares em que se aplica essa razão humana. Devem ser elas tão adequadas ao povo para o qual foram feitas que somente por um grande acaso as leis de uma nação podem convir a uma outra. Cumpre que se relacionem à natureza e o princípio do governo estabelecido ou que pretende se estabelecer, que elas o formem, com as leis políticas, quer elas o mantenham, como fazem as leis civis. Devem as leis ser relativas ao físico do país, ao clima frio, quente ou temperado; à qualidade do solo, a sua situação, ao seu tamanho; ao gênero de vida dos povos, agricultores, caçadores ou pastores; devem relacionar-se com o grau de liberdade que a constituição pode permitir; como a religião dos habitantes, suas inclinações, riquezas, número, comércio, costumes e maneiras. Possuem elas, enfim, relações entre si e coma sua origem, com os desígnios do legislador e com a ordem das coisas sobre as quais elas são estabelecidas. É preciso considerá-las em todos esses aspectos. É isso que pretendo realizar nesta obra. Examinei todas essas relações; formam elas, no conjunto, o que chamamos de Espírito das Leis.20 Esse espírito, dirá ainda Montesquieu, consiste nas diferentes relações que as leis podem ter com diversas coisas: com as coisas “inumeráveis”, as relações “i numeráveis”. 21 Lição esta, aprendida por Tocqueville, e aplicada na América, quando analisa a democracia americana e sua estrutura administrativa, autor conclui ser impossível transpor as instituições americanas para a França, porém aprender com elas alguns princípios, poderia vir a ser útil ao pensar as reformas institucionais que seu país necessita. A Revolução Francesa acontece com um século de atraso em relação à Revolução Inglesa.22 Na França, a aliança entre girondinos (burguesia) e jacobinos (povo, trabalhadores), volta-se não só contra o poder absoluto do rei como também contra os privilégios da 19 JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.252. MONTESQUIEU. De l’Esprit dês lois. Apud: CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do pensamento político .1983.v.2,p.73. 21 CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do pensamento político. 1983. v.2, p.73. 22 Ver, André Jardin no livro História del liberalismo político , que traz uma análise profunda do pensamento liberal desde a crise do absolutismo no século XVII até a Constituição francesa de 1875. 20 17 aristocracia francesa. O que se estende por um período sangrento, cabeças da nobreza francesa rolaram nas guilhotinas, de julho a outubro, em 9 de julho através de inflamadas manifestações populares, ocorre à proclamação da assembléia nacional constituinte que, abole os privilégios feudais. É promulgada a declaração dos direitos dos homens e do cidadão e é instituído pela nova Constituição Liberal o regime da Monarquia Constitucional. Que fracassa e faz a França mergulhar em um período de instabilidade política. Os girondinos insatisfeitos com a instabilidade provocada pelos interesses populares, instituíram a República, que também fracassa, e anos mais tarde apóiam o golpe de estado de Napoleão Bonaparte, que torna-se Imperador da França, onde governa até sua queda em 1815.23 Mas de um modo geral na Europa, no início do século XIX, o Estado- Nação constitui-se por toda parte como estado liberal: o liberalismo político é sua filosofia dominante. Estas concepções liberais dominantes almejam resolver principalmente a “questão política”, entendida essencialmente como o problema das relações entre o indivíduo e o Estado. Qualquer que seja a diversidade dessas doutrinas “de acordo com a época, o país, as tendências numa época e num país”, pode -se perceber a presença de uma dupla preocupação essencial: o indivíduo deve ser protegido ao mesmo tempo, contra o Estado e contra as massas; por conseguinte, é preciso encontrar os mecanismos institucionais destinados a impedir esse duplo perigo.24 Como destaca Châtelet, podem ser distinguidos, a grosso modo, dois tipos de solução. Uma versão mais ou menos otimista que considera que a aplicação de certas “receitas” institucion ais pode subtrair o indivíduo do despotismo, enfraquecendo a autoridade do Estado e impedindo o advento da democracia de massa; o exemplo mais significativo seria a solução proposta por Benjamin Constant (1767-1830). A outra, versão nitidamente mais pessimista, considera o advento democrático como inelutável e tenta preconizar métodos destinados, não a impedir, mas a evitar o excesso de despotismo que um tal advento corre o risco de promover; coube a Alexis de Tocqueville, de certo, ilustrar do modo mais exemplar essa segunda versão.25 Benjamin Constant defende um liberalismo contra a democracia. Ele considera que a sociedade política não tem como fim a igualdade; essa se combina com uma concepção arcaica da liberdade, legítima para os antigos mas inútil e perigosa para os modernos, iludidos 23 JARDIN, André. História del liberalismo político. 1998. p.108-128.. CHÂTELET, François. Historia das idéias políticas. 1985.p.105. 25 CHÂTELET, François. Historia das idéias políticas. 1985.p.105. 24 18 pela eterna metafísica do Contrato social.26 O objetivo dos antigos era partilhar o poder social entre todos os cidadãos de uma mesma pátria. Era isso que eles chamavam de liberdade. O objetivo dos modernos é a segurança nas fruições privadas; e eles chamam de liberdade as garantias concedidas pelas instituições.27 Para Benjamin Constante, em questão de política moderna, pouco importa ao indivíduo que se afirme que a soberania é popular, monárquica ou de outro tipo. Se só é soberano aparentemente, essa aparência já lhe basta, desde que a autoridade do estado seja limitada. Será preciso encontrar ainda um sistema que permita combinar essas características da liberdade com as da soberania popular? O melhor sistema, segundo Constant, seria o sistema representativo.28E tal sistema implica logicamente, aos seus olhos, a condenação de qualquer forma de sufrágio universal: o sufrágio deve ser restrito. Ele desenvolveu uma ingênua astúcia: a condição necessária para o exercício político é o lazer, pois esse lazer é indispensável para a aquisição das luzes. 29 Não quero cometer nenhuma injustiça contra a classe laboriosa [...] Mas as pessoas que a indigência conserva numa eterna dependência e que condena a trabalhos diários não são nem mais esclarecidos do que as crianças, nem mais interessados do que os estrangeiros numa prosperidade nacional da qual eles não conhecem os elementos e da qual só indiretamente partilham as vantagens [...]. portanto seria absurdo conferir-lhes direitos políticos, que servirão infalivelmente para invadir a propriedade. Elas marcharam por esse caminho irregular, em vez de seguirem a rota natural, o trabalho: seria para eles uma espécie de corrupção; e, para o Estado, uma desordem [...].30 Quanto à distribuição dos poderes Benjamin segue a idéia de Montesquieu, mas segundo Châtelet, acrescenta uma contribuição original a sua teoria: o poder do rei não tem porque governar; os ministros tem o poder ativo e encarregam-se disso. O monarca constitucional é um “p oder neutro”, que garante os limites da soberania. 31 Tocqueville por sua vez, adota a concepção de um liberalismo democrático. O autor descobriu a democracia americana, segundo François Châtelet, talvez resida ai a perspicácia de suas análises, mas também a causa de suas limitações. 26 CHÂTELET, François. Historia das idéias políticas. 1985.p.105. CONSTANT, Benjamin. De la liberte dês anciens comparée à celle dês modernes. Apud CHÂTELET, François. Historia das idéias políticas. . 1985.p.105-106. 28 CHÂTELET, François. Historia das idéias políticas. 1985.p.106. 29 CHÂTELET, François. Historia das idéias políticas. Jorge. 1985.p.108. 30 CONSTANT, Benjamin. De la liberte dês anciens comparée à celle dês modernes. Apud CHÂTELET, François. Historia das idéias políticas. 1985.p.108. 31 CONSTANT, Benjamin. De la responsabilité dês ministres. Apud: CHÂTELET, François. Historia das idéias políticas. 1985.p.108. 27 19 A primeira novidade na teoria de Tocqueville é o fato do poder irresistível da democracia sobre o futuro da humanidade, ele a entende como inevitável. Mas é preciso especificar imediatamente que, para Tocqueville (e nisso reside a sua originalidade), esse fato democrático é definido a partir da noção de igualdade.32 A ambigüidade do pensamento de Tocqueville, constitui o que Marcelo Jasmin denomina “dilema tocquevilliano”, que expressa a concepção de que a liberdade política na sociedade igualitária de massas depende de uma práxis e de um conjunto de valores cujas bases tendem a ser destruídas pelo desenvolvimento continuado das disposições internas da própria democracia.33 Estas disposições internas podem ser resumidas pelo individualismo e materialismo democrático moderno, que preparam o leito para o poder despótico. Apesar de distintas, as teorias de Constant e Tocqueville são ambas frutos do pensamento liberal do século XVIII34, que visava principalmente encontrar soluções para garantir ao indivíduo liberdade contra o Estado e conta as massas. Outra diferença marcante é a ótica com que os autores vêm o problema, enquanto Benjamin Constante foca seu olhar no presente, Aléxis de Tocqueville mira o olhar para o futuro. Enfim foi o pensamento iluminista que, resgatou o homem das trevas, que o prendiam à ignorância dos preconceitos e das superstições, e o lançou a olhar para si mesmo, desenvolvendo a idéia de que através de seu esclarecimento poderia agir livremente em seu próprio benefício, largando de bom grado aquele estado de menoridade política, onde obedecia apenas à vontade do soberano.35 Originando assim o liberalismo político, escola do pensamento da qual Alexis de Tocqueville faz parte. 32 CHÂTELET, François. Historia das idéias políticas. 1985.p.109-110. JASMIN, Marcelo. As Américas de Tocqueville: a comunidade e o auto interesse.In:- democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea.UnB.2001.p.204. 34 La obra de Tocqueville, notable por su unidad, abrió pers pectivas nuevas a los valores liberales. El siglo XVIII, a pesar de las preocupaciones polémicas, los fijó de manera intemporal. Bejamín Constant los había adaptado a la sociedad de su tiempo, mientras que los doctrinarios intentaron insertalos em la tradición. Tocqueville los entendió como directrices de la sociedad occidental: señaló los escolhos em los que podia naufragar, no sólo los de despotismo brutal, sino los Del aneganiento em el bienestar material, com lo que al parecer presintió la angustia de los hombres de nuestros dias em los umbrales de los regímenes totalitários o de la sociedad de consumo. Se esforzó por definir las costumbres y las instituciones de uma democracia libre Del futuro. Por eso es el pensador liberal más leído y más comentado de nuestro dias. JARDIN, André. História del liberalismo político. 1998. p.382.. 35 CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do pensamento político. 1983.v.2, p.104. 33 20 1.2- Apresentando Tocqueville. Consagrado pela posteridade como escritor, sociólogo da democracia moderna e historiador do Antigo Regime36, Alexis Charles Henri Clérel de Tocqueville sempre ambicionou ser um homem da política37. Nascido em julho de 1805, terceiro filho de uma tradicional família da nobreza normanda, que encaminhara os dois mais velhos à carreira militar, é provável que desde cedo seu destino como homem público estivesse programado pelo conde Hervé de Tocqueville, seu pai, para dar continuidade à presença dos Clérel na vida política. Contudo para além desta destinação familiar, o jovem Tocqueville sempre expressou uma vontade própria de dirigir os negócios de Estado38, e tinha uma percepção aguçada das mudanças sociais que estavam ocorrendo em seu país. De 1820 à 1823, foi o único da família a acompanhar seu pai a Metz, onde ingressou e concluiu sua formação básica no Liceu de Metz, e ainda passou um longo tempo sozinho na prefeitura onde descobriu a biblioteca dos filósofos, e em suas leituras solitárias, começou a meditar sobre a evolução da democracia.39 Em 1827, após ter concluído seus estudos de direito em Paris, ingressou na magistratura em busca de uma carreira provisória à espera do cumprimento das exigências da legislação eleitoral da Restauração que previa a idade mínima de quarenta anos para uma candidatura à Câmara dos deputados. Aos vinte e quatro anos tinha clareza da sua ambição: “C’est I’homme politique qu’il faut faire em nous”, escrevia ao amigo Gustave de Beumont que com ele partilhava as mesmas pretensões.40 Em 1830, a Revolução continua41, a alta burguesia contra o rei, que culminou na deposição de Carlos X, que visava estabelecer um regime contrário a todas as conquistas liberais posteriores a 1789, e em seu lugar foi conduzido ao trono francês, Luís Felipe D’Orleans, que governou de 1830-1848, teve início a chamada idade de ouro da alta burguesia, período em que o capitalismo francês apresentou grande desenvolvimento industrial e financeiro. Mas em contrapartida evidenciava-se, neste mesmo período, um complexo conjunto de fatores sócio-econômicos negativos. Misturando-se diferentes ideais nacionalistas, liberais e sociais.42 36 JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.25. JARDIN, André. História del liberalismo político. 1998. p.372-373.. 38 JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.25. 39 JARDIN, André. Historia del liberalismo político.. 1998.p.372. 40 JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.25-26. 41 Ver anexo – Cronologia. 42 JARDIN, André. História del liberalismo político. 1998. p.372-382. 37 21 Tocqueville prestou juramento ao novo monarca, exigido pela lei de agosto de 1830, embora continuasse ligado aos legitimistas43. Sem alegria comenta em uma carta ao seu amigo Kergorlay, que é um momento desagradável para ele ter de prestar juramento ao novo monarca, mas também sem drama de consciência maior, lamentando simplesmente que esse ato possa ser interpretado como ditado pelo interesse, quando é testemunho de resignação.44 A viagem à América, segundo Furet, é um mistério de origem: em que data essa idéia lhe ocorreu pela primeira vez? Quando o projeto tomou corpo? E por que a América?45 Nem os fatos comuns, nem a documentação existente permitem responder de modo convincente a essas perguntas. Os fatos são claros, mas iluminam apenas um lado menor da questão: a missão penitenciária. Quando Tocqueville e seu amigo Beaumont embarcam no Havre, em abril de 1831, os dois jovens magistrados estão investidos de uma missão de exame das instituições penitenciárias americanas. Missão solicitada pelos interessados, não paga, mas oficial.46 A documentação disponível não fornece um testemunho irrecusável a respeito de suas razões profundas. Em carta escrita a seu amigo Beaumont, Tocqueviile menciona as razões circunstanciais ligadas à Revolução de 1830 que colocou os dois, descendentes de famílias legitimistas, numa posição delicada. Porém, mesmo admitindo esta motivação “diplomática”, por que a América? Muitos outros países poderiam oferecer-se a curiosidade dos amigos e justificar igualmente sua ausência. Principalmente a Inglaterra, devido ter freqüentado com paixão os famosos cursos de Guizot na Sorbone, e mostrar seu interesse pela história comparada entre a França e a Inglaterra.47 O fato é que Tocqueville e Beaumont vão para os Estados Unidos, e esta viagem sugeriu a Tocqueville algumas reflexões. Ele observa e recolhe informações acerca da civilização e da política norte-americana. A partir desses dados refletiu sobre o governo em geral e a democracia em particular. O resultado desse trabalho foi publicado em A Democracia na América. A primeira parte do livro saiu em 1835; nela o autor estuda a história e a tradição política dos americanos e suas influências sobre as instituições que observou. Na segunda parte, publicada cinco anos depois, trata da influência das instituições 43 Legitimistas eram os políticos franceses ligados a monarquia restaurada de Luís XVIII e Carlos X, que não aceitavam o governo de Luiz Felipe D’ Orleans, que favorecia os interesses da alta burguesia, ver JARDIN, André. História del liberalismo político. p. 318-328. 44 FURET, François. Prefácio. In: A democracia na América. Martins Fontes. São Paulo. 2001.v.1,p. XV. 45 FURET, François. Prefácio. p.XI. 46 FURET, François. Prefácio. p.XI. 47 FURET, François. Prefácio. p.XII. 22 sobre os costumes. O que torna segundo suas palavras, o primeiro livro mais americano que democrático e o segundo mais democrático que americano48. Todo o livro, contudo, unifica-se em torno de uma preocupação fundamental: como evitar o que o igualitarismo ameace as liberdades, ou em outras palavras como impedir que se instaurasse a tirania da maioria.49 Em nova carta ao seu amigo Kercolay, em janeiro de 1835, ou seja, depois da publicação do primeiro livro da Democracia, apresenta seus motivos mais íntimos, pela escolha da América. Primeiro ele observa que, sendo inevitável a marcha para a igualdade, o problema central da época é saber se ela será compatível com a liberdade; e acrescenta: Não foi portanto sem ter refletido maduramente a esse respeito que me abalancei a escrever o livro que ora estou publicando. Não dissimulo em absoluto o que há de incômodo na minha posição: ele não deve atrair para mim as simpatias vivas de ninguém. Uns acharão que no fundo eu não gosto da democracia e que sou severo para com ela; outros pensarão que favoreço imprudentemente o seu desenvolvimento. O que haveria de mais feliz para mim que não se lesse o livro, e essa é uma felicidade de que talvez desfrutarei. Sei de tudo isso mais eis a minha resposta: há dez anos venho pensando uma parte das coisas que logo lhe exporei. Fui para a América apenas para me esclarecer sobre esse ponto. O sistema penitenciário era um pretexto: tomei-o como um passaporte que me permitiria penetrar em todos os lugares dos Estados Unidos. Nesse país onde encontrei mil objetos que estavam fora da minha expectativa, percebi que muitos deles diziam respeito às perguntas que fizera a mim mesmo.50 Esta carta demonstra a precocidade com que Tocqueville ingressa na vida intelectual e política, é como se a viagem fosse a origem da formação do sistema conceitual de Tocqueville51, que opera segundo Marcelo Jasmin, pela justaposição de dois níveis distintos, formados cada um deles, por pares de conceitos opostos, o que será visto em detalhes no próximo tópico sobre a epistemologia de Tocqueville.52 Sua estadia na América durou um pouco mais de um ano, ao voltar à França, Tocqueville, em conjunto com Beaumont, publica em 1832 “Système Pénitentiaire aux États Unis et son Application en France”, fazendo sua estréia no mundo literário, porém apenas depois da publicação dos dois volumes de “A Democracia na América”, que as portas da fama lhe abriram definitivamente.53 Com as novas condições da lei eleitoral, inauguradas pela constituição de 1830, que reduzia de quarenta para trinta anos o limite mínimo de idade para as Candidaturas, 48 JASMIN, Marcelo. As Américas de Tocqueville: a comunidade e o auto interesse. 2001. p.203 WELFORT, Francisco C.seleção de textos. Os Pensadores. 2ª ed. Abril cultural. São Paulo. 1979.p.180. 50 TOCQUEVILLE, Alexis. Carta. Apud: FURET, François: Prefácio. In: A democracia na América. 2001. v.1, p. XIII. 51 Este organização do sistema conceitual de tocqueville é feita por Marcelo Jasmin, grande especialista brasileiro em Toquevillle. JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.34. 52 JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.34. 53 JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.26. 49 23 Tocqueville lançou-se tão logo pode na busca de uma vaga no Parlamento. Em seguida a um arranjo familiar que lhe destinou o castelo de Tocqueville em 1836, Alexis foi candidato derrotado a deputado, aos trinta e dois anos, no arrondissement de Valognes, o maior colégio eleitoral da época. Dois anos depois conseguira a primeira de uma série de vitórias eleitorais em 1839, 1842, 1846, 1848, 1849, que o manteriam na Câmara até o golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851.54 Em 1848, a França passa por outra crise que resulta na deposição de Luís Felipe do trono, e é instaurada a República novamente. Foi formado um governo provisório com participação de representantes da burguesia liberal e dos socialistas. Porém, houve um massacre ao movimento socialista, o que marcou o rompimento definitivo entre os projetos políticos da burguesia e do proletariado socialista. Os líderes burgueses sentiam a necessidade de consolidar as instituições políticas para impor um clima de ordem pública no país. Tocqueville é eleito para a Assembléia Constituinte. Promulga-se, então, uma nova Constituição da República e marcaram-se eleições para presidência. Luís Napoleão Bonaparte, sobrinho de Napoleão Bonaparte, tornou-se o primeiro presidente da República francesa. Apoiado pelo exército, pela igreja e pela burguesia temerosa de revoltas socialistas. Luís Napoleão, pouco antes de terminar seu mandato, deu um golpe de Estado, proclamandose Imperador dos franceses, com o título de Napoleão III. O segundo Império napoleônico durou até 1873.55 Durante um breve intervalo de cinco meses que se estendeu de 3 de junho a 31 de outubro de 1849, assumiu a pasta dos Negócios Exteriores do ministério Odilon Barrot, sob o governo de Luís Bonaparte na Segunda República. Em seguida, retornou às atividades legislativas, mas em função de uma crise de tuberculose foi obrigado a licenciar-se da Assembléia. Entre julho daquele ano e março de 1851, durante sua recuperação em seu castelo e em Sorrento, na Itália, escreveu as duas primeiras partes dos “ Souvenirs” e elaborou o primeiro plano do que viria a ser “ L’Ancien Regime et la Révolution”. Regressando ao Parlamento, participou intensamente das negociações para a revisão da Constituição republicana de modo a permitir a reeleição de Luis Napoleão e evitar solução de continuidade da ordem vigente. Com o golpe de 2 de dezembro, após denunciar a farsa bonapartista na imprensa inglesa, afastou-se da cena política e recolheu-se aos estudos.56 54 JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.27. COTRIM,Gilberto. Historia e consciência do mundo. 1997.p.314. 56 JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.27. 55 24 Voltando à cena pública em 1856 como historiador publicou o livro “ Do Antigo Regime a Revolução”, em seu segundo período pr odutivo, considerados por muitos como sua obra prima. Nele Tocqueville estudou a especificidade do passado francês, alcançava uma possibilidade de identificação das responsabilidades humanas tanto no curto como em longo prazo. Ainda que a conjuntura revolucionária estivesse determinada pelos princípios formadores da história nacional francesa, a análise comparativa concluía que, tanto a centralização administrativa dependeu de opções políticas para se desenvolver, como, uma vez desenvolvida enquanto princípio constitutivo da modernidade na França, ainda deixava espaço para que ações politicamente adequadas produzissem efeitos diversos daqueles alcançados de fato.57 Seria um equívoco se o grande sucesso literário de Tocqueville e sua consagração acadêmica como sociólogo e historiador obscurecessem o fato permanente de que a política era o motor maior de sua vida.58 Entristecia-se a cada vez que por motivos de saúde afastavase do parlamento e lamentava não ter vocação para liderança parlamentar o que dificultava a realização de grandes coisas para as quais gostava de sentir-se destinado a fazer. Mesmo assim, jamais abandonou a perspectiva pragmática do conhecimento. A atividade política permaneceu sempre o ponto de partida de suas indagações e tudo que lia e escrevia o fazia com os “olhos do cidadão”, na expressão de Seymour Drescher, ou, o que para Marcelo Jasmin parece mais adequado, com os olhos do estadista.59 Como escritor seu objetivo não era o reconhecimento acadêmico, embora esse lhe agradasse e ainda servia de estratégia política para ganhar notoriedade. Queria na verdade influir no comportamento dos homens, governar seus pensamentos e sentimentos. Importavalhe mais a reflexão dirigida para a resolução dos problemas políticos que julgava fundamentais ao desenvolvimento da modernidade francesa, principalmente a perda do espírito cívico e, conseqüentemente, da base da liberdade política.60 Aliás, o pragmatismo é marca registrada em toda sua produção intelectual, com a proposta de uma “nova ciência política para um mundo inteiramente novo”. Que elabora nas primeiras páginas da Democracia na América.61Tocqueville faleceu em suas propriedades em 1859, em virtude de 57 JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.310. Porém mesmo ele admitiu em 1851 que seu legado seria mais importante como teórico político do que como homem de Estado. JARDIN, André. História del liberalismo político. 1998. p.378. 59 JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.28-29. 60 JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.27. 61 JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.27. 58 25 da tuberculose pulmonar que o acometia. Para constar Tocqueville fora casado com uma plebéia chamada Mary Motley.62 No próximo tópico serão analisados os fundamentos epistemológicos do pensamento tocquevilliano, e o que ele quer dizer com a proposta de uma “nova ciência política para um mundo inteiramente novo”. 1.3 FUNDAMENTOS EPISTEMOLÓGICOS DE TOCQUEVILLE. Apresentado o autor e o pensamento político de seu tempo, resta para concluir este primeiro capítulo, o estudo da contribuição epistemológica de Tocqueville para a ciência política e seu modo peculiar de ver a história. Será utilizado como base para tal tarefa o estudo de Marcelo Jasmin, sobre “A historiografia como ciência da política em Tocqueville”. Desde o século V a.C., a historia é vista pelos gregos como “mestra da vida”, ou seja, os antigos acreditavam que ao conhecer a história poderiam repetir os sucessos anteriores sem incorrerem novamente nos antigos erros. Num contexto de pensamento em que a imitação da experiência alheia era prescrita como remédio para a ausência de experiência própria, e em que se considerava o sucesso anterior dos grandes homens como bom critério na avaliação do possível êxito das ações contemporâneas, a história ganhou o estatuto de saber indispensável à formação dos homens públicos.63 Esta teoria resistiu por um longo período até o século XVIII, quando foi posta em cheque a natureza exemplar dos eventos pela descoberta da unidade dos processos históricos subjacente à noção iluminista do processo. Admitiu-se assim uma espécie de pluralidade dos mundos humanos com a possibilidade de formas inéditas de vida, o que implicava a descolagem definitiva do horizonte de expectativas em relação a toda a experiência pregressa. Termos como “torrente”, “marcha”, “corrente” e “fluxo”, antes usados na referencia à natureza, foram incorporados ao vocabulário político, de onde migravam para o conhecimento historiográfico em geral. O processo histórico parecia deslocado dos seus atores. As filosofias da história do século XIX consolidaram a inversão do voluntarismo iluminista: a história 62 63 JARDIN, André. História del liberalismo político. 1998. p.379. JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.2. 26 deixava de ser vista como o resultado da vontade e da ação humanas para ser representada enquanto processo autônomo, independente dos homens e cuja força não se podia contrariar.64 Tocqueville tem uma visão peculiar da história, e esta visão se transforma desde seus primeiros trabalhos (1828-1840) em um momento mais fatalista, para seus últimos trabalhos onde se dedica à produção de sua historiografia pedagógica (1848-1851). Tocqueville não compartilhava do otimismo iluminista de que a razão humana bastaria por si só para o progresso da humanidade, acreditava que a força inevitável não era a razão e sim a democracia como “despotismo democrático” cuja opressão política só poderia ser controlada com a intervenção cidadã no processo.65 Como foi dito anteriormente, Marcelo Jasmin separa o sistema conceitual de Tocqueville em dois níveis. O primeiro é a oposição entre aristocracia e democracia, para Tocqueville o fim do antigo regime e o domínio inevitável da igualdade, na figura da democracia, são fatalidades, este entendimento determinista, da força natural da democracia leva Tocqueville ao segundo nível do seu sistema, uma vez consumada a sociedade democrática, a questão agora é a escolha entre as duas opções que ela oferece: a servidão ou liberdade. A primeira é a opção natural a que levam os vícios da democracia, como o materialismo, o individualismo e a apatia política. A segunda opção, a da liberdade, que requer a intervenção do indivíduo no processo natural da história, ou seja, para garantir a liberdade na sociedade democrática é preciso cultivar uma prática cidadã onde os indivíduos transformem auto-interesse em interesse bem compreendido, só assim é possível manter a liberdade política e frear os efeitos funestos do desenvolvimento da igualdade e a conseqüente “servidão moderna”. 66 No segundo livro da Democracia na América, o autor faz uma comparação entre o modo como o historiador aristocrático e o democrático vêm a história. Tocqueville compara o historiador com um espectador de uma peça, na qual, o palco era formado por alguns atores principais que se encarregam de dar desfecho à história, ou seja, nos séculos aristocráticos os grandes acontecimentos eram derivados da ação de grandes homens (ou pelo menos assim entendiam os historiadores destes séculos) sem perceberem as grandes causas que também participavam do desfecho. 64 JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.8-11 Para saber mais sobre as formas da história, ver o primeiro capitulo do livro “JASMIN, Marcelo Gantu s. A historiografia como ciência da política. 1997.p.1-24” 66 JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.34-50.. 65 27 No caso democrático, a destruição do papel exclusivo da direção política desempenhado pela nobreza viria a obscurecer também o seu lugar privilegiado do exercício do poder de ação.67 Agora o mesmo palco é tomado por uma multidão de atores coadjuvantes, o historiador não consegue ou desiste de tentar, identificar os atos de cada ator, como causa do desfecho e atribui a causas gerais os resultados. Em outras palavras, o historiador, nos tempos democráticos, não crê ou subestima, a ação do indivíduo no desfecho da história. O que Tocqueville considera desastroso para a democracia, pois favorece o desenvolvimento de seus vícios.68Isto fica latente quando, seguindo a identificação feita por Jasmin, Tocqueville explica o que acredita ser o historiador democrático: Um escritor democrático dirá naturalmente, de maneira abstrata, as capacidades para significar os homens capazes, e sem entrar no detalhe das coisas a que essa capacidade se aplica. Falará das atualidades para pintar com uma só pincelada as coisas que se passam neste momento diante dos seus olhos e compreenderá pela palavra eventualidades tudo que pode ocorrer no universo a partir do momento em que fala. Os escritores democráticos fazem sem cessar palavras abstratas dessa espécie ou tomam um sentido cada vez mais abstrato as palavras abstratas da língua. Mais ainda, para tomar o discurso mais rápido, personificam o objeto dessas palavras abstratas e o fazem agir como um indivíduo real. Dirão que a força das coisas exige que as capacidades governem. 69 Tocqueville conclui desta análise que em tempos democráticos a causas gerais realmente são mais importantes para explicar a história, mas o problema é que a observação apenas das causas gerais pode levar as pessoas a desacreditarem em seu poder de ação para mudarem o próprio destino, o que no segundo nível de seu sistema conceitual os levaria à servidão.70 Pode-se identificar como proposta epistemológica de Tocqueville que a ciência política presta-se à educação para a participação cidadã, tornando o indivíduo responsável para com seu futuro. E o papel do historiador democrático é conseguir observar, 67 JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.92. JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.91-94. 69 TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.2, p.80-81. 68 70 No momento em que o autor afirma ser inevitável o advento democrático, não estaria ele próprio caindo em contradição com sua proposta de sociologia pedagógica? Não seriam os conceitos de igualdade e de democracia idéias gerais e abstratas do mesmo tipo daquelas às quais os indivíduos democráticos recorrem para falar da realidade no mundo da similitude? Tocqueville tem consciência da questão[...] e em um tom ambíguo que oscila entre autocrítica e a resignação, diz: “ não vejo nada melhor que explicar meu pensamento por meu próprio exemplo: com freqüência, fiz uso da palavra igualdade num sentido absoluto; ademais, personifiquei a igualdade em vários lugares , e foi assim que me ocorreu dizer que a igualdade fazia certas coisas ou se abstinha de certas outras” JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.99-100. 28 nas causas gerais, a intervenção do indivíduo (no caso democrático da associação de indivíduos) na alteração do processo, em seu benefício.71 Este caráter pedagógico da ciência política concorreria para a educação do cidadão na era democrática, levando-o a ocupar o seu lugar na organização social, conscientizando-o da importância da participação na administração pública para a manutenção de sua liberdade. E em face do já mencionado caráter pragmático de suas observações, Tocqueville as escreve para que seus leitores aprendam como garantir a liberdade nos tempos de igualdade.72 Daí a necessidade de uma nova ciência política para um mundo inteiramente novo, um saber que pudesse tanto esclarecer as condições objetivas em que a ação poderia se dar, como persuadir os homens de que, sem ação politicamente concertada, as disposições da igualdade conduziriam a democracia a uma forma inédita de opressão política – o “despotismo democrático”. 73 Destinado a eternizar a menoridade política dos cidadãos democráticos pela suspensão da exigência da participação nos negócios comuns e a conseqüente destruição do espírito cívico que dela decorre, o moderno despotismo tem a vocação de consolidar o isolamento dos indivíduos e seu confinamento nas esferas privadas do bem-estar. Sem violentar os corpos, a nova opressão que devem temer os homens modernos oculta sua face perversa sob as formas exteriores da liberdade, fundadas na delegação de responsabilidade política ao Estado soberano e corrompe a alma dos indivíduos ao interditar a sua efetiva realização política.74 Quando nada mais importa ao homem que a segurança de seus bens e sua vida privada, ele larga de bom grado o valor intrínseco da liberdade e aceita qualquer ordem desde que sua tranqüilidade esteja assegurada. Impedidos de participaçar nos negócios públicos e acostumados à tutela estatal para a resolução de quaisquer problemas exteriores ao seu restrito círculo familiar, os indivíduos perdem a faculdade da autodeterminação política e tornam-se incapazes de agir com liberdade.75 71 Tocqueville faz duas criticas à historiografia democrática, a primeira epistemológica, através da qual o reconhecimento da adequação das categorias abstratas e das causas gerais à experiência democrática não arrefece a exigência metodológica de consideração do papel dos indivíduos na história; a segunda, ético-política, e de maior relevância para Tocqueville, que trata das conseqüências políticas das concepções históricas modernas sobre o espírito público, especialmente a paralisia da atividade pública que decorre de perspectivas fatalistas. JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.104. 72 JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.306. 73 JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.306. 74 JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.306. 75 JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.307. 29 Se Alexis de Tocqueville ofereceu à tradição posterior o emblema da ruptura com a tradição e a conseqüente destruição intelectual das bases analógicas sobre as quais sustentava-se a antiga “história como mestra da vida”, a elaboração de uma nova ciência política para um mundo inteiramente novo encontrou, no interior da moderna história processual, a possibilidade de manutenção do caráter pragmático e pedagógico da história. Opondo-se às perspectivas fatalistas e a todas aquelas que ocultavam o sujeito do conhecimento sob a narrativa “objetiva” dos eventos, exigiu que a ciência das causas se adequasse aos valores indispensáveis da liberdade. A historiografia tocquevilliana demonstrou que o passado não deixou de iluminar o futuro e a história continuou ensinando aos homens políticos o valor de sua liberdade.76 76 JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. 1997.p.311-312. 2 A DEMOCRACIA AMERICANA DE TOCQUEVILLE: SINGULARIDADE HISTÓRICA, MODELO UNIVERSAL. 2.1 Traços gerais que marcam a “Democracia na América ”. A América do início do século XIX era vista na Europa como uma ex-colônia britânica em formação, sem respaldo político, despertando interesse apenas como um convite à aventura. Porém, ao desembarcar nos Estados Unidos, Tocqueville percebe que está diante de algo novo77, uma sociedade igualitária de amplas proporções.78 Já passara neste momento, mais de cinqüenta anos da declaração de independência americana, que ocorreu em 4 de julho de 1776. O que mais impressionou o autor foi ter encontrado o ambiente perfeito pra analisar uma sociedade marcada por um “estado social” de extrema igualdade, o que para ele era a concretização da própria idéia da “inevitabilidade da democracia”. Preocupou -se menos em atribuir causas a essa igualdade, como as características geográficas, históricas e sobre tudo as peculiaridades de seu povo, e mais em analisar suas conseqüências para o mundo político.79 O ano era 1836, o presidente Andrew Jackson estava no exercício de seu primeiro mandato, marcado por uma forte política de democratização. 80 Os colonos que chegaram ao 77 Bem evidenciadas por Raymond Aron: “ Tocqueville descobriu a democracia na América. Talvez resida nisso a origem da extraordinária perspicácia de suas análises, mas também a causa de suas limitações. A interpretação de sua obra, de resto, põe um certo número de dificuldades metodológicas”. GA LLIMARD. Lés étapes de la pensée sociologique. Apud: CHÂTELET, François, A historia das idéias políticas, 1985.p.109. 78 JASMIN, Marcelo. As Américas de Tocqueville: a comunidade e o auto-interesse. Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea.UnB.2001 p.201. 79 FURET, François. Prefácio. In: A Democracia na América, 2001, p.XVII. 80 Andrew Jackson (1767-1845). O governo do presidente foi marcado por uma série de medidas que visavam criar condições concretas para fazer emergir uma sociedade realmente igualitária: afastaram-se as restrições de sufrágio, aboliram-se as exigências de propriedade para o exercício de mandatos e limitou-se sua duração. Afirma-se que essas medidas eram fundamentais para impedir que se formasse, num Estado que se pretendia democrático, uma aristocracia ou uma elite burocrática. Esse contexto histórico sugeriu a Tocqueville algumas reflexões, como a importância da participação cidadã para alcançar a liberdade política, em sociedades democráticas. WELFORT, Francisco C. Os pensadores. 1979. p.180-181. 31 Novo Mundo eram movidos pelas mesmas paixões, a igualdade e a liberdade, que agitavam a Europa, mas na América era um sentimento “calmo” e “tranq üilo”. 81 O “estado social” 82 é, ordinariamente, o produto de um fato, às vezes das leis, mas quase sempre destas duas causas reunidas. Porém, uma vez que existe, podemos considerar ele mesmo como uma causa primeira da maioria das leis, costumes e idéias que regem a conduta das nações, o que ele não produz ele modifica. Para conhecer a legislação e os costumes de um povo, é necessário, pois, começar pelo estudo de seu estado social. 83. O autor definiu o “estado social” dos americanos como sendo “essencialme nte democrático”, como resultado da singularidade histórica da colonização da América do Norte e da incomensurabilidade das condições que os puritanos ingleses encontraram no Novo Mundo, entre elas a extensão de seu território, sua topografia, a ausência de vizinhos bélicos, em suma, tudo que pudesse ser considerado um produto do acaso. Segundo Tocqueville era como se o próprio Deus tivesse deixado virgem, aos puritanos ingleses, a terra americana para o desenvolvimento da sociedade igualitária, através da prática intensa dos ideais da modernidade.84 Marcelo Jasmin destaca que o argumento central desenvolvido por Tocqueville na abertura de sua obra consiste na idéia de um “ponto de partida” fundador do “caráter da civilização anglo -americana”, que reunia pela primeira vez, de modo íntimo e harmonioso, o espírito de liberdade e o espírito de religião, ambos originados da pátria mãe, de onde emigraram em face dos intensos conflitos de origem predominantemente religiosa.85 Para que se entenda melhor a influência do estado social democrático nas leis americanas, e vice – versa, Tocqueville destaca a lei de sucessões. E como esta influenciou a propagação da igualdade entre os americanos durante o inicio do povoamento na América do Norte. A partir da independência americana, a lei de sucessões mudou, antes era adotada a lei da pátria mãe, que basicamente atribuía a transmissão de todos os bens do patriarca ao seu filho progenitor, criando um vínculo quase eterno da família com a terra. A nova lei de sucessões, apesar de ser matéria de direito civil, provocou uma grande transformação social e política nos Estados Unidos, pois estabelecera que as propriedades do pai seriam divididas em 81 Esta idéia é ilustrada melhor por esta frase de Tocqueville “Na América tem -se idéias e paixões democráticas; na França, temos ainda paixões e idéias revolucionárias”. FURET, François. Prefácio. In: A Democracia na América, 2001. p.XX. 82 Tocqueville entende por idéia de “estado social”; o conjunto de características que marcam um determinado povo, como seus hábitos, costumes, tradições, história, religião, leis, clima. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América.2000.v.1 p. 56. 83 TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América.2000.v.1 p. 55. 84 85 JASMIN, Marcelo. As Américas de Tocqueville: a comunidade e o auto-interesse. 2001. p.201-202. JASMIN , Marcelo. As Américas de Tocqueville: a comunidade e o auto-interesse. 2001.p.202. 32 partes iguais entre os seus filhos. Diferença esta que resultaria em fracionar cada vez mais as grandes propriedades86. E Tocqueville observa que, após sessenta anos de lei, quase não há grandes propriedades, tornando ainda mais iguais os anglo-americanios.87 Como foi visto, para Tocqueville o “estado social” é o produto de um fato, de uma lei ou de ambos. Neste exemplo podemos perceber que o fato é a própria vastidão de terras disponíveis no novo mundo, que favorece o aparecimento de várias pequenas propriedades. E a lei de sucessões, que dificulta a acumulação de propriedades durante as gerações, faz com que rapidamente se perca o amor familiar à propriedade imobiliária, o herdeiro passa a ver nela um bem de fácil monetarização, o que permite com a venda do imóvel, o desfrute dos prazeres do materialismo democrático.88 Uma vez que para Tocqueville a idéias de igualdade e democracia estão intimamente ligadas, explica-se através deste exemplo sua classificação quanto ao estado social dos americanos ser “essencialmente democrático”, sendo um produto do fato e do direito.89 A América modelar, foi concebida por Tocqueville como uma novidade histórica radical, o que o historiador alemão Reinhart Koselleck denominaria, um século e meio depois, 86 Ora, a partir do momento em que se tira dos proprietários fundiários um grande interesse de sentimento, lembranças, orgulho, ambição em conservar a terra, pode-se estar certo de que sedo ou tarde eles irão vendê-la, porque têm um grande interesse pecuniário em fazê-lo, já que os capitais mobiliários produzem mais rendimentos que os outros e se prestam mais facilmente a satisfazer as paixões do momento. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2000. v.1, p.58-59. 87 A lei de sucessões inglesa foi abolida em quase todos os Estados americanos. A primeira geração passou; as terras começaram a dividir-se. O movimento tornou-se cada vez mais rápido à medida que o tempo caminhava. Hoje quando transcorrem apenas sessenta anos o aspecto da sociedade já é irreconhecível; quase todas as famílias dos grandes proprietários fundiários naufragaram no seio da massa comum. No estado de Nova York, onde havia grande número deles, dois mal conseguem sobreviver sobre esse abismo pronto para tragá-los. Os filhos desses opulentos cidadãos são hoje comerciantes, advogados e médicos. E o autor ainda acrescenta que não é que nos Estados Unidos não existam ricos, pelo contrário não conhece nação que o amor pelo dinheiro ocupe maior lugar no coração dos cidadãos, mas lá a fortuna circula com incrível rapidez, e a experiência ensina que é raro ver duas gerações recolherem seus favores. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2000. v.1, p. 60. 88 A lei de partilha igual segundo Tocqueville, procede por dois caminhos: agindo sobre a coisa, ela age sobre o homem; agindo sobre o homem ela age sobre à coisa. Das duas maneiras, ela consegue atacar profundamente a propriedade fundiária e fazer desaparecer com rapidez tanto as famílias como as fortunas. Sendo a terra a propriedade mais sólida, encontramos de tempo em tempo homens ricos que se dispõe a fazer grandes sacrifícios para adquiri-la e que perdem de bom grado uma porção considerável de sua renda para garantir o resto. Mas trata-se de acidentes. O amor à propriedade imobiliária só se encontra habitualmente hoje em meio aos pobres. O pequeno proprietário fundiário, que tem menos luzes, menos imaginação e menos paixão que o grande, em geral só é movido pelo desejo de aumentar seu domínio, e acontece com freqüência que as sucessões, os casamentos ou os acasos do comércio lhe forneçam pouco a pouco os meios para tanto. Ao lado da tendência que leva os homens a dividir a terra, existe pois uma outra que os leva a aglomerá-la. Essa tendência que basta para impedir que as propriedades se dividam infinitamente, não é forte o bastante para criar grandes fortunas territoriais, nem sobre tudo para mantê-las nas mesmas famílias. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2000. v.1, p. 59 e 517. 89 TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América.2000. v.1, p.55-63. 33 “o deslocamento do horizonte de expectativas em relação ao espaço de experiências, o abismo fundador da modernidade” 90. Concebida como um todo abstrato, a América oferecia-se como a própria imagem da democracia moderna - uma sociedade de massas fundada sobre a igualdade das condições sociais - e como um modelo teórico que permitia vislumbrar suas últimas e mais radicais conseqüências. É nesse sentido que Tocqueville afirmou que a América representava o futuro da Europa, invertendo como François Furet argutamente discerniu, a hipótese tradicional do processo civilizatório.91 Desse “estado social democrátic o”, derivam suas leis e sua organização administrativa. Assim o argumento desenvolvido em sua obra inicia-se com um olhar específico às características ímpares que deram origem ao estado social dos americanos, e alcança a projeção lógica da universalidade da igualdade de condições como base fundadora de todo o raciocínio sobre a moderna democracia.92 Com o entendimento de que a idéia de democracia, para Tocqueville, está diretamente ligada à idéia de igualdade. É preciso atentar para o fato de que a força invencível da democracia, e portanto da igualdade a que o autor se refere, não é exatamente a extrema igualdade material ou religiosa “americana”. Esta igualdade invencível é a igualdade “democrática”, como uma generalização de idéias, opiniões e vontades, q ue é percebido na América pela primeira vez, e denominado por Tocqueville como “tirania da maioria”, no mundo político representa a força esmagadora das massas sobre a opinião das minorias, sufocando a liberdade política e conseqüentemente destruindo os pilares de sustentação da democracia. Que como foi visto no capitulo anterior, para Marcelo Jasmim, constitui o dilema tocquevilliano, que ganha proporções universais para as sociedades democráticas ocidentais de um modo geral.93 Tocqueville tinha plena consciência, quando se lançou a escrever para a França do século XIX, da impossibilidade de transpor as instituições americanas para a Europa. Por esta razão, não se poderia empreender uma cópia servil da América empírica, mas de considerar os princípios gerais da América democrática.94 90 KOSELLECK, Reinhart. Futures Past. Apud. JASMIN, Marcelo. As Américas de Tocqueville: a comunidade e o auto-interesse. 2001. p.204 91 . JASMIN, Marcelo. As Américas de Tocqueville: a comunidade e o auto-interesse. 2001. p.204. 92 JASMIN, Marcelo. As Américas de Tocqueville: a comunidade e o auto-interesse. 2001. p.203. 93 JASMIN, Marcelo. As Américas de Tocqueville: a comunidade e o auto-interesse. 2001. p. 202 94 JASMIN, Marcelo. As Américas de Tocqueville: a comunidade e o auto-interesse. 2001. p. 203. 34 Como se sabe, a colonização na América começou pela costa leste e marchou rumo ao oeste, e é justamente nos novos Estados do oeste em que o quadro da igualdade95 é ainda mais extremo.96 Conforme chegavam, os colonos estabeleciam suas propriedades no deserto, portanto sem nenhum vínculo familiar anterior com a terra. Além desta igualdade de fortunas, Tocqueville afirma que encontravam a sua disposição meios iguais em todas as áreas, sendo estabelecido um nível mediano de conhecimentos humanos, não havendo nem ignorantes, tampouco pessoas com mentes brilhantes. O autor atribui esta característica à precocidade com que largam os estudos, pois na América havia um certo pragmatismo em seus atos97, o que estimula o americano a aprender um ofício e viver do seu trabalho, não dando profundidade a seus conhecimentos, dá preferência aos lucros de seu ofício e os prazeres do materialismo.98 Aqui está o grande perigo do estado social democrático americano, quando Tocqueville nota que, apesar de nas democracias o povo ter um gosto instintivo pela liberdade o que amam com ardor é a igualdade99, o que será visto em detalhes a seguir em a “tirania da maioria” e o perigo que ela apresenta para o desenvolvimento das democracias. Tocqueville afirma que é impossível compreender que a igualdade não acabe entrando no mundo político como em outras partes100. E conclui que só conhece duas maneiras de fazer reinar a igualdade no mundo político: dar direitos a cada cidadão ou não dar a ninguém.101 Porém, no momento histórico em que o autor analisa os Estados Unidos, admite que, a partir desta igualdade de fortunas e inteligências medianas102, o povo americano conseguiu 95 Aqui Tocqueville se refere tanto à igualdade material (fortunas) como a igualdade democrática (oportunidades), [...] Lá os homens se mostram mais iguais por sua fortuna e por sua inteligência, ou, em outras palavras, mais igualmente fortes que são em qualquer outro país do mundo e do que foram em qualquer outro século de que a história conserve lembrança. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América .2000. v.1, p. 62-63. 96 TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América .2000. v.1p. 61. 97 Os americanos dirigem sua atenção apenas para uma matéria especial e lucrativa; estudam uma ciência como se abraça um ofício e só se interessam pelas aplicações cuja utilidade presente é reconhecida. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América .2000. v.1p. 61. 98 TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América .2000. v.1p. 59. 99 De fato, há uma paixão vigorosa e legítima pela igualdade que leva todos os homens a querem ser fortes e estimados. Essa paixão tende a elevar os pequenos ao nível dos grandes; mas também existe, no coração humano um gosto depravado pela igualdade, que leva os fracos a quererem atrair os fortes a seu nível e que reduz os homens a preferirem a igualdade na servidão à desigualdade na liberdade. Não é que os povos cujo estado social seja democrático desprezem naturalmente a liberdade; ao contrário, eles têm um gosto instintivo por ela. mas a liberdade não é o objeto principal e contínuo de seu desejo: o que eles amam com um amor eterno é a igualdade. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2000. v.1, p. 63 100 Tocqueville explica que, não poderia conceber os homens eternamente desiguais entre si num só ponto e iguais em outros; portanto eles chegarão, num tempo dado, a selo em todos. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2000. v.1, p.63. 101 TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2000. v.1, p. 63. 35 manter a sua soberania, através do poder comunal, ou seja, dando direitos a cada cidadão, e atribui tal virtude à capacidade de combinarem suas forças em prol da liberdade política, o que fez com que se tornasse ao mesmo tempo o povo mais forte e esclarecido da história.103 2.2 Democracia: liberdade política e tirania da maioria. Tocqueville não fala claramente sobre a sua concepção de liberdade104,contudo identificá-la é de fundamental importância para a compreensão da Democracia na América, afinal de contas, é a paixão pela liberdade que o impele à reflexão teórica. Marcelo Jasmin trabalha de maneira separada a liberdade aristocrática e a liberdade democrática. A primeira105 é associada a um forte sentimento de valor individual, a um gosto sublime pela independência compreendida como privilégios de alguns, acessível apenas a indivíduos especiais, restritas a uma classe, é o tipo de liberdade que subsiste facilmente em um contexto em que a “liberdade geral não existe”. 106 A liberdade democrática107 segundo Tocqueville é diferente, esta acontece quando cada homem presumindo que recebeu da natureza as luzes necessárias para conduzir-se, traz, desde o seu nascimento, um direito igual e imprescritível de viver de modo independente de 102 No entanto não só as fortunas são iguais: a igualdade se estende até certo ponto às próprias inteligências.Não creio que haja país no mundo em que, guardada a proporção, encontremos tão poucos ignorantes e menos sábios do que na América. A instrução primária esta ao alcance de todos; a instrução superior quase não esta ao alcance de ninguém. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América .2000. v.1 p.61. 103 TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2000. v.1, p. 63. 104 KLAUS, Frey. Descentralização e poder local em Aléxis de Tocqueville. 2000, p.85. 105 Em uma das raras passagens em que Tocqueville pronuncia-se de maneira explicita sobre sua representação do conceito de liberdade, evidência-se a liberdade como um valor sobremaneira “aristocrático”, como no seguinte trecho: “O que em todos os tempos, tão fortemente agarrou os corações de certos homens à liberdade é sua própria atração, seu encontro, independentemente de suas dádivas; é o prazer de poder falar, agir, respirar sem constrangimento sob o único Deus e de suas leis. Quem procura na liberdade outra coisa que ela própria foi feito para a servidão[...]. Não me peçam para analisar um gosto sublime, que é preciso sentir. Entra por si mesmo nos grandes corações que Deus preparou para recebê-lo, enchendo-os e inflamando-os. Temos que renunciar explica-lo às almas medíocres que nunca sentiram” TOCQUEVILLE, Aléxis. Do Antigo Regime à Revolução. Apud: KLAUS, Frey. Descentralização e poder local em Aléxis de Tocqueville. 2000, p.86. 106 JASMIN, Marcelo. As Américas de tocqueville a comunidade e o auto-interesse. 2001. p.205. 107 Para Tocqueville, a liberdade democrática moderna depende do fato político da existência pública dos indivíduos livres como cidadãos, da mobilização da vontade de cada um na formação da vontade soberana, o que introduz um elemento de vontade cívica como condição para a legitimidade do poder político igualitário livre. JASMIN, Marcelo. As Américas de tocqueville a comunidade e o auto-interesse. 2001. p.206. 36 seus semelhantes em tudo o que só diz respeito a si próprio, a decidir sobre o seu próprio destino.108 É a partir deste conceito de liberdade como valor intrínseco, que Tocqueville trabalha a idéia que diante das ameaças despóticas do igualitarismo, e os males democráticos do materialismo e do individualismo, a busca incansável pela liberdade política é o único caminho a ser seguido, haja vista que a desistência equivale à servidão109. Essa é uma de suas contribuições mais originais para o liberalismo, cujos fundadores focam muito mais a liberdade enquanto um meio e um efeito, e muito menos enquanto um valor que deve ser buscado em si mesmo.110 Aqui vale ressaltar uma diferenciação feita por Klaus Frey entre a concepção rousseauniana e a tocquevilliana acerca da liberdade. No primeiro, a liberdade é estreitamente vinculada à igualdade social e à efetivação da vontade geral, para o segundo independe de condição social111 e corresponde basicamente a uma modalidade do agir político, esta própria dos espíritos mais elevados.112 Cabe relembrar a relação direta entre liberdade política e supremacia da maioria, o chamado “dilema tocquevilliano”, que consiste na idéia de que a liberdade política na sociedade de massas depende de uma prática e de um conjunto de valores cujas bases tendem a serem derrubadas pelo desenvolvimento continuado das disposições internas da própria democracia.113 Que seria o “ind ividualismo” inerente ao estado social democrático que consiste no confinamento dos indivíduos na privacidade, de suas vidas particulares, gerando uma crescente indiferença cívica, que constitui o caldo de uma cultura da emergência do novo tipo de despotismo, uma dominação política inédita, que lentamente degradaria os homens sem atormentá-los, uma espécie de pátrio poder que obriga os indivíduos a eterna menoridade política.114 E o centro do “dilema tocquevilliano” está exatamente no ponto em que a 108 JASMIN, Marcelo. As Américas de tocqueville a comunidade e o auto-interesse. 2001. p.205. Como expusera na Democracia, e já mencionado anteriormente, o contexto social igualitário permite duas alternativas a liberdade ou a servidão. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2000. v.1, p. 63. 110 KLAUS, Frey. Descentralização e poder local em Aléxis de Tocqueville. 2000, p.87. 111 O amor pela a liberdade política representa o valor mais sublime na concepção política tocquevilliana, como ele salienta em O antigo regime a revolução:” Muitas vezes cheguei a me perguntar onde estaria a fonte desta paixão pela liberdade política que, em todos os tempos, levou os homens a realizar as maiores coisas que a humanidade cumpriu e em que sentimentos esta enraizando e alimentando”. TOCQUEVILLE. Alexis. Do Antigo Regime à Revolução.Apud: KLAUS, Frey. Descentralização e poder local em Aléxis de Tocqueville. 2000, p.86. 112 Este detalhe é salutar para o estudo mais a frente da idéia desenvolvida por Fernando Magalhães sobre a igualdade de condições isolada de um conteúdo material, Ver ponto 3.1.1 - Desigualdade material e democracia individualista. 113 JASMIN, Marcelo. As Américas de Tocqueville a comunidade e o auto - interesse. 2001. p. 204. 114 JASMIN, Marcelo. As Américas de Tocqueville a comunidade e o auto - interesse. 2001. p.207. 109 37 participação cívica é uma espécie em extinção no contexto da privatização das relações sociais na moderna sociedade de massas imaginada por Tocqueville.115 Este despotismo democrático surge para Tocqueville originalmente como a “tirania da maioria” 116.Todo americano acreditava ser o único senhor de seu futuro, e para o autor isso não estava muito longe de ser verdade, pois partindo do pressuposto que todos encontravamse mais ou menos na mesma condição, é de se deduzir que todos tenham mais ou menos os mesmos anseios. Dito isso, pode-se imaginar as conseqüências desta supremacia da vontade da maioria sobre o governo dos Estados Unidos. O autor não é contra que da vontade da maioria originem-se todos os poderes. O que Tocqueville não consegue conceber é que todo o governo de um povo fique a mercê das paixões populares e vontades momentâneas da maioria117, sem a devida cadência e responsabilidade que um governo deve possuir, qualidade essa que o autor atribui ao governo da aristocracia118. Tocqueville entende que da mesma forma que não assimila a tirania de um só, não pode submeter-se à tirania de muitos, pois, da mesma forma estar-se-ia lhe privando de sua liberdade119. O autor acredita que as Constituições Estaduais americanas favoreçam o desenvolvimento da “tirania da maioria” , sobretudo no poder legislativo. O corpo legislativo é eleito pelo povo, de ano em ano, mudando seus representantes com extrema velocidade, deste fato decorre a continuidade dos projetos do governo e a vulnerabilidade das paixões populares.120 Tocqueville ilustra essa idéia com o exemplo de uma campanha promovida pela população para construção de novos presídios, pois os já existentes estavam super lotados. Pois bem, a campanha foi um sucesso, novos presídios foram construídos, com o mais alto padrão de segurança e salubridade, porém os antigos presídios ainda lotados com seus condenados estavam caindo aos pedaços, sem qualquer higiene, tomados pela corrupção, que 115 JASMIN, Marcelo. As Américas de Tocqueville a comunidade e o auto - interesse. 2001. p.208. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.1,p.294-305. 117 TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001.v.1, p.292. 118 Esta cadencia do governo aristocrático é evidenciada neste trecho: “Como a maioria é a única força que é importante agradar, contribui-se com ardor para as obras que ela empreende; mas, a partir do momento que sua atenção se volta para outra coisa, todos os esforços cessam. Já nos estados livres da Europa, onde o poder administrativo tem uma existência independente e uma posição garantida (aristocracia), as vontades do legislador continuam a se executar, mesmo se ele estiver cuidando de outros projetos. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001.v.1, p.293. 119 O império moral da maioria se baseia, em parte, na idéia de que há mais luzes e sabedoria em muitos homens reunidos do que num só, mais no número de legisladores do que na escolha. É a teoria da igualdade aplicada às inteligências. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.1, p.290. 120 TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001.v.1, p.296. 116 38 lembravam mais as masmorras da Idade Média. Este é um dos exemplos de um efeito funesto da supremacia da maioria nos rumos do governo. É pela ponte do poder legislativo que as vontades populares ganham todo o governo121. E contaminam o executivo e o judiciário, que cada vez mais ficam subordinados a agradar seu único amo, a maioria.122 O autor acredita que esta tendência da vontade geral conduz o país para centralização administrativa, e com ela à diminuição do interesse social e das liberdades políticas. Esta relação entre a “tirania da maioria” e a “centralização administrativa”, começa a ser desenvolvida no livro A Democracia na América, mas é entendido mais claramente com a obra Do Antigo Regime à Revolução. Durante este processo, a idéia de Tocqueville a respeito da “tirania da maioria” se transforma, é tratada de maneira diferente entre obra americ ana de 1835 e 1840.123 Originalmente é entendida como a força da opinião da maioria sobre a opinião da minoria, na escolha de qualquer pleito, não importando a melhor idéia e sim a idéia da maioria. Dando-se apenas relevância para a opinião majoritária, as idéias e anseios diferentes são irrelevantes para a deliberação, e o autor percebe que diante desta “tirania” a tendência é a generalização de opiniões. Ante esta generalização e homogeneização de opiniões a “tirania da maioria” se transforma. Não é mais a quela que subjuga a opinião contrária exercida de modo seletivo sobre alguns inimigos particulares (minorias). O novo “despotismo” seria mais amplo e mais brando e degradaria os homens sem atormentá-los, ou seja, não ataca a opinião contrária, mas impede que ela surja.124 As idéias gerais são tidas como verdadeiras, as pessoas não se importam mais em deliberar, pois acreditam que tudo anda conforme todos desejam. O poder não é mais tirânico é tutelar; a nova opressão é regulada e pacífica e, em sua forma mais avançada combina a centralização administrativa com a soberania do povo, pela incorporação das “formas exteriores da liberdade” que dão aos súditos a sensação de comandarem a si mesmos. Apesar de tutelados elegem seus tutores.125 121 Esta vulnerabilidade do governo as paixões populares à que Tocqueville se refere, acontece na esfera estadual, onde a separação dos poderes é meio obscura. Diferentemente do âmbito da União, onde os três poderes são claramente divididos, o que será visto com cuidado adiante quando tratar sobre a administração dos Estados Unidos. 122 TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001 v.1, p.293. 123 JASMIN, Marcelo. Alexis de Tocqueville: a historiografia como ciência da política.p.64-74. 124 Ver Marcelo Jasmin, sobre a transformação da “tirania da maioria” em “despotismo democrático”. JASMIN, Marcelo. Alexis de Tocqueville: a historiografia como ciência da política. 1997. p.70. 125 JASMIN, Marcelo. Alexis de Tocqueville: a historiografia como ciência da política. 1997.p.72. 39 Sempre acreditei que essa espécie de servidão regrada, doce e calma que acabo de pintar poderia combinar-se melhor do que se imagina como alguma das formas exteriores da liberdade e que não lhe seria impossível estabelecer-se `a sombra mesma da soberania do povo. Nossos contemporâneos são incessantemente trabalhados por duas paixões inimigas: sem a necessidade de ser conduzidos e a vontade de permanecer livres. Não podendo destruir nem um nem outro destes instintos contrários, esforçando-se para satisfazer ambos ao mesmo tempo. Imaginam um poder único, tutelar, onipotente, mas eleito pelos cidadãos. Combinam a centralização com a soberania do povo, o que lhes proporciona certa trégua. Eles se consolam por estarem tutelados pensando terem eles próprios escolhido seus tutores. Cada indivíduo suporta que o prendam, porque vê que não é um homem nem uma classe, mas o próprio povo que segura a porta da cadeia. Nesse sistema, os cidadãos saem um momento da dependência para indicar seu senhor e voltam a entrar nela.126 O que importa agora é o tempo livre para poder desfrutar de sua liberdade particular, o que remete o cidadão democrático ao “individualismo” e esquece da existência da coisa pública, logo de sua liberdade política. Então à medida que as condições se igualam, nas sociedades democráticas, se igualam ou generalizam também sua opiniões, fazendo com que tenham a impressão de que os rumos que o governo segue são também os seus, não se importando mais com a vida pública, e se entregando apenas à vida privada, o que faz com que todo cidadão sinta o poder de ser o único senhor de seu destino, e através de seu próprio esforço sem depender da ajuda de ninguém, tem seu trabalho, adquire sua propriedade e constitui sua família, não precisando de mais nada para completar sua felicidade, se esquece ou não percebe que este estado de oportunidades que goza é fruto da própria liberdade política, que agora larga de mão. Cria um mundo particular cercado por uma redoma de vidro perdendo o interesse pelas virtudes públicas e esquecendo que vive em sociedade. Este é o drama do “individualismo” 127 que ganha mais força com o desenvolvimento do capitalismo e o aumento do materialismo e do economicismo, que transforma o povo em consumidores e os faz esquecerem que na verdade são cidadãos. 126 TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América livro, 2001. v.2, p.390-391. O individualismo é uma expressão recente que uma nova idéia fez surgir. Nossos pais só conhecem o egoísmo.O egoísmo é um amor apaixonado e exagerado que leva o homem a referir tudo a si mesmo e a se preferir a tudo mais. O individualismo é um sentimento refletido e tranqüilo, que dispõe cada cidadão a se isolar da massa de seus semelhantes e a se retirar isoladamente com sua família e seus amigos; de tal modo que , depois de ter criado assim uma pequena sociedade para seu uso, abandona de bom grado a grande sociedade a si mesma.O egoísmo nasce de um sentimento cego; o individualismo procede muito mais de um juízo errôneo do que de um sentimento depravado. Nasce tanto dos defeitos do espírito quanto dos vícios do coração. O egoísmo resseca o germe de todas as virtudes, o individualismo só esgota, a princípio, as fontes das virtudes públicas; mas, com o tempo, ataca e destrói todas as outras e termina se absorvendo no egoísmo.O egoísmo é um vício tão antigo quanto o mundo. Não pertence mais a uma forma de sociedade do que outra. O individualismo é de origem democrática e ameaça desenvolver-se à medida que as condições se igualam. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.2, p.119 127 40 Foi visto então que a tendência natural dos povos marcados por uma extrema igualdade é a centralização do poder, e que da centralização do poder advém um distanciamento, por parte dos cidadãos, das virtudes publicas, fazendo com que percam o interesse político. Com o individualismo, o único interesse legítimo é o próprio interesse. Esta é uma tendência triste para a democracia, que carece fundamentalmente da participação política de seus cidadãos para o bom funcionamento do governo. Porém os Estados Unidos como será visto a seguir, têm uma administração prodigiosamente descentralizada, o que dificulta o alastramento das vontades da maioria por todo país. É como se mesmo tendo a força, não tivessem os meios para mobilizar a todos. Sendo este obstáculo o primeiro freio à tirania da maioria. O segundo freio para a contenção das vontades das maiorias, está no espírito legista128 Americano 129 , que segundo Tocqueville, possui a cadência e sabedoria, próprias da aristocracia, mantendo ainda um equilíbrio entre as vontades populares, e a ordem e a forma, indispensáveis para qualquer governo. Se a tirania da maioria nas rédeas do governo é seu pesadelo, seu sonho seria um poder legislativo que representasse a maioria sem ser escravo dela, um poder executivo que tenha força própria e, um judiciário independente dos outros dois poderes, teríamos ainda um governo democrático, sem estar à mercê da supremacia das vontades populares, ou seja, a tradicional fórmula da separação dos poderes de Montesquieu.130 Será apresentada, no próximo ponto, a organização administrativa estabelecida pelos americanos a partir do estado social democrático e as vantagens políticas que extraem da descentralização e do poder local. E também o freio que ela representa para o alastramento do “despotismo democrático”. 128 Tocqueville entende por legistas “os homens que empreenderam um estudo especial das leis granjearam nesse trabalho hábitos de ordem, um certo gosto pelas formas, uma espécie de amor instintivo pelo encadeamento regular das idéias, que os tornam naturalmente opostos ao espírito revolucionário e as paixões irrefletidas da democracia. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.1, p.309. 129 Os legistas constituem, nos Estados Unidos, uma força pouco temida, que mal se percebe, que não possui bandeira própria, que se dobra com flexibilidade às exigências do tempo e se deixa levar sem resistência por todos os movimentos do corpo social; mas envolve a sociedade inteira, penetra em cada uma das classes que a compõe, trabalha-a em segredo, age sem cessar sobre ela sem que ela perceba e acaba modelando-a segundo seus desejos. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.1, p.317 130 JASMIN, Marcelo. Alexis de Tocqueville: a historiografia como ciência da política.p.64-74. 41 2.3 DESCENTRALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA E CENTRALIZAÇÃO GOVERNAMENTAL. É por meio de instituições livres que os americanos combatem o individualismo e o despotismo democrático. Tocqueville explica que: O despotismo, que, por natureza é temeroso, vê no isolamento dos homens a mais segura garantia de sua duração e, comumente faz de tudo para isolá-los. Não há vício no coração do humano que lhe agrade tanto quanto o egoísmo: um déspota perdoa facilmente aos governados não amá-lo, contanto que não se amem entre si. Não lhes pede para ajudá-lo a conduzir o Estado; basta que não pretendam dirigi-lo. Chama de espíritos turbulentos e inquietos os que pretendem juntar esforços para criar a prosperidade comum e, alterando o sentido natural das palavras, chama de bons cidadãos os que se encerram estreitamente em si mesmos. Assim, os vícios que o despotismo faz nascer são precisamente os que a igualdade favorece. Essas duas coisas se completam e se ajudam uma a outra de maneira funesta. A igualdade coloca os homens um ao lado do outro, sem vínculo comum a retê-los. O despotismo ergue barreiras entre eles e os separa. A primeira os dispõe a não pensar em seus semelhantes; a segunda faz da indiferença, para eles, uma espécie de virtude pública. O despotismo que é perigoso em todos os tempos, é particularmente temível nas eras democráticas.131 Diante desta idéia percebe-se a necessidade especial dos homens nas eras democráticas, em garantir sua liberdade. Quando os cidadãos são obrigados a participar dos negócios públicos, são necessariamente tirados do meio de seus interesses individuais e arrancados, de tempo em tempo, à visão de si mesmos.132 A partir do momento que os negócios comuns são tratados em comum, cada cidadão percebe que não é tão independente de seus semelhantes como pretendia anteriormente e que, para obter o apoio deles, muitas vezes é necessário lhes prestar seu concurso. Os americanos combateram, pela liberdade, o individualismo que a igualdade fazia nascer, e saíram vitoriosos.133 Os legisladores da América não acreditaram que, para curar uma doença tão natural do corpo social nos tempos democráticos e tão destruidora, bastava conceder à nação inteira uma representação de si mesma. Pensaram que, além disso, convinha dar uma vida política independente a cada porção do território, a fim de multiplicar ao infinito, para os cidadãos, as ocasiões de agir juntos e de lhes fazer sentir todos os dias que dependem uns dos outros.134 131 132 TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.2, p.125. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.2, p.125. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.2, p.126. 134 TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.2, p.127. 133 42 Por isso o autor admira tanto as instituições livres e a descentralização administrativa, que contagiam toda uma nação fazendo com que cada cidadão se apegue aos interesses do país como se fossem os seus próprios interesses135, gerando uma série de vantagens que nem o governo centralizado mais forte e poderoso poderia realizar. Por isso, é possível reafirmar que o estado social dos americanos é essencialmente democrático.136 Antes de falar da descentralização administrativa em Alexis de Tocqueville, deve-se notar com cuidado que, o que foi observado pelo autor Da Democracia na América, “foi mais que a América” 137, suas análises e conclusões nem sempre são tomadas a partir do que realmente viu, tampouco o que viu pode ser generalizado para todo o território americano. Esta ressalva foi feita pelo próprio autor quando justifica porque limita a sua análise as comunas da Nova Inglaterra138. Por entender que ali os preceitos democráticos admirados por ele (soberania do povo) são levados às últimas conseqüências139. Tocqueville nota claramente que tais preceitos não se alastram com tamanha eficiência por toda a União, mas prefere, assim mesmo, descrevê-los, pois crê estar fundado sobre este princípio tanto o melhor quanto o pior dos americanos, preferindo, por fim, apresentar aos leitores as instituições criadas pelos americanos funcionando em sua forma plena. Mesmo sendo esta uma visão parcial, ao invés de criticar suas deformidades140 América afora, preferindo apenas citar algumas destas diferenças e destacar que conforme caminhasse para o sul poderia notar claramente a 135 TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.1, p.107. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.1. p. 106-107. 137 Essa expressão é usada pelo autor para deixar claro que democracia americana era diversa em suas regiões autônomas (as relações entre igualdade e religião ou entre liberdade e participação não eram as mesmas em todo o lugar), abstraí as variações empíricas significativas das terras que visitava – especialmente o sul escravista - e projeta o que via como a ponta mais avançada da história universal. JASMIN, Marcelo. As Américas de Tocqueville: a comunidade e o auto-interesse. 2001.p. 203-204. 138 Tocqueville salienta que “há comunas e vida comunal em cada Estado; mas nenhum dos Estados confederados encontra uma comuna identicamente semelhante a da Nova Inglaterra”. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.1, p.91. 139 Há países em que um poder, de certa forma exterior ao corpo social, atua sobre ele e força-o caminhar em certo sentido.Outros há em que a força é dividida, situando-se ao mesmo tempo na sociedade e fora dela. Nada parecido se vê nos Estados Unidos; lá a sociedade age por si e sobre si mesma. Só há força em seu seio; quase não se encontra ninguém que ouse conceber e, sobre tudo, exprimir a idéia de buscá-la em outra parte. O povo participa da composição das leis pela escolha dos legisladores, da sua aplicação pela eleição dos agentes do poder executivo; pode-se dizer que governa por si mesmo, a tal ponto a importância deixada à administração é fraca e restrita, ela é marcada por sua origem popular e obedece ao poder de quem emana. O povo reina sobre o mundo político americano como Deus sobre o universo. Ele é a causa e o fim de todas a coisas. Tudo provém dele e tudo nele se absorve. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.1,p.68. 140 “ Se eu quisesse descer aos detalhes dos meios de execução, teria muitas outras dessemelhanças ainda a assimilar. Mas meu objetivo não é dar um curso de direito administrativo americano”. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.1, p.92. 136 43 deformação destas instituições a ponto “da vid a comunal passar para o condado em determinados Estados”. 141 Antes de adentrar em sua análise político-administrativa das instituições americanas, cabe distinguir, o que o autor fez com cuidado, a centralização governamental da centralização administrativa, a primeira é quando se concentra em um mesmo lugar os interesses comuns de toda a nação “como a formação de leis gerais e relação do povo com estrangeiros; a segunda é quando os interesses específicos de certas partes da nação, como “os empreendimentos comunais” concentram -se da mesma maneira em um só lugar.142 Tocqueville aceita a centralização governamental como um bem em si, por uma série de vantagens como uniformidade das leis, porém não enxerga a segunda com os mesmos olhos, vê nela um carrasco da liberdade humana, inimiga da liberdade comunal. Na América o governo é centralizado e a administração prodigiosamente descentralizada.143 Examinar a União antes de estudar os estados é enveredar por um caminho semeado de obstáculos. A forma do governo federal nos Estados Unidos foi a última a aparecer; foi apenas uma modificação da república, um resumo dos princípios políticos difundidos na sociedade inteira antes dela e subsistindo na sociedade independentemente dela. Aliás, em uma palavra, são vinte e quatro pequenas nações soberanas, cujo conjunto forma o grande corpo da União. O escritor que quisesse dar a conhecer o conjunto de semelhante quadro antes de ter mostrado seus detalhes cairia necessariamente em obscuridades ou repetições.144 Ou seja, os grandes princípios que regem a sociedade americana nasceram e se desenvolveram nos Estados. Todos os Estados que compõem a União americana oferecem, quanto aos aspectos externos das instituições, o mesmo espetáculo. A vida política ou administrativa se encontra concentrada nos três focos de ação que poderiam ser comparados aos diversos centros nervosos que fazem mover o corpo humano.145 Temos então na base desta estrutura a comuna, acima o condado e no ápice o Estado. A analogia do autor de que as comunas estão para a liberdade assim como as escolas primárias estão para a ciência, resume um pouco da importância que ele atribui a tal instituição. A comuna tem um poder de ação previamente delimitado por lei, e é dentro deste espaço que pode agir livremente em prol de seus interesses. As funções nas comunas são 141 TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.1,p.92-93. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.1, p.98. 143 TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.1, p.107. 144 TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.1, p.69. 145 TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.1, p.70. 142 44 diversas (ao todo dezenove, sendo o cidadão obrigado a aceitar sua função sob pena de multa, porém em sua maioria são remuneradas)146 . Essas funções são administradas por um pequeno número de indivíduos os selectmen, que obedecem à lei do Estado quanto as suas obrigações, cabe a eles convocar a reunião comunal (town- meeting) e presidi-la, a reunião comunal pode ser também provocada por dez proprietários mediante algum projeto de interesse da comuna. Ademais os select-men são executantes das vontades populares.147 As comunas da Nova Inglaterra são fortes e independentes, apoiando seus atos sobre o princípio da soberania do povo, Tocqueville salienta que é como se as comunas tivessem renunciado em favor do Estado, parte de sua independência original, e não recebido poderes dele, que só deveria intervir em assuntos que dissessem respeito a mais de uma comuna, o que Tocqueville chamara de “interesse social”, fora deste âmbito, nenhum habitante toleraria a intromissão do Estado nos assuntos comunais. Assim ela distribuiu seus poderes a ponto de envolver o maior número de cidadãos nos assuntos públicos. Talvez seja essa sua maior virtude, e que é desfrutada por toda a União.148 O que mais admiro na América não são os efeitos administrativos da descentralização, mas os efeitos políticos. Nos Estados Unidos, a prática se faz sentir em toda a parte. É um objeto de solicitude desde a cidadezinha até a União inteira. O habitante se apega a cada um dos interesses de seu país como se fossem os seus. Ele se glorifica com a glória da nação; nos sucessos que ela obtém, crê reconhecer sua própria obra e eleva-se com isso; ele se rejubila com a prosperidade geral de que aproveita. Tem por sua pátria um sentimento análogo ao que sentimos por nossa família, e é também por uma espécie de egoísmo que se interessa pelo Estado.149 O condado aparece entre a comuna e o Estado, ele não tem a “existência política” 150 da primeira, sendo uma instituição meramente administrativa com um pequeno número de funções pré-estabelecidas. Inclusive Tocqueville frisa ser o condado dispensável ao andamento ordinário da administração, bastando a comuna e o Estado, porém ela é também a primeira instância do poder judiciário, tendo cada condado um tribunal de justiça representado 146 Este número é referente às comunas da Nova Inglaterra, sofrendo variações em outros Estados. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.1, p.72-73. 147 TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.1, p.74-77. 148 TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.1, p.76. 149 TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.1,p.107. 150 Quando Tocqueville usa esta expressão esta se referindo ao fato do condado não ter representação, ou seja, é administrado por funcionários não-eleitos pelo povo, mas nomeados pelo governo do Estado, que visa no condado um interesse puramente administrativo. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2000. v.1, p. 81. 45 por um juiz, um xerife para executar as decisões dos tribunais e uma prisão para prender os criminosos.151 O que mais impressiona Tocqueville “é que não há um centro para o qual os raios do poder administrativo venham a convergir” nos Esta dos Unidos. As funções administrativas são distribuídas por muitas mãos e cada um recebe todos os poderes necessários para executar suas funções, raramente tendo que prestar conta, e sem necessidade de qualquer impulso externo, sendo difícil de perceber a presença de uma hierarquia administrativa, o condado só intervém em assuntos do próprio condado. A legislação dos Estados desce a detalhes minuciosos, restringindo suas obrigações.152 Há uma outra figura responsável, por ser a ponte de ligação entre o homem comum e o magistrado (o administrador da comuna e o juiz do condado). Estes são os juízes de paz, nomeados pelo governador do estado dentre os cidadãos do condado, não dispondo o governador da atribuição de distitui-los. Os juízes de paz não precisam ser conhecedores das leis, posto que suas funções pairam sobre a moral e os bons costumes.153 Em cada condado são nomeados alguns juizes de paz dos quais três deles formam a chamada corte das sessões, e se reúnem em média duas vezes ao ano tendo a função de manter a obediência do maior número de funcionários públicos. Porém a corte das sessões não tem o direito de fiscalizar os magistrados comunais; essa corte só pode agir, para empregar um termo de direito154, quando provocada. Por este motivo os americanos dividiram entre eles o direito de fiscalização e denúncia, como fazem também com outras funções administrativas. Tendo neste caso o legislador, papel importante confiando não na honestidade da população para o oferecimento da denúncia, e sim em sua inteligência, fazendo apelo ao interesse pessoal, inclusive em alguns casos repartindo a multa com o fornecedor da queixa, o que para Tocqueville garante o cumprimento da lei degradando os costumes, uma vez que o cidadão 151 TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2001. v.1, p.80-81. Estas restrições que os legisladores do Estado da Nova Inglaterra impõem sobre os administradores do condado são no sentido de que “[...] a lei desce a detalh es minuciosos; ela prescreve ao mesmo tempo os princípios e o meio de aplicá-los; ela encerra assim os corpos secundários e seus administradores numa multidão de obrigações estritas e rigorosamente definidas”. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.1, p.82. 153 TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.1, p.86. 154 Em geral pode-se dizer que os administradores do condado não tem o direito de dirigir a conduta dos administradores da comuna, porém quando chamados a apreciar os atos dos administradores das comunas, realizam esse sempre como poder judiciário, não como autoridade administrativa. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2000. v.1, p.84 e 519. 152 46 possa vir a oferecer queixa visando parte da multa e não a lisura do ato administrativo denunciado. 155 Acima dos magistrados156 do condado não há mais propriamente um poder administrativo, mas apenas um poder governamental, o Estado.157 O poder legislativo do Estado divide-se em duas casas: a câmara e o senado. A primeira com o mandato mais curto de seus representantes que a segunda. Desta divisão extraem-se basicamente duas vantagens: a primeira a de um tribunal de apelação para revisão das leis e a segunda é de moderar a marcha das assembléias políticas.158 O poder judiciário possui três principais características a primeira é servir de árbitro (para que ocorra a ação dos tribunais é necessário haver contestação, para que haja juiz é necessário haver processo). A segunda característica é pronunciar-se sobre os casos particulares, não sobre os princípios gerais; a terceira característica é só agir quando provocado. Além destas características o autor destaca o papel político do judiciário que apóia suas decisões na Constituição em vez de nas leis. Em outras palavras, permite não aplicar as leis que lhe parecerem inconstitucionais.159 O governador é o representante do executivo160, colocado ao lado da magistratura como moderador e conselheiro.161 E também reúne em suas mãos todo o poder militar do Estado, é comandante das milícias e chefe da força armada.162 Após encerrar a descrição da estrutura administrativa dos Estados, resta saber qual o papel da União nos Estados Unidos.163 À União foi concedido o direito exclusivo de firmar a paz e declarar a guerra, assinar os tratados de comércio, recrutar exércitos, armar frotas. Quanto aos assuntos internos da 155 TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.1, p.86-87. O magistrado do condado, a que Tocqueville se refere é o servidor público do condado, responsável pela administração, não o juiz de direito, responsável pela primeira instância do judiciário nos condados. 157 TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.1, p.91. 158 “O senado é habitualmente um corpo legislativo; algumas vezes, porém, torna -se corpo administrativo e judiciário”. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.1, p.95. 159 Tocqueville dispensa um capítulo especial para o poder judiciário, como este não é o objeto principal da pesquisa encerro aqui sua explicação, para saber mais ver, Capitulo VI da primeira parte do livro I. 160 Tocqueville explica o emprego da palavra representante: “Não é por acaso que utilizei a palavra representante. O governador do Estado representa, de fato, o poder executivo, mas só exerce alguns dos direitos deste. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.1, p.96. 161 “O governador é armado de um veto suspensivo que lhe permite deter ou, pelo menos, moderar à sua vontade os movimentos. Ele expõe ao corpo legislativo as necessidades do Estado e lhe dá a conhecer os meios que julga útil empregar a fim de satisfazê-las; é o executor natural de suas vontades em todos os empreendimentos que interessam a toda a nação. Na prática não é sempre o governador que executa os projetos que a legislatura concebeu; é freqüente suceder que esta última, ao mesmo tempo que vota um princípio, nomeia agentes especiais para supervisionar sua execução. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.1, p.97 e 523. 162 TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.1, p.97. 156 163 TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América, 2001. v.1, p.95-96. 47 sociedade, a União não se faz necessária, mas foi deixado a ela o direito de resolver tudo o que diz respeito ao valor do dinheiro; foi encarregada do serviço postal; foi dado o direito de abrir as grandes comunicações para unir todo o território nacional.164 Em geral, o governo dos diferentes Estados foi considerado livre em suas esferas.165 Enfim, para que o governo federal pudesse cumprir com suas obrigações foi-lhe concedido o direito ilimitado de arrecadar impostos.166 Quanto ao poder legislativo da União, Tocqueville destaca a superioridade com que os legisladores elaboraram a Constituição Federal167 em relação às Constituições Estaduais, entendendo que estas deixam muitos pontos obscuros quanto à separação dos poderes, logo uma maior vulnerabilidade ao desenvolvimento dos perigos que ameaçam a democracia. Já no âmbito federal, segundo o autor, a divisão dos poderes é feita de maneira sábia, e como foi visto anteriormente, representa um importante freio às paixões democráticas168. Quanto ao poder judiciário169, Tocqueville destaca a sua função política ao decidir as lides entre os Estados, tentando sempre resolver o caso concreto, evitando julgar as leis estaduais, o que poderia causar um mal estar para o Estado invadido em sua “esfera soberana”. 170 Como já mencionado, Tocqueville admite claramente que o que mais admira não são os efeitos administrativos da descentralização, mas sim, os efeitos políticos que ela produz, principalmente na democracia. 164 TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.1, p.131. Porem se algum Estado abusasse desta liberdade, com algum ato imprudente que viesse a comprometer a segurança da União. Poderia ela intervir nos assuntos internos dos Estados. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.1, p.131. 166 TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.1, p.131. 167 “O governo federal é mais justo e mais moderado em sua marcha que os Estado. A mais sabedoria em suas concepções, mais duração e combinação sábia em seus projetos, mais habilidade, continuidade e firmeza na execução de suas medidas”. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.1, p.174. 168 Tocqueville entende como de fundamental importância para o desenvolvimento de uma democracia sustentável a separação bem definida dos poderes, acreditando que a confusão entre eles favorece principalmente por via do poder legislativo, a “tirania da maioria” e as paixões democráticas nos rumos de todo governo. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2000. v.1, p. 296. 169 O poder judiciário da União é composto pelos tribunais federais e pela Suprema Corte. Ambos tem um papel político para garantir a soberania da União, para fazerem os cidadãos obedecerem as suas leis, ou para rejeitar as agressões de que elas seriam objeto, a União tinha pois uma necessidade particular dos tribunais. E a Corte Suprema dos Estados Unidos foi, portanto, investida do direito de decidir sobre todas as questões de competência. Tocqueville acrescenta ainda, que para tornar menos freqüentes os processos de competência, decidiu-se que, em grande numero de processos federais, os tribunais dos Estados teriam direito de se pronunciar juntamente com os tribunais da União; mas, então, a parte condenada sempre teve a faculdade de recorrer à Suprema Corte nos Estados Unidos. E o autor ilustra a idéia com o exemplo de um caso que a corte suprema do Estado da Virginia contestou à Suprema Corte nos Estados Unidos o direito de julgar a apelação de suas sentenças, mas foi em vão, mantendo a suprema corte sua posição. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. 2000. v.1, p. 161 e 528. 170 Ver capitulo VIII da primeira parte do livro I, “Da Constituição Federal”, onde encontra -se detalhadamente as funções dos três poderes da União. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.1, p.174-175. 165 48 Juntamente com estas o autor trabalha a doutrina do interesse bem compreendido, que consiste em cultivar as virtudes públicas, não por serem belas ou grandiosas, mas por serem úteis. Perceberam que, em seu país e em seu tempo, o homem era voltado para si mesmo por uma força irresistível e, perdendo a esperança de detê-lo, passaram a pensar apenas em conduzi-lo. Transformando auto-interesse em interesse bem compreendido.171 Tocqueville acredita que a doutrina do interesse bem compreendido, dentre todas as teorias filosóficas, é a mais apropriada aos homens dos tempos democráticos e vê nela a mais poderosa garantia contra si mesmos. Portanto é principalmente para ela que o espírito dos moralistas de nossos dias deve se voltar.172 Não creio que a doutrina do interesse, tal como é pregada na América, seja evidente em todas as suas partes; mas ela encerra um grande número de verdades tão evidentes que basta esclarecer os homens para que eles se enxerguem. Cumpre pois esclarecê-los a qualquer preço, porque a época das devoções cegas e das virtudes instintivas já vai longe de nós, e vejo chegar ao tempo em que a liberdade, a paz pública e a ordem social mesma não poderão prescindir das luzes.173 Depois do autor nos apresentar todas as vantagens políticas advindas das instituições provinciais, Tocqueville surpreende com a revelação de que “as associações políticas nos Estados Unidos constituem apenas um pequeno detalhe em meio do imenso quadro que o conjunto das associações civis apresenta” 174. Esta revelação vem confirmar o que o autor disse quando fez a analogia de que a comuna está para liberdade assim como a escola primária para as ciências, pois educa os cidadãos através da prática política. Uma vez aprendida ela, estimula a associação de pessoas em prol de objetivos comuns, espalhando-se e aperfeiçoa-se por todos os outros interesses do homem. Para Tocqueville este, é o único meio para as sociedades democráticas se desenvolverem frente ao perigo do crescimento da igualdade de condições, que acarretaria por fim em seu maior temor à “tirania da maioria”. 175 Como pôde ser visto, para Tocqueville a maior virtude da descentralização administrativa é a possibilidade de educar politicamente a população para que, pela suas 171 TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.2, p.148. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.2, p.149 173 TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.2, p.150. 174 TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.2, p.130. 175 Aqui cabe destacar um trecho de sua obra em que se manifesta a respeito da importância da descentralização e do poder local para a educação política do cidadão: “Admitirei de resto, se quiserem, que as cidadezinhas e os condados dos Estados Unidos seriam mais utilmente administrados por uma autoridade central situada longe deles e que lhes permanecesse estranha, do que por funcionário recrutados em seu seio. Reconhecerei se exigirem, que reinaria mais segurança na América, que se faria um uso mais inteligente e mais judicioso dos recursos sociais, se a administração de todo o país fosse concentrada numa só mão. As vantagens políticas que os americanos extraem do sistema da descentralização ainda me faria preferi-lo ao sistema contrário. TOCQUEVILLE, Alexis. A democracia na América. 2001.v.1, p.104. 172 49 próprias mãos, possam resolver os problemas e situações oriundas da localidade em que vivem e, ali mesmo, na comuna, sem esperar qualquer ajuda superior. Então a descentralização administrativa viabiliza a liberdade política e prepara o cidadão para a democracia. Vale relembra aqui a idéia tocquevilliana desenvolvida anteriormente, sobre a função pedagógica e pragmática da nova ciência política para um mundo inteiramente novo, que visa salientar a importância do esclarecimento dos cidadãos, para que possam intervir no processo histórico, ensinando aos homens das eras democráticas o verdadeiro valor da liberdade política. 3 DESCENTRALIZAÇÃO E PODER LOCAL: DESENVOLVIMENTO DAS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS NO BRASIL. Bem, depois de apresentado o autor, seu pensamento, e a empírica democracia americana, o presente capítulo, tem por principal objetivo tentar demonstrar a relevância das observações do autor para a democracia brasileira. Principalmente no que se refere a idéia de descentralização administrativa como importante meio para facilitar a promoção e a ampliação da liberdade política nas democracias em geral. Para tanto, é preciso atentar ao fato de que no Brasil hodierno, o estado social é extremamente oposto ao descrito por Tocqueville em sua observação a América no início do século XIX, onde diz ele, ter encontrado um estado social democrático marcado por uma sociedade que dispunha de amplas igualdades, tanto material quanto de oportunidades. O Brasil contemporâneo, ao contrário, é marcado por uma gritante desigualdade social, segundo Fernando Magalhães, devido a este fato, torna-se difícil pensar em Tocqueville, ao deliberar sobre a reforma do estado, sobre o risco de, serem produzidos efeitos contrários dos imaginados pelo autor a um século e meio atrás. Diante desta dificuldade, tornasse necessário observar o breve panorama traçado a seguir, sobre as instituições democráticas brasileiras. Para a partir de outros autores como Kalus Frey, que acreditam serem válidas as considerações tecidas por Tocqueville sobre liberdade política e democracia em geral, verificar, em que termos pode se falar, atualmente, sobre descentralização, poder local e liberdade política, a partir das idéias de Tocqueville. 3.1 ESTADO SOCIAL BRASILEIRO: OS DESAFIOS À DEMOCRACIA. Como foi visto no capitulo anterior, o estado social dos americanos no início do século XIX, segundo Tocqueville era “essencialmente democrático”, devido ao alto grau de igualdade que a população, de um modo geral se encontrava, tanto no aspecto de oportunidades quanto no aspecto material. Embora Tocqueville reconheça, e destaque como de grande importância para o desenvolvimento da democracia à igualdade material de que os americanos dispunham, reside nela também o seu maior risco, devido a possibilidade de 51 tornar-se “despotismo democrático”, po r isso seu foco de estudo esta na igualdade de oportunidades (liberdades políticas), como principal freio aos problemas advindos do crescente igualitarismo.176 Tocqueville acreditava que o crescente igualitarismo do povo americano encaminharia a democracia naturalmente para a centralização do poder, devido à generalização de opiniões, e o aumento do individualismo, que arrastaria os cidadãos exclusivamente para suas vidas privadas, largando a sociedade a ela mesma. O que colocaria o cidadão em uma situação de menoridade política, não esperando mais do Estado do que segurança, para que desenvolva seus assuntos privados, e conforme as palavras do autor “o dia que o homem não esperar mais do Estado que sua segurança, não tardará em aparecer o senhor que lhe colocará as algemas, e lhe tomará o poder”. A importância atribuída por Tocqueville à liberdade política esta justamente no fato de que apenas através dela, o cidadão da era democrática pode manter-se responsável sobre os assuntos de interesse público, garantindo o funcionamento da democracia de forma sustentável.177 A democracia brasileira é marcada por um estado social oposto ao americano, ou seja, extremamente desigual, o que invertendo a teoria tocquevilliana geraria uma tendência natural à descentralização do poder, consolidada a partir de uma cultura política baseada na idéia de “patrimonialismo”, a descentralização brasileira esta associada ao poder das “oligarquias locais”, e não há uma consciência popular sobre a necessidade de participar do processo de deliberação pública. A história da democracia representativa tem coincidido com a história da inclusão política. Na democracia brasileira não é diferente.178 Os partidos políticos de massa, instituições mais importantes das democracias representativas, contribuíram grandemente para alcançamos, pelo menos formalmente o ideal da soberania do povo. Formalmente, pois somente se a distância entre representantes e representados puder ser relativizada, os partidos políticos de massa poderão atuar de forma mediadora, o que depende ainda da solução interna que tenham dado ao problema da representação.179 Atualmente se discute a idéia de Accountability política, que consiste na valoração da conexão entre representante e representado, através da avaliação do eleitorado sobre as ações passadas realizadas por seus representantes. Existe também o Accountability legal, que 176 TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.1, p.55-64. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América 2001. v.1, p.104. 178 ARATO, Andrew.Representação, Soberania Popular e Accountability. Lua Nova, nº 55-56, 2002, p.87. 179 ARATO, Andrew.Representação, Soberania Popular e Accountability, p.87. 177 52 consiste na responsabilização legal do representante quando, por seus atos, infringir a lei. Este último, contudo, não funciona como instrumento do povo exceto à medida que constitui um dos instrumentos do constitucionalismo.180 Andrew Arato conclui que181 a Accountability política é um princípio importante que pode ajudar a dar sentido à noção de soberania popular num regime de democracia representativa. Porém, o modelo institucional accountability deve ser completado por instituições de deliberação, constitucionalismo e representatividade descritiva. Sendo a précondição mais importante para que um sistema de accountability realmente funcione é a atividade de seus cidadãos nos fóruns públicos democráticos e na sociedade civil. Pois isolados, colocam-se em risco a própria Accountability. No atual regime democrático brasileiro, pós-88, as perguntas básicas relativas ao processo de tomada de decisões do governo, em especial no que se refere à política econômica e às reformas estruturais do Estado, apontam principalmente para duas questões: as instituições e as gestões.182 Quão concentrado ou disperso está o poder governamental para tomada de decisões, levando em conta as regras do jogo formais e informais vigentes, por um lado, e qual é a efetiva capacidade de tomar decisões e implementá-las evidenciada pelas gestões governamentais, por outro. 183 Pode-se dizer que o federalismo brasileiro contribui para essa situação precária de governabilidade no país. É verdade que embora remonte à tradição de governos regionais fortes em relação ao poder central (devido aos recursos econômicos e administrativos e à configuração de partidos) prevalecente da República Velha, o peso da administração federal variou ao longo do século XX. Com os governos do presidente Getúlio Vargas tivemos um forte impulso de centralização do poder político, que visava a criação de um Estado nacional moderno e sua própria burocracia.184 O regime militar, por sua vez, ao mesmo momento que, construía uma base institucional e estatal duradoura à centralização decisória que desfrutava, o viu obrigado a estabelecer relações com as elites locais, para garantir legitimidade mais ampla ao regime. O que teve como conseqüência o crescimento do poder político-econômico dos estados. Por fim, os grupos políticos estaduais converteram-se nos protagonistas principais da transição, a ponto da democratização ser praticamente identificada com a 180 ARATO, Andrew.Representação, Soberania Popular e Accountability, p.92. ARATO, Andrew.Representação, Soberania Popular e Accountability, p.103. 182 PALERMO, Vicente.Como se governa o Brasil? O Debate sobre Instituições Políticas e Gestão de Governo. DADOS – Revista de ciências sociais, rio de Janeiro, Vol. 43, nº3, 2000, p.521-522. 183 PALERMO, Vicente.Como se governa o Brasil? O Debate sobre Instituições Políticas e Gestão de Governo. 2000,p.522. 184 Ver ponto 3.1.2, sobre paternalismo e clientelismo. 181 53 descentralização política.185 De 1985 até a promulgação da Constituição de 1988, a dimensão federal teria seus momentos mais expressivos no processo de democratização brasileira, com a nova Carta Magna, foram introduzidas modificações nas relações entre o presidente e os estados, dando vigor ao federalismo, concretizando-se, por exemplo, substanciais transferências financeiras da União para os estados e municípios.186 Em poucos países os governos estaduais e locais administram uma fatia tão grande das receitas fiscais totais.187 Porém, de um modo geral, o federalismo é de grande importância para a morfologia político-institucional brasileira. Segundo Mainwaring, das quatro nações federativas da América Latina; Argentina, Brasil, México e Venezuela, o Brasil é o caso de federalismo mais consistente, e estima que a dimensão federal é um importante elemento de continuidade entre o regime democrático até 1964 e o atual, assim como ela deu forma ao funcionamento do presidencialismo.188 Outro desafio para a democracia brasileira é a fragmentação de seus partidos políticos, que segundo Jairo Nicolau, é o país que mais possui partidos relevantes no mundo.189 À fragmentação soma-se a instabilidade e, a fragilidade e o fisiologismo. O quadro partidário modifica-se constantemente. As variações da bancadas variam mês a mês, isto, associado à fragmentação e ao fisiologismo, torna-se mais difícil para os eleitores diferenciar programas e distinguir quem é quem, já que nem sempre se apresentam os mesmos atores (mudanças de siglas, coalizões).190 Apesar dos partidos terem um alcance nacional, todos eles estão fortemente regionalizados, com as bases (organizacionais e eleitorais) de seu poder muito desigualmente distribuídas.191 Com seus elementos constitutivos mal definidos, os partidos políticos tornam-se frágeis, pouco enraizados no eleitorado, o que leva a baixos índices de identificação partidária, debilidade organizacional, lideranças que se limitam aos 185 PALERMO, Vicente.Como se governa o Brasil? O Debate sobre Instituições Políticas e Gestão de Governo. 2000,p.523. 186 SOUZA, Celina. Intermediação de interesses regionais no Brasil: o impacto do federalismo e da descentralização.Apud: PALERMO, Vicente.Como se governa o Brasil? O Debate sobre Instituições Políticas e Gestão de Governo. 2000, p.524. 187 DAIN, Sulamis. Experiência internacional e especificidade brasileira. Apud: PALERMO, Vicente.Como se governa o Brasil? O Debate sobre Instituições Políticas e Gestão de Governo. 2000, p. 524. 188 MAINWARING, Scott. Presidentialism and democracy in latina America. Apud: PALERMO, Vicente.Como se governa o Brasil? O Debate sobre Instituições Políticas e Gestão de Governo. 2000, p. 524. 189 NICOLAU, Jairo Marconi. Multipartidarismo, maiorias Parlamentares e democracia: Notas sobre o Caso Brasileiro. Apud: PALERMO, Vicente.Como se governa o Brasil? O Debate sobre Instituições Políticas e Gestão de Governo. 2000,p.524. 190 PALERMO, Vicente.Como se governa o Brasil? O Debate sobre Instituições Políticas e Gestão de Governo. 2000,p.524. 191 NICOLAU, Jairo Marconi. Multipartidarismo, maiorias Parlamentares e democracia: Notas sobre o Caso Brasileiro. Apud: PALERMO, Vicente.Como se governa o Brasil? O Debate sobre Instituições Políticas e Gestão de Governo. 2000,p.524. 54 que exercem cargos eletivos, pouca participação de membros e filiados, salvo casos como o Partido dos Trabalhadores. E, de um modo geral, abusam de práticas clientelistas.192 Atualmente presencia-se no Brasil um efervescente debate sobre a reforma do Estado. De um lado temos os argumentos em torno da retração do Estado, que se têm hoje como fato consumado, e ainda pelos prós e contras da privatização e da descentralização em geral. Por outro lado à questão do Estado gerente, que traz a idéia de implantar no setor público o espírito empreendedor que supostamente predomina no mundo da economia privada. Diante da situação crítica em que se encontra a saúde financeira do setor público, todo esse debate gira em torno de dois principais objetivos, limitar os gastos públicos e aumentar a eficiência administrativa do Estado.193 Nesta orientação adotada hoje pelos principais governantes do país, encontramos muitas das tendências temidas por Tocqueville, em sua viagem à América do século XIX, as quais segundo ele, seriam conseqüências das condições de crescente igualdade, que acarretaria na centralização do poder. O que se pretende hoje no Brasil é a inversão da sua concepção para condições extremamente opostas194 as encontradas por Tocqueville na Nova Inglaterra, ou seja, para um estado social marcado por uma profunda desigualdade material entre a população. 195 3.1.1 Desigualdade material e democracia individualista. Marcelo Magalhães entende que a “história das democracias nos tempos modernos tem coincidido com a história da democracia americana”. E que todas as sociedades ocidentais têm se esforçado para seguir seu modelo. O que consiste basicamente na idéia tocquevilliana de inevitabilidade do advento democrático pelo mundo.196 Representando para o homem contemporâneo o único tipo de regime político capaz de conduzi-lo ao seu pleno desenvolvimento, ou seja, a conquista da liberdade individual e 192 PALERMO, Vicente.Como se governa o Brasil? O Debate sobre Instituições Políticas e Gestão de Governo. 2000,p.524. 193 FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 108-109. 194 Ver no capítulo anterior sobre o estado social dos americanos, a respeito da condição de igualdade extrema em que se encontravam os habitantes da Nova Inglaterra. 195 FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 109. 196 MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia individualista, Tempo Social: revista de sociologia da USP, v.12, n.1, p.141. 55 igualdade de condições 197 . Entretanto este desenvolvimento igualitário da democracia é responsável também pelos aspectos negativos de seu funcionamento. Tornando a democracia sua própria oposição, de duas maneiras, pela atuação de seus agentes e pelo seu conteúdo individualista especificamente excludente.198 Fernando Magalhães tem duas propostas em seu artigo, a primeira é explorar a idéia de Tocqueville em relação ao futuro das democracias, e o segundo demonstrar como a igualdade de condições, isolada de um conteúdo material (social) pode gerar um tipo de discriminação que torna a sociedade democrática injusta e violenta199. Esta primeira proposta consiste em explorar uma das principais idéias da Democracia na América, que é a possibilidade dela tornar-se seu próprio algoz devido ao peso dado às opiniões da maioria, como quase que sendo a verdade absoluta. E como conseqüência teríamos a restrição da liberdade política 200. Assim como na “democracia individualista”, nos regimes socialistas também ocorre a privação das liberdades, porém no socialismo trabalha-se a idéia de uma igualdade econômica, cerceando as liberdades individuais em função do conjunto da organização social. Não há espaço para o desenvolvimento do individualismo, bem como toda a esfera econômica é controlada pelo Estado. Quer dizer presume-se aqui uma espécie de democracia econômica, diferente da democracia americana estudada por Tocqueville que igualava todos em oportunidades 201. Aqui o autor entende que a esquerda, inclusive a esquerda marxista, perdeu uma grande oportunidade de considerar as críticas liberais à ditadura das massas. Ocupou-se durante muito tempo com a igualdade material, transformando o modelo não no coveiro da burguesia e sim do proletariado. Deixando escapar o que poderia ter sido a fórmula salvadora do regime socialista, a chamada liberdade política 202. 197 MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o individualista, p.141. 198 MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o individualista, p.141. 199 MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o individualista, p.141. 200 MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o individualista, p.142. 201 MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o individualista, p.142. 202 MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o individualista, p.142. futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia 56 Porém a critica liberal de Tocqueville aplica-se, sobretudo à democracia denominada burguesa e ao individualismo das sociedades modernas203. Que se presume de vital importância para a compreensão da sociedade hodierna, que cada vez mais se confirma a tendência da padronização de opiniões, e estas ideologias que esmagam as minorias em nível nacional e internacional. 204 Atualmente a democracia é uma realidade na vida de homens e mulheres, e nada leva a crer que ela seja ameaçada em seus aspectos vitais. Será então a democracia como igualdade de condições, mesmo com as advertências feitas por Tocqueville, fator suficiente para que todas os membros de uma comunidade alcancem um padrão aceitável, com o mínimo de dignidade oferecida ao ser humano?205 Partindo então do pressuposto que a tendência ao individualismo e a conseqüente padronização do pensamento político-social e sua ação quase tirânica sobre as minorias, confirma-se nas democracias contemporâneas.206 O problema agora é saber até que ponto os meios encontrados por Tocqueville para conter a supremacia da maioria são eficientes?207 Tocqueville vê em uma possível instituição análoga à aristocracia, o meio para moderação das vontades da maioria, para evitar que a liberdade seja sacrificada em nome da igualdade. Na opinião do autor esta idéia fracassa por dois motivos. Primeiro pelo conceito limitado de democracia em Tocqueville sobre a ótica exclusiva da defesa dos interesses privados. E o outro é a respeito da “fórmula formal” de sua concepção de instrumento moderador. A idéia de um corpo de juristas como contraponto das vontades das massas. Pois também estariam os membros do judiciário, assim como os legistas, vulneráveis à doutrina dominante da América. Dessa forma, a democracia na concepção tocquevilliana, dificilmente conseguirá evitar a opressão da maioria.208 203 Este individualismo nas sociedades modernas tem como conseqüência a repressão das minorias que pode ser ilustrado pela “reação defens iva daqueles grupos étnicos dominantes que se sentem ameaçados pela presença de outras culturas”, a exemplo do que ocorreu no Reino Unido, produzindo uma atitude mesquinha que chamou de “inglesidade” (englishness). HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Apud: MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia individualista, p.141. 204 MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia individualista, p.143. 205 MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia individualista, p.143. 206 MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia individualista, p.144. 207 MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia individualista, p.144. 208 MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia individualista, p.144. 57 Na América analisada por Tocqueville, havia duas tendências em relação às decisões políticas que ora eram tomadas diretamente pelo povo e ora inclinavam para o instituto da representação, no decorrer do desenvolvimento democrático o sistema representativo prevaleceu sobre o direto. Ao ponto que hoje o segundo é raro, e a sociedade fica a mercê da opinião de uma minoria, embora se tenha a impressão de que a maioria participa das decisões, pois escolhe seus representantes209. Disso decorre um aumento da apatia política e um avanço ao individualismo. Aqui é salutar lembrarmos da idéia de sociedade uniformizada que compõe a definição tocquevilliana de democracia, que padroniza os indivíduos alheios uns aos outros, em contraposição à estrutura de castas, mas de certa forma comunizada, da sociedade feudal. Ele lamenta o fim desta, não por conservadorismo aristocrático, mas porque alheios uns aos outros os indivíduos entreguem-se ao conformismo, aceitando todas as regras sociais impostas pelo individualismo, o que Tocqueville chama de servilité (servilidade).210 O conformismo massificado e a “cultura do contentamento” 211 tiranizam a vida social, econômica e política e mesmo intelectual das sociedades pós-modernas212. Reforçando a crítica ao significado de igualdade tocquevilleana, ser restrito à igualdade liberal de condições, não levando em consideração sua variante socialista de igualdade econômica. Sua rejeição à revolução social leva-o a confundir sistemas econômico-políticos com formas de governo. À democracia liberal opõe o socialismo, e a este a liberdade, não o capitalismo.213 Nas democracias hodiernas os beneficiários do sistema preferem optar por uma inação em curto prazo, ainda que visíveis os gritantes males sociais, a optar por uma ação benéfica em longo prazo, mas que resulte no aumento de encargos as classes satisfeitas.214 A igualdade sobre a qual fala Tocqueville tem um cunho restrito que envolve a questão da individualidade, mas que foi universalizada. Uma democracia pode oferecer a 209 O comparecimento sazonal às urnas, que constitui regra elementar da sociedade democrática, é insuficiente e enganador, pois ocorre num contexto de menoridade política. JASMIN, Marcelo. Individualismo e despotismo: a atualidade de Tocqueville Apud: MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia individualista, p.147. 210 MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia individualista, p.145-147. 211 Esta expressão “cultura do contentamento” criada por John Kenneth Galbraith é usada par a definir a tirania da maioria nos dias atuais, que oprime de maneira violenta as camadas minoritárias, principalmente o segmento negro. Ou ainda a ditadura da classe satisfeita - isto é o conjunto formado pelos ricos, pela classe média e pelos estratos em ascensão-aquela que recebe os benefícios do bem-estar material, tornando-se satisfeita por que é maioria. GALBRAITH, John Kenneth. Questa à dittatura dei ricchi. Apud: MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia individualista, p.158. 212 MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia individualista, p.153. 213 MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia individualista, p.153-154. 214 GALBRAITH, John Kenneth. Questa à dittatura dei ricchi. Apud: MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia individualista, p.159. 58 todos oportunidades iguais. Mas os seus benefícios só podem ser desfrutados por todos aqueles que são iguais. Portanto, sem justiça social para repartir os bens com certa eqüidade, qualquer valor universal de uma democracia permanecerá sempre excludente. 215 Além deste equivoco, o autor ressalta outro, quanto à idéia de Tocqueville sobre a existência de um corpo intermediário de caráter similar a sua aristocracia para temperar as vontades da maioria, com o argumento que este espírito legista estaria constantemente influenciado pelas paixões populares. A liberdade política tocquevilleana subordina-se, portanto, aos princípios individualistas que dominam a mentalidade democrática moderna. Permanecendo a liberdade como instrumento meramente formal, perseguido por uns poucos, sem condições de atender as necessidades das sociedades democráticas contemporâneas, marcadas por uma extrema desigualdade social. 216 Portanto, a questão inicialmente formulada, relativa à idéia de igualdade de condições isolada de um conteúdo material (social), como fruto de uma sociedade democrática violenta e injusta, fica momentaneamente sem solução, até que a democracia e a liberdade sejam encaradas por uma outra perspectiva que não a de igualdade de condições, pois sem o mínimo de igualdade material, Fernando Magalhães conclui não ser possível apropriar-se de Tocqueville para desenvolver uma democracia mais justa. Portanto, o processo de igualitarização que na sociedade americana representava o maior risco para a democracia, pois poderia conduzir a centralização administrativa, no Brasil por sua vez, a diminuição das diferenças materiais, apresenta-se como uma condição essencial para o desenvolvimento da democracia. 217 Apesar de diagnosticar tais equívocos218 na teoria de Tocqueville, o autor considera inquestionável219 o valor de suas análises para a compreensão das democracias contemporâneas e seus problemas. 215 MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia individualista, p.161. 216 MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia individualista, p.162. 217 MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia individualista, p.142. 218 Para Fernando Magalhães, apesar de a lógica dos argumentos de Tocqueville, quer dizer a construção de seu edifício teórico, desabar diante das próprias bases que o alicerça, o que, não impede que o eco de suas observações se faça ouvir em várias gerações subseqüentes. MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia individualista, p.162. 219 Entre outras afirmações em relação à relevância do estudo do autor destaca-se esta “a sociologia e a ciên cia política de Tocqueville possuem fundamental importância para a compreensão da época em que vivemos.” MAGALHÃES, Fernando. O passado ameaça o futuro: Tocqueville e a perspectiva da democracia individualista, p.143. 59 A recente análise de Francisco de Oliveira220,que mostra de forma bastante reveladora a tendência da política brasileira mais recente, em especial nas duas gestões do Presidente Fernando Henrique Cardoso, à privatização não apenas das empresas públicas, mas também a própria esfera pública, tendo como efeito a anulação da política, aliada a uma destruição da fala. Temores estes que sempre afligiam a mente de Tocquevillle. As empresas multinacionais que atuam nos mercados globalizados não dependem mais como antes da benevolência do governo central; pelo contrário, cada vez mais essas empresas impõem suas condições aos governos estatais. Não só dentro dos governos do mundo todo como também nas relações internacionais, em especial as relações desiguais de comercio entre o hemisfério norte e sul.221 Segundo Klaus Frey, um dos pensamentos mais importantes de Tocqueville para repensar a reforma do estado está em sua desconfiança em relação à mera engenharia institucional, pois ele acreditava que acima de tudo é indispensável contemplar um paradigma desejável para uma ordem razoável da convivência humana.222 O surgimento de novas elites econômicas e sua predominância na sociedade globalizada, assim como o isolamento em círculos fechados, que se observa hoje no Brasil223, na opinião do autor, não desvalorizam224 as previsões de Tocqueville no que se refere ao aumento do economicismo, e a tendência ao individualismo ou isolamento individual e o desinteresse da vida pública, mesmo porque Tocqueville nunca chegou a confundir o aumento das chances sociais com a realização efetiva da igualdade social.225 3.1.2 Descentralização, poder local e representação política. Enquanto na democracia americana observada por Tocqueville, a descentralização administrativa constituiria um dos principais mecanismos para a manutenção da liberdade política, funcionando como motor para o atuar cívico. No Brasil a descentralização tem sido 220 OLIVEIRA. Francisco de. Privatização do público, destituição da fala e anulação da política: o totalitarismo neoliberal. Apud: FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 110. 221 FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 110. 222 FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 111. 223 OLIVEIRA. Francisco de. Privatização do público, destituição da fala e anulação da política: o totalitarismo neoliberal. Apud: FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 111. 224 Klaus Frey salienta que se refutarmos de antemão nosso pensador por seu viés conservador, que sem dúvida se encontra presente em vários aspectos da sua obra, corremos o risco de perder de vista suas valiosas advertências e propostas. FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 111. 225 FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 111. 60 associada historicamente à personalização do poder na figura das elites locais, não chegando a ser desfrutado pela população, governando as elites locais através de práticas “clientelistas”. 226 Por outro lado, a centralização do poder na experiência federativa brasileira, foi promovida durante a história por governos ditatoriais, que governaram sempre através de práticas “paternalistas”, o que faz com que a descentralização seja também associada à democratização, o que no caso brasileiro evidencia-se como um grande perigo, se não forem levados em conta o papel das elites locais. Estas tendências centralistas e descentralistas que marcam o desenvolvimento do Estado brasileiro, necessitam portanto, serem esclarecidas.227 Para que se compreenda a origem do patrimonialismo e do clientelismo brasileiro, é necessário voltar os olhares para o passado, e observar como foram estabelecidas essas relações no cenário político nacional, e como se perpetuam durante séculos.228 O momento histórico é o Segundo Reinado, que segundo Raymundo Faoro: Não constitui o sistema político brasileiro o soberano legitimado pelo poder moderador, nem a centralização articulada na Corte. Este assenta sim sobre a tradição, teimosa de sua permanência de quatro séculos, triturando nos dentes da engrenagem, velhas idéias importadas, teorias assimiladas de atropelo e tendências modernizadoras, avidamente imitadas da França e da Inglaterra. Mas a tradição não se alimenta apenas da inércia, se não de fatores ativos, em movimento e renovação, mas incapazes de alterar os dados do enigma histórico. Sobre as classes que se armam e se digladiam, debaixo do jogo político, vela uma camada político social, o conhecido e tenaz estamento, burocrático nas suas expansões e nos seus longos dedos. Nação, povo, agricultura e comércio obedecem a uma tutela, senhora e detentora da soberania.229 A mais de um século, Tavares Bastos em voz de protesto diria que: Os erros administrativos e econômicos que afligem o Império não são exclusivamente filhos de tal e tal indivíduo que há subido ao poder, te tal ou tal partido que há governado: não constituem um sistema seguido, compacto, invariável.Eles procedem todos de um sistema político afetado de raquitismo, de uma idéia geradora e fundamental: a onipotência do Estado, a máquina central , e nessa máquina certas e determinadas rodas que imprimem movimento ao grande todo.230 226 FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 101. FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 103. 228 FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro,2000. p.400. 229 FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro,2000. p.437. 230 BASTOS, A. C. Tavares. Cartas do Solitário. Apud: FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 2000, v.1, p. 437. 227 61 Bonfin traduz a mesma idéia, de maneira mais dura, “Depois de ter sido, durante quase dois séculos, carne viva para a varejeira lusitana, o Brasil acabou incluindo na sua vida o próprio estado que, de lá, emigra, na plenitude da ignomínia lusitana”. 231 O estamento burocrático, portanto é a “base” detêm o poder. 233 232 sobre a qual se apóiam as elites, que O governo apesar de se esforçar na tentativa de centralizar234 o poder de decisão para defender o interesse nacional, não logra êxito, pois sofre interferência dos líderes locais235 que compõe o parlamento nacional, mas defendem seus próprios interesses.236 Para poder governar, a Corte, vê-se obrigada a conceder cargos importantes para adversários políticos, com o objetivo de formar uma bancada com possibilidade de governar. Com essa concessão de cargos, que visava a governabilidade do país, a Corte abre espaço para o aparecimento de novas burocracias, preenchidas com familiares (nepotismo), e aliados políticos (clientelismo)237. E a garantia para essa situação de conforto perdurar, é a própria continuidade da permanência no poder do “patriarca”. Portanto a política e os empregos públicos possuem uma estreita ligação. No momento em que determinado político é eleito, ou um ministro é nomeado, todos os cargos públicos de alguma maneira vinculados ao seu arbítrio, serão investidos por único critério, o seu próprio interesse, não importando para ele o grande prejuízo que esta prática cause à nação.238 A “aristocracia burocrática” fabrica a opinião pública no Brasil, através da imprensa, e apoiada por empresas industriais, associações mercantes, bancos, agricultores entre tantos 231 BOMFIM, M. O Brasil nação. Apud: Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 2000, v.1, p. 437. 232 “A nossa aristocracia” - observam as cartas de Erasmo - “é burocrática”: não que se componha apenas de funcionários públicos; mas essa classe forma a sua base, à qual adere,por aliança ou dependência, toda a camada superior da sociedade brasileira.FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 2000, v.1, p. 439. 233 FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 10ªed. São Paulo: Globo, 2000, v.1, p. 439. 234 A centralização, além de exigida pelas condições que dão integridade ao sistema, se exacerba continuamente, levando todos os negócios e assuntos à Corte, com a papelada lenta da antiga subordinação da colônia à metrópole. As províncias como outrora as capitanias, são à sombra do governo geral, esgotando a sua autonomia na cópia servil do centro. FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 2000, v.1, p.442/443. 235 Segundo Raymundo Faoro, O patronato não é, na realidade, a aristocracia, o estamento superior, mas o aparelhamento, o instrumento em que aquela se expande e se sustenta. Uma circulação de seiva interna, fechada, percorre o organismo, ilhado na sociedade, superior e alheio a ela indiferente à sua miséria. FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 2000, v.1, p. 441. 236 FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 2000, v.1, p. 437. 237 No contexto, o funcionalismo será a “profissão nobre e a vocação de todos. Tomem -se, ao caso, vinte ou trinta brasileiros em qualquer lugar aonde se reúna a nossa sociedade mais culta, todos eles ou foram ou são, ou hão de ser, empregados públicos, se não eles, seus filhos”. FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 2000, v.1,p. 440-441 238 FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 2000, v.1, p. 441-442. 62 outros, que fornecem recursos improvisados aos detentores do poder, que governam e legislam para os patrocinadores de suas campanhas.239 Assim ficam acuados os diversos elementos que deveriam compor a mente nacional, o espírito agrícola, mercantil, literário e artístico, tolhidos no desenvolvimento, não concorrem a formar a opinião pública.240 Durante as eleições, as “aristocracias burocráticas” concorrem pelos votos do povo, e uma vez composta as opiniões e o parlamento, a burocracia espera da Coroa o ministério para governar.241 Sendo assim a soberania que deveria emanar do povo emana de uma entidade maior, abstrata, segundo Raymundo Faoro: O governo tudo sabe, administra e provê. Ele faz a opinião, distribui a riqueza e qualifica os opulentos. O súdito torvado com a rocha que lhe rouba o sol e as iniciativas, tudo espera da administração pública, nas suas dificuldades grandes e pequenas, confiando, nas horas de agonia, no milagre saído das Câmaras do paço ou dos ministérios. Esse perigoso complexo psicológico, inibi há séculos, o povo, certo de que o Estado não é ele , mas uma entidade maior, abstrata e soberana.242 Para o desenvolvimento espantoso que tem esse corpo oficial entre nós, não concorre, como muitos pensam, o número dos empregos, e sim a tendência absorvente da administração a par da falta de iniciativa particular” 243 Surge com isso um paradoxo: O estado, entidade alheia ao povo, superior e insondável, friamente tutelador, resistente à nacionalização, gera o sentimento de que ele tudo pode e o indivíduo quase nada é. O ideal utopicamente liberal, que afirma o domínio, a fiscalização e a apropriação da soberania de baixo para cima, base do regime democrático, esse ideal não perece, não obstante sua impotência. Entende a camada dominante, negando-o, que a sociedade brasileira não dispõe dos instrumentos necessários de cultura e autonomia para o trato de seus negócios e para governar-se a si mesma. O dogma não longe de ser verdade, perde-se num circulo vicioso: o povo não tem capacidade para os negócios porque o sistema lhe impede de neles participar.244 Este drama foi identificado, por Tocqueville, quando se depara na América do século XIX, com a “tirania da maioria”, e a possibilidade desta transforma r-se em “despotismo democrático”, que geraria o “individualismo” moderno, que consiste no isolamento de indivíduos impotentes de atuar sobre seus destinos, que esperam do Estado a resolução de 239 FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 2000, v.1, p. 442. FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 2000, v.1, p. 443. 241 FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 2000, v.1, p. 442. 242 FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 2000, v.1, p. 443. 243 FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 2000, v.1, p.439. 244 FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 2000, v.1, p.444. 240 63 todos os problemas públicos245, e com isso, lhe possibilite o máximo de tempo livre para dispensarem com seus interesses privados. Preocupado em combater a possibilidade do surgimento e manutenção deste Estado distante, que é fruto do descaso cidadão, o autor trabalha a idéia de descentralização e o poder local como formas de auxiliar os cidadãos a transformarem “auto -interesse” em “interesse bem -compreendido”, sugerindo como meio de estimulação, a criação de um espaço para prática da liberdade política. 3.2 DESCENTRALIZAÇÃO E LIBERDADE POLÍTICA: CAMINHOS PARA A DEMOCRACIA. No Brasil contemporâneo, Klaus Frey trabalha a concepção tocquevilliana a respeito da descentralização e do poder local, acreditando vir a ser útil, no que diz respeito à fundamentação teórica de uma abordagem democratizante da descentralização políticoadministrativa.246 O autor parte do pressuposto que não só a democracia brasileira, mas as democracias contemporâneas de um modo geral, são vítimas de uma estrutura administrativa estatal247 que não condiz com a complexidade dos problemas trazidos pela globalização248 e a etapa 245 Tudo se espera do Estado, “que sendo a única associação ativa, aspira e absorve pelo imposto e pelo empréstimo todo o capital disponível e distribui-o, entre seus clientes, pelo emprego público sugando as economias do pobre pelo curso forçado, e tornando precária a fortuna do rico. FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 2000, v.1, p.444. 246 FREY, Klaus. Descentralização e poder local em Aléxis de Tocqueville. Revista de sociologia e política nº15, p.83-96, nov.2000, p.83. 247 De modo geral, na medida que numa sociedade de massa e em um território vasto todas as atenções acabem se direcionando para um poder único, o sistema político perde estabilidade, fazendo que particularmente em tempos de crise, o poder central transforme-se no inimigo geral da sociedade. Essa inimizade com o governo central, assim como as expectativas desmedidas por parte da população, podem segundo Tocqueville, ser considerados indícios de uma falta de responsabilidade generalizada que necessariamente se propaga em uma sociedade cujos membros não dispõe de possibilidades de autodeterminar e deliberar sobre assuntos de seu próprio interesse. FREY,Klaus. Descentralização e poder local: em Aléxis de Tocqueville. p.92. 248 As varias leituras do processo de globalização que caracterizam a etapa contemporânea do capitalismo permite assinalar, para além das divergências de interpretação, uma tendência no sentido de “uma nova hierarquia dos espaços”. Isto coloca no centro de atenção os rearranjos institucionais que vêm se cristalizando e concretizando no espaço global, assim como o crescente papel das cidades e das comunidades locais nas soluções dos problemas trazidos pela própria globalização. Esses processos ocorrem em detrimento do Estadonação que de acordo com o relatório das Nações Unidas sobre o desenvolvimento humano de 1993 “tornou -se pequeno demais para as grandes coisas, e grande demais para as pequenas” DOWBOR, Ladislau. A representação social. Propostas para uma gestão descentralizada. Apud: FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. Revista Lua Nova, nº51: p. 97-118, out.2000. p.97 64 hodierna do capitalismo. O problema é garantir o desenvolvimento das sociedades frente ao desenvolvimento do mundo globalizado, ao mesmo tempo garantindo ou recuperando, as conquistas ou os ideais da democracia, em especial a igualdade e a liberdade.249 Quais podem ou devem ser as instâncias e os agentes privilegiados e quais os instrumentos e procedimentos oportunos nessa busca por um desenvolvimento sustentável e mais humano? 250 Não se pode esperar encontrar tal resposta apenas nos mecanismos de controle e participação disponibilizados na Constituição Federal brasileira. Que são insuficientes para o desenvolvimento da cidadania e uma eficiente participação popular na administração pública. Pois está como se sabe requer uma prática política que tenha como objetivo o desenvolvimento sustentável da sociedade.251 O autor acredita que para tentar responder a esta pergunta, em primeiro lugar, se deve observar os exemplos práticos, destacando o caso brasileiro uma revitalização substantiva da democracia no município, principalmente no que se refere a arranjos institucionais e novas práticas de participação. Porém alerta que estes ainda são casos isolados e como tendência contrária, temos que ainda há em muitos municípios a manutenção de práticas clientelistas e patrimonialistas.252 Estas duas contradições empíricas remetem para a primeira importância do pensamento tocquevilliano, que é de justamente esclarecer estas duas tendências que marcam o processo político-institucional no país, a centralização e a descentralização. E, por outro lado, as concepções teóricas de Aléxis de Tocqueville confrontadas com as condições das 249 FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 97. FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 97. 251 Aqui faz-se importante lembrar que Tocqueville compartilha com John Stuart Mill uma postura cética frente ao liberalismo constitucional que se limita a precauções institucionais para a garantia da liberdade(disso provem sua crença a insuficiência e ineficácia dos dispositivos constitucionais elaborados pelos formuladores da constituição americana para proteger ou promover a liberdade).É próprio do liberalismo enquanto teoria de dominação burguesa abstrair a realidade social e, ao mesmo tempo, omiti-la, o que de acordo com Döhn, representa uma das fraquezas fundamentais de todo o liberalismo. Tanto Mill como Tocqueville, contrapondo-se a essa concepção formalista do liberalismo constitucional, tematizam a complexidade das pré-condições reais da dominação social com os temores básicos da liberdade, igualdade e da soberania popular. Ambos autores, o primeiro salientando as restrições sócio-econômicos, o segundo a centralização da questão dos hábitos e valores morais, chegam a exigir a ampliação da participação política e uma politização do processo político. O exercício da liberdade política deve ser enxergado como um processo de aprendizagem, imprescindível para que os homens possam passar a valorizar a liberdade sem dela abusar. DÖHN, L.Liberalimus Apud: FREY, Klaus. Descentarlização e poder local em Aléxis de Tocqueville. p.89. 252 FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 98. 250 65 sociedades contemporâneas podem ainda hoje fornecer subsídios para a criação de modelos de desenvolvimento sustentável e democrático.253 Foi principalmente a partir da década de 80, que a descentralização ganhou espaço na literatura e discussões nos países em desenvolvimento, que buscavam estruturar seus estados de uma maneira mais justa e eficiente, e foram constatadas duas grandes barreiras que impediam tal desenvolvimento. A primeira foi à hipertrofia administrativa254 e a ocorrência de conflitos distributivos dentro das próprias burocracias estatais e, associada a estes fatores, a generalizada ineficiência organizacional e técnica das administrações de desenvolvimento. Em segundo lugar, o desrespeito com relação às necessidades da população nos processos de planejamento e de decisão política, assim como o déficit de democracia e de participação política.255 A democracia americana como foi visto no capítulo anterior, foi marcada por uma crescente democratização e uma forte igualdade de condições. Está última, segundo Tocqueville promoveria uma concentração e centralização do poder, e uma burocratização da vida pública e da estrutura do Estado. No caso brasileiro dificilmente podemos falar de igualdade, nem do ponto de vista político nem econômico nem social, somos uma democracia apenas nas características formais do sistema político. Isto levanta a questão da possível relevância das observações de Tocqueville para sociedades marcadas por grandes desigualdades. Pode-se supor que se for aplicada a teoria de Tocqueville inversamente para sociedades marcadas por desigualdades extremas como é o caso brasileiro, teria-se como conseqüência uma tendência à descentralização. Essa suposição gera uma certa confusão de início, pois o conceito de descentralização como foi visto, costuma ser associado à idéia da repartição e desconcentração do poder256,assim como à democracia e à liberdade257. 253 O autor acredita que os temas de descentralização e do poder local parecem evidenciar de forma bastante nítida que muitos dos ensinamentos e reflexões de Tocqueville excedem o contexto histórico específico da primeira metade do século passado. Guardam ainda hoje uma força explicativa significativa para, por um lado, contribuir para o aumento de nosso entendimento da realidade brasileira e, por outro, subsidiar a elaboração de estratégias de transformação da nossa ordem social, das quais com certeza não podemos abrir mão, se não quisermos enterrar de vez as utopias da igualdade e da liberdade. FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 99. 254 Aqui é importante salientar que em um corpo político de um país de grande extensão territorial, que é o caso do Brasil, só poucas pessoas poderão ter acesso a esfera pública. Quanto mais uma comunidade política centralizar competências e direitos decisórios, tanto menor o número de cidadãos dispondo realmente de acesso a esfera pública. FREY,Klaus. Descentralização e poder local: em Aléxis de Tocqueville. p.92 255 FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 99-100. 256 Fabio Roversi-Monaco, comenta que a luta pela descentralização sempre esteve associada à luta pela autonomia local, objetivando não somente a descentralização, mas também o fortalecimento da democracia. ROVERSI-MONACO, Fabio. Descentralização e centralização. Apud: FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 100. 257 FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 100. 66 Faz-se importante distinguir aqui para um melhor entendimento da realidade brasileira as concepções de centralização e descentralização como estratégias político-administrativas da noção de centralização e descentralização enquanto orientações ou inclinações naturais ou instintivas das sociedades democráticas ou, de modo correspondente, das sociedades hierárquicas e autoritárias258. No ponto de vista de Klaus Frey, existe em sociedades como a brasileira, marcada por grandes desigualdades, uma inclinação natural ao surgimento de centro de poderes locais, isto é, oligarquias regionais e locais que dedicam toda sua atenção e esforços à manutenção da desigualdade das condições econômicas e políticas, que lhes é benéfica, e buscam sempre resistir a qualquer vontade de centralizar o poder, temendo que com isso sejam promovidos, um aumento da igualdade, e um nivelamento das diferenças e das disparidades de poder. Deduz-se então que em sociedades heterogêneas, a centralização só possa interessar a grupos sociais que agem de forma desinteressada e altruísta, aos que não dispõe de poder ou, finalmente, aos que vêm à chance de elevar-se ao poder hegemônico, ao poder nacionalmente dominante. Neste sentido se pode pensar, por exemplo, no interesse das massas populares, que geralmente encontram-se desprovidas de poder em levantar-se por meio de uma revolução, para fazer valer suas pretensões hegemônicas, ou então os militares que na América latina reiteradamente se apropriaram ou tentaram-se apropriar do poder e, na história latino-americana, revelaram-se como as únicas forças capazes - e também só de maneira limitada - a disputar com os caudilhos e chefes políticos, o poder nas regiões do âmbito de influência destes.259 De acordo com essa interpretação, a descentralização natural manifesta-se na figura dos caudilhos e coronéis260, que nas sociedades hierárquicas da América Latina, é comparável às dinastias e principados da Europa Feudal.261 Na América latina apenas em raros casos consegue-se estabelecer um poder central forte, e que geralmente foi alcançado pela aplicação da força e violência. Na maioria dos casos, o poder central permaneceu relativamente fraco, e viu-se obrigado a recorrer a práticas 258 FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 100. FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 101. 260 Os caudilhos e coronéis representam aqui as oligarquias locais que se empenham em ampliar suas posições de poder tanto por meios políticos como militares, em apropriar-se do tesouro do estado central mediante estratégias de busca de rendas (rent-seeking), valendo-se da lealdade política como instrumento de pressão e de chantagem frente ao governo central, ao passo que o governo central por sua vez, vê-se obrigado a fazer esforços para prescrever um sistema de ordem apto a integrar e conter os chefes locais. FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 102 261 FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 101. 259 67 clientelistas e nepotistas, assim como a distribuição de favores e recursos públicos. A fim de, por meio de tais arranjos, obter a benévola tolerância e o apoio dos poderes regionais.262 Isto mostra a importância da centralização e da descentralização como estratégias políticas. Assim como em sociedades democráticas a descentralização ou “a indepe ndência individual e as liberdades locais serão sempre um produto da arte” 263 , também em sociedades hierarquizadas, ou seja, aquelas sociedades marcadas por desigualdades nítidas entre as classes que a compõe, sempre dependerá de esforços artificiais a promoção de uma solidariedade coletiva e de compromissos mútuos abrangendo toda a população do país, como também a criação de um poder central264, imprescindível para o aumento da igualdade territorial.265 Portanto conclui-se através desta interpretação que, temos duas tendências e forças antagônicas. No caso das sociedades democráticas uma tendência natural à centralização, devido ao processo de nivelamento social, e o surgimento de uma opinião generalizada sobre os assuntos de interesse público, tal qual Tocqueville identificou na América do século XIX. Neste caso, a descentralização só é possível à medida que as forças sociais comprometidas com os valores da liberdade política estabelecerem artificialmente uma descentralização administrativa que nessas sociedades passa a ser necessária para prevenir o surgimento de um “despotismo democrático”. E no outro caso, o das sociedades hierárquicas e autoritárias temos uma tendência natural à descentralização do poder, que fica retido nas mãos das elites locais como é o caso das sociedades da América Latina de um modo geral, e apenas através de esforços artificiais, geralmente recorrendo à força e à violência, estabelecem um governo central, a fim de promover a conservação da unidade nacional.266 Como foi visto em detalhes no ponto anterior, o poder central, sempre preocupado em manter seu próprio poder, e vinculado à idéia de igualdade e unidade nacional, só consegue impor-se por meio dos centros de poderes locais e regionais à medida que esteja disposto a 262 FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 102 TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na Améica. Apud: FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 102. 264 O caso brasileiro de uma centralização artificial, pode ser ilustrado com o Estado Novo de Getúlio Vargas, marcado por uma crescente institucionalização política e burocrática, tendências de caráter centralizador, opostas a descentralização natural. Esta burocratização tem dois efeitos distintos, o primeiro a uniformização dos processos político-administrativos, o segundo o fortalecimento do governo central. FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 102 265 FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 102 266 FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 103 263 68 fazer compromissos e atender às reivindicações das oligarquias locais, entrando com isso um jogo de barganha política.267 Trata-se no caso brasileiro menos de poderes formais, como as agências estatais de desenvolvimento regional ou partidos políticos, que desempenham a função de intermediação de forma regular. Mas, acima de tudo, trata-se de padrões de negociações informais entre lideres políticos nacionais, regionais e locais, assim como várias instituições de intermediação – patronagem política, clientelismo, nepotismo, fisiologismo e a corrupção – que marcam profundamente a sociedade268 e no Estado brasileiro, fazendo parte de nossa cultura política e são aceitos por amplos setores da sociedade. 269 Cabe salientar aqui o caráter ambíguo destas negociações intermediarias que por um lado garantem o funcionamento das sociedades heterogêneas e por outro contribuem para ao aumento das injustiças sociais tendo em vista que os principais beneficiários destas práticas são as próprias elites locais, e não a população de um modo geral.270 Deste fator advém o principal argumento contra a descentralização do poder, por temerem, com razão, que ao invés de ser ampliado o espaço para o controle do governo pelo povo, ou uma maior participação no processo deliberativo, a descentralização sirva os interesses das oligarquias locais. Porém este argumento ignora ou não reconhece que o favorecimento das elites locais não é uma conseqüência imediata da descentralização e sim de uma interação de tendências centralistas e descentralistas que marcam a estruturação de nossa sociedade. Conforme entende Klaus Frey, a principal questão na discussão acerca da descentralização, não é o grau de centralização das instituições político-administrativas. Outros fatores parecem pesar muito mais nessa questão, como a possibilidade da sociedade civil e outras instituições concorrentes exercerem um controle democrático efetivo e de influenciar nas decisões políticas. Contudo, partindo do pressuposto de uma certa vontade política por parte da população, a possibilidade de alcançar tais pretensões parece maior no caso do predomínio de estruturas descentralizadas.271 É exatamente aqui que os ensinamentos de Aléxis de Tocqueville sobre poder local são extremamente importantes, tendo em vista a esperança por ele depositada na política 267 FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 103. No caso das democracias da América latina há uma outra institucionalização(paternalismo, clientelismo), onde o particularismo e normas informais determinam o funcionamento do processo político. O,DONNELL, Guillermo. Democracia delegativa? Apud: FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 104. 269 FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 104. 270 FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 104-105. 271 FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 106 268 69 comunal, como meio de preservação da liberdade e ampla participação de quase todos os cidadãos no processo político local.272 A afirmação generalizadora de uma ligação direta e irrestrita entre democracia, liberdade e descentralização273 não se justifica.274 Pois além dos riscos já apontados a respeito da descentralização pode-se destacar também a concepção de cunho neoliberal275 que costuma confundir descentralização com privatização, que corre grande risco de entregar os desamparados nas mãos da autocracia local, devido à retração do poder público, ou ainda ressalta o autor na versão mais difundida hoje, de entregar os desamparados nas mãos do crime organizado276, daí a importância de considerar a estrutura de poder em nível local.277 Por um lado temos atualmente na sociedade brasileira um interesse, por uma parte da população de conquistar uma maior participação na política, o que deixa claro que, o Brasil superou aquele estado estático com hierarquias sociais nítidas e raramente contestadas. Por outro lado o centralismo, que encontra na apatia política da maior parte da população a garantia de sua duração, possibilita o aparecimento de lutas entre várias elites, nacionais, regionais e locais, que deram origem a novas forças sociais278, como as ONG´s por exemplo, cujo surgimento dificilmente poderia ser previsto por Tocqueville.279 O resultado deste processo ambíguo e contraditório, onde existe o conformismo da maior parte da população, os interesses dominantes das elites tradicionais na manutenção do status quo e finalmente as crescentes demandas por uma participação ampliada por parte das 272 FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 106. Ver no primeiro capítulo a distinção feita por Tocqueville entre descentralização governamental e administrativa, fundamental para compreensão da idéia de poder local. 274 FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 106. 275 FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 106, Apud, Felicíssimo. 276 Como por exemplo, o que acontece nos morros do Rio de Janeiro, onde o traficante chefe do morro supre de certa maneira o papel do estado, ou ainda o apoio oferecido por igrejas e seitas a população carente, com métodos propagandistas cada vez mais agressivos. FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 106. 277 FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 108. 278 Neste sentido Sergio Abranches, faz uma crítica aos movimentos sociais no Brasil, pois em sua opinião eles substituem a ação cidadã. E movem-se mais sob o comando de seus grupos dirigentes(quase todos são máquinas de mobilização, ou de advocacia de interesses específicos) que sob a inspiração das necessidades daqueles que mobilizam. A ação que aqui se diz popular é comandada pelas elites, cuja formação educacional e cujo status ocupacional às vezes pouco têm a ver com a vida concreta daqueles que mobilizam. É esse aparelhamento da sociedade que tolhe as manifestações espontâneas, inibe o povo, coopta os necessitados e promove este misto trágico de quietismo da maioria e violência e afronta ao primado da lei pela minoria dirigente. E conclui, que para a representação política responder aos cidadãos é preciso existir um mínimo de ação direta independente. “Há ocasiões em que nada substitui um panelaço”. ABRANCHES, Sergio. O fator Tocquevile, Revista Veja ano 37, nº18, de 5de maio de 2004, p.58. 279 FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 112. 273 70 novas forças sociais, está em aberto.280 E conforme a concepção tocquevilliana, este processo ambíguo só pode ser resolvido pela própria prática política, ou seja, pela participação continuada dos cidadãos nos processos políticos, a fim de, criar hábitos e costumes democráticos.281 Dito isso fica evidente que não será nem a centralização nem a descentralização que transformarão a sociedade brasileira em uma sociedade democrática de fato e não apenas no “paciente” papel da Constituição, que traz em seu conteúdo liberdades 282 e direitos políticos.283 Mas acima de tudo, a partir da abertura de um espaço para o mínimo de participação direta da população na política do país, e este espaço parece mais fácil de ser conquistado dentro de uma estrutura descentralizada. Ao passo que a participação ativa na política contribui para o crescimento humano individual, cresce a chance da valorização do bem comum284 na sociedade.285 Tocqueville evidencia-se como um crítico feroz daquela “cultura da democracia” que prega o consumismo e o divertimento desenfreado, cujo nascimento ele presenciou e cuja marcha triunfal e irresistível previu e lamentou.286O autor não considerava que a democracia fosse apenas um sistema político, para ele, ela era mais que isso, um verdadeiro e peculiar “modo de vida”, que visaria sempre, como objetivo último, a valorização do bem comum e a virtude pública. De acordo com seu raciocínio, essa transformação social não dependeria como já foi dito antes de novas leis ou invenções institucionais287, nem tão pouco de um sistema parlamentarista, ou de um novo sistema eleitoral288, apesar de no Brasil muitos 280 FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 112. FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 112. 282 Tocqueville ensina que o caminho para o despotismo democrático, só pode ser evitado pela junção da liberdade não apenas com a igualdade, mas também com a moralidade, a religião e a ordem. “Assim como a igualdade é a precondição da justiça, amoralidade e a ordem são precondições da grandeza. A solução do problema da democracia implica mostrar que nenhum desses componentes pode ser sacrificado e, ademais, que nenhum precisa ser sacrificado, posto que juntos eles constituem uma unidade harmônica”. ZETTERBAUM, Marvin. Tocqueville and the problem of democracy. Apud: FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 112-113. 283 FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 112. 284 Tocqueville defende uma ética da sobriedade e frugalidade que unicamente tem o potencial de trazer a sociedade de volta à busca do bem comum e da felicidade, o que passa necessariamente por um papel renovado da política. “Há apenas uma grande meta neste mundo, que merece os esforços do homem: é o bem da humanidade”. FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 113. 285 FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 113. 286 MCCLELLAND, J.S. A History of Western Political Thought. Apud :FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 113. 287 Enquanto autores como Lock ou Madison se dedicaram à análise das leis e das instituições e se perguntam se a Constituição consegue assegurar os direitos privados, Tocqueville vê no “caráter”, no “espírito” e nos “costumes” os fatores transformadores da sociedad e. FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 114. 288 Tocqueville considera a participação nas eleições representativas uma oportunidade muito importante do cidadão valer-se do uso do livre arbítrio, mas também é uma prática curta e rara e portanto insuficiente para 281 71 analistas políticos depositarem muita esperança em tais reformas.289 Para ele, estas transformações formais constituem um aspecto secundário da democracia, pois as transformações devem partir da própria sociedade, à medida que os indivíduos adquirirem hábitos e habilidades através do exercício prático da política.290 Não que Tocqueville menospreze as instituições políticas, pois como se sabe avaliou a autonomia local como de vital importância para a democracia americana291, e certamente aprovaria qualquer arranjo institucional que visasse proporcionar oportunidades de participação. Sua desconfiança resulta da origem destas reformas, quando partirem unilateralmente do governo. E não corresponderem aos hábitos e costumes reinantes na sociedade, pois correriam o risco de produzirem resultados totalmente opostos e reforçarem ainda mais o elitismo local292. Ou seja, a autonomia comunal (municipal) não substitui a moralidade pública ou o bom senso, além disso, ela só pode tornar-se real em uma comunidade com um razoável grau de igualdade293. O que fazer diante deste dilema? Se não se dispõe de uma moralidade pública integradora, se não se pode mais – ou sempre menos – recorrer a uma religião que desse as orientações necessárias, como Tocqueville imaginou?294 É unicamente o penoso e moroso caminho da prática política e participativa nas bases da sociedade que pode gradativamente levar à consolidação de uma cultura mais democrática, à transformação de habitantes e consumidores em cidadãos e à valoração do bem comum nos processos políticos e sociais.295 É neste sentido que Tocqueville deposita suas esperanças no poder comunal, como centro de aprendizagem e educação política, onde o cidadão exerce seus direitos e adquire valores e habilidades necessários para consolidação de uma cultura democrática, apesar de considerar que não sejam as instituições locais a garantia para uma democracia sustentável, impedir que os cidadãos”percam pouco a pouco a faculdade de pensar, de sentir e de agir por si mesmos, e que não venham a cair assim, gradualmente, abaixo do nível da humanidade”. “Na verdade, é difícil imaginar como poderiam homens que renunciam inteiramente ao hábito de se dirigir por si mesmos conseguir escolher bem aqueles que os devem conduzir; e nada fará acreditar que um governo liberal enérgico e sábio jamais possa sair do sufrágio de um povo de servos”. TOCQUEVILLE, Aléxis. A democracia na América. Apud: FREY,Klaus. Descentralização e poder local: em Aléxis de Tocqueville. p.93. 289 FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 113. 290 FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 114. 291 Tocqueville atribui o engajamento do cidadão em nível local como um valor fundamental não apenas para a democracia local em si, mas também para dar sustentação à democracia no nível nacional. FREY,Klaus. Descentralização e poder local: em Aléxis de Tocqueville. p.90. 292 FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 114. 293 Ver crítica de Fernando Magalhães no primeiro ponto deste capítulo, a respeito da igualdade de condições isolada de um conteúdo material. 294 FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 115. 295 FREY, Klaus. Descenralização: lições atuais de Tocqueville. p. 115. 72 considera que, este é possivelmente o único caminho viável para o fortalecimento do espírito cívico e público.296 Ao contrário dos Estados Unidos contemporâneo, que segundo Commager, abandonaram a idéia de progresso no campo da inovação política e democrática, no Brasil pode-se testemunhar em muitos municípios o potencial que a política local representa, principalmente no que se refere às possibilidades de experimentação de novos padrões de ação política. O êxito duradouro dessas experiências dependerá da consolidação do processo.297 Fica claro que, sem um fortalecimento destas tendências, a democracia dependerá apenas do sucesso da economia, uma perspectiva não muito animadora no atual contexto da globalização, para países em desenvolvimento como é o caso do Brasil.298 Por fim, os grandes problemas que afligem as democracias contemporâneas299 não dependem apenas de novas invenções técnicas, uma revolução de eficiência na administração publica ou da liberação das forças produtivas de mercado, mas sobretudo de uma experimentação democrática, instituída a partir de instituições básicas da sociedade que visem o aumento da participação e engajamento político social, e finalmente o amor à liberdade política, assim criando um ambiente favorável e propício para as transformações que uma sociedade sustentável exige.300 296 FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 115. FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 115. 298 FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 115. 299 Contudo, os mesmos problemas que afligiram a mente de Tocqueville são os temas e preocupações centrais na teoria democrática contemporânea, evidenciando am isso a atualidade do pensamento tocquevilliano para nossos tempos. FREY,Klaus. Descentralização e poder local: em Aléxis de Tocqueville. p.95. 300 FREY, Klaus. Descentralização: lições atuais de Tocqueville. p. 116. 297 73 CONSIDERAÇÕES FINAIS Alexis de Tocqueville definitivamente desenvolveu idéias de valor intertemporal, e ele próprio sabia da verdadeira importância futura de sua obra. Diante do caráter pedagógico de sua ciência política, que procura de todas as maneiras, convencer o leitor da importância imprescindível da liberdade política para o desenvolvimento de uma democracia sustentável. Sua voz ecoa e se faz ouvir no Brasil contemporâneo. Tocqueville pretendia que através da leitura de seu texto os “cidadãos democráticos” acreditassem serem capazes de intervir no processo histórico, ou seja, que tivessem consciência de que só através da transformação do “auto interesse” em “interess e bem compreendido” poderiam, tomar a rédea de seus futuros, e mudá-los para melhor. Portanto, conclui-se com a presente pesquisa, ser positiva a resposta a pergunta inicialmente feita a respeito da validade das observações feitas por Tocqueville, para hoje incrementar os debates sobre democracia e reforma do estado no Brasil, mesmo em se tratando de realidades extremamente opostas, pois em democracia, o fundamental é trabalhar sempre no sentido de propiciar o desenvolvimento da liberdade política, sendo ela um bem em si, que educa o “cidadão democrático” para poder perceber seu lugar na sociedade e juntamente com ela se desenvolver e prosperar. De modo geral, na medida que numa sociedade de massa e em um território vasto, como é o caso brasileiro, todas as atenções acabem se direcionando para um poder único, o sistema político perde estabilidade, fazendo que particularmente em tempos de crise, o poder central transforme-se no inimigo geral da sociedade. Essa inimizade com o governo central, assim como as expectativas desmedidas por parte da população, podem segundo Tocqueville, ser considerados indícios de uma falta de responsabilidade generalizada que necessariamente se propaga em uma sociedade cujos membros não dispõe de possibilidades de autodeterminarse e deliberar sobre assuntos de seu próprio interesse. Conforme Raimundo Faoro, o argumento da camada dominante, de que o povo brasileiro não possui os instrumentos necessários de cultura e autonomia para o trato dos negócios e para governar-se a si mesma, apesar deste dogma não estar longe de ser verdade, perde-se num circulo vicioso: o povo não tem capacidade para os negócios, porque o sistema impede-lhes de participar. Porém, o Brasil, em certa medida superou este estado estático de hierarquias sociais nítidas e raramente 74 contestadas. Se tomarmos como exemplo mais extremo de desigualdade urbana, o que acontece na cidade do Rio de Janeiro. Lá onde a retração do estado para, muito antes de chegar aos morros (periferias), onde os moradores não possuem o mínimo de estrutura para o desenvolvimento da cidadania, quando muito para o desenvolvimento da própria família, vêm-se obrigadas a viverem acuadas sobre as “regras” do “líder do tráfico local”, que através do terror mantém uma relativa “ordem” na favela. Até lá, as utopias da modernidade, em especial a liberdade e a igualdade, hoje não precisam, como antigamente, de porta vozes intelectuais que falavam em nome dos oprimidos. Hoje os próprios oprimidos tem voz, e falam por si mesmos. Um exemplo marcante deste fenômeno que vem atentamente sendo observado não só pela imprensa mais por intelectuais, cientistas políticos e a própria classe artística, é o movimento hip-hop301, que apesar de importado dos norte-americanos onde possui letras levianas, no Brasil consolidou-se como um poderoso instrumento de reivindicações sociais, e porque não, de liberdade política. O cantor é um espectador que encontra-se no seio da miséria, no extremo mais amargo da desigualdade, e daí consegue descrever a realidade sem anestesia ou maquiagem, ou qualquer distorção. Não são dados são relatos do cotidiano. Este relato proseado tem um efeito imediato de identificação na comunidade narrada. Os moradores da periferia identificam-se com o quadro apresentado nas letras, e por terem voz, depositam esperança em seus futuros, pois se identificam nesta mesma realidade excludente. Temos então pessoas “iguais em suas mazelas”. Dentro do contexto de extrema desigualdade brasileiro, são os mais esquecidos pelo governo, ou melhor, só lembrados em época de eleição. Os excluídos são portanto, iguais em seus anseios e em suas mazelas, ou seja, iguais na miséria econômica e na falta de oportunidade. Enquanto nas comunas da Nova Inglaterra, observadas por Tocqueville, encontravamse pessoas iguais em fortunas e oportunidades. Nas periferias brasileiras encontramos pessoas iguais nas misérias e na falta de oportunidade. Um fator pode ser determinante para a aproximação destes dois extremos, tal fator é a liberdade política. Os excluídos não precisam mais de porta vozes, precisam sim, que sejam desenvolvidos meios, pelos quais possam praticar política, deliberar sobre problemas comuns, e finalmente com “uma estrutura”, que seria desenvolvida pelo Estado, que certamente não gastaria mais recursos com sua implementação, do que com as práticas clientelistas e 301 Ver anexo II. 75 patrimonialistas que encarnam o governo, sem falarmos da corrupção que desvia cifras inimagináveis dos cofres públicos. A implementação de instituições locais fortes evidentemente deve variar conforme a necessidade da população local, fortalecendo com isso a idéia tocquevilliana da relação direta de poder local com descentralização administrativa. O poder local será mais forte onde os problemas forem maiores. E naturalmente mais fracos onde a população gozar de mais conforto, logo menos anseios. Sendo assim, o principal argumento contra a descentralização do poder, por temerem, com razão, que ao invés deste ser gozado pelo povo, o seja pelas oligarquias locais, não é absoluto, pois ignora ou não reconhece que o favorecimento das elites locais não é uma conseqüência imediata da descentralização e sim de uma interação de tendências centralistas e descentralistas que marcam a estruturação de nossa sociedade. Segundo Klaus Frey, a principal questão na discussão acerca da descentralização, não é o grau de centralização das instituições político-administrativas. Outros fatores parecem pesar muito mais nessa questão, como a possibilidade da sociedade civil e outras instituições concorrentes exercerem um controle democrático efetivo e de influenciar nas decisões políticas. Contudo, partindo do pressuposto de uma certa vontade política por parte da população, a possibilidade de alcançar tais pretensões parece maior no caso do predomínio de estruturas descentralizadas. Além do que, o espaço aberto pela falta de iniciativa popular, é justamente o espaço onde se desenvolvem as práticas informais de negociação. A idéia tocquevilliana de liberdade política como única forma de garantia legítima da soberania do povo, não desqualifica de modo algum, outras formas de encarar os problemas acerca da reforma do Estado, como a implementação de um estado gerente, que vise limitar os gastos públicos e a eficiência administrativa do Estado, ou o controle dos representantes através do Accontability político ou legal, entre tantas outras idéias interessantes. Ao contrario vem somar-se a estas para legitimá-las como, iniciativas emanadas do povo. Diante disso, podemos dizer que várias são as matérias de Direito Público brasileiro que merecem um estudo aprofundado a luz das teorias de Alexis de Tocqueville. Como por exemplo, possíveis meios de aproximação da população com as subsecretarias implementadas pela descentralização administrativa promovida pelo atual governo de Santa Catarina ou a Participação social em audiências públicas, em especial as referentes à lei de responsabilidade fiscal, que fiscaliza os gastos das gestões públicas, ou ainda, na maximização dos Mecanismos constitucionais de participação social, para sua efetiva utilização pela população. 76 Enfim, as idéias tocquevillianas ainda hoje são uma importante fonte teórica, para entendermos melhor a sociedade em que vivemos, além de incrementar as discussões acerca da reforma do estado, participação política, descentralização, cidadania, fiscalização, controle externo ou qualquer matéria que vise encontrar caminhos para o desenvolvimento de uma democracia sustentável. Diante de uma série de obstáculos, que se apresentam para impedir seu desenvolvimento, a democracia brasileira, ainda tem um longo e difícil caminho a percorrer, até que se alcance o ideal, ou seja, uma democracia mais justa e igual. Porem não se caminha mais nas trevas, Tocqueville iluminou o trajeto através de suas lições, e ainda indicou a principal arma que se deve usar para lograr êxito nessa jornada, rumo ao encontro da soberania do povo, tal arma é: a liberdade política. REFERÊNCIAS ABRANCHES, Sérgio. O fator Tocqueville. Revista VEJA. São Paulo, maio, v.37, n.18, p.58 5 de maio, 2004. ARATO, Andew. Representação, soberania popular e Accountability. Revista de cultura e política Lua Nova, São Paulo, n.55-56, p.85-103, 2002. BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. 7.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000. BUARQUE, Aurélio. Novo dicionário Aurélio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1975. CHÂTELET, François. História das idéias políticas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. 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Representou a destruição do Estado absolutista e a criação de condições para o avanço do capitalismo industrial na Inglaterra.302 -Embora esta revolução tenha ocorrido mais de um século antes do nascimento de Alexis de Tocqueville, o influenciou, tanto em sua vida pessoal quanto em suas idéias. Durante todo o século XVIII na França, que se seguiu a revolução inglesa, a aristocracia gaulesa lutou por mais liberdade política frente à concentração de poder nas mãos do Rei, o que acabou culminando junto com outros fatores importantes na Revolução Francesa, que caçou a aristocracia a qual Tocqueville viria a pertencer. Quanto as suas idéias foram influenciadas a partir da sugestão de seu Professor na faculdade de Paris, Guizot, quanto Tocqueville tinha 302 COTRIM, Gilberto. História e consciência do mundo. Ed. Saraiva. São Paulo. 5ª edição, 1997. p.242. 81 pouco mais de vinte anos de idade, e lançou-se a estudar a historia da Inglaterra, onde apesar de sua imaturidade já trabalhava conceitos importantes que mais tarde utilizaria em sua viagem a América. 1748- O jurista Montesquieu escreve o Espírito das leis defendendo a separação funcional dos poderes do Estado em Legislativo, Executivo e Judiciário. 1750- Revolução Industrial – grande processo de transformações sócio-econômicas. 1762- O filósofo suíço Rousseau escreve O contrato social. 1776- Elaboração da declaração de independência dos Estados Unidos. 1787- Proclamação da Constituição dos Estados Unidos. 1787-1788- Revolta dos notáveis (nobreza) 1788-1789- Anuncia-se em 8 de agosto, a convenção dos Estados Gerais para o dia 1 de maio de 1789. Nos Estados Unidos, George Washington é eleito primeiro presidente americano. 1789-Revolução Francesa. - De julho a outubro, a revolução popular. “o grande medo”, proclamação da assembléia nacional constituinte(9 de julho); Tomada da Bastilha(14 de julho); A constituinte abole os privilégios feudais na noite de 14 de agosto; declaração dos direitos dos homem e do cidadão(26 de agosto); retorno de Luiz XVI de Versalhes para Paris, sob pressão popular(5 de outubro). - a revolução francesa foi um período de grande terror para a aristocracia. Que em grande número, foram decapitados pela revolução, inclusive o avô de Tocqueville. 1791- A Constituição liberal adota o regime da monarquia constitucional. 1791-1792- Fracasso da monarquia constitucional. Tentativa de fuga e prisão de Luiz XVI. 82 1792- Guerra contra a Áustria e a Prússia (absolutistas). Vitória do exército revolucionário em Valmy; Fundação da 1ª. República Francesa (1792-1804). 1792-1795- Período revolucionário da Convenção. Vitória do sufrágio universal. O “despotismo da liberdade”; Ascensão e queda de Danton, Saint -Just, Robespierre e outros jacobinos. 1793- Luíz XVI é guilhotinado(21 de janeiro). Nova constituição. Jacobinos dominam a Convenção. 1793-1794- Terror. Aprofundamento da Revolução com Robespierre e jacobinos, de julho de 1793 a julho de 1794. 1794- Robespierre, Saint- Just e companheiros são guilhotinados(28 de julho). 1795-1799- Período do diretório. Reação burguesa girondina. 1796 - “Conjuração dos Iguais”, de Graco Babelf, última tentativa socializante da República. 1798-Vitória eleitoral dos jacobinos, não tolerada pelos girondinos (burguesia). 1799- A Assembléia é dissolvida e o Diretório é substituído por três cônsules provisórios: Napoleão, Sieyès e Ducos. É o golpe de Estado do 18 Brumário, dando início ao consulado de Bonaparte, que liquidaria a República em 1804. Consulado (1799-1804) 1804- A monarquia é restabelecida e Napoleão é nomeado imperador. Império(1804-1815). 1806- Bloqueio continental a Inglaterra determinado por Napoleão. 1805- Nasce em julho na França, Alexis Charles Henri Clérel de Tocqueville. 1812- Apogeu do império napoleônico. 83 1815- Napoleão é derrotado na batalha de Waterloo, em 18 de junho. Foi preso pelos ingleses, e exilado na ilha de Santa Helena, no oceano atlântico, onde permaneceu até sua morte em 1821. Luís XVIII ainda em 1815, foi reconduzido ao trono Francês(Monarquia dos Bourbon). 1814-1815- Congresso de Viena. Foi a união dos países conservadores com o objetivo de restabelecer o equilíbrio político na Europa. Tendo em vista os interesses monárquicos conservadores, sufocando os movimentos liberais revolucionários. 1824-1830- com a morte de Luís XVIII, seu irmão Carlos X assume o trono francês, implementou uma política antiliberal, e provocou a reação das forças burguesas que temiam o restabelecimento pleno do absolutismo. 1830- Eclodem as revoluções nacionalistas (movimento liberal) na Europa. A revolução de 1830, teve a alta burguesia contra o rei, que culminou na deposição de CarlosX, e em seu lugar foi conduzido ao trono francês, Luís Felipe D’Orleans, que governou de 1830 -1848, teve início a chamada idade de ouro da alta burguesia, períldo em que o capitalismo francês apresentou grande desenvolvimento industrial e financeiro. Mas em contra partida evidenciava-se neste mesmo período, um complexo conjunto de fatores sócio-econômicos negativos. Misturando-se diferentes ideais nacionalistas, liberais e sociais. 1835- Publicação do livro I A democracia na América, por Tocqueville. 1836- Alexis de Tocqueville foi candidato a deputado derrotado, aos trinta e dois anos, no arrodissement de Valognes, à época o maior dos oito colégios eleitorais da Mancha. Dois anos depois conseguia a primeira de uma série de vitórias eleitorais(1839, 1842, 1846, 1848, 1849) que o manteriam na Câmara até o golpe de Estado de 2 de dezembro de 1951.303 1840- Publicação do livro II A Democracia na América. 1848- Luís Filipe é deposto e a república, instaurada novamente. Sendo formado um governo provisório com participação de representantes da burguesia liberal e dos socialistas. Porem ouve um masacre ao movimento socialista, o que marcou o rampimento definitivo entre os 303 JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. Rio de Janeiro: ACCESS, 1997.p.27. 84 projetos políticos da burguesia e do proletariado socialista. Os líderes burgueses sentiam a necessidade de consolidar as instituições políticas para impor um clima de ordem pública no país. Tocqueville é eleito para a assembléia constituinte. Promulga-se, então , uma nova constituição da república e marcaram-se eleições para presidência. Luís Napoleão Bonaparte, sobrinho de Napoleão Bonaparte, tornou-se o primeiro presidente da república francesa. Apoiado pelo exercíto, pela igreja e pela burguesia temerosa de revoltas socialistas, Luís Napoleão, pouco antes de terminar seu mandato, deu um golpe de Estado, proclamando-se Imperador dos franceses, com o título de Napoleão III. O segundo Império napoleôniaco durou até 1870. Os pensadores Marx e Engels escrevem O Manifesto Comunista. 1849- Tocqueville é nomeado ministro das relações exteriores do governo de Luís Napoleão; após cinco messes no cargo, que se estendeu de 3 de julho a 31 de outubro de 1849, pede demissão. 1850- Retornando as atividades legislativas, Tocqueville foi obrigado a licenciar-se da assembléia no mês de março, em função de uma crise de tuberculose pulmonar que o levaria lentamente ate a morte nove anos mais tarde. Entre julho daquele ano e março de 1851 durante sua recuperação na Itália, escreveu as duas primeiras partes dos Suvenirs e elaborou o primeiro plano do que viria a ser L’Ancien Regime et la Révolution. 304 1851- De volta ao parlamento, participou intensamente das negociações para a revisão da Constituição republicana de modo a permitir a reeleição de Luís Napoleão e evitar solução de continuidade da ordem vigente. Com o golpe de 2 de dezembro, após denunciar a farsa bonapartista na imprensa inglesa, afastou-se da cena política e recolheu-se aos estudos.305 1852- Após um golpe de estado, Luis Napoleão torna-se Imperador, seu governo se estendeu até 1873. Governa a França como Napoleão III. 1856- Tocqueville publica O Antigo Regime e a Revolução. 304 JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. Rio de Janeiro: ACCESS, 1997.p.27. 305 JASMIN, Marcelo Gantus. A historiografia como ciência da política. Rio de Janeiro: ACCESS, 1997.p.27. 85 1859- Tocqueville morre com tuberculose. 1861-1865- Guerra Civil Americana. 1870- Fim do império de Luís Bonaparte. Rendição francesa as tropas germânicas, estabeleceu-se na França um governo de caráter conservador, comandado por Thiers. 1871- Comuna de Paris. Durou alguns messes e foi derrubada pelo exército do governo de Thiers. A comuna de Paris foi considerada a primeira conquista do poder político pela classe operária e a primeira tentativa de criação de uma democracia socialista. 1893- São publicadas postumamente as Lembranças de 1848(Souvenirs), de Tocqueville. II- ANEXO Durante a conclusão do presente trabalho, foi utilizado o argumento de que, hoje os excluídos não precisão de porta vozes. Portanto o presente anexo, traz a letra da música “Só Deus pode me julgar” do rap MV Bill, que ilustra esta conscientização da classe excluída em relação aos problemas nacionais. MV Bill é um raro exemplo de um rapper que alcançou como eles chamam, a “visibilid ade”, ou seja, foi notada sua existência pela sociedade. Foi através desta visibilidade que Luiz Eduardo Soares, antropólogo e ex-subsecretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro de 1999 à 2000 e Secretário Nacional de Segurança Pública em 2003, conheceu MV Bill e juntamente com Celso Athaíde escreveram o livro “Cabeça de porco” , que segundo MV Bill: " é um documento importante principalmente por não ficar somente debruçado nos acontecimentos, mas assumimos o nosso lado marginal e nossas contradições. Ler esse livro é mesmo que fazer uma viagem ao próprio corpo, que estão tão perto, mas ao mesmo tempo é tão desconhecido", Ele é um, dentre milhares que querem mudar a realidade em que vivem, mas não possuem os meios necessários. 86 BILL, MV. Só Deus pode me julgar: Rio de Janeiro. BMG. 2002. Vai ser preciso muito mais pra me fazer recuar Minha auto-estima não é fácil de abaixar Olhos abertos fixados no céu Perguntando a Deus qual será o meu papel Fechar a boca e não expor meus pensamentos Com receio que eles possam causar constrangimentos Será que é isso? Não comprei meu compromisso Abaixar a cabeça e se manter omisso A hipocrisia, a demagogia se entregue a orgia Sem ideologia, a maioiria fala de amor no singular Se eu falo de amor e de uma forma popular Quem não tem amor pelo povo brasileiro Não me representa aqui nem no estrangeiro Uma das piores distribuições de renda Antes de morrer talvez você entenda Confesso para ti que é difícil de entender No país do carnaval o povo nem tem o que comer Ser artista, Pop Star, pra mim é pouco Não sou nada disso, sou apenas mais um louco Clamando por justiça, igualdade racial Preto, pobre é parecido mas não é igual É natural o que fazem no senado Quem engana o povo simplesmente renúncia o cargo Não é caçado, abre mão do seu mandato Nas próximas eleições bota a cara como candidato Povo sem memória, caso esquecido Não foi assim comigo, fiquei como bandido Se quiser reclamar de mim, que reclame Mas fale das novelas e dos filmes do Van Dame Que Tv no Brasil, no programa do Gugu Rebolo, vacilou, agachou e mostrou Volta pra América e avisa a Madona Que aqui não tem censura meu pais é uma zona Não tem dono, não tem dona, nosso povo tá em coma erga sua cabeça que a verdade vem a tona EH! Mantenho minha cabeça em pé! Fale o que quiser, pode vir que já é! Junto com a rale! Sem dar marcha ré! Só Deus pode me julgar, por isso eu vou na fé ! Soldado da guerra a favor da justiça Igualdade por aqui é coisa fictícia Você ri da minha roupa, ri do meu cabelo Mas tenta me imitar se olhando no espelho Preconceito sem conceito que apodrece a nação Filhos do descaso mesmo pós – abolição Mas de 500 anos de angustia e sofrimentos 87 M acorrentaram, mas não meus pensamentos Me fale quem ... Quem!? Tem o poder ... Quem!? Pra condenar ... Quem!? Pra censurar ... Alguém!? Então me diga o que causa mais estragos 100 gramas de maconha ou um maço de cigarros? O povo rebelado ou polícia na favela? A música do Bill ou a próxima novela? Na tela seqüela, no poder corrupção Entramos pela porta de serviço Nossa grana não Tapão ... só pra quem manda bater Pisando nos humildes e fazendo nosso bode crescer MST, CUT, UNE, CUFA, PCC O mundo se organiza, cada um a sua maneira Continuam ironizando Vendo como brincadeira, besteira Coisa de moleque revoltado Ninguém mais quer ser boneco Ninguém mais quer ser controlado Vigiado, programado, calado, ameaçado Se for filho de bacana o caso é abafado A gente é que é caçado, tratados como Réu As armas que eu uso é microfone, caneta e papel A socialyte assiste a tudo calada Salve ! Salve ! Salve! Oh ! pátria amada, mãe gentil Poderosos do Brasil Que distribuem para as crianças cocaína e fuzil Me calar, me censurar porque não pode fala nada É como se fosse o rabo sujo falando da bunda mal lavada Sem investimento, no esquecimento, explode o pensamento Mais um homem violento Que pega no canhão e age inconseqüente Eu pego o microfone com discurso contundente Que te assusta uma atitude brusca Dignificando e brigando por uma vida justa Fui transformado no bandido do milênio O sensacionalismo por aqui merece um premio Eu tava armado mas não sou da sua laia Quem é mais bandido? Beira mar ou Sérgio Naya? Quem será que irá responder Governador, Senador, Prefeito, Ministro ou você? Que é caçado e sempre paga o pato Erga sua cabeça pra não ser decepado EH! Mantenho minha cabeça em pé! Fale o que quiser pode vir que já é! Junto com a rale! Sem dar marcha ré ! Só Deus pode me julgar por isso eu vou na fé ! 88 Como pode ser tragédia a morte de um artista E a morte de milhões, apenas uma estatística ? Fato realista de dentro do Brasil Você que chorava lá no gueto ninguém te viu Sem fantasia realidade dói Segregação, menosprezo é o que destrói A maioria é esquecida no barraco Que ainda é algemado, extorquido e assassinado Não é moda quem pensa incomoda não morre pela droga, não vira massa de manobra Não idolatro a mauricinho de Tv, não deixa se envolver Porque tem proceder Pra que? Porque? Só tem paquita loira, aqui não tem preta como apresentadora Novela de escravo a emissora gosta mostra os pretos Chibatadas pelas costas Faz confusão na cabeça de um moleque que não gosta de escola E admira uma intra-tek Clik – clek Mão na cabeça Quando for roubar dinheiro público Vê se não esquece que na sua conta tem a honra de um homem envergonhado Ao ter que ver sua família passando fome Ordem e progresso e perdão Na terra onde quem rouba muito não tem punição EH!Mantenho minha cabeça em pé! Fale o que quiser pode vir que já é! Junto com a rale! Sem dar marcha ré! Só Deus pode me julgar por isso eu vou na fé ! A letra da música “Só Deus pode me julgar” esta disponível em: <http://mv bill.letras.terra.com.br/letras/72674/> Informações sobre o livro “Cabeça de porco”, disponível em: <http://www.cuca.org.br/literaturacabecaporco.htm> 89