ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DE INDÚSTRIAS CRIATIVAS: ESTUDO DE CASO EXPLORATÓRIO SOBRE A INDÚSTRIA DE MÚSICA SERTANEJA NO BRASIL Autoria: Valéria Maria Martins Judice, José Flávio Pereira, Flávio Henrique Ferreira de Pádua Resumo Indústrias criativas incluem segmentos diversificados, ligados a artes, música, entretenimento, e geram uma contribuição econômica crescente. Com base em revisão de literatura, esse artigo enfoca a indústria criativa de música sertaneja no Brasil como objeto empírico, buscando atender a dois objetivos: (1) descrever o histórico e desenvolvimento da produção e difusão de música sertaneja no país; (2) descrever exploratoriamente redes de organizações empresariais engajadas na validação do produto criativo “música sertaneja”, com ênfase em Minas Gerais. A pesquisa é exploratória e constitui parte de conjunto de estudos de caso múltiplos em indústrias criativas brasileiras. Os resultados apresentados são preliminares e baseiam-se em informações secundárias e entrevistas narrativas realizadas com um produtor criativo e com um agente promotor. O tratamento dos dados é estruturalista, buscando compreender relações e sentidos que as narrativas apresentam e suas conexões com o referencial de arranjos e redes interorganizacionais, tratados na literatura. Os resultados observados indicam que a organização e gestão da indústria de música sertaneja brasileira é aderente aos modelos organizacionais da literatura internacional e que seus produtores criativos também refletem estilo de vida boêmio e ethos de busca “da arte pela arte”. 1 INTRODUÇÃO A organização e gestão de indústrias criativas (ou de criação) se destaca como um tema atual, tendo em vista a evolução, desenvolvimentos, usos e gerenciamento da cultura e da criatividade em um mundo globalizado que comporta intercâmbios culturais e simbólicos. A cultura converte-se em um recurso, seja como uma atração para o desenvolvimento econômico e turístico, seja como propulsora de indústrias culturais, seja como fonte de propriedade intelectual (YÚDICE, 2004), seja ainda como propiciadora de todos esses aspectos e de sustentabilidade (THROSBY, 2001). O conjunto dessas indústrias tem-se configurado de forma heterogênea em termos de áreas e segmentos e pela diversidade de sua organização produtiva e distributiva. A literatura relevante, que será detalhada em uma seção específica desse artigo, aponta variado conjunto de formas, arranjos e processos organizacionais realizados por agentes públicos, privados e do terceiro setor, de forma isolada ou associada, através de grandes corporações, via agentes individuais autônomos, via redes interorganizacionais, via organizações temporárias e via projetos e contratos. Neste conjunto ainda pouco explorado de possibilidades de pesquisa, o foco deste artigo é a abordagem da indústria criativa brasileira, tendo sido selecionado um segmento específico para estudo pela sua popularidade e importância econômica e pela ausência de seu tratamento e mesmo de seu reconhecimento como um objeto de estudos a ser pensado do porto de vista organizacional e de gestão. A área selecionada para estudo é a indústria de música sertaneja no país, uma manifestação cultural tradicional de ressonância junto às massas (CALDAS, 1977, 1987) que historicamente se urbanizou e que passa por processo de acelerada expansão e difusão no país nos anos 1990s (NEPOMUCENO, 1999). O estudo é exploratório e orienta-se pela seguinte pergunta de pesquisa: 1 Como se organiza e é gerida a indústria criativa de música sertaneja no Brasil? Os objetivos do presente artigo são dois: (1) descrever o histórico de surgimento e a atual onda de crescimento de produção e difusão de música sertaneja no Brasil; (2) descrever exploratoriamente redes de organizações empresariais engajadas na validação e disseminação do produto criativo “música sertaneja” no Brasil, com ênfase no estado de Minas Gerais, considerado um dos principais pólos produtores e difusores deste produto criativo no país. De forma a delimitar o objeto de estudo selecionado, as subseções 1.1. e 1.2 desta introdução contextualizam a inserção global das indústrias criativas e a relevância de seu estudo na atualidade, assim como a proposta de contribuição desse artigo e sua estruturação. 1.1 Contextualização das indústrias criativas e/ou culturais e sua relevância na atualidade As indústrias criativas constituem um campo de estudos organizacionais de crescente interesse contemporâneo, diante da constatação de sua relevância, peso econômico e diversidade de inserção na sociedade do conhecimento e da informação (HOWKINS, 2001; FLORIDA, 2002a; HARTLEY, 2005). Estima-se que a chamada economia criativa seja responsável por 7% do PIB global e segundo a UNESCO (2005), esse índice poderá chegar até 10%. Porém, essa produção está concentrada nos países desenvolvidos, especialmente Estados Unidos, Reino Unido e China que juntos produzem cerca de 40% dos bens e produtos culturais negociados internacionalmente (UNESCO, 2005). Classificadas dentro de setores industriais ou ocupações profissionais (FLORIDA, 2002a; UNCTAD, 2004; HARTLEY, 2005), as atividades da indústria criativa incorporam diversos setores ou áreas econômicas. Howkins (2001: p.116) lista 15 áreas principais: 1. propaganda; 2. arquitetura; 3. artes; 4. artesanato; 5. design; 6. moda; 7. cinema; 8. música; 9. artes performáticas; 10. publicação; 11. pesquisa e desenvolvimento (P&D); 12. software; 13. brinquedos e jogos; 14. televisão e rádio; 15. vídeo games. A partir desta categorização, as artes criativas e cultura passam a ser percebidas como commodity, como diversos estudos vêm apontando (COWEN, 1998; UNESCO, 2005; FLORIDA, 2002a) ou por sua conveniência como um recurso econômico (YÚDICE, 2004), emergindo, assim, o conceito misto de indústrias criativas e/ou culturais, envolvendo amplo conjunto de atividades oriundas de criatividade, talentos e habilidades individuais, potencialmente geradoras de renda, emprego, produtos ou serviços ligados a artes e entretenimento (JEFFCUT, PRATT, 2002; JEFFCUT, 2005). Quanto a conceituação de “indústrias criativas”, Florida (2002a: p. 44) usa o termo “economia criativa”, definindo-a como economia baseada no conhecimento e informação, onde “a criatividade é a geração de novas formas úteis, através desse motor-chave que é o conhecimento”. Em uma perspectiva diferente, mas com base em Florida, Hartley (2005: p. 5) define a idéia de indústria criativa como “a convergência conceitual e prática de artes criativas (talento individual) com indústrias culturais (produção em massa), no contexto das novas mídias tecnológicas (TICs), dentro da nova sociedade do conhecimento, para o uso de novos cidadão e consumidores interativos.” 2 Observa-se, assim, que não existe clareza das linhas demarcatórias e das continuidades que eventualmente se estabelecem entre essa nova denominação e campo de estudos, “indústrias criativas” e o conceito anteriormente utilizado de “indústrias culturais”. Na década de 1980, esse conceito originalmente crítico e no singular “indústria cultural” passou por profundas modificações, conforme Hesmondhalgh (2002). Para este autor, a noção original de “indústria cultural” está associada aos filósofos da Escola Crítica de Frankfurt, Teodor Adorno e Max Horkheimer, que integrando a tradição filosófica hegeliana, percebem a arte tanto como forma portadora de crítica da vida, quanto como instrumento habilitador a visões utópicas. Exilados nos Estados Unidos nos anos 1940s, Adorno e Horkheimer criticaram o vazio e o superficialismo da sociedade e da democracia capitalista americana, na qual a arte crescentemente se massificava e se tornava commodity, perdendo seu sentido crítico/utópico. Assim, na evolução do pós-guerra aos anos 1960, o termo “indústria cultural” passaria a ser utilizado de forma crítica para referir-se às limitações percebidas da moderna vida cultural. Posteriormente, viria a ser usado no plural como “indústrias culturais” – pela influência da sociologia francesa e movimentos da Unesco, os quais buscavam denotar a inexistência de um campo unificado (como proposto por Adorno e Horkheimer), mas a co-existência de manifestações plurais de fenômenos culturais e artísticos, geradores de desenvolvimento econômico e social (HESMONDHALGH, 2002: p. 15). Hartley (2005) captura este processo percebendo uma evolução do conceito de “indústrias criativas” como uma fusão entre “artes criativas” (publicamente patrocinadas) e “indústria cultural” (produção industrial em massa). Em sua avaliação, o novo termo teria surgido das mudanças tecnológicas dos 1990s com o desenvolvimento amplo de diversas mídias interativas e ganharia apelo e atratividade no contexto de políticas regionais e urbanas de desenvolvimento econômico deste período, envolvendo criação de empregos e crescimento de PIB. Corroborando essa interpretação, Jeffcut e Pratt (2002) apontam que o processo de branding do termo “indústrias criativas” pode ser atribuído ao governo inglês, em particular a partir da intervenção do Departamento de Cultura, Mídia e Esportes (DCME). Por meio desse conceito, o DCME buscava criar uma aliança ampla de interesses, definindo o setor “criativo” como compreendendo “as atividades que têm sua origem na criatividade, habilidades e talentos individuais e que têm o potencial de criação de riqueza e emprego, por meio da geração e exploração da propriedade intelectual” (DCMS, 1998 apud JEFFCUT; PRATT, 2002). De um outro ângulo, para Hartley, se nos Estados Unidos, a criatividade se associa ao marketing, na Europa, ela se relaciona à cultura e à cidadania e o termo indústrias criativas ganharia ambas as conotações em seu sentido mais globalizado. A mudança para indústrias criativas também incorporaria os elementos de comoditização, trazendo à cultura e à cidadania os elementos de grande escala industrial, tais como aqueles apresentados pela grande indústria mundial de entretenimento. 1.2 Proposta de contribuição do artigo e sua estruturação O artigo busca contribuir para a geração de conhecimento sobre indústrias criativas no Brasil, ainda escassos. Essa temática vem sendo prospectada e incentivada pela Anpad (Eneo 2008) 3 e pela FGV (BORGES, 2004, 2005), mas ainda não há massa crítica de trabalhos publicados no Brasil, embora internacionalmente a área se encontre em substancial desenvolvimento. Por meio de ampla revisão da literatura internacional sobre a organização e gestão da indústria criativa, busca-se apresentar referenciais teóricos para a análise do tema, assim como para a contextualização da cultura e do ambiente brasileiros, de forma a abordar o tema em uma agenda acadêmica de pesquisa que contemporaneamente se busca traçar para o Brasil. Do ponto de vista empírico, a contribuição oferecida pelo presente artigo é exploratória e ainda bastante preliminar, tratando-se mais de uma comunicação sobre pesquisa em andamento. O foco é a indústria de música sertaneja no Brasil, um tema polêmico e com poucos trabalhos acadêmicos em profundidade, com a notória exceção de Caldas (1977), embora abordagens jornalísticas de qualidade estejam disponíveis, como Nepomuceno (1999) e, de forma mais ampla sobre mídia e indústria cultural, o trabalho de Miceli (2005). O artigo apresenta-se dividido em cinco seções, após esta introdução. A seção 2 apresenta o referencial teórico, dividindo-se em duas subseções que descrevem perspectivas organizacionais e gerenciais das indústrias criativas que orientarão a análise empírica. A seção 3 delineia a abordagem metodológica utilizada. A seção 4 descreve os resultados parciais obtidos na pesquisa em curso e a seção 5 faz breve discussão sobre estes, encerrando-se o texto com as reflexões finais da seção 6. 2. REFERENCIAL A criatividade, os talentos e as tecnologias tornam-se crescentemente fontes decisivas de vantagem competitiva, conforme Florida (2002a 2002b). Com produtos e serviços contendo tais elementos e por sua diversidade de recortes, as indústrias criativas vêm sendo abordadas na literatura internacional sob múltiplas perspectivas organizacionais e gerenciais, a saber: (1) por meio de arranjos associativos e de redes interorganizacionais (HIRSCH, 2000, 2001, LAMPEL et al., 2000; RIFKIN, 2005) e estilos de vida (EIKOF; HAUNSCHILD, 2006); (2) via abordagens econômicas como a teoria de contratos e transações de mercado (CAVES 2000; 2003); (3) pela perspectiva geográfica espacial das aglomerações propiciadoras de desenvolvimento econômico regional e local, via clusters e redes sócio-produtivas (LANDRY, 2000; FLORIDA, 2002a, 2002b; HITTERS; RICHARDS, 2002; MATOS; LEMOS 2005; SCOTT, 2006; SANTOS; JUDICE, 2007). Observa-se que as três perspectivas acima destacadas podem-se sobrepor ou complementar em muitos aspectos e, grosso modo, dizem respeito a distintos níveis de aproximação e visualização do objeto de estudo (micro, meso e macro). Destaca-se aqui que, neste artigo, por questões de foco e de limitações de espaço somente serão abordadas as duas primeiras perspectivas e seus autores principais, Hirsch (1972 e 2000) e Caves (2000; 2003), os quais, com diferentes perspectivas (sociológica e econômica) em muito se assemelham e se complementam , conforme detalhado nas subseções 2.1 e 2.2 que se seguem. 2.1 A organização e gestão da indústria criativa por meio de arranjos customizados e redes interorganizacionais Uma importante contribuição sobre as mudanças que se processaram na indústria cultural e indústrias criativas é a do sociólogo Paul M. Hirsch (2001) que em 1972, publicou no American Journal of Sociology, um artigo que se tornou um clássico sobre a organização dos 4 sistemas da indústria cultural e que foi revisto e revalidado pelo autor posteriormente (HIRSCH, 2000). Hirsch (2001: p. 288) define produtos culturais como “bens não-materiais direcionados a um público consumidor para o qual tais produtos geralmente servem a funções estéticas e expressivas, em vez de funções claramente utilitárias”. Em especial, o trabalho desse autor chamou a atenção para elementos críticos da organização dos sistemas da indústria cultural, com destaque aos processos de filtragem e seleção de produtos finais que nela existem, nos quais apenas os produtos selecionados se tornam conhecidos do consumidor no mercado final. A partir deste insight, este autor analisa a importância dos agentes de seleção, filtragem e intermediação na indústria cultural/ criativa e seus critérios decisórios. Em suas palavras: Em modernas sociedades industriais, a produção e distribuição tanto das artes clássicas quanto a cultura popular envolvem relacionamentos entre uma complexa rede de organizações, as quais tanto facilitam quanto regulam o processo de inovação. Cada objeto deve ser “descoberto”, patrocinado e levado à atenção pública por organizações empreendedoras ou instituições sem fins lucrativos, antes que o artista ou escritor em criação possa ser conectado com sucesso a sua audiência ou público-alvo (HIRSCH, 2001: p. 288). Conforme o autor, tais organizações empreendedoras enfrentam um conjunto de problemas relacionados a relações interorganizacionais e ligações com consumidores finais, podendo ser destacados: objetivos conflitantes, agentes de interface com diferentes valores e normas (ou seja, dificuldades de integração vertical), forte dependência de agentes intermediários e contatos com a grande mídia (HIRSCH, 2001). Assim, além da passagem competitiva pelos processos de seleção e filtragem realizados pelos subsistemas de gestão (organizações culturais), os produtos da indústria criativa necessitam de outros elementos, tais como: a cobertura da mídia na forma de revisões de livros, músicas tocadas em rádios e TV, críticos e promotores, passagem por shows de celebridades e entrevistas na TV, “tendo a mídia um fundamental papel de intermediação no processo como regulador institucional” (HIRSCH, 2001: p. 289). Hirsch elabora sobre um conjunto de características organizacionais e estratégias competitivas que se produzem, em resultado às condições específicas da indústria cultural, em especial de suas incertezas e riscos. As respostas organizacionais se traduzem na reprodução de diversas características, tais como: (1) a proliferação de agentes intermediários de conexão interorganizacional; (2) a superprodução e promoção diferencial de produtos culturais, como no modelo “funil de inovação” de Clark e Wheelright (1993), citados por Barbieri e Álvares (2003), onde muitos produtos devem passar para que o mercado os selecione e os sancione; (3) processos de cooptação dos reguladores da indústria, ou seja, o desenvolvimento de mecanismos de patrocínios e criação de influências e mesmo manipulação dos processos seletivos e decisórios de aporte dos produtos culturais ao mercado, em processos sujeitos a constantes conflitos e a dissenso sobre a legitimidade das disputas. Em 2000, Hirsch revisita o tema indústria cultural, observando que a organização e a distribuição de produtos culturais não se teriam alterado analiticamente desde seu artigo de 1972, mantendo-se na dependência dos intermediários e múltiplos relacionamentos organizacionais. Apesar dessa continuidade, a indústria estaria passando por crescimento, processos de concentração e mudanças relacionadas a novas tecnologias de informação (uso de internet; TV a cabo e satélite). A profunda diversidade das indústrias culturais, entretanto, 5 recomenda que se tenha cautela em generalizações destas características a todos os campos e segmentos, observa ainda o mesmo autor. 2.2 A organização das indústrias criativas na perspectiva dos contratos e opções Também observando as peculiaridades organizacionais das indústrias criativas, merece destaque o trabalho do economista Richard Caves que em 2000 publicou o livro Creative industries: contracts between art and commerce. Atento às especificidades das indústrias criativas, que embora pouco consideradas pelo mainstream econômico e apesar de toda sua heterogeneidade, apresentam do ponto de vista econômico, elementos característicos comparativamente aos outros empreendimentos comerciais. Em especial, Caves ressaltou a natureza contratual das relações na indústria criativa, por oposição à organização verticalizada e à firma. A lógica econômica de internalização de contratos e transações tanto dentro da firma quanto sua execução por meio de agentes econômicos independentes constitui o pano de fundo para a discussão da organização das indústrias de criação em Caves (2000). Seu ponto de partida é a clássica discussão de Coase (1937) sobre a existência de firmas como alternativa ao gerenciamento de contratos e transações, tendo em vista a diminuição de custos de transação e surgimento de oportunismo. O trabalho de Coase não esclareceu, entretanto, quais transações deveriam ser internalizadas pelas firmas e quais deveriam ser deixadas ao mercado (BARNEY; HESTERLY, 2004). Segundo Caves (2000, 2003), por suas características estruturais (tecnologias de produção e consumo) e por suas incertezas de demanda e pelo seu ethos (“a arte pela arte”), a organização das indústrias criativas desenvolveu formas distintivas de contratos que conectam os agentes criativos e a ampla rede de agentes de comercialização da atividade. As indústrias de criação e entretenimento seriam, em sua visão um caso típico de resistência a governança por firmas. Para Caves, (2003: 73) “para que cheguem até as mãos, olhos e ouvidos dos consumidores, trabalhos inspirados por artistas talentosos necessitam da ajuda de insumos simples que respondam aos incentivos econômicos usuais.” Assim como as artes visuais necessitam de galerias para expor, escritores requerem editoras, orquestras sinfônicas, grupos musicais, companhias de dança e de teatro necessitam de locais de execução /performance e de bilheterias. De forma idêntica, o cinema, o teatro e a produção de TV demandam um conjunto diversificado de talentos criativos, assim como um conjunto de “insumos usuais e corriqueiros de negócios” para seu funcionamento. As especificidades das indústrias criativas, então, conforme esse autor, relacionam-se a certas características específicas que as distinguem de outros setores econômicos, a saber: 1) A característica “ninguém sabe” com referência à incerteza enfrentada pelo produtor das indústrias de criação relativamente à “demanda” ou a formas de previsão da percepção e satisfação do consumidor. Como os produtos criativos são bens experienciais, seu consumo é subjetivo, resultando em dificuldades de agrupá-los em categorias preditivas usuais; 2) A característica “a arte pela arte” diz respeito, de um lado, ao ethos dos agentes das indústrias criativas, isto é, sua atitude, seus gostos e estilos em relação a seu trabalho e suas preferências sobre a técnica ou a performance do trabalho criativo. Tais preferências pessoais dos artistas tornam os processos de contratação mais complexos; 6 3) A terceira característica distintiva relaciona-se à diferenciação vertical e horizontal e à coordenação temporal, a durabilidade, riscos e complexidades de coordenação de processos colaborativos entre diferentes artistas. Caves destaca, assim, dois tipos básicos de negociações e contratos: as negociações bilaterais (como por exemplo, entre artistas e galerias de artes; escritores e editores, artistas performáticos e agentes) e as negociações em redes miscelâneas (motley crews), em bens criativos complexos (como por exemplo, cinema; animações; programas e séries de TV; shows de moda, entre outros). O autor salienta também a existência de contratos com “opções”, resultantes das incertezas, riscos e de assimetrias de informação e ajustes dos agentes ao longo do processo produtivo, significando possibilidades e decisões de prosseguimento ou não, onde o teste do tempo é colocado a prova. Outro aspecto econômico abordado por Caves (2000: p. 286) é a questão dos processos de cooptação dos agentes intermediários em suas decisões e seleção. Tais processos são denominados por Caves como payola, ou “subornos pagos de forma a influenciar as escolhas dos intermediários em diferentes produtos da indústria criativa”. Em particular, os processos de “payola” são histórica e internacionalmente praticados na indústria de música popular (HIRSCH, 2001; ANAND; PETERSON, 2000; GANDER; RIEPLE, 2002) onde o mecanismo é claro: muitas músicas competem para serem tocadas e para os intermediários influentes nesse processo existem muitos os potenciais substitutos. Em especial, a execução das músicas em rádios e a visibilidade adquirida em determinados shows de TV tornam-se um mecanismo de otimização de vendas e receitas de copyrights. Em especial, conforme Anand e Peterson (2000), nos mercados de música, a rede de informações sobre o mercado constitui um “magneto” por meio do qual os atores se consolidam. Adicionalmente, Caves (2000) Hirsch (2001); Gander e Rieple (2002) apontam que a comercialização de música popular tem seus recursos concentrados em dois tipos de empresas ou selos: majors (grandes grupos fonográficos tradicionais) e independentes (pequenos grupos autônomos e inovadores). 3. METODOLOGIA Além das abordagens organizacionais da sociologia e da economia tratadas no referencial (seção 2), observa-se que para o estudo das indústrias criativas, abrem-se possibilidades de interface com o campo dos Estudos Culturais, o qual vem se dedicando a avaliação da importância das diversas mídias na constituição das identidades, nas respostas e entendimento social das novas tecnologias de comunicação, suas modificações nos estilos de vida (MEYROWITZ, 1985, apud FROW; MORRIS, 2006) e nos comportamentos de consumo (FROW; MORRIS, 2006). Tem sido observado, entretanto, que os chamados Estudos Culturais caracterizam-se pela recusa em discutir metodologias de pesquisa, utilizando abordagens de tipo bricolagem, isto é, aproximações ecléticas na pesquisa qualitativa em processos complexos e recusa ao reducionismo monológico (KINCHELOE, BERRY, 2007). As escolhas metodológicas dos estudos culturais, na prática, são pragmáticas, estratégicas e auto-reflexivas, realizando-se por meio da variabilidade de instrumentos, sem privilégio ou uso de metodologias próprias (NELSON et al., 1992, apud DENZIN, 1999) A abordagem metodológica adotada no presente artigo é de natureza exploratória e interdisciplinar e busca criar elos interdisciplinares com o campo acima apontado. A pesquisa 7 se encontra em curso e apenas resultados bastante preliminares são aqui apresentados. Adotase a perspectiva de estudos de caso múltiplos , conforme proposta por Yin (2005), com recortes analíticos feitos nos diversos segmentos e manifestações da indústria criativa, considerados relevantes para o Brasil e com ênfase, mas não exclusividade, no estado de Minas Gerais. As unidades de análise são as indústrias criativas e, no caso desse artigo, a indústria de música sertaneja brasileira. As unidades de observação são os atores da indústria criativa – produtores criativos e agentes intermediários (promotores e empreendedores criativos, redes interorganizacionais). Os dados foram coletados através de entrevistas qualitativas em formato narrativo (JOVCHELOVITCH; BAUER, 2002) e material conversacional livre com definição de participantes flexível e prevendo volta ao campo (GODOI; MATTOS, 2006). Para Jovchelovitch e Bauer (2002: p.91), “comunidades, grupos sociais e subculturas contam histórias com palavras e sentidos que são específicos a sua experiência e seu modo de vida. O léxico do grupo social constitui sua perspectiva de mundo”. Nesse sentido, as entrevistas narrativas reconstroem acontecimentos sociais a partir da perspectiva do informante, onde o esquema narração substitui o esquema “pergunta-resposta”, apresentando-se como versão menos imposta ao informante. O tratamento das entrevistas segue a forma estruturalista proposta por Jovchelovitch e Bauer (2002), buscando compreender relações e sentidos que as narrativas apresentam, relacionando-os ao referencial de arranjos e redes inteorganizacionais e estrutura de contratos identificados na literatura. Em complementação a pesquisa, informações secundárias foram utilizadas para a descrição do surgimento e situação atual da indústria de música sertaneja no país. Por limitações de espaço, apenas duas entrevistas narrativas são apresentadas. Os informantes são dois participantes internos da indústria em estudo e que fizeram seus depoimentos como atores e íntimos conhecedores das relações interorganizacionais existentes, dos processos de seleção de talentos, dos processos de validação desta produção criativa nos mercados e das reações dos consumidores aos espetáculos. Na construção da narrativa, utiliza-se o recurso da bricolagem, expressa na aceitação da fragmentação, complexidade e multilogicidade da realidade observada (KINCHELOE, BERRY, 2007) e a estilização narrativa. Os sujeitos narradores são A (agente investidor na dupla sertaneja D & J) e L. (participante da dupla sertaneja F & L). Com base na estruturação de coleta de dados apresentada no Quadro 1 é realizada a apresentação de resultados de pesquisa, subdividida em três subseções. A seção 4.1 contextualiza o histórico de surgimento e a atual onda de crescimento de produção e difusão de música sertaneja no Brasil, correspondente ao objetivo 1 do presente artigo. Quadro 1: Abordagem metodológica Fontes de informação Narradores (entrevistados A e L) Conexões na Indústria Criativa Informações secundárias Bricolagem Fonte: os autores, 2008. Material coletado/apresentado - narrativas obtidas por entrevistas - conhecimentos dos participantes do processo -literatura acadêmica, jornalística, fontes da Internet - seleção de elementos pelos autores do artigo As seções 4.2 e 4.3 buscam atender ao objetivo 2 do artigo, de um lado, descrevendo as redes de organizações empresariais envolvidas na validação e produção do produto criativo “música 8 sertaneja” no Brasil, com foco no depoimento do agente promotor A da dupla sertaneja D & J e, de outro lado, a narrativa do produtor criativo L. (participante da dupla sertaneja F & L). 4. APRESENTAÇÃO DE RESULTADOS Os resultados apresentados nessa seção baseiam-se em fontes secundárias (CALDAS, 1977, 1987, NEPOMUCENO, 1999; informações obtidas na internet) e entrevistas narrativas. 4.1 Contextualização da indústria criativa de música sertaneja no Brasil 4.1.1 Origens e histórico As origens da música sertaneja atual relacionam-se à “música caipira” e à “moda de viola” difundidas no interior de alguns estados do Brasil (CALDAS, 1977, 1987). O termo sertanejo vem do estilo próprio do “caipira” dos sertões, oriundo dos interiores dos estados de São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins e Paraná. Nessa perspectiva, as músicas caipira e sertaneja têm elementos de ruptura e de identidade. A primeira tem origem rural e diz respeito à sociabilidade comunitária rural caipira, enquanto a segunda surge no mundo urbano industrial, já em conexão com a indústria fonográfica. Em sua fase inicial, as duas têm origem na mesma área geográfica e o mesmo público. Na década de 1930/40 surgiram incentivadores e difusores como Cornélio Pires e iniciaram-se duplas que perduraram até 1970, como Alvarenga e Ranchinho, assim como Tonico e Tinoco. Posteriormente, outras duplas aparecem em cena: Cascatinha e Inhana, Silveira e Silveirinha, Pedro Bento e Zé da Estrada, Zico e Zeca, Lourenço e Lourival, Tião Carreiro e Pardinho entre outras. Nos relatos de Caldas (1987), merecem destaque especial, duplas por ele enumeradas, entre as quais, Rosalinda e Florisbela (da Radio Difusora de São Paulo), nos anos 1940s, sendo que Rosalinda era Hebe Camargo e Florisbela era sua irmã. Outra característica de indústria cultural apontado por Caldas (1977, 1987) refere-se à presença da música sertaneja no cinema brasileiro, com inúmeras produções como: “Fazendo fita” de Alvarenga e Ranchinho (em 1935), seguidos de “Sertão em Festa”, “Abacaxi Azul”, “Laranja da China” e “Banana da Terra”. Outros sucessos cinematográficos podem ser mencionados: “Menino da Porteira” de Sérgio Reis; “Os Hippies do Mundo Sertanejo”, de Leo Canhoto e Robertinho; “Índia” de Cascatinha e Inhana e ainda o épico dirigido por Nelson Pereira dos Santos, “Estrada da Vida”, de Milionário e José Rico. O sucesso na carreira dessa última dupla a leva em turnê na China em 1986 (NEPOMUCENO, 1999). A música sertaneja com o passar do tempo recebeu a influência de outros estilos musicais como polcas, guarânias paraguaias, boleros, tupianas, diversificando ritmos folclóricos do interior, como o rasqueado, a canção rancheira, o arrastapé, o chamamé, e o valseado. Na década de 1970, novas duplas sugiram, como João Mineiro e Marciano, Gilberto e Gilmar, Milionário e José Rico, Chitãozinho e Xororó, que mantiveram as temáticas e acrescentaram poucas diferenciações nos arranjos, continuando a cantar nos mesmos lugares e sem alcançar projeção nacional equivalente à atual existente. Durante muito tempo, a música sertaneja somente foi executada e consumida no interior do país, sendo discriminada nos meios urbanos. Esse tipo de música se limitava às rádios AM e de madrugada, não conseguindo entrar na grande mídia nacional, escrita ou televisiva. Os cantores sertanejos se apresentavam nessa época, somente em feiras agropecuárias, rodeios e circos, afastados das grandes casas de espetáculos do país. Ao final da década de 1980, porém, a dupla Chitãozinho & Xororó começava um movimento de inovação no meio musical sertanejo, a princípio, visto com rejeição dos sertanejos mais 9 conservadores, porém com grande aceitação do público jovem. Finalmente a ritmo sertanejo começava a ser reconhecido nacionalmente, tocando em rádios FM, ganhando espaço na televisão e nos palcos das maiores casas de espetáculos do Brasil. Chitãozinho e Xororó inauguram o gênero pop sertanejo e vão a Nashville nos Estados Unidos (NEPOMUCENO, 1999). No início da década de 1990 surgiram mais duas duplas que contribuíram significativamente para a “virada”: Leandro & Leonardo e Zezé di Camargo & Luciano, que emplacavam a cada lançamento, sucessos nacionais. A diferenciação musical era gritante, pois as músicas sertanejas continham a partir de então em seus arranjos, guitarras, baterias eletrônicas, coral, naipe de cordas e metais, e os espetáculos contavam com bailarinas, aparelhagem de som de última geração e iluminação digna de qualquer grande banda de rock internacional. As vendagens batiam recordes de vendas na indústria fonográfica brasileira que sem a pirataria, que inexistia, movimentavam milhões por ano. Após um breve declínio no final dos anos 90, possivelmente ocasionado pelo fato de que os outros ritmos como o Axé Music, Funk, Pop Rock, e outros tenham também ganhado um espaço no gosto musical popular brasileiro, a música sertaneja passava por uma renovação, a partir de 2000. Surgiam então novas duplas, como Bruno e Marrone, Édson e Húdson, Guilherme e Santiago, com novas propostas para as letras, envolvendo o público jovem e universitário, fazendo sucesso até os dias atuais. E no cinema, destaca-se o filme “Os Filhos de Francisco” sobre a vida de Zezé di Camargo & Luciano. 4.1.2 O atual momento da música sertaneja mineira e os ambientes e shows em Belo Horizonte Desde que a música sertaneja alcançou as paradas de sucesso no Brasil, a referência nesse estilo, era o estado de Goiás onde se encontrava o pólo da música sertaneja. Porém, percebese crescente evolução da música sertaneja em outras regiões brasileiras, com destaque para Minas Gerais e a cidade de Belo Horizonte. No cenário sertanejo atual, duplas mineiras ganham projeção nacional, assim como artistas sertanejos de sucesso ao longo da história são mineiros, como Rio Negro e Solimões, Tião Carreiro, Milionário, João Mineiro, entre outros, demonstrando a proximidade dos mineiros com a música sertaneja. Entre os responsáveis pela ascensão das duplas mineiras ao sucesso atuais estão: Victor e Léo, César Menotti e Fabiano (que são paulistas, mas adotaram BH como terra natal), Eduardo Costa, Don e Juan, Fred e Paulinho, Alan e Alex e outros. O primeiro DVD de Bruno e Marrone foi gravado em Uberlândia, assim também como o de Victor e Leo. Eduardo Costa, Don e Juan, César Menotti e Fabiano fizeram questão de gravar seus DVDs em Belo Horizonte, mostrando para o Brasil o registro ao vivo de seus sucessos, cantados em coro com a platéia mineira. Tais fatos colocam a música sertaneja mineira como referência de qualidade e sucesso hoje no país. Adicionalmente, a música sertaneja atual atinge as mais variadas faixas etárias e camadas sociais. Existem hoje em BH, desde as casas mais populares, os chamados “Bailões”, onde os ingressos são mais baratos e os ambientes são mais simples, até as casas mais sofisticadas da zona sul da cidade. Grande parte da programação das casas noturnas é reservada à música sertaneja. Tal investimento no sucesso do ritmo deve-se, em parte, ao modo como ele vem sendo absorvido pelo público jovem universitário, que já havia elevado o “forró moderno” e que agora faz o mesmo com o sertanejo. A célebre frase símbolo do rock, “sexo, drogas e rock n’ roll” ganha novo sentido, enquanto estilo de vida sertanejo como: “mulher, cerveja e viola”, temática presente nas canções mais animadas e dançantes da música sertaneja. Outro fator influente aos ambientes sertanejos da cidade de BH são os rodeios e a moda country. 10 Nesses ambientes muitos dos freqüentadores usam chapéus e botas country e realizam passos sincronizados e coreografias, inspirados na dança americana. Apesar do alto consumo de álcool, os ambientes são tranqüilos e sem brigas. As apresentações musicais são em sua maioria de qualidade e presenteiam a platéia com grandes espetáculos. 4.2 Aspectos da organização e gestão do negóci de música sertaneja e promoção da dupla D&J: a narrativa de A O negócio de música sertaneja vem crescendo nos últimos anos. Existem 210 mil sites de duplas na internet. Mas para que elas possam se tornar sucesso, existe um percurso de tocar músicas nas rádios, de pagar o chamado “jabá” (que muitas vezes não é cumprido com a execução das músicas), assim como a realização de turnês de shows no interior e de apresentações em TV que possam dar visibilidade. Coisas como aparecer em um programa como o do Faustão não tem preço! Significa falar e se apresentar para o país inteiro no domingo à tarde. Mas é difícil chegar lá. A dupla D & J é formada por dois irmãos nascidos em Varginha, Minas Gerais, que cantam desde garotos sempre na expectativa de chegar o momento da grande chance de gravar o primeiro CD e mostrar seu talento para todo Brasil. D é dotado de inigualável voz de tenor, desde menino, em Varginha, já despontava como grande cantor, aplaudido por onde passava, chegou até, a cantar ópera. J tocava sua viola e, a cada dia, procurava aprimorar-se, de modo a tornar-se excelente instrumentista. Cantavam em restaurantes, casas de shows e barzinhos. Possuíram uma banda de música e, com ela, se apresentavam em casamentos, festas de quinze anos, formaturas e eventos empresariais. Seu repertório compunha-se, basicamente, de música popular brasileira, boleros, tangos e valsas. Após algumas apresentações no restaurante Rancho Fundo, no bairro Buritis, em Belo Horizonte, o empresário M.A., proprietário desse restaurante, empreendedor e homem de visão, convidou-os para a realização de um novo projeto. O empresário aproveitou o bom momento em que vive a música sertaneja em todo Brasil, especialmente em Belo Horizonte, considerada hoje, a capital nacional desse estilo de música. Nessa cidade, são constantes as apresentações e gravações de CDs e DVDs, ao vivo, dos principais cantores do gênero, como Zezé di Camargo e Luciano, Leonardo, Daniel, Chitãozinho e Xororó, dentre outros. No Rancho Fundo, às sextas-feiras, é realizada a “Sextaneja”, quando só se cantam músicas sertanejas. M.A., empreendedor e contratante de shows, que acompanhava a crescente movimentação financeira, em todo o Brasil, advinda desse estilo musical, passou a se interessar pela formação de uma dupla sertaneja. Estava disposto a investir nos dois irmãos. Eles deveriam deixar a banda para formarem a dupla que, mais tarde, denominou-se D & J. As previsões do empresário confirmaram-se. Todas as vezes que D & J se apresentaram no Rancho Fundo, cantando músicas sertanejas levaram o público à loucura. A platéia delirava com a performance da dupla. Com dificuldade, mas com disposição e talento, gravaram seu primeiro CD. Para tanto, contaram com a participação financeira do empresário M.A. que se tornou sócio da dupla. Os artistas já eram reconhecidos e passaram a se apresentar em cidades do interior de Minas Gerais, com especial aceitação do público. Com a parceria firmada, foi gravado o segundo CD e o primeiro DVD ao vivo, no Marista Hall que contou com um público de mais de cinco mil pessoas. O sucesso era questão de tempo. Em 2007, a carreira de D & J necessitava de um novo impulso. Eram necessários novos investimentos, novas estratégias para enfrentar a concorrência e tornar os artistas mais conhecidos da mídia nacional. Ocorreu, então, ao empresário M.A. convidar outro 11 empresário da sua confiança para, juntos, promoverem a consolidação da carreira de D & J. Como estratégia para divulgação do trabalho da dupla, decidiram gravar vinte cinco mil CDs para demonstração pelo Brasil, afora em emissoras de rádios, canais televisão, universidades, Prefeituras de todos os municípios e sindicatos rurais, de Minas Gerais e S. Paulo. Novos shows foram agendados, principalmente, no interior de São Paulo, onde a dupla faz enorme sucesso. Alcança o primeiro lugar em número de musicas tocadas nas rádios da Capital e na cidade de Campinas. Daí, a dupla tornou-se mais conhecida e começou a receber propostas de gravadoras do Rio de Janeiro e de São Paulo. Em abril de 2007, D & J assinaram contrato com a gravadora Universal Music, uma das maiores gravadoras do mundo. Apresentam-se em programas de Televisão, em rede nacional, como Hebe Camargo, Márcio Garcia, Raul Gil, Guilherme e Santiago dentre outros. Pela Universal, vendem mais de trinta mil cópias de disco, com perspectivas de mais de cinqüenta mil, até o final de 2008. Passam a fazer shows em todo interior de Minas Gerais, Espírito Santo, São Paulo, Santa Catarina, Goiás, Brasília, Mato Grosso e já receberam convite para realizar shows em Portugal. Em primeiro de janeiro de 2008, realizaram em Varginha, MG, um show para mais de quarenta mil pessoas, algo nunca visto na região. Assinaram contrato com a TV Alterosa para a realização de um programa semanal que irá ao ar aos domingos pela manhã e será transmitido para todo o Brasil. Em breve, acontecerá o lançamento do terceiro CD e DVD da dupla, apontada pelos executivos da gravadora Universal Music como a de maior potencial de crescimento no mercado de discos sertanejo da atualidade. 4.3 História da dupla sertaneja F & L – a narrativa de F Eu sempre gostei de música, mas nunca pensei em cantar profissionalmente, até porque, sou muito tímido e isso não passava pela minha cabeça. Na minha família, nem minha mãe sabia que eu tinha algum dom musical, pois só cantava no chuveiro e baixinho. Por incrível que pareça, tudo começou quando terminei com minha namorada na época. Eu estava triste com o fim do relacionamento, e então cismei que deveria ocupar meu tempo pra não ficar pensando mais nela. Foi aí que resolvi entrar numa aula de violão, porque eu tinha comprado um, anos atrás, mas não havia aprendido a tocar. Comecei então a sair mais de casa com meus amigos, e numa dessas saídas conheci um lugar chamado Katita, onde a febre do momento era o videoquê. Não era um videoquê comum, nele você cantava em um palco muito bonito, com luzes, cortinas ao fundo, som profissional, e para uma platéia bem grande, então você sentia como se estivesse mesmo em um show e isso começou a mexer muito comigo. À essa altura já havia esquecido a ex-namorada e só me preocupava com as aulas de violão. Foi cantando no videoquê que recebia elogios de gente que eu nem conhecia. Diziam que eu deveria levar esse negócio de cantar mais a sério, porque poderia dar certo. E não é que eu acabei acreditando? Três anos se passaram, e então eu pedi para me mandarem embora porque eu havia conhecido uma pessoa e faria com ele uma dupla pra cantar em bares e tal. Foi um choque pra todo mundo, recebi muitas críticas por largar um emprego com salário fixo e me aventurar nas noites por aí sem ter garantia nenhuma. Senti na pele essa história de que todo cantor é boêmio e irresponsável. Mas minha mãe me apoiava, disse para mim que se era isso que eu queria, então era isso que eu devia fazer. Porém essa dupla não deu certo, eu me vi sem shows e endividado, então eu resolvi parar por 12 um tempo. Vieram mais dúvidas e mais críticas. Eu larguei tudo e dei a cara para bater, tinha um sonho e não podia desistir. Então um amigo meu me disse que conhecia um rapaz que fazia segunda voz, que adorava cantar e que era uma pessoa simples e que nós deveríamos fazer um ensaio e ver no que podia dar. Fui ensaiar e deu para ver que havia sintonia, afinação. Então, eu apostava mais uma vez nos meus sonhos e ideais, enfrentaria tudo de novo, críticas, medos, incertezas, mas acreditando que se Deus havia me dado um dom, então isso não era por acaso, e eu devia usar isso pra levar uma mensagem importante pra alguém, levar a arte que eu sei fazer, levar alegria para alguém que saiu de casa meio triste naquela noite, cantar aquela música que lembra o grande amor de alguém que se foi, ou que está com ela naquele momento. Mexer com a emoção de uma pessoa é uma responsabilidade enorme, como um cristal delicado, mas a satisfação de ver uma pessoa chorar ao ouvir a sua interpretação, te dá a dimensão do que uma música pode provocar no ser humano, e ter a sensibilidade de descrever na mais pura essência o sinônimo da palavra “artista”. Então, depois de vários meses de ensaio, começamos a nos apresentar em casas noturnas. Já na primeira delas, nos esquecemos de um pequeno detalhe: o nome. O nome do meu parceiro não é comercial e tão pouco combina com o meu, F. Então nos deram a sugestão de F. e L., ficando assim. Adorei logo de cara. A cada show que fazíamos aumentávamos a nossa autoconfiança, aprimorávamos nosso dom. Nossa forma de apresentar, com muito zelo, e capricho começava a chamar a atenção das pessoas. Muitas vezes, cantores deixam transparecer o lado “estrela” que cada um possui. Todo mundo tem um pouco disso dentro de si, então procuram muitas vezes o isolamento e a distância do público, demonstrando uma certa arrogância, que provoca a antipatia nas pessoas. Desde o início procurávamos fazer o contrário, sempre perto das pessoas dispensávamos o camarim ficávamos lá no meio do povo mesmo, batendo papo com todo mundo, e até bebendo no mesmo copo que eles. Eu percebi, nessa época, que muitas pessoas que saem na noite, procuram muitas vezes além da música, um bom papo, ou um ombro amigo pra chorar as lágrimas, qualquer coisa assim, e que se esse papo ou esse ombro fosse do cantor, a pessoa ficaria muito mais feliz ainda. Então, sempre que podia, queria saber como as pessoas estavam se sentindo naquela noite e no que poderia ajudar. É incrível como isso que é uma coisa tão simples enaltece e faz bem para as pessoas. Outra coisa que fazíamos também era convidar as pessoas para dançar enquanto cantávamos. Cantar e dançar, ao mesmo tempo, é difícil, mas também causava um impacto muito forte e então, cativávamos a todos, demonstrando nossa simplicidade. Isso foi fundamental para termos o público fiel que temos hoje. Depois de alguns shows em Belo Horizonte começamos a cantar em Santa Luzia, onde, aos poucos, nos tornamos muito populares. Chegamos a ter a nossa agenda quase que exclusiva, sexta, sábado e domingo só para o povo Luziense. Com tudo isso, fomos melhorando a nossa estrutura, com iluminação, máquina de fumaça e, às vezes, dançarinas nos acompanhando em nossas apresentações. Com o tempo, queríamos ganhar o mundo, e para isso diminuímos nossos shows em Santa Luzia e começamos a nos apresentar em outras cidades como Conselheiro Lafaiete, Nova União, Ponte Nova, Sabará, Pedro Leopoldo e muitas outras cidades. É muito gostoso cair na estrada e numa dessas aventuras tivemos a oportunidade de abrir um show do “Trio Parada Dura”, em Bom Jesus do Amparo. Foi uma grande experiência, conseguimos apesar do nervosismo, agradar muito às pessoas presentes e depois disso, recebemos vários convites para voltar. Foi muito bom. Saber que estamos agradando pelo carisma e pela musicalidade é o nosso maior prêmio. 13 Um amigo que conheci na noite, me disse outro dia uma coisa que me fez refletir muito: “Quando te conheci me tornei seu fã, e depois com o convívio me tornei seu amigo, mas quero que você saiba de uma coisa, mesmo agora sendo seu amigo, continuarei sendo sempre seu fã”. Isso me arrepiou e hoje tenho a dimensão da oportunidade que eu tenho, através da música, de tocar nas pessoas, chegar até elas de uma forma tão sublime como o amor e a amizade. Nem sempre a recompensa financeira é a mais justa para tanta dedicação, mas sem dúvida, somos compensados pelo carinho e o aplauso das pessoas, coisas que definitivamente, não tem preço. 5. ANÁLISE DE RESULTADOS E DISCUSSÃO Na esfera micro-cósmica das duas narrativas apresentadas por A e F, observa-se que estão presentes, no caso da indústria criativa de música sertaneja brasileira, praticamente todos os elementos organizativos e gerenciais das indústrias criativas e culturais apontados pela revisão de literatura (seção 2). A narrativa de A, descreve um panorama de relações interorganizacionais e de redes de agentes intermediários e promocionais que adere aos modelos apresentados por Hirsch (2001, 2000) e por Caves (2000; 2003). O funil seletivo está presente e os agentes intermediários e promotores apostam e investem nos produtores culturais, seguindo as lógicas apresentadas no referencial. Assim, A e MA promovem a dupla D & J, interconectando-a ao mercado de informações e à mídia (visita a madrinha Hebe Camargo, como vitrine de exposição e outros shows televisivos). Como agentes de comercialização independentes descobrem os talentos e intermediam contratos com a major Universal Music. O processo é complexo, com avanços e recuos e revela-se de longo prazo. Percebe-se o desenrolar do tempo de amadurecimento dos produtos criativos e sua passagem no funil do mercado. A fala de A “em 2007, a carreira de D & J necessitava de um novo impulso”, evidencia esse transcurso de tempo e o progresso em meio a avanços e recuos. A narrativa de L. mostra a descoberta do sertão, como em Guimarães Rosa: “Sertão – se diz -, o senhor querendo procurar, nunca não encontra. De repente, por si, quando a gente não espera, o sertão vêm”. L. se descobre cantando música em videokê e a partir disso, coloca o pé na estrada. O sonho e emoção do artista perpassam sua fala e revelam o ethos da “arte pela arte”, assim como o percurso boêmio, onde se destaca a ousadia da recusa ao salário fixo. De show em show, na estrada e no interior do Brasil (o sertão), conhecendo as pessoas e se relacionando como artista que cativa o público, ainda sem arrogância, são caminhos que indicam a autonomia do agente livre, atuando na ausência de promotores e agentes de seleção do mercado, mas consciente de que o percurso exige investimentos e profissionalização: um nome comercial, equipamentos, iluminação, som e máquina de fumaça, assim como a aderência aos requisitos de mercado como passagem em shows de outras artistas de mais visibilidade. 6. REFLEXÕES FINAIS Apresentou-se aqui uma ampla revisão da literatura sobre organização e gestão de indústrias criativas e uma aplicação ao contexto brasileiro, a indústria criativa de música sertaneja, entre outras que vem sendo investigadas na pesquisa mais ampla da qual este artigo é parte. Constatou-se a atualidade do tema e suas repercussões econômicas e sociais, assim como a escassez de estudos no país. O estudo é preliminar e limitado em suas conclusões, mas evidencia aderência do campo estudado aos modelos organizacionais e de gestão reportados 14 na literatura internacional e às especificidades de uma arquitetura organizacional aberta em redes, arranjos e contratos, revelada pelas indústrias criativas, com resistência a governança via firmas e concentração vertical. O estudo deste tema prossegue e espera-se que o presente trabalho – tratando de um segmento popular e pouco abordado na academia - seja uma contribuição inicial que possa estimular outros estudos no Brasil, assim como possa ser apresentado em seu formato final e mais acabado em outras oportunidades. REFERÊNCIAS ANAND, N.; PETERSON, R.A. When market information constitutes fields: sensemaking of markets in the commercial music industry. Organization Science, v.11, n.3, May-June, p 270284, 2000. BARBIERI, J.C.; ALVARES, A.C.T. Inovação nas organizações empresariais. In: BARBIERI, J.C. (Org.). Organizações inovadoras. 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