UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
GLEICE FERRAZ VALADARES PIRAJÁ NOVOA
PERSPECTIVAS DE PROFESSORES DE FÍSICA SOBRE AS POLÍTICAS
CURRICULARES NACIONAIS PARA O ENSINO MÉDIO
RIO DE JANEIRO
2012
Gleice Ferraz Valadares Pirajá Novoa
PERSPECTIVAS DE PROFESSORES DE FÍSICA SOBRE AS POLÍTICAS
CURRICULARES NACIONAIS PARA O ENSINO MÉDIO
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Ciências e Saúde, Núcleo de
Tecnologia
Educacional
para
a
Saúde,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
requisito parcial à obtenção do título de Mestre em
Educação em Ensino de Ciências e Saúde
Orientadora: Profa. Dra. Flavia Rezende Valles dos Santos
Rio de Janeiro
2012
Novoa, Gleice Ferraz Valadares Pirajá.
Perspectivas de professores de física sobre as políticas
curriculares nacionais para o ensino médio / Gleice Ferraz Valadares
Pirajá Novoa.– 2012.
129 f. : il. ; 30 cm.
Orientador: Flavia Rezende Valles dos Santos.
Dissertação (mestrado) -- Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, 2012.
Bibliografia: f. 123-126.
1. Professores de física. 2. Professores - Participação no
planejamento curricular. 3. Física (Ensino médio). I. Santos, Flavia
Rezende Valles dos. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Nutes, Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências
Gleice Ferraz Valadares Pirajá Novoa
PERSPECTIVAS DE PROFESSORES DE FÍSICA SOBRE AS POLÍTICAS
CURRICULARES NACIONAIS PARA O ENSINO MÉDIO
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Ciências e Saúde, Núcleo de
Tecnologia
Educacional
para
a
Saúde,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
requisito parcial à obtenção do título de Mestre em
Educação em Ensino de Ciências e Saúde.
Aprovada em ________________________________________
___________________________________________________________
Profa. Dra. Flavia Rezende Valle dos Santos – UFRJ
___________________________________________________________
Profa. Dra. Guaracira Gouvêa - UFRJ
___________________________________________________________
Profa. Dra.Alcina Maria Testa Braz da Silva - IFRJ
Aos meus pais, Ricardo e Lucimar,
por abrirem mão de tantos sonhos
para a realização dos meus
Ao meu irmão, Ricardinho, pelo carinho e amor
Ao meu marido, Carlos Eduardo,
por ter vibrado comigo nos momentos de
alegria e me consolado nos
momentos de tristeza.
Aos meus antepassados, que onde
quer que estejam se fizeram
presentes em todos os momentos.
À minha vó, Lúcia, a quem jamais esqueço.
Agradeço...
A Deus, o princípio de tudo.
À professora Flavia Rezende, por quem tenho enorme carinho e admiração. Obrigada
pelas intermináveis horas de reunião no Skype, pelos puxões de orelha, pelas
orientações sempre preciosas, pela amizade e compreensão. Nesses cinco anos de
convivência – é, isso tudo! – só tenho a agradecer todo o aprendizado que me
proporcionou.
Ao meu queridíssimo parceiro e amigo de mestrado, Aroaldo Veneu, a quem dedico
muitas páginas desta dissertação. Obrigada pela `orelha`, pelas gargalhadas, pelo
aprendizado, pelas co-autorias, por tudo!
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Saúde da
UFRJ, por expandir meus horizontes com seus conhecimentos e experiências.
À professora Fernanda Ostermann, pelas ótimas sugestões apresentadas no exame de
qualificação.
À professora Guaracira Gouvêa, que além de ter contribuído com suas sugestões no
exame de qualificação aceitou participar desta etapa final.
Às professoras Alcina Maria, Deise Vianna e Rita Villanova que aceitaram tão
gentilmente o convite para compor a banca de defesa desta dissertação.
Aos colegas do Grupo de Pesquisa do Observatório, o qual eu tive prazer de integrar,
cujas discussões e resultados enriquecerem meu aprofundamento sobre o campo da
educação.
Aos colegas de trabalho Sandra Machado, Roberta Comissanha, Richard Martin,
Gabriela Borges, Leilane Oliveira, Tais Leira, Luziane Schwartz, Márcia Duarte (in
memorian), Mara Costa, Ana Beja, pela maravilhosa convivência que tivemos ao longo
desses anos.
Aos colegas de mestrado, pela troca, pelo carinho, pela amizade, pelos risos e, claro,
pelos encontros etílicos.
Aos funcionários da secretaria, por terem dado mais emoção à minha vida acadêmica a
cada email enviado ‘para ontem’.
A todos os grandes mestres e professores que fizeram parte de toda a minha trajetória.
Ao meu Caduzinho, por me fazer seguir em frente, por acreditar em mim, por respeitar
o meu trabalho e, acima de tudo, por me amar.
À minha mãe Lucimar, por ser meu maior exemplo de coragem e dedicação. A próxima
será você!
Ao meu pai Ricardo, a quem a mim e ao meu irmão tudo dedicou. Espero ter feito valer
a pena!
Ao meu irmão Ricardinho, por amor, carinho e amizade
Às minhas irmãs Vitória e Pâmela, que tornaram minha família ainda mais linda.
A toda a minha família, pelos momentos sempre especiais.
Aos meus grandes amigos Guilherme Soares e Thiago Valle, valeu a pena!
À Livuda, pela amizade incondicional.
A todos os meus amigos, que mesmo com um sorriso e um gesto carinhoso me
motivaram a chegar até aqui.
Aos professores que participaram do curso, por me possibilitar aprender com vocês.
A todos que de alguma forma me incentivaram e que ficam felizes com mais essa
conquista pessoal e profissional.
RESUMO
O presente estudo investigou o discurso de 5 professores de Física de nível
médio que participaram de um curso online de formação continuada à distância sobre os
PCNEM de Física. Tomando por base a filosofia da linguagem de M. Bakhtin, buscouse investigar a apropriação discursiva dos PCNEM por professores que atuam em
diferentes realidades regionais, procurando identificar em que medida suas perspectivas
dialogavam com outras perspectivas sobre currículo, currículo nacional, relações de
poder implicadas no currículo, objetivos do currículo e a submissão ao mundo
produtivo. Os professores autores-criadores dos enunciados analisados têm em comum
o fato de terem participado do mesmo curso, considerado como contexto extraverbal.
Por outro lado, têm idade, formação e tempo de magistério diferentes, além de atuarem
em escolas públicas que pertencem a diferentes regiões da federação. O referencial
discursivo bakhtiniano em conjunto com um dispositivo analítico desenvolvido no
âmbito deste estudo permitiram o escrutínio detalhado da perspectiva de cada professor.
Apesar das diferenças individuais, a partir das análises realizadas, é inegável que os
enunciados de todos os professores investigados apresentaram uma perspectiva
favorável em relação aos PCNEM de Física, se apropriando também da condenação ao
ensino propedêutico. Como solução, os professores concordam com o principal
caminho apontado pela legislação: o ensino contextualizado. Na medida em que
desconsideram as perspectivas críticas de currículo, o discurso desses professores acaba
por legitimar o conteúdo dos PCNEM; a concepção do currículo como prescrição; o
conteúdo mínimo nacional; e as relações de poder existentes no currículo. A
apropriação acrítica do ensino contextualizado pelos professores está em sintonia com
as pesquisas realizadas no ensino de Ciências, já que muitos dos trabalhos fazem
menção e enaltecem o ensino contextualizado, silenciando um viés mais crítico que
problematizaria outros fatores envolvidos no currículo e se voltando à mera
consideração do mundo vivencial do aluno na prática pedagógica. O silêncio dos
professores investigados em relação a aspectos não metodológicos do ensino de Física
molda igualmente suas perspectivas e acentua a preocupação com a transposição
didática dos conteúdos exigidos pelo currículo, deixando de fora questionamentos sobre
por que se tem este e não outro currículo.
Palavras-chave: Apropriação discursiva; Perspectivas docentes; Políticas curriculares
ABSTRACT
The present study investigated the discourses of five high schools Physics
teachers who participated in a continuing education online course on Physics High
School National Curricular Parameters (PCNEM). Based on the M. Bakhtin´s
philosophy of language, we sought to investigate the discursive appropriation of
PCNEM by teachers who worked in different regional realities, trying to identify to
what extent their perspectives dialogued with other perspectives on curriculum, national
curriculum, power relations involved in the curriculum objectives curriculum and
submission to the productive world. Teachers whose statements were analyzed,
considered as bakhtinianauthors-creators, have in common the fact that they attended
the same course, which was considered as an extraverbal context. On the other hand,
they are from different age groups, attended different undergraduate courses, took up
teaching at different points of their lives as and work in public schools that belong to
different regions of the federation. The bakhtinian concepts, together with an analytical
framework developed in this study allowed the detailed scrutiny of each teacher's
perspective. Despite the individual differences, our analysis showed that the statements
of all surveyed teachers had an undeniably positive perspective of Physics PCNEM.
They have also appropriated the Parameters critique to traditional teaching. . As a
solution, teachers agree with the main path indicated by the legislation: the
ontextualized teaching. These teachers´ discourses disregard the critical perspectives of
curriculum, what would eventually legitimize the PCNEM´s contents, the idea of a
curriculum as a prescription; the national minimum content; and the power relations
existing in the curriculum. This uncritical appropriation of contextualized teaching is
aligned to current research in science education, since many of the papers mention and
praise contextualized teaching, silencing a more critical bias that would take into
account other factors involved in the curriculum and proposing a pedagogical practice
which is reduced to the mere consideration of the experiential world of the student. The
silence of investigated teachers regarding the non-methodological aspects of Physics
teaching shapes also their perspectives and accentuates the concern with the didactic
transposition of curriculum required content, leaving out questions about why this and
not another curriculum was chosen.
Keywords: Discursive appropriation; Teachers’ perspectives; Curriculum policies
SUMÁRIO
1 PROBLEMÁTICA
10
2 REVISÃO DE LITERATURA
19
2.1 Uma trajetória do conceito de currículo
19
2.2 O currículo nacional em pauta
24
2.3 Perspectivas acadêmicas sobre as políticas curriculares oficias
26
2.3.1 Análise dos discursos das políticas curriculares
30
2.3.2 Políticas curriculares e formação docente
32
2.3.3 Política curriculares na prática docente
33
2.3.4 Políticas curriculares e as finalidades da educação
35
2.3.5 Abordagens metodológicas para a pesquisa em políticas curriculares
36
2.3.6 Relações entre o Estado e as políticas curriculares
36
2.3.7 Uma síntese
37
2.4 Parâmetros curriculares nacionais para a área de ensino de Ciências da Natureza
Matemática e suas Tecnologias
38
2.4.1 Habilidades, competências e interdisciplinaridade
39
2.4.2 O conceito de contextualização
45
2.5 O ensino de Física segundo os PCNEM
47
3 QUADRO TEÓRICO METODOLÓGICO
53
3.1 Filosofia da linguagem de Bakhtin: fundamentos
53
3.2 Bases teóricas para um dispositivo analítico
56
3.2.1 Enunciado: características
57
3.2.2 Enunciado e oração: identificação positiva, negativa e gêneros do
discurso
61
3.2.3 O contexto extraverbal
63
3.2.4 Enunciado e vozes
66
3.2.5 Apropriação discursiva
68
3.3 Objetivo e questões de pesquisa
73
3.4 Delimitação do estudo
73
4 CONTEXTO DO ESTUDO
74
4.1 Contexto do estudo
74
4.1.1 O ambiente virtual
74
4.1.2 Cursistas
75
4.1.3 Atividades pedagógicas do curso
78
4.1.4 Descrição do curso
79
4.1.5 Mediação dos tutores
83
4.2 Corpus do estudo
83
5 APROPRIAÇÃO DISCURSIVA DOS PCNEM DE FÍSICA POR
PROFESSORES
86
5.1 Enunciado do Professor Norte
88
5.1.1 A análise da apropriação discursiva dos PCNEM de Física pelo Professor
Norte
5.2 Enunciado do Professor Sul
89
93
5.1.1 A análise da apropriação discursiva dos PCNEM de Física pelo Professor
Sul
5.3 Enunciado do Professor Sudeste
94
99
5.3.1 A análise da apropriação discursiva dos PCNEM de Física pelo Professor
Sudeste
5.4 Enunciado do Professor Nordeste
100
104
5.4.1 A análise da apropriação discursiva dos PCNEM de Física pelo Professor
Nordeste
5.5 Enunciado do Professor Centro-Oeste
106
110
5.5.1 A análise da apropriação discursiva dos PCNEM de Física pelo Professor
Centro-Oeste
110
6 SÍNTESE DA ANÁLISE, DISCUSSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS
114
6.1 Síntese da análise
114
6.2 Discussão e considerações finais
120
REFERÊNCIAS
123
ANEXOS
127
1. PROBLEMÁTICA
Entre os anos de 1995 e 1998, o governo de Fernando Henrique Cardoso
empreendeu uma reforma educacional preconizada pela Lei n. 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, conhecida como Lei de Diretrizes e Bases para a Educação (LDB),
que estabeleceu as diretrizes e bases da educação nacional em resposta ao novo contexto
socioeconômico mundial e o consequente posicionamento do Brasil neste contexto.
Embora contemplasse outros aspectos, como mudanças nas legislações, na gestão das
escolas, nas formas de financiamento, etc., foram as mudanças nas políticas curriculares
que ganharam maior destaque na reforma empreendida, a ponto de serem analisadas
como se fossem a reforma educacional em si (LOPES, 2004b).
Para a autora, a centralidade do currículo não vem a ser uma característica
apenas desse ou daquele governo; desse ou daquele país. JALLADE (apud LOPES,
2004b) destaca o fato de que para o Banco Interamericano de Desenvolvimento1 (BID),
o currículo é o coração de um empreendimento educacional e nenhuma política ou
reforma educacional pode ter sucesso se não colocar o currículo no seu centro. Diante
desta constatação, podemos supor ser bastante difícil que a concepção de currículo do
BID não repercuta junto aos seus países membros, incluindo o Brasil
Lopes (2004b) ainda acrescenta que as diretrizes do BID – e seus reflexos em
diferentes países – se coadunam com a ideia de que pelas mudanças curriculares, o
poder central de um país constrói uma atmosfera extremamente favorável de uma
reforma muito mais ampla que a dos currículos, onde:
“as práticas curriculares anteriores à reforma são negadas e/ou
criticadas como desatualizadas, de forma a instituir o discurso
favorável ao que será implantado: mudanças nas políticas
educacionais visando à constituição de distintas identidades
pedagógicas consideradas necessárias ao projeto político–social
escolhido” (LOPES, 2004b, p. 110)
Assim, à luz do contexto socioeconômico mundial, podemos considerar os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN 2 ) como o principal fruto da reforma
educacional ocorrida na década de 1990 e o principal empreendimento de implantação
de um currículo nacional ocorrido no país. Este documento foi criado no sentido de
nortear o que deve ser aprendido pelos estudantes no nível médio em cada disciplina
1
O Banco Interamericano de Desenvolvimento ou BID é uma organização financeira internacional com
sede na cidade de Washington, E.U.A, e criada no ano de 1959 com o propósito de financiar projetos
viáveis de desenvolvimento econômico, social e institucional e promover a integração comercial regional
na área da América Latina e o Caribe. Atualmente o BID é o maior banco regional de desenvolvimento a
nível mundial e serviu como modelo para outras instituições similares a nível regional e subregional. (Fonte: www.iadb.org)
2
Utilizarei a sigla PCN para me referir aos parâmetros curriculares tanto do Ensino Fundamental quanto
o Ensino Médio e utilizarei PCNEM para me referir, exclusivamente, aos parâmetros curriculares para o
Ensino Médio
servindo ao mesmo tempo como orientação para a formação do novo cidadão do século
XXI e como referencial de qualidade para a educação no país. Como afirma Moreira
(1994), o processo que originou a versão preliminar dos PCN iniciou–se no final de
1994 e contou com uma equipe composta por representantes do MEC e cerca de 60
estudiosos da educação brasileira e mais representantes da Argentina, Colômbia, Chile e
Espanha (todos ligados ao BID) países nos quais haviam sido recentemente promovidas
mudanças curriculares em sintonia com a visão neoliberal da educação. Nesta visão, a
educação deixa de ser parte do campo social e político para ingressar no mercado e
funcionar a sua semelhança (SILVA, 1995). Registre–se que a experiência de fato
inspiradora dos nossos Parâmetros foi espanhola, sendo o professor César Coll,
catedrático de Psicologia Educacional da Universidade de Barcelona e um dos teóricos
mais diretamente engajados na reforma educativa espanhola, um dos consultores do
trabalho desenvolvido no nosso país (MOREIRA, 1996).
Em relação ao currículo do nível fundamental, a Constituição Brasileira, já em
1988, previa em seu Art. 210 que seriam fixados “conteúdos mínimos para o ensino
fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores
culturais e artísticos, nacionais e regionais” (BRASIL, 1988).
Embora o artigo refira–se apenas ao ensino fundamental, o entendimento fixado
pela jurisprudência é o de que a necessidade de definição de conteúdos mínimos se
estende por toda educação básica, incluindo o ensino médio. A grande crítica que se faz
ao poder constituinte se refere a não especificidade do significado da expressão
“conteúdo mínimo” e a ausência de outorga a quem cabe essa definição (MOREIRA,
1996).
A partir dessa breve exposição, percebermos que a instituição dos PCN não foi,
de fato, um movimento apartado de toda a dinâmica política, social e econômica que
vinha se dando no Brasil e no mundo. Assim como toda política curricular, os PCN
devem ser colocados numa moldura mais ampla que engloba suas determinações
sociais, sua historia, sua produção contextual (SILVA, 1996).
Com o objetivo de incorporar nas escolas mudanças referentes às práticas
educacionais, o Ministério da Educação e Cultura (MEC) procurou então promover as
novas orientações curriculares tanto para o nível médio quanto para o ensino
fundamental a partir das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) e dos PCN, ambos
redigidos à luz da LDB de 20 de dezembro de 1996 (BRASIL, 1996).
As DCN são obrigatórias por serem estabelecidas a partir da exigência
constitucional em que, de acordo com os art. 22 e art. 210 da Constituição Federal de
1988, compete privativamente à União legislar sobre as diretrizes e base da educação
nacional e afixar conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar
formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e
regionais. Já os PCN são um documento sem caráter de obrigatoriedade que se
apresenta enquanto um “subsídio teórico metodológico para a implementação das
propostas [presentes nos DCN] na sala de aula” (RICARDO e ZYLBERSTAJN, 2008,
p.258).
Apoiados em habilidades e competências básicas, os PCNEM têm como objetivo
preparar o jovem estudante para a chegada à vida adulta e para o exercício pleno da
cidadania. Surgem com a proposta de direcionar e organizar o aprendizado no Ensino
Médio, a fim de gerar um conhecimento real, com significado próprio, não apenas
voltado para o acúmulo de informações (BRASIL, 1997).
Acerca destes conceitos – competências e habilidades – pude verificar, a partir
de uma pesquisa nos trabalhos das área de educação e de educação em ciências, que há
uma escassez de produção teórica a respeito. A literatura parece tornar–se mais pródiga
quando se adentra nas áreas de ensino profissionalizante e administração de empresas.
Além da escassez de fontes de consulta, o que contribui para deixar ainda menos
inteligível a compreensão desses conceitos é a falta de clareza e de completeza com que
são abordados, seja na literatura consultada, seja nos próprios documentos oficiais,
como nas DCN e nos PCNEM. Os próprios elaboradores dos PCNEM de Física, por
exemplo, não chegam a um consenso sobre a distinção e conceituação dos termos
(RICARDO e ZYLBERSTAJN, 2008).
Diante da falta de aprofundamento desses conceitos tanto na pesquisa em
educação e educação em ciências como no próprio PCNEM, retomarei esta discussão na
“Revisão de Literatura” onde procurarei recuperar o histórico e algumas concepções da
noção de competências e habilidades. Por ora, sendo estes conceitos de extrema
importância no documento – chegando a ser considerados ‘eixos de apoio’ – sigo, neste
capítulo, expondo a conceituação dos referidos termos a partir do próprio texto dos
PCNEM.
De acordo com os PCNEM, as habilidades representam os valores e atitudes que
se pretendem desenvolver e as competências, os objetivos a alcançar. Na medida em
que se desenvolvem com referência ao mundo vivencial, as habilidades permitem
articular diversos conhecimentos e as competências vêm, então, para promover o
reconhecimento do significado deste ou daquele conceito em outros contextos, não
restringindo, portanto, a atenção em um único objeto de estudo. Ambas devem ser
desenvolvidas por meio de ações concretas, objetos, assuntos, experiências que
envolvem determinado olhar acerca da realidade. Nesse sentido, as habilidades e
competências podem ser abordadas em tópicos diferentes, com formas distintas em cada
caso, sendo mais ou menos adaptadas dependendo do contexto em que estão sendo
trabalhadas (BRASIL, 1997).
Tendo como uma de suas preocupações centrais a promoção da autonomia na
aprendizagem e a inserção dos jovens na vida adulta, visto que a escolha de uma
profissão ainda pode estar sendo gerada, algumas competências seriam indispensáveis
para possibilitar “a independência de ação e aprendizagem futura”. (BRASIL, 1997,
p.24). A esse respeito o documento afirma:
“o mundo do trabalho e a prática social estão mais exigentes quanto à
educação necessária para o homem do nosso tempo, esperando dele
flexibilidade, capacidade de adaptação, raciocínio lógico, habilidades
de análise, síntese, prospecção, leitura de sinais e agilidade na tomada
de decisões” (BRASIL, 1997, p. 6).
Além das competências e habilidades, a contextualização também integra os
eixos principais em que os PCNEM se apoiam, sendo muitas as críticas dirigidas ao
ensino
‘descontextualizado,
compartimentalizado
e
baseado
no
acúmulo
de
informações’ ao longo de todo o documento. Segundo os PCNEM, ao contrário deste
ensino, é necessário:
“dar significado ao conhecimento escolar, mediante a
contextualização; evitar a compartimentalização, mediante a
interdisciplinaridade; e incentivar o raciocínio e a capacidade de
aprender” (BRASIL, 1997, p.4)
As críticas aos parâmetros curriculares, desde a sua versão preliminar até a sua
ampla divulgação oficial, pelas comunidades educacionais, foram muitas. A primeira e
principal delas diz respeito ao documento se constituir em uma tentativa de currículo
nacional (MOREIRA, 1996; LOPES, 2002a, 2006). Ainda que não haja um consenso
sobre o que deve ser entendido por currículo nacional (MOREIRA, 1996),
indubitavelmente, a proposta de um currículo nacional parte do pressuposto de que a
homogeneidade de padrões e saberes básicos a serem ensinados a todos seria mais que
desejável, seria necessário. Para Lopes (2006), manifestamente opositora ao currículo
nacional, essa regulação de sentidos cerceia as diferenças e silencia as múltiplas
possibilidades de saberes e valores nas diversas práticas curriculares, nos diversos
locais.
Muito embora em determinada época tenha se admitido a ideia de que a
globalização seria capaz de saturar contextos locais, gerando o que Gentili (apud
LOPES, 2002a) denominou de ‘mcdonaldização’ da educação em um ‘mcmundo’, hoje
são frequentes os trabalhos que reconhecem a heterogeneidade como parte do processo
de apropriação das políticas curriculares pelas realidades nacionais e locais (CANDAU,
1999 apud LOPES, 2006; LOPES, 2006). Para esses autores:
“Não é negada a instituição de alguns marcos estabelecidos por um
projeto global, mas é defendido que a materialização das propostas
globais em contextos nacionais encontram–se hibridizadas aos
projetos políticos locais. Em outras palavras, para constituírem–se um
projeto global, as políticas de currículo nacional tiveram de articular–
se às concepções locais, dar conta de responder aos projetos em
disputa nos Estados–nação, gerando uma heterogeneidade de
orientações curriculares nos diferentes países.” (LOPES,2006, p.130)
Lopes (2004b) não só reconhece este processo de hibridização como defende
que é essencial retirar dos PCN a marca de documento padrão, concebendo–o apenas
como uma das propostas possíveis e permitindo que outras possíveis propostas
curriculares tenham espaço para produzir novos sentidos nos estados, nos municípios e
nas próprias escolas, “valorizando o currículo como espaço de pluralidade de saberes,
de valores e de racionalidades” (p.116).
Uma segunda crítica feita aos PCN se refere à preconização do ensino baseado
em competências e habilidades (MOREIRA, 1996; VALENTE, 2000; LOPES, 2001,
2004b, 2006). Para Lopes (2001) é possível perceber como concepção dominante nos
PCNEM que o currículo voltado às habilidades e competências é entendido como capaz
de proporcionar a inserção dos estudantes numa dinâmica social que se modifica de
forma contínua, permanecendo presente um discurso que atrela a educação ao processo
formativo responsável por inserir os sujeitos na estrutura social vigente e em seus
processos produtivos.
A esse respeito, Lopes (2006) aponta que as relações da educação com o
mercado permanecem como um dos marcos de colonização das práticas curriculares em
que a cultura comum é valorizada enquanto moeda de troca no mercado, permanecendo
a ideia de que a educação deve servir de ferramenta de inserção social, vinculando–se
ao mundo produtivo, sem se preocupar com os questionamentos de como se constituiu
e/ou se constitui este mundo.
A terceira e última principal crítica feita pela comunidade educacional que
abordo nesta problemática se refere aos objetivos do currículo e às suas relações de
poder (LOPES, 2002b; SILVA, 1996;). Para Silva (1996), o currículo não pode ser
considerado um elemento inocente e neutro com pretensões desinteressadas. Pelo
contrário, o currículo está implicado em relações de poder e “transmite visões sociais
particulares e interessadas, [...] produz identidades individuais e sociais particulares” (p.
83). Por exemplo, a partir do estudo da Lopes (2002b) sobre o conceito de
contextualização, o qual pode–se considerar como um pilar tão importante quanto as
noções de competência e habilidade, a visão particular interessada e a produção de
identidades individuais e sociais dos PCNEM têm por objetivo a inserção social no
mundo produtivo. A autora pretende demonstrar que o conceito de contextualização
“associa–se a princípios eficientistas: a vida assume uma dimensão especialmente
produtiva do ponto de vista econômico, em detrimento de sua dimensão cultural mais
ampla” (p.390).
Já em 1994, Apple (1994b), a partir do contexto norteamericano da época,
chamava atenção para a constituição deste vínculo entre o currículo e mundo produtivo
enquanto uma espécie de exportação da crise econômica e de relações de autoridade
para as escolas que poderia resolver vários problemas da sociedade:
“Se as escolas, seus professores e seus currículos fossem mais
rigidamente controlados, mais estreitamente vinculados às
necessidades das empresas e das indústrias, mais tecnicamente
orientadores e mais fundamentados nos valores tradicionais e nas
normas e regulamentos dos locais de trabalho, então os problemas de
aproveitamento escolar, de desemprego, de competitividade
econômica internacional, de deterioração das áreas das grandes
cidades, etc., desapareceriam quase que por completo, assim querem
nos convencer” (p.40)
Embora a questão curricular tenha status central no campo político, a revisão da
literatura3 sobre PCNEM e políticas curriculares em artigos publicados em periódicos4
das áreas de Educação e Educação em Ciências entre os anos 2000 e 2010 mostrou que,
desde a sua ampla divulgação até os dias atuais, ainda há pouca reflexão sobre o tema.
Na área de Educação em Ciências foram encontrados 12 trabalhos que tinham
como foco as políticas curriculares num total de 1.558 e na área de Educação, apenas 09
trabalhos, num total de 1.266.
No entanto, embora sejam poucos os trabalhos que discutam as políticas
curriculares (apenas 0,78% do total de trabalhos publicados nas revistas pesquisadas),
pode–se notar que são variadas as reações da comunidade acadêmica, gerando múltiplas
temáticas5, como por exemplo, políticas curriculares e formação docente; o Estado e as
políticas curriculares; as políticas curriculares e os objetivos da educação; etc.
Dentro deste número reduzido de artigos, muito poucos vão além da
preocupação com a implementação das políticas curriculares. Nessa perspectiva,
3
O trabalho, do qual fui co-autora (FERRAZ et al., 2011) foi apresentado no VIII ENPEC, em dezembro
de 2011, cujos anais se encontram no prelo.
4
Ciência & Educação, Investigações em Ensino de Ciências, Caderno Brasileiro de Ensino de Física,
Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, Ensaio - Pesquisa em Educação em Ciências, A
Física na Escola, Revista Brasileira de Educação, Revista Brasileira de Ensino de Física, Cadernos de
Pesquisa, Educação e Sociedade.
5
A categorização e as análises estão descritas em Ferraz et al (2011).
criticam a formação inicial por não proporcionar aos futuros professores o contato com
os documentos oficiais de maneira a dificultar a sua implementação correta, porém não
há nenhuma crítica em relação ao entendimento desses professores do currículo como
algo dado e indiscutível, que não o encare enquanto um produto sociocultural a ser
problematizado e discutido. Essa atitude demonstra que, em um grande número de
trabalhos nas áreas de ensino de Ciências e de Educação, a concepção predominante é a
do currículo como prescrição (GOODSON, 2007).
Essa concepção de currículo presente tanto na esfera governamental (LOPES,
2004b) quanto no meio acadêmico limita as escolas à sua capacidade de implementação,
ou não, dos PCN. Assim, os dirigentes questionam a escola e os professores por não
seguirem devidamente as políticas oficiais e os professores questionam o governo por
produzir políticas que as escolas não conseguem implementar e, em ambos os casos, se
faz presente a perspectiva da prática como espaço para implementação das propostas
oficiais.
Ricardo (2003), por exemplo, indica que os entraves à implementação dos
PCNEM – sejam elas quais forem – em sala de aula, se devem principalmente, à falta de
formação do professor, não problematizando outros fatores provenientes do próprio
documento, tal qual seu caráter prescritivo e distante das múltiplas realidades escolares
(LOPES, 2002a).
Nos trabalhos que abrangem os discursos sobre currículo e o processo de
hibridismo, onde há um viés mais crítico, percebemos um consenso de que as políticas
curriculares
nas
escolas
e
nas
comunidades
disciplinares
são
frutos
da
recontextualização, processo que confere aos textos curriculares novos sentidos,
assumindo modificações como parte do processo.
Houve também, neste levantamento, artigos que apenas citavam as políticas
curriculares sem tê–lo como foco de estudo. Nestes trabalhos, observamos a intenção de
legitimação da prática pedagógica por meio da reprodução do discurso oficial.
Um dos nove trabalhos localizados na área de Educação aponta o baixo impacto
das reformas curriculares na realidade escolar. Neste trabalho, Santos (2002) afirma que
seria cabível pensarmos que, definindo um currículo nacional, selecionando os livros
didáticos a serem adotados pelas escolas, capacitando os professores para desenvolver
as competências consideradas fundamentais para o exercício de sua função, haveria uma
notável melhoria no sistema educacional brasileiro. Entretanto, a autora salienta que
não sendo as escolas e os professores como tábulas rasas, prontas a assimilar tudo que
lhes é apresentado, parâmetros e normatizações elaboradas como propostas fechadas
esbarram com inovações singulares, gerando muitas vezes conflitos com os discursos e
as práticas em desenvolvimento nas escolas.
Dessa forma, embora seja na esfera governamental que se dê a produção das
políticas educacionais e formulação de propostas curriculares, as pesquisas na área têm
demonstrado que mesmo quando os professores aderem às novas propostas curriculares,
elas são sempre reinterpretadas e adaptadas às suas próprias necessidades, dando seu
próprio acento aos conteúdos e às práticas de ensino (LOPES, 2002b, 2004).
O processo de reinterpretação e adaptação no nível do discurso das políticas
curriculares será considerado, neste estudo, como sendo a apropriação discursiva dessas
políticas, pois, segundo Bakhtin (2006b), a apropriação consiste, justamente, em povoar
a palavra do outro com suas próprias palavras, sua própria intenção, seu próprio acento,
adaptando–a à sua própria intenção semântica e expressiva.
A apropriação de propostas curriculares por professores pode ser ilustrada por
meio de um estudo de caso sobre a apropriação dos PCNEM por um professor de Física
(FERRAZ et al, 2010a). Os autores deste estudo verificaram que no discurso deste
professor, o caráter apenas orientador das práticas educativas dos PCNEM foi
superestimado. Ao se apropriar do documento, seu próprio acento empregou força de lei
ao documento e às orientações contidas nele. Embora a teoria de Bakhtin não nos
permita atingir uma identidade entre discurso e prática – como será visto mais
detalhadamente no Quadro Teórico Metodológico – o discurso professor dá indícios de
que a sua prática pedagógica e a dos demais professores deveria seguir estritamente os
PCNEM, parecendo admitir a política do conhecimento oficial enquanto descrição
neutra do mundo (APPLE, 1994).
O estudo foi um indício de que as propostas curriculares oficiais, e mesmo o
currículo em ação nas escolas, são sempre constituídos por processos de apropriação,
que impõe, simultaneamente um reposicionamento e uma refocalização dessas políticas
por parte dos professores tanto no nível do discurso – a apropriação discursiva – e,
assim como afirma Lopes (2001, 2004b), um reposicinamento também no nível da
prática
Diante das possíveis perspectivas sobre o currículo e sobre as políticas
curriculares preliminarmente levantadas nesta introdução, o presente trabalho pretende
investigar o discurso dos professores de Física de nível médio no contexto de uma
atividade desenvolvida num curso online de formação continuada à distância. O
objetivo principal é identificar como se dá a apropriação discursiva dos PCNEM de
Física, por diferentes professores que atuam em diferentes realidades regionais,
procurando sinalizar em que medida as perspectivas dos professores em relação ao
documento dialogam com perspectivas apresentadas aqui e no próximo capítulo dentre
outras perspectivas não levantadas na presente dissertação, mas que venham a integrar o
discurso do professor e, ainda, as aproximações e afastamentos entre as perspectivas
apresentadas por cada um desses professores.
2. REVISÃO DE LITERATURA
Sendo o interesse dessa pesquisa investigar a apropriação discursiva dos
PCNEM por professores de Física e entendendo que sua apropriação será permeada pelo
diálogo com outras perspectivas, vejo a necessidade de pontuar, nesta revisão, algumas
perspectivas que suponho fazerem parte do universo discursivo com o qual os
professores de Física de nível médio poderão dialogar. Tendo certeza de que este
universo não poderá ser esgotado, já que seria impossível prever sua totalidade, elegi
algumas perspectivas às quais tive acesso no meio acadêmico. Entre elas: uma breve
revisão teórica sobre o conceito de currículo incluindo uma discussão sobre a
implantação do currículo nacional; perspectivas acadêmicas sobre os PCNEM enquanto
núcleo de uma política curricular com base em um levantamento bibliográfico
apresentado em evento recente da área de ensino de Ciências; outras perspectivas
acadêmicas especificamente relacionadas aos PCNEM da área de Ciências da Natureza,
Matemática e suas Tecnologias; e perspectivas acerca do documento da área de Física,
com base em um trabalho também apresentado recentemente em um evento científico.
Dessa forma, o breve mapeamento teórico aqui empreendido tem por finalidade
mapear as possibilidades discursivas que poderão servir como referência para a
compreensão das perspectivas dos professores.
2.1 Uma trajetória do conceito de currículo
Mesmo antes de constituir-se como objeto de estudo, o currículo sempre foi o
centro das atenções de todos que buscavam melhor entendimento e maior organização
do processo educativo escolar (MOREIRA E SILVA, 2008). Porém, apenas no final do
século XIX, um número significativo de educadores começou a tratar o currículo de
maneira mais sistemática, iniciando, dessa forma, uma série de estudos e iniciativas
envolvendo problemas e questões curriculares, que, em pouco tempo, configuraram o
surgimento de um novo campo (MOREIRA E SILVA, 2008).
Esse processo originou-se nos Estados Unidos, nos anos 20, onde, pela primeira
vez, elegeu-se o currículo como foco central da Sociologia da Educação numa
abordagem sociológica e crítica do currículo (MOREIRA E SILVA, 2008). Os autores
afirmam que o contexto sócio-histórico americano da época consistia na economia pósguerra dominada pelo capital industrial onde o sistema de competição livre, então
prevalente, estava rapidamente sendo substituído pelos monopólios. Para que houvesse
a produção em larga escala, era necessário o aumento das instalações e do número de
mão-de-obra. Os procedimentos administrativos sofisticaram-se e assumiram um caráter
“científico” e o processo de produção tornou-se mais complexo e socializado. Moreira e
Silva (2008) apontam que nesse contexto:
“Uma nova concepção de sociedade, baseada em novas práticas e
valores derivados do mundo industrial, começou a ser aceita e
difundida. Cooperação e especialização, ao invés de competição,
configuravam os núcleos de uma nova ideologia. O sucesso na vida
profissional passou a requerer evidências de mérito na trajetória
escolar. Ou seja, novas credenciais, além de esforço e ambição,
tornaram-se necessárias para se “chegar ao topo” ” (p.10)
Nessa época, segundo Silva (2000), houve um intenso processo de massificação
da escolarização e o currículo passou a ser utilizado como instrumento para racionalizar
os resultados educacionais – especificando-os e medindo-os cuidadosamente – e os
estudantes considerados como produtos a serem processados. Cabia às escolas, a partir
do controle social que se pretendia estabelecer com o currículo, “inculcar os valores, as
condutas e os hábitos ‘adequados’ ”(MOREIRA E SILVA, 2008, p.10), promovendo
assim a adaptação das novas gerações às transformações que ocorriam nas esferas
econômica, social e cultural. Dessa forma, o conceito de currículo apresentava como
propósito mais amplo o planejamento “científico” das atividades pedagógicas e seu
controle, afim de evitar comportamentos e pensamentos dos alunos que os desviassem
de metas e padrões pré-definidos (SILVA, 2000) e, por consequência, sua organização
foi pensada de modo a conferir-lhe características de ordem, racionalidade e eficiência
(MOREIRA E SILVA, 2008).
No final da década de 50, a partir da derrota na corrida espacial, instaurou-se nos
Estados Unidos um processo de culpabilização dos educadores por parte dos cidadãos
americanos que insistiam na necessidade e urgência de se restaurar a qualidade
supostamente perdida pela escola (MOREIRA E SILVA, 2008). A esfera federal
norteamericana entrou então em ação e recursos foram disponibilizados para as
reformas nos currículos de Ciências, Matemática, Estudos Sociais, entre outros, bem
como foram elaborados e implementados novos programas, materiais, estratégias e
propostas de treinamento de professores com o intuito de redirecionar e fortalecer o
campo do currículo (SILVA, 2000).
Porém, estas ações pareceram não ter contribuído, de fato, para a revolução
pedagógica e curricular que pretendeu se desenvolver no país. Moreira e Silva (2008)
apontam que essa tentativa:
“Foi, ao menos em parte, neutralizada pelos problemas que
desafiaram a sociedade americana nos anos sessenta. Racismo,
desemprego, violência urbana, (...) representaram motivo de vergonha
para os que desejaram ver a riqueza mais bem distribuída e sonhavam
com a concretização de uma sociedade mais democrática, justa e
humana. A revolta contra todos esses problemas levou a uma série de
protestos e ao questionamento das instituições e dos valores
tradicionais” (p. 12)
A escola e os educadores foram novamente culpabilizados e:
“Denunciou-se que a escola não promovia ascensão social e que,
mesmo para as crianças dos grupos dominantes, era tradicional,
opressiva, castradora, violenta e irrelevante. Seria necessário
transformá-la e democratizá-la ou então aboli-la e substituí-la por
outro tipo de instituição (MOREIRA, 1989 apud MOREIRA e
SILVA, 2008).
Assim, diante da crise, muitos foram os grupos norteamericanos que se
levantaram: os que defendiam uma escola eficaz, porém aliada à ideais tradicionais; os
que pregavam a liberdade na escola e seus fins humanistas e os que defendiam o fim das
escolas. Porém, nenhum grupo questionava a sociedade capitalista que se consolidou no
país, nem o papel da escola enquanto perpetuadora dessa sociedade (SILVA, 1995).
Dessa forma, autores interessados em denunciar o papel da escola e do currículo
na reprodução da estrutura social e preocupados com a construção de uma escola e
currículo que se alinhassem com os interesses dos grupos oprimidos nos EUA passaram
a “buscar apoio em teorias sociais desenvolvidas principalmente na Europa para
elaborar e justificar suas reflexões e propostas” (MOREIRA e SILVA, 2008, p. 14).
Assim, ainda segundo os autores, o neomarxismo, a teoria crítica da Escola de
Frankfurt, as teorias de reprodução, a etnometodologia, etc., embora divergentes,
influenciaram, em grande parte, os estudos acerca do currículo das décadas
subsequentes. O currículo possui, certamente, uma história vinculada a formas
específicas e contingentes de organização da sociedade e da educação (MOREIRA E
SILVA, 2008).
Os autores ressaltam que este processo de reelaboração da concepção de
currículo não se restringiu à sociedade americana, ao contrário, a partir daí, adentrou a
agenda de discussões sobre o currículo e suas implicações em diversos países. Essas e
outras novas tendências ajudaram a reconceituar o campo na década de 70, favorecendo
a análise e compreensão de outras questões – não mais eram supervalorizados o
planejamento, a implementação e o controle de currículos; não mais eram enfatizados os
objetivos comportamentais; não mais se incentivava, como forma de produzir
conhecimento, a pesquisa tradicional quantitativa; não mais se estimulava a utilização
de procedimentos “científicos” de avaliação (MOREIRA e SILVA, 2008). Em síntese,
os focos e as preocupações relacionadas ao currículo começaram a ser deslocados e
renovados.
No Brasil, não por coincidência, as primeiras preocupações com o currículo
também surgiram nos anos 20 e caracterizavam-se pela transferência instrumental de
teorias americanas. Porém, a partir da década de 80, a hegemonia das referências norteamericanas foi abalada pelo início da redemocratização brasileira e enfraquecimento da
Guerra Fria (LOPES e MACEDO, 2002). O currículo deixou de ser uma área
meramente técnica, voltada a questões relacionadas aos procedimentos e métodos, para
assumir uma tradição crítica, orientada por questões de cunho epistemológico, político e
sociológico. Nesta perspectiva, ainda que o “como” do currículo permaneça importante,
só terá sentido quando se relacionam com questões que perguntem “por quê” das formas
de organização do conhecimento escolar.
Para Silva (2000), ainda que haja variações em diversos aspectos, saber qual
conhecimento deverá ser ensinado é o ponto comum entre as várias teorias, tanto as
tradicionais quanto as críticas. Em consonância com as teorias educacionais mais
amplas, as teorias do currículo estão repletas de informações de como as coisas
deveriam ser e, ainda que essas escolhas estejam baseadas nos “tipos” de sujeitos
considerados ideais para uma dada sociedade, a cada tipo de sociedade há “um modelo”
de ser humano desejável, e portanto, a cada um desses “modelos” corresponderá,
consequentemente, um tipo de currículo. Cabe às teorias do currículo, justificar por que
“esses” e não “aqueles” conhecimentos devem ser escolhidos. Assim, as teorias do
currículo deduzem o tipo de conhecimento assumido como relevante exatamente a partir
de definições sobre o tipo de sujeito que consideram ideal (SILVA, 2000).
Analisado dessa forma, o currículo, mais que uma questão de conhecimento, é
também uma questão de identidade, na qual, segundo Silva (1996), as teorias do
currículo encontrarão apoio. Estão implicadas aqui, as relações de poder, transmitidas
por visões particulares e interessadas, produzindo identidades individuais e sociais
particulares: ao escolher estes e aqueles saberes, privilegiar uns em detrimento de
outros, destacando uma identidade desejável, estamos diante de operações de poder
(SILVA, 1996). A expressão máxima do poder do currículo reside no fato de que os
conteúdos são reproduzidos pelos indivíduos de forma que estes sejam preparados para
desempenhar seus papéis na sociedade, sem questioná-lo (SILVA,2000).
Assumindo que existe uma dicotomia entre as teorias tradicionais e teorias
críticas/pós-críticas de currículo, Silva (2000) afirma que as teorias tradicionais
pretendem ser teorias imparciais e desinteressadas, ao passo que as teorias críticas e
pós-críticas julgam esse posicionamento – imparcial e desinteressado – impossível.
Além disso, enquanto as teorias tradicionais envolvem-se com questões meramente
técnicas e de organização curricular, as outras estão preocupadas com a relação
existente entre saber, identidade e poder, invertendo os fundamentos das teorias
tradicionais e nos possibilitando olhar a questão curricular e educacional sob uma nova
perspectiva.
Silva (2000) associa as teorias tradicionais à aceitação, ajuste e adaptação e as
teorias críticas/pós-críticas à desconfiança, questionamento e transformação radical. O
status quo, entendido como referencial desejável pelas teorias tradicionais, é apontado
pelas teorias críticas/pós-críticas como responsável pelas desigualdades e injustiças
sociais. O importante nas teorias críticas/pós-críticas não é desenvolver técnicas de
“como” fazer o currículo, mas desenvolver conceitos que nos permitam entender o que,
de fato, o currículo faz.
Goodson (2007) alerta para o fato de que o currículo foi inventado, basicamente,
como um conceito para dirigir e controlar o credenciamento dos professores e sua
potencial liberdade nas salas de aula:
“Ao longo dos anos, a aliança entre prescrição e poder foi
cuidadosamente fomentada, de forma que o currículo se tornou um
mecanismo de reprodução das relações de poder existentes na
sociedade. As crianças cujos pais são poderosos e ricos se beneficiam
da inclusão pelo currículo, e os menos favorecidos sofrem a exclusão
pelo currículo. Como argumentou Bourdieu, dessa maneira o ‘capital
cultural’ dos pais efetivamente compra o sucesso para seus filhos
estudantes” (p.243)
Para o autor, a visão de currículo como prescrição se desenvolve “a partir da
crença de que podemos imparcialmente definir os principais ingredientes do
desenvolvimento do estudo, e então ensinar os vários segmentos e sequências de forma
sistemática” (p.242). Ainda que não seja a única visão existente, o autor acredita que
este tipo de currículo é, sem dúvida, a principal perspectiva presente nos dias de hoje.
O currículo como prescrição sustenta algumas ideias importantes sobre estado,
escolarização e sociedade: a especialização e o controle são inerentes ao Estado, às
burocracias educacionais e à comunidade universitária e, desde que ninguém revele essa
mística, a “prescrição retórica” e a “escolarização como prática” podem coexistir
(GOODSON, 2007). Segundo o autor, as agências do currículo são “vistas como
‘distribuidoras’ (e podem conquistar um bom grau de autonomia, se aceitarem as
regras)” (GOODSON, 2007, p. 242).
O autor ainda alerta sobre a existência dos “custos de cumplicidade”, ou seja, o
preço que se paga pela aceitação de um currículo como prescrição, pois envolve,
sobretudo e sob vários aspectos, a aceitação de modelos estabelecidos de relações de
poder. O mais relevante para ele talvez seja que os mais intimamente ligados à
construção social cotidiana do currículo, os professores, sejam efetivamente alijados do
“discurso de escolarização”, mantendo seu poder cotidiano em silêncio e sem registro
para que continuem a existir. No entanto, ele aponta que as prescrições curriculares
determinam alguns parâmetros, mas algumas transgressões ocasionais são permitidas,
desde que a retórica e o gerenciamento das prescrições não sejam desafiados.
Lopes (2004b) critica os estudos sobre currículo de ciências, destacando que, de
uma maneira geral, têm sido enfatizados aspectos metodológicos e epistemológicos,
desconsiderando-se a educação como “campo de produção cultural e, portanto,
intrinsecamente político e social” (p.117). Na área de Ensino de Ciências a preocupação
no “como” fazer do currículo tem sido assim, maximizado, tornando-se praticamente a
única perspectiva.
Sendo os PCN uma proposta de currículo a ser seguida nacionalmente, que
mesmo sem possuir força de lei adentrou fortemente as salas de aula e os discursos dos
professores (SANTOS, 2002), julgo importante compreender o que esses professores
pensam, falam (e fazem) deste documento e como avaliam a existência de um
determinado conjunto de conhecimentos prescrito e tomado como o mais relevante para
todo o país. Para contribuir neste sentido, apresento na próxima seção, uma discussão
sobre a implantação de um currículo nacional e suas implicações.
2.2 O currículo nacional em pauta
A implantação de um currículo nacional vem sendo processada desde a década
de 80 em diversos países tais como Espanha, Inglaterra, Estados Unidos e Argentina.
No Brasil, esta implantação iniciou-se com a divulgação para as escolas e professores
das DCN e dos PCN (MOREIRA, 1996). Para Moreira (1996), esse movimento de
instituição de um currículo nacional ocorrido nestes diferentes países vem sendo
associado à visão neoliberal da educação na medida em que a educação vem adquirindo
papel estratégico no neoliberalismo. A esse respeito, Silva (1995) aponta que este
movimento internacional aliado a um projeto neoliberal tem duas dimensões principais:
“De um lado, é central, na reestruturação buscada pelos ideólogos
neoliberais, atrelar a educação institucionalizada aos objetivos
estreitos de preparação para o local de trabalho. (...) De outro, é
importante também utilizar a educação como veículo de transmissão
das ideias que proclamam as excelências do livre mercado e da livre
iniciativa” (p.12)
Neste viés, continua o autor, em diversos países, incluindo o Brasil, há um
grande esforço de utilizar o currículo nacional – e mínimo – não apenas voltado para a
preparação para o local de trabalho, mas também com o objetivo de inculcar nos alunos
os postulados do credo liberal.
Notadamente afinado com a perspectiva neoliberal, o currículo nacional facilita
e viabiliza o sistema de avaliação unificado e o ranqueeamento das escolas. Este
processo é realizado sem levar em conta as diferenças sociais e econômicas entre a
escolas e, dessa forma, alimenta a retórica do neoliberalismo, apontando que se há
problemas na educação – e nas escolas – esse problema reside, fundamentalmente, na
má administração institucional (SILVA, 1995). Para Moreira (1996), esta solução de
ranquear as escolas tornou-se muito útil para ‘superar’ a escassez de recursos a serem
gastos na educação: se são poucos os recursos, há que se contemplar as boas escolas e
os bons professores, definidos a partir das avaliações, restando para os outros
meramente o que sobrar6.
O currículo nacional, visando à construção e preservação de uma cultura comum
tida constitucionalmente como básica para o desenvolvimento de um sentimento
nacional, privilegia, segundo Moreira (1996), discursos dominantes e tende a excluir
das salas de aula os discursos e vozes de professores e alunos pertencentes aos grupos
sociais oprimidos, vistos como ‘não merecedores de serem ouvidos’ (p.13). Neste
processo, fica claro que regulação e controle da conduta humana estão implicados no
currículo.
Embora reconheçam que a regulação do currículo pelo poder oficial perpasse a
ideia de homogeneidade, alguns autores consideram que ainda assim o currículo só
ganha vida nas salas de aula, quando experimentado pelos estudantes e que, neste
aspecto, o processo não garante a tal homogeneidade pretendida (ZUMWALT 1995
apud MOREIRA, 1996; LOPES, 2004b). Nesse sentido, Zumwalt (apud MOREIRA,
1994) afirma que a concepção de currículo nacional chega a ser uma contradição, visto
não ser possível um currículo ser experimentado e vivido nacionalmente e Lopes
(2004b) aponta que embora o currículo nacional permaneça, ainda há espaços de
‘reinterpretação’ das políticas curriculares capazes de permitir um projeto político social
‘diferente dos marcos estabelecidos pelo neoliberalismo’ (p.112)
Os efeitos das políticas curriculares oficiais no contexto da prática pedagógica
seriam condicionados por questões institucionais e disciplinares (BALL e BOWE, 1992
apud LOPES, 2004b), na medida em que:
“as instituições e seus grupos disciplinares têm diferentes histórias,
concepções pedagógicas e formas de organização, que produzem
diferentes experiências e habilidades em responder, favoravelmente ou
não às mudanças curriculares, reinterpretando-as”
Em suma, as políticas curriculares – incluindo-se, obviamente, a implantação de
um currículo nacional – seriam sempre passíveis de ‘múltiplas leituras’ realizadas por
6
Ainda hoje, quase 18 anos após o estudo de Moreira, este tipo de avaliação e ‘ranqueamento’
permanece. No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, o Sistema de Avaliação da Educação do Estado do
Rio de Janeiro (SAERJ) desde 2008 premia escolas e professores classificados nas primeiras posições.
‘múltiplos leitores’ (BALL 2001 apud LOPES, 2004b). Porém, se por um lado essas
possibilidades de reinterpretação e adaptação das políticas curriculares existem, por
outro os professores continuam se sentindo reféns das prescrições detalhadas a que se
veem submetidos e mantêm-se ocupados em tentar qualificar-se para obter êxito na
implementação das propostas curriculares oficiais em sala de aula (MOREIRA, 1996).
Para Giroux (1997), essa obediência técnica e mecânica aos ditames curriculares que
vem sendo empreendida pelos professores esvazia seu potencial crítico e transformador
reduzindo-os ao status de técnicos de alto nível que apenas cumprem objetivos e
parâmetros traçados por especialistas – em sua maioria distantes do cotidiano escolar. A
consequência, diz Apple (apud MOREIRA, 1996), é que os professores passam a
depender mais de especialistas, que lhes dizem o que e como fazer, do que de seus
conhecimentos adquiridos ao longo dos anos.
Moreira (1996) traz alguns estudos que retratam bem esta submissão do
professor aos ditames curriculares oficiais: em um deles, os professores, julgados pelos
resultados que seus alunos obtêm em testes oficiais, acabam por se preocupar mais com
o adestramento dos seus alunos a partir das habilidades e competências exigidas nestes
testes do que com os aspectos sociais, políticos, culturais, etc., do processo educacional.
Em outras palavras, o currículo deixa de atender aos interesses das crianças e pode
transformar-se em uma atividade corrompida (CUBAN 1995 apud MOREIRA, 1994).
2.3 Perspectivas acadêmicas sobre as politicas curriculares nacionais
Nesta seção apresentamos uma revisão da literatura sobre as políticas
curriculares nacionais a partir de um levantamento realizado em periódicos da área de
Educação e Ensino de Ciências, já mencionado no capítulo 1.
As DCN e os PCNEM7, considerados os principais documentos balizadores da
reforma curricular brasileira, acabam por expressar os princípios dessa reforma e
indicam intenções públicas para a escolarização. As ações propostas nesses documentos
visam fazer as escolas rediscutirem suas formas de organizar os saberes, seja pela busca
de maior inter-relação entre os mesmos, via interdisciplinaridade, seja por maior
sintonia desses saberes com a vida contemporânea, via contextualização e tecnologias
(LOPES, 2002a, 2002b). Os documentos curriculares oficiais são vistos como um
instrumento para a qualidade do ensino, já que se espera que venham orientar o trabalho
pedagógico do professor em exercício. Tais textos oferecem critérios e referências para
7
No trabalho a que estou fazendo referência (FERRAZ et al 2011) por tratarmos as políticas curriculares
para o nível médio, nos referimos aos Parâmetros Curriculares Nacionais utilizando a sigla PCNEM. Ao
analisarmos os trabalhos de outros autores, mesmo se tratando de políticas curriculares para o nível
médio, utilizamos a sigla escolhida pelos próprios (PCN ou PCNEM).
decisões de planejamento, intervenção direta no processo de ensino/aprendizagem e
avaliação. Nas escolas, diversos fatores têm influência sobre o uso ou não destes
documentos, tais como a interpretação que os professores fazem dos documentos, os
recursos materiais e humanos disponíveis nas escolas, os interesses pessoais e
profissionais dos docentes e o conjunto da política educacional vigente.
Assim, segundo Lopes (2004b), por mais que a elaboração das políticas
educacionais seja orientada, de forma geral, pelas agências internacionais de fomento,
em cada contexto particular há especificidades locais, finalidades sociais que
direcionam a demanda dessas políticas. Para a autora, toda política curricular seria,
deste modo, uma política cultural, pois é fruto de uma seleção da cultura, de embate
entre sujeitos, concepções de conhecimento, formas de entender e construir o mundo.
O que a pesquisa tem apontado é o baixo impacto das reformas curriculares na
melhoria da realidade escolar. De acordo com Santos (2002), seria cabível pensarmos
que, definindo um currículo nacional, selecionando os livros didáticos a serem adotados
pelas escolas, capacitando os professores para desenvolver as competências
consideradas fundamentais para o exercício de sua função, haveria uma notável
melhoria no sistema educacional brasileiro, porém este processo não é tão simples como
parece.
Na área de pesquisa em ensino de Ciências, Rezende e Ostermann (2005)
apontam que, de uma maneira geral, há uma aceitação acrítica dos PCN por parte de
professores e pesquisadores. As autoras observaram, a partir de um levantamento de
trabalhos publicados na pesquisa nesta área, a grande preocupação em atender à
proposta dos PCN e, assim, respaldar o que está sendo pesquisado. As autoras também
afirmam que, em alguns casos, as orientações contidas nos documentos desempenham o
papel de referencial teórico dos estudos.
Em um levantamento mais amplo, Rezende et al. (2009) afirmam que a ênfase
das pesquisas da área de Ensino de Ciências é colocada nos aspectos cognitivos do
processo de ensino-aprendizagem, deixando-se de fora outros aspectos envolvidos nele,
como por exemplo, a discussão sobre o currículo.
Diante do silêncio encontrado nos estudos mencionados e da necessidade de se
fomentar a discussão sobre as políticas curriculares, o levantamento enfocou a
apropriação acadêmica das políticas curriculares do nível médio por pesquisadores das
áreas de Educação e de Educação em Ciências.
A
análise
da
apropriação
das
políticas curriculares pelos pesquisadores em Educação e em Ensino de Ciências
consistiu nas seguintes etapas: a) levantamento do universo de trabalhos que tinham os
PCNEM e as DCNEM como principal foco de estudo ou que apenas citavam as
políticas; b) classificação e caracterização dos trabalhos segundo temáticas a partir da
análise do conteúdo8; c) síntese dos trabalhos e d) análise das intenções dos autores,
mostrando indícios da apropriação das políticas curriculares.
O universo de trabalhos foi composto pelo total de trabalhos publicados no
período de 2000 a 2010 nos volumes dos principais periódicos nacionais nas áreas de
Educação e de Ensino de Ciências como apresenta a coluna total de artigos acessados,
nas Tabelas 1 e 2. Decidiu-se por incluir no levantamento não apenas os periódicos da
área de Ensino de Ciências, mas também da área de Educação por considerarmos a
apropriação acadêmica das políticas curriculares comum a essas duas áreas. O período
analisado foi escolhido devido ao fato dos principais documentos curriculares oficiais
terem sido divulgados no final da década de 1990. Dessa forma, foi analisado como a
pesquisa tem refletido sobre estes documentos desde a sua divulgação até a presente
data.
Para identificar os trabalhos sobre políticas curriculares, cada um dos trabalhos
publicados foi acessado individualmente e buscou-se em seu corpo de texto referência
às palavras: PCN, PCNEM, Parâmetros Curriculares Nacionais, política curricular,
DCN, DCNEM, diretrizes curriculares. Caso fosse encontrada alguma das palavras, o
conteúdo do trabalho era então analisado para identificar se o trabalho tratava de um
estudo cujo foco principal era a discussão das políticas (Tabelas 1 e 2, coluna artigos
com foco nas políticas curriculares) ou se apenas citava as políticas curriculares de
maneira superficial (Tabela 3).
Além dos trabalhos publicados em língua estrangeira, foram excluídos os artigos
que tratavam do Ensino Fundamental e aqueles relacionados às política educacionais de
maneira muito geral, e não especificamente às políticas curriculares.
Tabela 1: Trabalhos com foco nas políticas curriculares na área de Ensino de Ciências
Periódicos da Área de Ensino de
Ciências
Caderno Bras. de Ens. Física
A Física na Escola
Investigações em Ens. Ciências
Revista Bras. de Ens. de Física
Revista Bras. De Pesq. Educ. Ciências
Ensaio Pesq. em Educ. em Ciências
Ciência & Educação
Volume
17 - 27
1 - 11
5 - 15
22 - 32
1 – 10
2 - 12
7 - 16
Total
Total de artigos
Artigos com foco nas
acessados
políticas curriculares
268
180
159
607
110
149
274
1.588
02
01
03
02
01
00
03
12
Tabela 2: Trabalhos com foco nas políticas curriculares na área de Educação
8
A análise do conteúdo aqui não refere-se à metodologia para descrever e interpretar o conteúdo de
documentos e textos (Bardin, 1995). Na presente situação, fizemos apenas uma leitura geral e algumas
marcações textuais que auxiliaram na classificação dos trabalhos em temáticas
Periódico da Área de Educação
Revista Brasileira de Educação
Educação e Sociedade
Cadernos de Pesquisa
Volume
Total de artigos
Artigos com foco nas
acessados
políticas curriculares
286
609
331
1.266
04
04
01
09
13 - 42
21 - 31
34 - 40
Total
Tabela 3: Trabalhos que apenas citam as políticas curriculares
Periódicos
Total de artigos que citam as políticas
curriculares
Cadernos de pesquisa
Educação e sociedade
Revista Brasileira de Educação
Ciência & Educação
Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências
Revista Bras. de Pesq. em Educ. em Ciências
Revista Brasileira de Ensino de Física
Investigações em Ensino de Ciências
A Física na Escola
Caderno Brasileiro de Ensino de Física
53
70
21
64
17
6
14
26
9
19
A classificação de cada trabalho foi feita a partir da análise de cada trabalho e
visou, fundamentalmente, levantar seu objeto de estudo e identificar sua principal
temática.
As sínteses dos trabalhos foram elaboradas a partir da identificação dos objetivos
dos estudos, dos referencias teóricos utilizados e dos resultados dos artigos analisados.
Sendo a apropriação o povoamento da palavra do outro com suas próprias
intenções (BAKHTIN, 2006b), buscou-se, nesta etapa do levantamento, identificar o
posicionamento e intenções dos autores em relação às políticas curriculares.
A análise de conteúdo dos trabalhos permitiu identificar e distribuir os trabalhos
em temáticas (Tabela 4). Ressaltamos que estas categorias não foram elaboradas a
priori e sim ao longo das análises realizadas.
A distribuição dos 21 trabalhos que tinham como foco as políticas curriculares
em temáticas mostrou que, embora apenas 0,74% dos artigos publicados nas áreas de
Ensino de Ciências e de Educação se debrucem sobre o tema, são variadas as reações da
comunidade acadêmica em relação a esse tema. As subseções seguintes apresentam as
principais ideias dos autores agrupados em cada temática.
Tabela 4: Classificação dos trabalhos com foco nas políticas curriculares em temáticas
Temática
Nº de
trabalhos
Na área de
Educação
Análise dos discursos das políticas curriculares
Políticas curriculares e a formação docente
Políticas curriculares na prática docente
Políticas curriculares e as finalidades da educação
7
2
6
3
3
0
0
3
Na área de
Ensino de
Ciências
4
2
6
0
Abordagens metodológicas para a pesquisa em
políticas curriculares
Relações entre Estado e as políticas curriculares
Total
1
1
0
2
21
2
9
0
12
2.3.1.Análise dos discursos das políticas curriculares
A partir da abordagem do ciclo de políticas de Stephen Ball e do entendimento
de comunidade disciplinar escolar de Ivor Goodson, Busnardo e Lopes (2010) buscam
relacionar os principais discursos que circulam no âmbito das discussões da comunidade
de Ensino de Biologia com a produção das políticas curriculares. O estudo baseou-se na
análise dos trabalhos relacionados à temática “currículo” apresentados nos principais
eventos da área de Ensino de Biologia e em sua maioria autorados por professores da
Educação Básica. Os resultados apontam para produções de múltiplos contextos, fruto
da circularidade de discursos, pois muitos dos discursos apresentados nos documentos
oficiais incluem sentidos do contexto da prática assim como discursos dos documentos
são incorporados à prática dos professores.
Lopes (2005) tem como objetivo defender a ideia de que a disciplina escolar é
um híbrido de discursos curriculares. Para sustentar tal ideia, é analisado como os textos
na área de ensino de Química influenciam as políticas de currículo, hibridizando
discursos oficiais e outros discursos curriculares. São articuladas as discussões teóricas
de Ball sobre políticas de currículo, de Goodson sobre disciplinas escolares, de
Bernstein sobre recontextualização, e de Canclini sobre hibridismo. Ao final da análise,
a autora considera evidente o quanto as políticas não são produção exclusiva da esfera
oficial, mas contam com uma participação efetiva dos grupos disciplinares em ensino
das disciplinas específicas. Tais grupos interferem nas políticas e também regulam seus
efeitos na prática. Nesse sentido, compreender os sentidos que são produzidos por esses
grupos nas políticas curriculares e os processos de legitimação associados a essas
políticas permite entender alguns dos mecanismos que efetivamente condicionam a
constituição do conhecimento escolar.
A partir da recontextualização pela comunidade disciplinar de ensino de Física,
da concepção de competências propostas oficialmente a partir de 1990, Silva e Lopes
(2007) têm como um dos seus objetivos trazer à discussão ideias e princípios adotados
em política de currículo. Com base nas discussões teóricas de Ball sobre políticas de
currículo,
de
Goodson
sobre
disciplinas
escolares,
de
Bernstein
sobre
recontextualização, e de Canclini sobre hibridismo, defendem que o currículo por
competências, apesar de ser um currículo interdisciplinar, é recontextualizado por sua
incorporação a um discurso marcado pela valorização dos conteúdos e da estrutura
disciplinar, tradicionalmente valorizado na Educação. A partir da análise de textos
selecionados, que compreendiam trabalhos publicados nos principais eventos e revistas
da aérea de Ensino de Física, além de trabalhos de pessoas que se destacavam na área,
os autores concluem que na medida em que, na maioria dos trabalhos analisados, se
busca o apoio nos PCNEM e nas DCNEM para legitimar as propostas curriculares
desejadas, a vinculação com a segunda possibilidade acaba por ser igualmente
legitimada, conferindo às competências e habilidades uma centralidade que pode
contribuir para a desvalorização de conteúdos e para o empobrecimento da discussão
cultural no currículo, reforçando o caráter instrumental de forma mais ampla.
Martins (2000) pretende oferecer contribuições para o debate sobre as mudanças
propostas pelas Diretrizes Curriculares Nacionais elaboradas para a reforma do ensino
médio no Brasil e divide seu estudo em duas partes: na primeira, avalia o cenário
político e econômico como cenário gerador da reforma educacional ocorrida em 90 e, na
segunda, discute a Resolução do Conselho Nacional de Educação, de 16/06/1998, que
instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, bem como as Bases
Legais – Parte I – dos PCN tomando como referência metodológica para análise desse
discurso oficial a proposição de Bardin (1995) para os modelos de análise estrutural,
procurando revelar os valores implícitos e as condições dos textos legais. A partir dessa
análise, o autor finaliza afirmando que é possível que as escolas de nível médio
construam seus próprios caminhos para percorrer a complicada relação com novos
referenciais teóricos contextualizando os temas culturais e políticos a partir da dinâmica
da
sociedade
brasileira,
que
tem
sido
profundamente
influenciada
pelo
redimensionamento da acumulação do capital.
Corazza (2001) e Lopes (2004) têm como foco de estudo a teorização crítica do
currículo mostrando a sua contextualização histórico-social e a mescla de diferentes
tendências a discursos distintos e muitas vezes contraditórios sobre o tema. Estes
autores penetram na complexidade desses processos mostrando a necessidade da
apropriação crítica do conceito de hibridismo no sentido de que sejam indagados e
postos em foco os processos políticos e socioculturais em que as propostas curriculares
se inserem. Tais discussões permitem o questionamento das relações de poder que
envolvem nossa sociedade e as políticas curriculares educacionais indicando a
existência de tais relações de poder nas políticas curriculares.
Abreu et al. (2005) analisam os conceitos de contextualização e tecnologias
presentes nos PCN confrontando-os com as concepções que aparecem em livros
didáticos de Biologia e Química, objetivando compreender como esses discursos são
apropriados e hibridizados. Os autores defendem a ideia de que entender quais os
discursos híbridos presentes nos livros e envolvidos permite identificar as relações de
poder que as políticas instituem. A partir deste entendimento, mostram que as
orientações sobre contextualização e tecnologias expressas nos livros didáticos de
Biologia e Química são hibridizadas a partir de recortes e influências dos campos de
pesquisa em ensino da Ciência de referência, dos textos e discursos oficiais e dos
discursos sociais circulantes que valorizam princípios gerais no panorama mundial.
2.3.2 Políticas curriculares e a formação docente
O artigo de Carvalho, A. (2001) tem por objetivo analisar o impacto das novas
legislações educacionais brasileiras na formação do professor. A autora discute
elementos fundamentais que estão sofrendo mudanças na atualidade. Alguns dos
elementos apontados pela autora referem-se à dificuldade de entendimento, por parte
dos docentes, de conceitos como multidisciplinaridade e integração com a realidade do
aluno, presentes nos PCN, e como esta dificuldade interfere no planejamento das
disciplinas científicas. Afirmando que está completamente de acordo com os critérios
estabelecidos pela Base Comum Nacional para a formação de todos os professores nos
diversos cursos de Licenciatura, e que também está de acordo com a elevação do
número de horas de prática de ensino para esses cursos, a autora conclui que somente o
professor que tem uma sólida formação nos saberes conceituais e metodológicos de seu
conteúdo específico é capaz de planejar atividades de ensino que integrem os três
aspectos: o conceitual, o procedimental e o atitudinal propostos pelos PCN.
A pesquisa de Ricardo e Zylbersztajn (2007) tem como objetivo principal
investigar como estão sendo tratados os PCN na formação inicial dos futuros
professores de ensino médio das disciplinas da área das Ciências da Natureza,
Matemática e suas Tecnologias, bem como verificar a opinião dos seus formadores
acerca desses documentos e sua compreensão a respeito dos principais conceitos neles
contidos, a saber, competências, interdisciplinaridade e contextualização, além de
discutir alguns aspectos teóricos em relação a essas noções presentes na literatura
recente. Foram entrevistados os professores das disciplinas de Metodologia de Ensino
e/ou Prática de Ensino dos cursos de licenciatura em biologia, física, matemática e
química de três universidades públicas. A partir da análise destas entrevistas, os autores
identificaram que há uma boa aceitação dos PCN pelos formadores e que estes os
entendem como síntese dos temas pesquisados na área de Ensino das Ciências, inclusive
na identificação de problemas que a comunidade acadêmica vem apontando no ensino
praticado e que, por outro lado, apenas um pequeno número de professores se coloca
contrário aos PCN, seja pela forma que chegaram nas escolas, seja pelo teor dos
documentos.
2.3.3 Políticas curriculares na prática docente
O estudo de Veit e Teodoro (2002) tem por objetivo discutir a importância da
utilização das novas tecnologias de informação e comunicação no ensino em conexão
com os PCNEM no processo de aprendizagem, defendendo o uso de uma ferramenta
computacional
que
favorece
a
aprendizagem
construtivista.
Afirmando
ser
indispensável o uso adequado das tecnologias de informação, os autores apostam numa
grande contribuição dos PCNEM no desenvolvimento dos planejamentos e dialoga, a
todo tempo, com trechos do documento na elaboração dos planejamentos de aulas que
venham a facilitar a construção do conhecimento através das tecnologias.
Tendo como principal objetivo mostrar e discutir algumas diferenças relevantes
entre a versão preliminar e a versão oficial das novas Orientações Curriculares para o
Ensino Médio, Ricardo et al (2008) investigam, mais especificamente, as modificações
acerca da concepção de competências e do ensino de Física Moderna na prática docente.
Os autores entendem que tais esclarecimentos podem facilitar a compreensão e
implementação das orientações sugeridas no documento e alimentar a permanente
reflexão das práticas educacionais e defendem que um ensino por competências, tal
como proposto nas novas Orientações Curriculares Nacionais, não implica uma revisão
apenas nos conteúdos, mas nas práticas dos professores, pois o que se espera deles é que
consigam encontrar uma conjunção entre atividades experimentais, aplicações e
discussões conceituais, considerando-se seus aspectos históricos e sociais.
Pena e Ribeiro Filho (2003) têm por objetivo discutir a influência dos PCN para
o uso didático da História da Ciência com base em relatos de experiências pedagógicas
publicados em periódicos nacionais especializados em ensino de Física (2000 – 2006).
O estudo aponta que apesar das orientações dos PCN, a referida abordagem
histórica ainda não foi traduzida, de maneira significativa, em experiências didáticas.
Muitas dificuldades são apontadas para explicar tal fato, como por exemplo, os
obstáculos encontrados para estabelecer relações entre Ciência e educação dentro de
uma perspectiva histórica associada a aspectos sociais, econômicos e políticos; a
formação precária do corpo docente neste contexto e a falta de materiais didáticos
adequados que possam ser utilizados nesta abordagem de ensino.
Ricardo e Zylbersztajn (2002) tiveram como objetivos principais de seu estudo
identificar as percepções dos professores do Ensino Médio, da área Ciências da
Natureza, Matemática e suas Tecnologias, bem como da diretoria e da supervisora
educacional de determinada escola, sobre os PCN e a atual situação de sua implantação
no ambiente escolar. O estudo apontou que são vários os obstáculos encontrados para
levar à prática as propostas das políticas curriculares sendo um dos principais a
dificuldade de compreensão do professores, diretores e supervisores dos conceitos
presentes no documento, como competências e habilidades. Também foram citadas
outras dificuldades relacionadas às disciplinas em análise, como a falta e rotatividade de
professores, além de dificuldades da escola no âmbito geral, como a desvalorização do
profissional e escassez de livros. Dentre as opiniões dos professores, os autores
identificaram uma preocupação dos professores com o como fazer, com a
operacionalidade dos PCN.
Ricardo (2003) tem por objetivo discutir alguns conceitos presentes nas DCN e
nos PCN para o Ensino Médio, tais como contextualização, competências e
interdisciplinaridade, cuja incompreensão tem se mostrado um dos entraves à
implementação das propostas desses documentos em sala de aula. O autor observa que
há uma distância a ser vencida entre a proposta e a prática, cujo sucesso depende da
superação de algumas dificuldades detectadas em pesquisas anteriores, dentre as quais
se destacam: falta de espaço para discussão das propostas do MEC em seu todo e para a
elaboração coletiva do projeto político-pedagógico da escola; ausência de programas de
formação continuada; desencontro de informações entre as instâncias federais, estaduais
e a escola; pouco material didático disponível verdadeiramente compatível com os PCN
e afirma que para que se atinja a dimensão da reforma educacional pretendida há a
necessidade de rever não só os conteúdos a ensinar, mas, principalmente, as concepções
e práticas educacionais correntes.
Partindo de pesquisas anteriores em que identificam a grande dificuldade de
compreensão dos principais conceitos presentes nas DCNEM, PCN e PCN+, a saber,
competências, habilidades, interdisciplinaridade e contextualização, por parte dos
professores de Ciências do Ensino Médio, Ricardo e Zylbersztajn (2008) pretendem
com este estudo oferecer alguns esclarecimentos acerca destes conceitos fundamentais
sob o ponto de vista dos seus elaboradores, utilizando entrevistas semi-estruturadas.
Como resultado o autor aponta que mesmo entre os elaboradores há ambiguidade
terminológica com os conceitos de habilidade e competência. Para os elaboradores a
ideia de interdisciplinaridade não é a de se opor às disciplinas, mas de vislumbrar
competências e habilidades que, para serem construídas, necessitam dos conhecimentos
de mais de uma disciplina.
2.3.4. Políticas curriculares e as finalidades da educação
Dias e Abreu (2006) discutem, a partir dos discursos sobre o mundo do trabalho
nos livros didáticos da área de Ciências da coleção “De olho no mundo do trabalho”
(editora Scipione), a estreita relação ente educação, economia e os objetivos do
currículo. Baseando-se na teoria de Ball, as autoras entendem a constituição das
políticas curriculares como um processo de negociação complexo que inclui influência,
produção e disseminação de textos circulantes que estão sujeitos à recriação contínua no
contexto da prática. Analisando como os discursos sobre o mundo do trabalho são
apropriados e recontextualizados, as autoras afirmam que os livros didáticos se
apropriam dos conceitos sociais e econômicos de valorização dos saberes necessários à
produção de riquezas (científico-tecnológico) e de outros interesses, sofrendo influência
de todos os contextos que participam do processo de formação das políticas
curriculares. Posicionam-se, por fim, contra esta política na medida em que desta forma
a educação e o conhecimento importam apenas quando seus fins podem gerar vantagens
econômicas.
Lopes (2002b) objetiva, neste trabalho, demonstrar que o processo de produção
de um discurso curricular híbrido nos PCNEM tem por principal finalidade a inserção
social do indivíduo no mundo produtivo. Sua crítica a esta finalidade reside no fato de
que ela limita a dimensão cultural da educação. Desenvolvendo suas ideias a partir dos
conceitos de recontextualização (Bernstein) e de hibridismo (Canclini) e apontado as
ambiguidades expressas no conceito de contextualização nos documentos oficiais como
exemplo do discurso híbrido, a autora afirma que essas ambiguidades são entendidas
como uma ressignificação dos discursos curriculares acadêmicos e defende que tais
ambiguidades são uma forma de se legitimar os parâmetros junto a diferentes grupos
sociais.
Macedo (2009) analisa os PCN, especialmente os de Ciências e os Temas
Transversais tendo como foco articulações universalistas que buscam minar as
demandas da diferença. Apoiam-se na teoria discursiva de Laclau e Mouffe, em que as
políticas curriculares são entendidas como articulações hegemônicas em torno do que
vem a ser entendido como “qualidade da educação”. Ao fazer a análise do documento, a
autora afirma que ao falar da finalidade de educar para a cidadania o documento está
falando em nome de uma totalidade impossível, de um universal que, como todo
universal, constitui-se com base em exclusões. Nesse sentido, entende que, ao preencher
o significante qualidade com a promessa de educar para a cidadania, os Temas
Transversais jogam as demandas da diferença para a margem numa articulação que
permite o controle desse espaço por discursos universalistas e excludentes.
2.3.5 Abordagens metodológicas para a pesquisa em políticas curriculares
O trabalho de Oliveira e Destro (2005) tem por principal objetivo discutir
concepções de política curricular para caracterizar uma abordagem metodológica de
pesquisa que evidencie processos contra-hegemônicos em políticas curriculares. Os
pressupostos dos autores residem na centralidade da cultura em termos epistemológicos,
a ampliação do campo político e a lógica espacial não-binária dos estudos pós-coloniais.
A política curricular é então entendida como uma política cultural ao ser definida como
um processo histórico no qual diferentes protagonistas produzem tensões em torno da
produção, circulação e consolidação de significados no currículo escolar. Dessa forma,
os autores sugerem o deslocamento da abordagem metodológica hegemônica, ou seja,
da perspectiva global/local para a perspectiva local/global, e "consideram um equívoco
focalizar produção ou implementação, Estado ou cotidiano em pesquisas de política
curricular.” (p.148) Enfim, pontuam algumas questões que podem pautar estudos com
essa perspectiva.
2.3.6 Relações entre o Estado e as políticas curriculares
Pacheco (2000) tem por objetivo identificar diferentes significados para o termo
descentralização, nas questões curriculares e na construção do referencial das políticas
curriculares, argumentando que o currículo é um processo intencional e prático em que
os principais atores são os professores e os alunos. Para tanto, exibe um panorama do
período da reforma educacional das décadas de 80 e 90 no Brasil, na qual, apesar de ter
presentes ideias inovadoras da descentralização, o Estado continua a ser centralista nos
aspectos mais substantivos do currículo pela formulação dos objetivos, da seleção e
organização dos conteúdos, da proposta de atividades e do controle da avaliação,
apagando assim o protagonismo dos seus principais atores.
Hypólito (2010) objetiva analisar as políticas curriculares desenvolvidas no
contexto da globalização e do neoliberalismo que têm orientado as ações do Estado no
campo educacional, como forma de regulação social. Assim, discute os efeitos das
políticas do Estado para o currículo e o modo de gestão que regula a educação e o
trabalho escolar. O autor conclui afirmando que os modos de gestão, constantemente
mostrados como a solução para a educação, chegam às escolas como formas estranhas
de administração e a cada dia mais se mostram ineficientes para enfrentar os problemas
escolares.
2.3.7 Uma síntese
Diante do que foi levantado e à luz da perspectiva Bakhtiniana, foi possível
apontar diferenças significativas entre as apropriações que os trabalhos fazem das
políticas curriculares: nas temáticas “Análise do discurso das políticas curriculares”,
“Políticas curriculares e as finalidades da educação”, “Abordagens metodológicas para a
pesquisa em políticas curriculares” e “ Relações entre o Estado e as políticas
curriculares”, notamos intenções mais críticas tanto em relação ao teor dos documentos
curriculares oficiais quanto às suas finalidades e relações de poder envolvidas, ao passo
que nas temáticas “Políticas curriculares e a formação docente” e “Políticas curriculares
na prática docente”, os autores têm como intenção, fundamentalmente, discutir
problemas da formação e da prática docente que dificultam a implementação das
políticas curriculares nas escolas e, aceitando o discurso oficial, pouco refletem sobre
essas políticas como algo que deve ser problematizado e discutido.
Nos trabalhos sobre análise do discurso e processo de hibridismo nas políticas,
pudemos perceber um acento valorativo positivo dado aos discursos extra-oficiais, nas
escolas e comunidades disciplinares, que se fundem aos discursos oficiais. Esse
processo confere aos textos curriculares oficiais novos sentidos e significados,
independentemente de haver maior ou menor esclarecimento sobre esses textos
(CORAZZA, 2001; LOPES, 2004b; BUSNARDO e LOPES, 2010; LOPES, 2005;
SILVA e LOPES, 2007; ABREU et al., 2005).
Quanto à relação das políticas curriculares com as finalidades da educação, a
intenção dos autores é demonstrar que o currículo não é um artefato neutro e que existe
nos documentos curriculares oficiais uma valorização de determinados conhecimentos
em detrimento de tantos outros, com o objetivo de atingir determinadas finalidades, tais
como inserir o indivíduo no mundo produtivo, gerando riquezas e vantagens
econômicas (DIAS e ABREU, 2006; LOPES, 2002b) e a homogeneização dos
indivíduos, ou seja, a tentativa de desvalorização das diferenças (MACEDO, 2009).
Nos trabalhos que tratam da implementação das políticas curriculares, seja na
formação ou na prática docente, as pesquisas acentuam a questão da distância entre o
que está proposto nos documentos curriculares oficiais e o que ocorre de fato na prática
escolar, tentando oferecer recursos para minimizar as dificuldades de implementação
das políticas curriculares vigentes (RICARDO, 2003; RICARDO e ZYLBERSZTAJN,
2008; RICARDO e ZYLBERSZTAJN, 2002). Neste sentido, alguns trabalhos
publicados nesta área têm também como intenção reivindicar uma melhoria na
formação inicial para que esta implementação torne-se possível (RICARDO e
ZYLBERSZTAJN, 2007; CARVALHO, A., 2001; VEIT e TEODORO; 2002; PENA e
RIBEIRO FILHO, 2003).
Pudemos verificar que as políticas curriculares e o currículo em si não têm sido
contemplados pelas pesquisas: apenas 0,74% dos artigos publicados tanto nas áreas de
ensino de Ciências e de Educação se debruçam sobre o tema. Esse dado fortalece a ideia
de Silva (1995) que afirma que o currículo tem sido “tomado como algo dado e
indiscutível, raramente sendo alvo de problematização, mesmo em círculos
educacionais profissionais” (p.184).
Assim como nenhum trabalho da área de Educação ocupou-se de discutir, na
última década, a implementação das políticas curriculares na prática e formação
docente, nenhum trabalho da área de Educação em Ciências ocupou-se das finalidades
educacionais dessas políticas, indicando que existem diferenças substanciais na
apropriação dos documentos oficiais pelos pesquisadores das duas áreas. A origem
dessa diferença parece estar na apropriação do próprio conceito de currículo enquanto
artefato político e cultural pela área de Educação e na base teórica em autores que
problematizam as relações de poder implicadas nos processos de produção e reprodução
das políticas curriculares.
Tendo trazido, com este levantamento, um panorama da produção acadêmica
recente sobre as políticas curriculares de um modo geral, dou continuidade ao debate a
partir de um estudo específico sobre os aspectos mais centrais dos PCNEM da área de
Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias e dos PCNEM de Física
2.4 Parâmetros curriculares nacionais para a área de Ciências da Natureza,
Matemática e suas Tecnologias
Pressupondo que as habilidades e competências a serem formadas exigem
conteúdos de diferentes disciplinas, a organização dos PCNEM é realizada por módulos,
de modo que cada módulo englobe atividades e conteúdos que sejam capazes de
desenvolver determinado tipo de habilidade. Assim, os PCNEM tem nas Tecnologias o
princípio integrador das áreas (Linguagens Códigos e suas Tecnologias; Ciências da
Natureza, Matemática e suas Tecnologias; Ciências Humanas e suas Tecnologias) e
como eixos estruturantes as competências e habilidades, a contextualização e a
interdisciplinaridade.
As competências necessárias para se atingir os objetivos propostos foram
definidas pela Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI e
correspondem a ‘aprender a conhecer`, `aprender a fazer`, `aprender a viver` e ‘aprender
a ser’ (LOPES 2001).
A partir da articulação das três grandes áreas já mencionadas, a estrutura
curricular do documento tem por finalidade a ‘inter’ e a ‘transdisciplinaridade’ que visa
superar “a organização por disciplinas estanques e revigorar a integração e a articulação
dos
conhecimentos,
num
processo
permanente
de
interdisciplinaridade
e
transdisciplinaridade” (BRASIL, 1997, p.2). Segundo o documento, essa estruturação
do currículo também visa “assegurar uma educação de base científica e tecnológica,
onde conceito aplicação e solução de problema concretos são combinados” (p.2)
Na área de Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias, à qual a Física
se integra, defende-se uma transdisciplinaridade e um conhecimento em rede sem que
isto implique a extinção das respectivas disciplinas (MACHADO 1996 apud LOPES,
2004a). A aprendizagem das ciências e das tecnologias é vista de maneira a se fazer
compreender que, enquanto produção humana, o mundo físico e natural difere dos
objetos da Matemática, da Física, etc., embora este o tenha como referência (LOPES,
2004a). A autora considera que o discurso de valorização de uma base científica
comum, cuja finalidade é formar alunos nos “conteúdos específicos potencializadores
de progressivo domínio da integração ciência e tecnologia” (BRASIL, 1997, p. 4) é
percebido como fundamental neste novo empreendimento educacional.
Nas próximas subseções destacarei mais detalhadamente algumas discussões 9
acerca dos conceitos estruturantes dos PCNEM. Com a ajuda destas discussões, me
debruçarei, ao final, sobre os PCNEM de Física, tentando trazer à cena algumas
concepções presentes no próprio documento e em outros textos que possam auxiliar no
entendimento das perspectivas dos professores.
2.4.1 Habilidades, competências e interdisciplinaridade
A noção de competência invadiu o espaço educacional e os discursos sociais e
científicos de forma avassaladora a partir dos anos 1970. Documentos oficiais fazem, a
todo tempo, referência a ela e a estabelecem como direcionadora das práticas dos
diversos e diferentes agentes; livros didáticos a enaltecem ou criticam a incorporação do
ensino baseado em competências; diversos eventos são realizados tendo nas
competências o seu carro chefe. As competências povoam as discussões pedagógicas e
Estas discussões são alimentadas tanto por meio dos discursos advindos da área da
pesquisa em educação quanto daqueles oriundos da pesquisa em educação em Ciências.
Ainda que tenham sido considerados potencialmente como perspectivas com as quais os
professores poderão dialogar para compor suas perspectiva, é importante esclarecer que os
autores revisados vêm de campos de estudo diferentes e, por isso, abordam perspectivas
distintas, o que acaba por caracterizar a seção como um diversificado conjunto de
concepções.
9
levam os professores a buscarem elementos que os auxiliem no seu entendimento e
formas de incorporá-las aos projetos educativos.
Para Ghiraldelli (2000), a ênfase no ensino por competências, as quais
pressupõem “aprender a aprender” e o “aprender a fazer”, sofreu grande influência e foi
retomada a partir dos princípios pedagógicos já presentes na tendência educacional
denominada Escola Nova ou Renovada que se propôs a colocar em prática a teoria
educacional de Dewey, datada do final do século XIX. O propósito da Escola Nova
consistia na inversão da ação pedagógica da chamada Escola Tradicional, dando mais
ênfase à ação do que à teoria. Para tanto, a criança deveria estar preparada, através do
aprendizado da metodologia de resolução de problemas, a lidar com a mudança, a
contingência, a incerteza de um futuro imprevisível (GHIRALDELLI JR., 2000).
As concepções teóricas de Bobbit, Charters e Tyler indicavam que a escola
ensinaria de maneira mais eficiente caso optasse pela reprodução dos procedimentos de
administração científica das fábricas (na época taylorista-fordista) e se empreendesse
um minucioso planejamento dos objetivos a serem alcançados (LOPES, 2001). Segundo
a autora, essa concepção está diretamente ligada à:
“[...] ideia ainda muito presente no senso comum educacional de uma
forma mais ampla, de que a qualidade do desenvolvimento curricular,
e da educação de uma forma geral, depende da definição precisa dos
objetivos [principalmente comportamentais] a serem implementados e,
por conseguinte, do perfil de profissional, de cidadão ou de sujeito
social que pretende formar, derivado do pensamento de que o
currículo existe para atender às finalidades sociais do modelo
produtivo dominante” (p.3).
O caráter comportamental dos objetivos é defendido na medida em que o
comportamento do aluno “como expressão objetiva, sem ambiguidades e inequívoca do
processo educacional” (LOPES, 2001, p.3) possibilitaria a avaliação, igualmente
inequívoca, da eficiência de todo o processo. Para a autora, o objetivo do ensino por
competências – como conhecido atualmente – agrega ao comportamentalismo
dimensões humanistas mais amplas de maneira a possibilitar a formação de
comportamentos (competências) que representem metas sociais impostas aos jovens
pela sociedade.
A tendência tecnicista – com sua ênfase nos objetivos claramente determinados e
na capacidade de realização dos indivíduos (o aprender a fazer) – também influenciou
imensamente a abordagem por competência.
Bloom (apud Valente 2002) – pedagogo e psicólogo norte-americano cuja teoria
se insere no paradigma comportamentalista – em seu trabalho intitulado a
“Aprendizagem para o Domínio”, afirma que 90 a 95% dos alunos têm possibilidade de
aprender o que lhes é ensinado, desde que lhes sejam fornecidas as condições adequadas
de aprendizado. Para Valente (2002), que considera Bloom o autor que mais influência
exerceu nas teorias da aprendizagem na segunda metade do século XX – esta concepção
pode ser encarada como a gênese do ensino por competências.
Ropé e Tanguy (1997) alertam para o fato de que os diferentes usos da noção de
competências nos diferentes espaços – escola, empresa, administração, etc. – causam
dúvidas quanto ao seu real significado. Na área educacional, por exemplo, ela tende a
substituir as noções de saberes e conhecimentos e, na esfera do trabalho, a noção de
qualificação. Para os autores:
“Os usos que são feitos da noção de competências e habilidades não
nos permite uma definição conclusiva. Ela se apresenta, de fato, como
uma dessas noções cruzadas, cuja opacidade semântica favorece seu
uso inflacionado em lugares diferentes por agentes com interesses
diversos” (ROPÉ e TANGUY, 1997, p.16).
Da mesma forma, Perrenoud (1999), um dos mais influentes estudiosos acerca
do assunto, se manifesta: “não existe uma definição clara e partilhada de competências.
A palavra tem muitos significados e ninguém pode pretender dar a definição” (p.19).
Embora assuma os múltiplos significados de competência, Perrenoud (1999) se
posiciona em relação ao termo “como sendo uma capacidade de agir eficazmente em
um determinado tipo de situação, apoiada em conhecimentos, mas sem limitar-se a eles”
(p.7).
Valente (2002) aponta que nas bibliografias podem ser encontrados dois eixos
interpretativos/conceituais:
a) um que explicita o significado de competência como ação que envolve uma
série de atributos: conhecimentos, habilidades, aptidão. Neste caso as competências
englobam as habilidades.
b) outro que diferencia competências e habilidades, seja conceituando
separadamente, ou apenas mencionando-as de forma distinta, porém sem adentrar nas
diferenças – esta última contemplada nas DCN e nos PCNEM.
Segundo Deffune e Depresbiterries (apud VALENTE, 2002), que também se
dedicaram a buscar os diversos conceitos de competências, as definições variam de
acordo com os aportes teóricos em que são baseadas, com a análise das atividades
desenvolvidas no mundo do trabalho e com as diferentes formas como as competências
serão traduzidas para o currículo.
Lopes (2001) aponta que o conceito de competência vem configurando as
reformas curriculares não só do Brasil, mas de muitos países do mundo ocidental. Tal
direcionamento comum encontra-se expresso, por exemplo, no Relatório da UNESCO
da Comissão Internacional sobre a Educação para o século XXI, que defende as
competências enquanto conceito pedagógico central para a prática educativa no ensino
de jovens e adultos, níveis médio e profissionalizante, propondo sua ampliação a todas
as crianças. No Brasil, o ensino baseado em competências foi institucionalizado no
sistema educacional com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 20 de
dezembro de 1996 (LDB/96), que incumbiu à União:
“Art 9º. IV - estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito
Federal e os Municípios, competências e diretrizes para a educação
infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão os
currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação
básica comum” (BRASIL, 1996)
Ricardo e Zylberstajn (2008) procuraram compreender como se deu a introdução
das noções de competências e habilidades nas propostas dos PCNEM das Ciências da
Natureza, além das noções de interdisciplinaridade e contextualização. Os autores
destacam que, embora a construção dos PCNEM contemplasse a trajetória de seus
autores, muitos aspectos, como o uso das competências e habilidades, sofreram forte
influência da LDB/96. A esse respeito, um dos elaboradores declara que:
“(...) a gente não definiu que a proposta deveria ser Parâmetros
Curriculares Nacionais baseados em competências e habilidades. Isso
já foi uma proposta do próprio MEC, quer dizer, nem nós tínhamos
clareza, nem fomos nós que optamos que a proposta deveria ser
através de competências e habilidades.” (entrevistado citado por
Ricardo e Zylberstajn, 2008)
A afirmação acima esclarece que a opção pela abordagem das competências e
habilidades foi feita de “cima para baixo”, isto é, não ocorreu pela iniciativa dos autores
dos PCNEM e sim, como já foi exposto anteriormente, a partir da incumbência dada
pela LDB/96 à União – em colaboração dos Estados, Municípios e Distrito Federal - de
instituir competências e diretrizes básicas para todos os níveis de educação.
Embora os elaboradores assumam que o discurso por competências se mostrou
pertinente para expressar objetivos mais amplos na formação dos alunos, superando a
mera transmissão de conteúdos específicos, este discurso trouxe consigo problemas já
tratados neste capítulo: o termo competência não era apenas uma palavra nova, cujo
significado era consensual, pelo contrário, carregava concepções e significados distintos
que, por não terem sido explicitados nas DCNEM e nos PCNEM, levaram a inúmeras
críticas aos referidos documentos.
Quanto a este aspecto, perguntados sobre a existência, ou não, de aportes
teóricos em relação à noção de competências e habilidades os elaboradores são
taxativos:
“Eu posso lhe garantir que não havia um autor conhecido. Pouca gente
conhecia o Perrenoud, por exemplo, ou o Le Boterf10, ou esses nomes
que depois, nos últimos cinco anos se tornaram mais conhecidos.”
(entrevistado citado por RICARDO E ZYLBERSTAJN, 2008)
“(...) nós lemos muitas coisas que estavam discutindo sobre
competências, lemos o Perrenoud, mas eu não diria para você que nós
efetivamente seguimos a orientação de um autor, ou se os Parâmetros
pensam as competências segundo o Philippe Perrenoud.” (entrevistado
citado por RICARDO E ZYLBERSTAJN, 2008)
Quanto à distinção entre competências e habilidades, alguns elaboradores
entrevistados por Ricardo e Zylberstajn (2008) mencionam que a diferença estaria na
abrangência de cada uma, porém, os próprios elaboradores admitem que tal
diferenciação não é tão simples, nem tão claro e que no próprio documento não há uma
distinção. A confusão terminológica também é percebida no fato de que nos PCNEM,
ao final do documento, existe um quadro para cada disciplina intitulado “Competências
e Habilidades” ao passo que nos PCN+11 o termo habilidades desaparece por completo.
Por também terem participado do processo de construção das Matrizes
Curriculares de Referência do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB),
alguns elaboradores tentam diferenciar os termos de acordo com a definição que
aparecem nestas Matrizes, ou seja, colocando as competências relacionadas à esfera
cognitiva , de construção e mobilização dos conhecimentos, e habilidade como um saber
fazer, na esfera procedimental e instrumental. Porém, mesmo essa diferenciação não se
mostra eficiente, conforme ilustra o exemplo a seguir:
“Então, por exemplo, é uma habilidade você saber manusear o
microscópio, ou saber como é que você calcula, ou como você procura
uma informação, mas a competência estava relacionada com uma
coisa mais ampla. Ela tem uma relação de uma coisa mais cognitiva,
mas abrangente, e fortemente vinculada à resolução de problemas.
Então, frente a um problema, você poderia ter várias competências.
Você poderia, por exemplo, mobilizar conhecimentos, buscar
informações, associar-se a outras pessoas.” (entrevistado citado por
RICARDO E ZYLBERSTAJN, 2008)
De acordo com Ricardo e Zylbersztajn (2008), neste exemplo, o próprio
elaborador torna-se vítima da ambiguidade terminológica, pois no início da declaração,
procurar uma informação é habilidade, porém, ao final,
buscar informações é
competência.
Para alguns autores, como Silva (2000), a ausência de clareza e fluidez com que
os termos competências e habilidades são tratados nas DCNEM e nos PCNEM
10
Le Boterf (1994) compara a competência a um “saber-mobilizar” : implica saber como mobilizar,
integrar e transferir os conhecimentos, recursos e habilidades, num contexto profissional determinado.
11
Os PCN+ foram propostos como orientações complementares aos PCNEM e apresenta aos professores
exemplos de aplicação das propostas previstas nos Parâmetros.
praticamente inviabilizam sua utilização como conceitos norteadores das práticas
pedagógicas e da organização curricular.
Para Lopes (2001), o significado do conceito de competência assumido nos
documentos curriculares oficiais do Ministério da Educação (MEC) mescla dimensões
cognitivistas, “oriundas de teorias sobre competências em contextos não educacionais
das ciências sociais” (p. 3) com “enfoques comportamentalistas do conceito de
competências da teoria curricular” (p. 3).
Nas palavras do secretário de educação média do governo Fernando Henrique,
em que os PCN foram implementados, as competências são:
“(...) os esquemas mentais, ou seja, as ações e operações mentais de
caráter cognitivo, sócio-afetivo ou psicomotor, que mobilizadas e
associadas a saberes teóricos ou experienciais geram habilidades, ou
seja, um saber fazer. As competências são "modalidades estruturais da
inteligência, ou melhor, ações e operações que utilizamos para
estabelecer relações com e entre objetos, situações, fenômenos e
pessoas que desejamos conhecer", operações mentais estruturadas em
rede que mobilizadas permitem a incorporação de novos
conhecimentos e sua integração significada a essa rede, possibilitando
a reativação de esquemas mentais e saberes em novas situações, de
forma sempre diferenciada. As habilidades decorrem das
competências adquiridas e referem-se ao plano imediato do saber
fazer. Através das ações e operações, as habilidades aperfeiçoam-se e
articulam-se, possibilitando nova reorganização das competências”
(BERGER FILHO, 1999)
Dessa forma, segundo as palavras do secretário, as competências constituem-se
em esquemas mentais que podem ser traduzidos em uma habilidade, uma ação, um
comportamento a ser realizado; requerem a produção de habilidades, ou seja, um “saber
fazer” necessário, principalmente, ao exercício profissional.
Lopes (2001) relaciona este “saber fazer” ao mundo produtivo e ao
conhecimento especializado e considera que ele:
“tende a desconsiderar os indivíduos que têm competências adquiridas
nas redes sociais cotidianas. Ou seja, as habilidades e comportamentos
vinculados a relações sociais e práticas culturais cotidianas são
substituídas por competências técnicas derivadas dos saberes
especializados” (p.4)
Assim como já foi apontado no presente estudo, o currículo por competências
não é disciplinar, pois pressupõe que as habilidades e competências a serem formadas
exigem conteúdos de diferentes disciplinas. Porém, para Lopes (2001) “os PCNEM
permanecem garantindo a estabilidade que restringe o debate sobre os objetivos
educacionais aos limites disciplinares” (p. 5). Isso ocorre porque seu processo de
elaboração foi eminentemente disciplinar, ou seja, equipes disciplinares elaboram os
documentos de forma isolada. Além disso, como aponta o trecho a seguir dos PCNEM,
o conceito de interdisciplinaridade não visa a superação das disciplinas, mas:
“(...) utilizar os conhecimentos de várias disciplinas para resolver um
problema concreto ou compreender um determinado fenômeno sob
diferentes pontos de vista. Em suma, a interdisciplinaridade tem uma
função instrumental. Trata-se de recorrer a um saber diretamente útil e
utilizável para responder às questões e aos problemas sociais
contemporâneos.” (BRASIL, 1997, p.44)
Sendo assim:
“As competências, que não dependem de saberes disciplinares, se
articulam nos PCNEM com as disciplinas, que pressupõem uma
determinada seleção de conteúdos, e com a interdisciplinaridade, que
pressupõe a inter-relação de disciplinas. Dessa forma, os PCNEM
apresentam listagens de competências e habilidades para cada área e
para cada disciplina, parecendo conferir um caráter disciplinar às
competências específicas.” (LOPES, 2001, p.5)
Dessa forma, os conteúdos ficam circunscritos às competências: interessam os
conteúdos que, de alguma forma, permitem a formação das competências e habilidades
previstas. Segundo Lopes (2001), esta visão se coaduna com uma perspectiva não crítica
da educação, sobretudo no que diz respeito aos processos de inserção social e controle
dos conteúdos a serem ensinados. Mesmo tentando superar limitações do currículo por
objetivos e introduzir princípios mais humanistas, o currículo por competências
permanece no contexto do eficientismo social.
2.4.2 O conceito de contextualização
O conceito de contextualização foi incorporado aos PCNEM a partir de
múltiplos discursos curriculares, nacionais e internacionais, provenientes de contextos
acadêmicos, agências multilaterais e esferas oficiais (LOPES, 2002b). A autora destaca
uma maior apropriação12 dos discursos acadêmicos, levando em consideração que:
“Essa apropriação tanto pode ter sido realizada por influência direta
dos textos acadêmicos sobre os elaboradores dos parâmetros, quanto
por intermédio de uma mediação realizada em reformas educacionais
de outros países que influenciaram a reforma brasileira e/ou pelas
agências financiadoras multilaterais. No que concerne especificamente
aos documentos do BID [Banco Interamericano de Desenvolvimento],
o conceito aparece de forma incipiente, indicando aparentemente
poucas referências específicas para a formulação realizada pelo MEC”
(LOPES, 2002b, p.390).
A contextualização surge então como possibilidade de “assegurar uma educação
de base científica e tecnológica, onde conceito, aplicação e solução de problemas
concretos são combinados com uma revisão dos componentes socioculturais (...)”
(Brasil 1997, p. 5) o que, segundo Pereira (2000), significa formar indivíduos a partir
de:
“Experiências concretas e diversificadas, transpostas da vida cotidiana
para as situações de aprendizagem. Educar para a vida requer a
incorporação de vivências e a incorporação do aprendido em novas
vivências”
12
O conceito de apropriação empregado por Lopes (2002) aqui não filia-se à teoria de Bakhtin.
“Educar para a vida” tornou-se, então, uma afirmativa consagrada. Podemos
entendê-la a partir das heranças deixadas pelo progressivismo de Dewey (apud LOPES,
2002b). Porém, os trabalhos do estudioso vão na contramão das teses dos eficientistas
sociais que centravam-se no modelo fabril de educação e na perspectiva de inserção
social (PINAR et al apud LOPES, 2002b). Para a autora, o conceito de contextualização
“associa-se a princípios eficientistas: a vida assume uma dimensão especialmente
produtiva do ponto de vista econômico, em detrimento de sua dimensão cultural mais
ampla” (p.390).
Já em 1994, Apple (1994b), baseando-se no contexto norteamericano, chamava
atenção para o fato de que a associação entre educação e eficientismo social se constitui
numa espécie de exportação da crise econômica e de relações de autoridade para as
escolas que poderia resolver vários problemas da sociedade:
“Se as escolas, seus professores e seus currículos fossem mais
rigidamente controlados, mais estreitamente vinculados às
necessidades das empresas e das indústrias, mais tecnicamente
orientadores e mais fundamentados nos valores tradicionais e nas
normas e regulamentos dos locais de trabalho, então os problemas de
aproveitamento escolar, de desemprego, de competitividade
econômica internacional, de deterioração das áreas das grandes
cidades, etc., desapareceriam quase que por completo, assim querem
nos convencer” (p.40)
Nos PCNEM, apesar de serem apresentados três contextos (do trabalho, da
cidadania e da vida pessoal, cotidiana e convivência) é ao contexto do trabalho que é
conferida centralidade a ponto de os outros contextos dois ficarem subsumidos a ele
(LOPES, 2002b).
O uso das Tecnologias como princípio integrador de cada uma das áreas, já
abordado anteriormente, considerado como tema por excelência capaz de contextualizar
as disciplinas e conhecimentos no mundo produtivo indica, também, tal centralidade no
contexto do trabalho (LOPES, 2002b).
A autora conclui seu estudo acerca do conceito de contextualização afirmando
que:
“O ensino contextualizado vem sendo bem aceito na comunidade
educacional, como atestam trabalhos apresentados em recentes
congressos da área. Rapidamente, vem se fazendo uma substituição do
conceito de cotidiano e de valorização dos saberes populares pelo
conceito de contextualização, muitas vezes havendo a suposição de
que se trata do mesmo enfoque educacional. Desconsidera-se que a
contextualização é um dos processos de formação das competências
necessárias ao trabalho na sociedade globalizada e à inserção no
mundo tecnológico. Ainda que esse mundo seja muito diferenciado
em relação ao início do século XX, quando foram produzidas as
principais teorias da eficiência social, permanece a finalidade de
submeter a educação ao mundo produtivo” (LOPES, 2002b, p.395)
Dessa forma, assim como em relação aos conceitos de competência e
habilidades, para a autora, prevalece a circunscrição do processo educativo à formação
para o mercado de trabalho e para inserção do indivíduo na sociedade vigente,
desconsiderando as relações existentes com o processo de formação cultural mais
ampla, “capaz de conceber o mundo como possível de ser transformado em direção a
relações menos excludentes” (LOPES, 2002b, p.396).
2.5 O ensino de Física segundo os PCNEM
A equipe que elaborou a versão final dos PCNEM da área de Ciências da
Natureza, Matemática e suas Tecnologias – que abrange as disciplinas de Física,
Química, Biologia e Matemática – foi constituída por professores atuantes na formação
de professores e/ou projetos de pesquisa e extensão das suas respectivas disciplinas
coordenados pelo professor Luís Carlos de Menezes13. Como alerta Lopes (2004a), “os
documentos são produções coletivas, que hibridizam os diferentes discursos em jogo”
(p.60). Assim, continua a autora, ainda que os indivíduos que integram estas equipes
tenham concepções próprias, vê-se registrado nestes documentos ‘convicções’ e
‘princípios teóricos’, hegemônicos ou não, dos grupos disciplinares a que pertencem.
Dessa forma, embora exista uma base comum – denominada “Bases Legais dos
PCNEM” – profundas diferenças epistemológicas e pedagógicas podem ser encontradas
nos diferentes documentos disciplinares, expressando “recontextualizações diversas das
concepções curriculares oficiais previstas para o ensino médio” (LOPES, 2004a, p. 59).
A análise dessas diferenças não caberia no escopo deste texto, sendo nossa intenção
apresentar uma análise preliminar de alguns aspectos epistemológicos e pedagógicos do
documento de Física.
O texto dos PCNEM de Física, acompanhando os outros textos da área de
Ciências da Natureza e suas tecnologias, aborda ao mesmo tempo, os conteúdos
curriculares do Ensino Médio e aspectos do ensino das disciplinas. Ao fazer isso,
também constrói representações de ciência, da relação ensino-aprendizagem, do papel
do cientista, da importância da ciência para a sociedade, etc.
Apresentado nos PCNEM com o objetivo de levar a uma visão da Física que se
volte à formação do cidadão contemporâneo, atuante e solidário, intervindo na realidade
que o cerca, o conhecimento de Física deverá ser de tal forma apreendido que, mesmo
findado o contato com o ambiente escolar, o aluno tenha alcançado a formação
adequada à compreensão e participação no mundo em que vivem (BRASIL, 1997b).
Assim, a questão a ser enfrentada pelos educadores de cada escola, de cada realidade
13
Professor titular do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP)
social, seria a de selecionar qual Física ensinar para promover uma melhor compreensão
de mundo e uma formação para a cidadania mais adequada. Para isso, o documento
prevê que “o ponto de partida, mas também o de chegada, seja considerar a realidade do
aluno, quer próxima quer distante, os objetos e fenômenos com que lida em seu
cotidiano, ou as questões que estimulam sua curiosidade” (p.23). Mais do que uma
simples reformulação de conteúdos ou tópicos, pretende-se promover com o ensino de
Física uma mudança de enfoque no aprendizado dos conhecimentos físicos,
contextualizados e integrados, visando a individualidade, mas também a coletividade e a
vida profissional do estudante do Ensino Médio (BRASIL, 1997b).
O documento dirige uma crítica ao ensino tradicional afirmando que o ensino de
Física tem sido realizado mediante a apresentação de conceitos, leis e fórmulas, distante
do mundo vivenciado pelos alunos e professores e, embora não apenas, mas também por
isso, vazio de significado. Segundo o documento, o conhecimento vem sendo
apresentado como um produto acabado, fruto da genialidade de mentes como Galileu,
Newton e Einstein, o que leva os alunos a concluírem que não resta mais nenhum
problema significativo a ser resolvido. No entanto, o documento aponta que tal quadro
não decorre única e exclusivamente do despreparo dos professores nem de limitações
imputadas pelas imperfeitas e escassas condições escolares, mas sim, exprime uma
deformação estrutural, gradualmente introjetada pelos atores do sistema escolar, que
passou a ser tomada como algo natural.
O conhecimento de Física “em si mesmo”, de acordo com os PCNEM, não é
suficiente como objetivo, mas deve ser percebido acima de tudo como um meio, um
instrumento para compreender o mundo, podendo ser prático, mas admitindo transpor o
interesse imediato. No Ensino Médio, os temas da Física devem se tornar mais
abrangentes, mas, ao mesmo tempo, devem ganhar uma certa especificidade disciplinar,
já que, para desenvolver habilidades e competências em Física é preciso ocupar-se com
os objetos da Física (BRASIL, 1997b). Espera-se que o ensino de Física na escola
média contribua para a formação de uma cultura científica eficaz, que permita ao sujeito
a interpretação dos fatos, fenômenos e processos naturais, situando e dimensionando a
interação do ser humano com a natureza como parte da própria natureza em
transformação (BRASIL, 1997b).
As competências e habilidades são mencionadas ao longo do texto, estruturando
toda a proposta para a disciplina. Embora o documento também proponha os conteúdos
a serem ensinados – ótica, mecânica, eletromagnetismo, etc. – são as competências e
habilidades a serem desenvolvidas que ganham maior destaque, sendo, inclusive,
listadas no final do documento. Para Lopes (2004a), nos PCNEM de Física, está
presente a ideia de que os conteúdos são meros instrumentos de formação de
competências, ganhando sentido “pela possibilidade de ser mobilizados para ação em
situações determinadas” (p.63). Para a autora, esse privilégio conferido às competências
pode ser associado ao processo de submissão ao mundo produtivo, como já abordado
anteriormente.
Embora não haja menção direta ao mundo do trabalho ou mundo produtivo, o
efetivo uso das tecnologias associado ao conceito de contextualização – muito
enfatizada no documento e entendida como processo de relacionar os conceitos físicos
com o mundo vivido pelos alunos e professores – associa-se a princípios eficientistas
(LOPES, 2002b), como já foi exposto em um outro momento.
Ao contrário dos PCNEM de outras áreas, o de Física não faz menção direta à
interdisciplinaridade. O que existe é apenas uma rápida referência da importância de
interligar a física à cultura humana mais ampla, apontando, inclusive, “a presença de
elementos da física em obras literárias, peças de teatro ou obras de arte” (BRASIL,
1997b). Lopes (2004a) aponta que, embora a rejeição à interdisciplinaridade tenha
ocorrido de maneira mais aguda no documento de Física, de uma maneira geral o
conceito não se efetivou nos PCNEM. A autora considera que pode ter ocorrido no
Brasil, processo semelhante ao ocorrido no Reino Unido, onde a força do currículo
disciplinar foi maior que a proposta de um currículo nacional interdisciplinar.
Uma análise dos conteúdos curriculares apresentados nos PCNEM de Física a
partir da teoria Bakhtiniana14 mostrou que o documento se apropria majoritariamente da
voz empirista 15 (PRAIA et al, 2002) que atribui à ciência, linguagem e métodos
próprios:
“A Física tem uma maneira própria de lidar com o mundo, que se
expressa não só através da forma como representa, descreve e escreve
o real, mas sobretudo na busca de regularidades, na conceituação e
quantificação das grandezas, na investigação dos fenômenos, no tipo
de síntese que promove. (p.22)
A colocação da Física como sujeito da frase dá margem a um sentido de
autonomia em relação aos atores sociais, cabendo ao homem entendê-la, interpretá-la e
14
Esta análise foi publicada nos anais do XII Encontro de Pesquisa em Ensino de Física (FERRAZ et al.,
2010b). Ainda que o referido trabalho não esteja diretamente relacionado com a análise que irei
empreender na presente dissertação, por enfatizar aspectos epistemológicos dos PCNEM, julguei
importante trazer alguns resultados no sentido de mostrar a construção da perspectiva epistemológica do
documento a partir do diálogo com outras perspectivas.
15
Doutrina ou atitude que admite, quanto à origem do conhecimento, que este provenha unicamente da
experiência, seja negando a existência de princípios puramente racionais, seja negando que tais
princípios, existentes embora, possam, independentemente da experiência, levar ao conhecimento da
verdade (FERREIRA, 1993)
utilizá-la, omitindo-se a construção humana, dando ideia de algo que se faz e se move
com autonomia. O destaque dado ao conjunto de regras precisas e à lógica interna da
ciência confere ao texto traços da corrente empirista. Porém, o documento apresenta
instabilidades nesse posicionamento epistemológico quando, por exemplo, por meio de
uma abordagem próxima ao racionalismo contemporâneo16 menciona a elaboração de
modelos de evolução cósmica. Entretanto, ao utilizar na mesma sentença, o termo
“investigar” (p.22) em detrimento de construção de modelo quando se refere ao
conhecimento dos “mistérios do mundo submicroscópico” (p.22), o texto pode levar à
interpretação de que este último seria construído a partir da observação da natureza, o
que estaria compatível com o gênero discursivo empirista.
A ambiguidade é reforçada pelo fato de que apesar de utilizar em seu discurso
inicial a importância da construção de modelos, o documento não faz nenhuma
referência às linhas epistemológicas, não possibilitando ao professor embasamento
teórico para atingir o que é proposto.
No primeiro momento que o documento traz o conteúdo da Física, este já vem
contextualizado:
“Não se trata, portanto, de elaborar novas listas de tópicos de
conteúdo, mas sobretudo de dar ao ensino de Física novas dimensões.
Isso significa promover um conhecimento contextualizado e integrado
à vida de cada jovem. Apresentar uma Física que explique a queda dos
corpos, o movimento da lua ou das estrelas no céu, o arco-íris e
também os raios laser, as imagens da televisão e as formas de
comunicação” (p.23)
Neste trecho, o documento é claro quanto à abordagem do ensino de Física que
privilegia a compreensão do mundo concreto entendido como mundo natural e
tecnológico. A contraposição entre fenômenos como a ‘queda dos corpos’, o
‘movimento da lua ou das estrelas’ e ‘arco-íris’ e fenômenos tecnológicos com os ‘raios
laser’, as ‘imagens de televisão’ e as ‘formas de comunicação’ marca a renovação
curricular pela inclusão do mundo tecnológico, já que os fenômenos naturais já faziam
parte do currículo de Física anteriormente. A ampliação do mundo real contemplando o
mundo tecnológico é confirmada pela maioria dos exemplos listados.
O documento exemplifica com os conteúdos de mecânica e termodinâmica a
abordagem pedagógica que propõe a exploração do vivencial. Entretanto, o vivencial
16
“Na perspectiva racionalista contemporânea põe-se, em causa, toda a observação neutra e espontânea.
Considera-se indispensável um enquadramento teórico que oriente a observação. Não defende, contudo, o
abandono da observação.que ela não é nem neutra, nem objectiva (...). Não considera que os factos
científicos sejam dados (no sentido empirista da palavra), como oferta gratuita do real. Admite, pelo
contrário, que eles são construídos, ou seja, que resultam de um longo percurso através da teoria. Só por
si um dado de observação não é entendido como um dado científico. Para que o seja, tem que ser uma
construção da razão, inserido numa rede de razões, tem que ser visto com os olhos da mente” (PRAIA et
al, 2002)
apresentado não se distingue do vivencial presente nas propostas propedêuticas que no
caso da mecânica focam a análise de “situações práticas” (p.25) de movimentos da
realidade cotidiana e na termodinâmica são as máquinas térmicas e processos cíclicos.
Além disso, a lista de conteúdos resultante também não se diferencia daquela que
professores do ensino médio propedêutico já vinham ensinando antes da reforma
curricular.
Assim, parece que a novidade pedagógica trazida pelos PCNEM de Física seria a
contextualização do mundo natural ampliada ao mundo tecnológico e na medida em
que, segundo Lopes (2002b), a compreensão deste seria importante para atender aos
requisitos da ‘vida adulta´ e, consequentemente, ao mundo produtivo, indica-se que o
documento, assim como os de Química e Matemática, está submetido ao mundo do
trabalho.
A menção ao conhecimento como “construção” (p.22) em um parágrafo e como
“saber adquirido” (p.23) em outro, e, nesta última concepção, o aluno como depósito de
conhecimentos, indica uma visão ambígua da aprendizagem, seja pela sua composição
englobando significados diferentes e opostos ou seja porque o uso indiscriminado destes
termos pode levar à compreensão de que são processos semelhantes.
O final do documento apresenta a preocupação de ligar a ciência-tecnologia e
sociedade. Entretanto, percebe-se uma separação entre o cerne do documento e esta
parte final. A nosso ver, o documento restringe-se ao “modismo” do chamado ensino
cotidiano, que se limita a nomear cientificamente os processos físicos envolvidos no
funcionamento dos aparelhos eletro-eletrônicos, por exemplo. Partilho da opinião de
que essa seria:
“uma forma de dourar a pílula, ou seja, de introduzir uma aplicação
apenas para disfarçar a abstração excessiva de um ensino puramente
conceitual, deixando, à margem, os reais problemas sociais”
(SANTOS E MORTIMER, 2002, p. 4)
O documento finaliza afirmando que os exemplos e os temas tratados não devem
ser consideramos como receitas a serem seguidas, porém expressões como “é
essencial”, “é necessário” e “é imprescindível”, utilizadas ao longo do texto, apontam
contraditoriamente a esta afirmação.
3. QUADRO TEÓRICO METODOLÓGICO
Neste estudo usarei elementos do arcabouço teórico bakhtiniano, descritos neste
capítulo, para problematizar e analisar a linguagem utilizada pelos professores
investigados com o objetivo de identificar suas perspectivas acerca dos PCNEM de
Física.
3.1 Filosofia da Linguagem de Bakhtin: fundamentos
A linguística do século XIX, ancorada principalmente nos aportes teóricos de
Wilhelm Humboldt em que a língua é nacionalmente individual17, sem negar a função
comunicativa da linguagem, entende essa função como se contida em um segundo
plano, como um elemento secundário, sendo contemplada em primeiro plano a função
da formação do pensamento, independentemente da comunicação. A fórmula de
Humboldt seria então: “Sem fazer nenhuma menção à necessidade de comunicação
entre os homens, a língua seria uma condição indispensável do pensamento para o
homem até mesmo na sua eterna solidão” (HUMBOLDT, apud BAKHTIN, 2003, p.
270). Outros estudiosos, como os partidários de Vossler e sua filosofia da linguagem18,
têm na função expressiva o seu plano principal de estudo. Embora existam diferenças
nas concepções da função comunicativa da linguagem, a essência de todos estes estudos
consiste na expressão do mundo individual do falante. A língua é assumida a partir da
necessidade do homem de auto-expressar-se. Em essência, a linguagem aqui é
considerada do ponto de vista do falante, sem que haja, necessariamente, a relação com
outros participantes da comunicação discursiva. Mesmo ao considerarem o papel do
outro na comunicação discursiva, o papel desempenhado era apenas o de ouvinte que
compreende passivamente o falante.
Ao chamar tais concepções de ficções, Bakhtin aponta que:
“Até hoje ainda existem na linguística ficções como o “ouvinte” e o
“entendedor” (parceiros do “falante”, do “fluxo único de fala”, etc).
Tais ficções dão uma noção absolutamente deturpada do processo
complexo e amplamente ativo da comunicação discursiva. (...) sugerese um esquema de processos ativos de discurso no falante e de
respectivos processos passivos de recepção e compreensão do discurso
no ouvinte” (BAKHTIN, 2003, p. 271).
Bakhtin (2003) não pressupõe que estes esquemas sejam falsos ou que não
correspondam, em algum momento, à realidade. Sua crítica está no fato de que esses
esquemas não podem servir quando passamos aos objetivos reais da comunicação
17
Segundo Milani (1994), nessa visão de Humboldt, o indivíduo está contido em uma nação e,
expurgadas as condições exteriores à nação, ela é comparável a um indivíduo que segue seu caminho,
determinado pelo espírito que lhe é peculiar.
18
O que caracteriza primordialmente a escola de Vossler, é “a negação categórica e de princípio do
positivismo linguístico, que não consegue ver mais além das formas linguísticas (em particular as
fonéticas, as que são positivas) e do ato psicofisiológico que as engendra” (BAKHTIN, 2004, p. 74)
discursiva. Neste caso, o ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguístico)
do discurso, adota, uma atitude responsiva ativa em relação a esse discurso: “concorda
ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo,
etc.; essa posição responsiva do ouvinte se forma ao longo de todo o processo de
compreensão desde o seu início, (...) da primeira fala do falante” (BAKHTIN, 2003, p.
271). Embora o grau desse ativismo seja bastante diverso, segundo Bakhtin, toda
compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente responsiva.
Dessa forma, toda compreensão é prenhe de resposta e isso nos leva a consequências
práticas: o ouvinte se torna falante. O momento anterior a resposta em voz real alta, ou
seja, da compreensão passiva do significado do discurso ouvido, é apenas um momento
abstrato da compreensão ativamente responsiva real e plena. O autor admite que nem
sempre ocorre, imediatamente, a reposta em voz alta ao discurso: a compreensão
ativamente responsiva, por exemplo, de uma ordem militar, pode realizar-se
imediatamente na ação (o cumprimento da ordem), pode também permanecer como
compreensão responsiva silenciosa, como em quando assistimos a uma ópera. Porém,
Bakhtin (2003) destaca que, cedo ou tarde, o que foi ouvido e ativamente respondido
nestes momentos responde aos discursos subsequentes ou no comportamento do
ouvinte, ao que ele chama de compreensão responsiva de efeito retardado. Vale ressaltar
que, na teoria de Bakhtin, todos esses aportes sobre o discurso descritos acima refere-se
igualmente, mutatis mutandis, ao discurso escrito e ao lido.
Em resumo, toda compreensão real é ativamente responsiva e pressupõe uma
fase inicial preparatória da resposta (seja qual for a forma e o momento em que ela se
dê). O próprio falante não espera uma compreensão responsiva passiva: ele espera uma
resposta, uma concordância, uma participação, uma objeção, uma execução, etc., do seu
interlocutor. Além disso, todo falante é por si mesmo um respondente em maior ou
menor grau:
Porque ele não é o primeiro falante, o primeiro a ter violado o eterno
silêncio do universo, e pressupõe não só a existência do sistema da
língua que usa mas também de alguns enunciados antecedentes – dos
seus e alheios – com os quais o seu enunciado entra nessas ou
naquelas relações (baseia-se neles, polemiza com eles, simplesmente
os pressupõe já conhecidos do ouvinte) (BAKHTIN, 2003, p. 272)
Conclui Bakhtin que, o ouvinte com sua compreensão passiva, circunscrita nos
desenhos esquemáticos das linguísticas em geral, não corresponde ao participante real
da comunicação discursiva. “Aquilo que o esquema representa é apenas o momento
abstrato do ato pleno e real de compreensão ativamente responsiva, que gera a resposta
(a que precisamente visa o falante)” (BAKHTIN, 2003, p. 273). Dessa forma, o
esquema das linguísticas em geral deve ser claramente compreendido apenas como uma
abstração e não como fenômeno pleno concreto e real.
Bakhtin (2003) também critica a concepção saussureana de que o objeto de
estudo da linguística deve ser o sistema de signos, valores e suas estruturas, propondo
que a língua seja estudada nas condições concretas (sociais e históricas) de comunicação
em que se realiza. É importante ressaltar que Bakhtin reconhece a existência e a
relevância do estudo das formas e normas da língua, mas assinala que, se descartarmos a
multiplicidade das situações materiais de fala, estaremos negligenciando aspectos
centrais para a compreensão dos fenômenos linguísticos. Uma mudança tão radical na
forma de se estudar a linguagem certamente implica uma nova unidade para a análise
linguística. Assim, enquanto as frases, períodos ou orações, sempre retirados do
contexto em que se inserem, seriam unidades de análise da linguística clássica, a
concepção bakhtiniana tem como unidade de análise o enunciado, sempre analisado na
cadeia de comunicação verbal em que se insere.
A par de todas as indefinições terminológicas e confusões dos linguistas acerca
do que é a palavra, a fala, em que subtende-se por nossa fala qualquer enunciado de
qualquer pessoa, Bakhtin afirma que:
“A indefinição terminológica e a confusão em um ponto metodológico
central no pensamento linguístico são o resultado do desconhecimento
da real unidade da comunicação discursiva – o enunciado. Porque o
discurso só pode existir de fato na forma de enunciações concretas de
determinados falantes, sujeitos do discurso. O discurso sempre está
fundido m forma de enunciado pertencente a um determinado sujeito
do discurso, e fora dessa forma não pode existir. Por mais diferentes
que sejam as enunciações pelo seu volume, pelo conteúdo, pela
construção composicional, elas possuem como unidades da
comunicação discursiva peculiaridades comum, e antes de tudo limites
absolutamente precisos” (BAKHTIN, 2003, p.274)
Um enunciado é então um ato de linguagem sempre destinado a um outro e seus
contornos permitem e solicitam que este outro realize uma apreciação valorativa (um
estabelecimento de valores) com relação àquilo que falamos ou escrevemos, numa
alternância de sujeitos falantes. Ele não se reduz a formas sintáticas ou morfológicas
isoladas, como orações ou parágrafos, nem tampouco a quantidade de palavras do
discurso, pois pode ir de um polissêmico “Ai!” a um romance completo de Dostoievski.
O enunciado "nos diversos campos da atividade humana e da vida, dependendo
das diversas funções da linguagem e das diferentes condições de comunicação, é de
natureza diferente e assume formas várias" (BAKHTIN, 2003, p. 275).
O uso da língua nas várias esferas da atividade humana leva ao surgimento de
tipos relativamente estáveis de enunciados, chamados por Bakhtin de gêneros de
discurso. Assim, em qualquer situação de comunicação, os falantes envolvidos têm à
sua disposição um conjunto finito de enunciados, uma espécie de repertório - variável,
mas nem tanto - para dialogar. As situações de encontro e despedida, os gêneros
literários, as cartas, o romance de espionagem, as ordens militares, a sinfonia, as
distintas formas de publicidade, etc. são exemplos de gêneros de discurso.
Para Bakhtin (2003) aprender a falar significa, antes de tudo, construir
enunciados: não aprendemos a língua materna “a partir de dicionários e gramáticas mas
de enunciações concretas que nós mesmos ouvimos e nós mesmos reproduzimos na
comunicação discursiva viva com as pessoas que nos rodeiam” (p. 283). Assim, em
cada uma das palavras que usamos para falar estão as vozes daqueles com quem as
aprendemos - e as vozes daqueles com quem eles as aprenderam e assim por diante.
O conceito de voz está intimamente relacionado ao enunciado, pois “um
enunciado oral ou escrito se expressa sempre desde um ponto de vista (uma voz)”
(WERTSCH, 1993, p. 71). Para Bakhtin (2006b), o conceito de voz pode ser descrito
como a interação das múltiplas perspectivas individuais e sociais. O autor demonstra
que as palavras por nós proferidas não são “nossas” apenas; “elas nascem, vivem e
morrem na fronteira do nosso mundo e do mundo alheio; elas são respostas explícitas
ou implícitas às palavras do outro” (p.55).
Assim, não há enunciado neutro que não expresse uma visão de mundo, uma
voz. Para explicitar a carga axiológica do conceito de voz, Wertsch (1993) o aproxima
de “perspectiva”. Na concepção dialógica de Bakhtin, não pode existir uma voz isolada
de outras vozes. Há sempre, pelo menos, duas vozes (a de quem fala e a da pessoa a
qual o enunciado se dirige) e a compreensão de significados só existe quando essas duas
ou mais vozes entram em contato. O falante não é um Adão Bíblico, o objeto do falante
não se torna pela primeira vez objeto do discurso em um dado enunciado, e, por isso, o
próprio objeto do discurso se torna inevitavelmente um palco de encontro de opiniões
de interlocutores imediatos com pontos de vista, perspectivas, visões de mundo,
correntes, teorias.
3.2 Bases teóricas para um dispositivo analítico
Do ponto de vista conceitual, um dispositivo que pretenda se filiar à proposta bakhtiniana de
análise linguística deve estar firmemente ancorado em duas concepções exaustivamente
reiteradas pelo autor (BAKHTIN, 2003, 2006a): a de que a análise dos fenômenos linguísticos
deve ser feita nas condições concretas em que se realiza e a de que a real unidade da
comunicação verbal – e, consequentemente, de sua análise – não é a palavra, a frase ou a
oração. A real unidade para a análise da comunicação verbal deve ser o enunciado.
Já do ponto de vista operacional, seria importante, uma vez identificados os conceitos
norteadores e a unidade de análise, estabelecer o conjunto de procedimentos a serem
realizados. Nesse caso, uma investigação dos textos de Bakhtin revela, em vez das inúmeras
ocorrências e desdobramentos dos conceitos de enunciado e linguagem, poucas e abreviadas
referências – quase como se fossem pistas - sobre como deveria ser o conjunto de
procedimentos de análise propriamente ditos.
Assim, para elaborar os procedimentos deste dispositivo analítico, tomarei por base as
diretrizes esboçadas em “Marxismo e Filosofia da Linguagem” (BAKHTIN, 2004a). No que diz
respeito à unidade de análise, tratarei do conceito de enunciado a partir do ensaio “Os
Gêneros do Discurso” (BAKHTIN. 2003), em que o autor aborda exaustivamente esse
conceito, apresentando tanto as suas propriedades quanto uma forma inequívoca de
identificá-lo. Trarei, ainda, duas outras propriedades do enunciado apresentadas no texto “O
discurso na vida e o discurso na arte” (VOLOSHINOV 19, 1926), em uma das poucas vezes que
vemos o autor analisar um enunciado mais detalhadamente a partir da sua concepção de
linguagem. Esse exemplo de análise também será útil para detalhar e compreender melhor os
procedimentos de análise esboçados em “Marxismo e Filosofia de Linguagem” (BAKHTIN,
2006a).
3.2.1 Enunciado: características
Bakhtin (2003) constrói o conceito de enunciado a partir da comparação entre sua concepção
de linguagem/comunicação e as concepções tradicionais à época. Assim, em vez das orações,
palavras ou períodos extraídos do contexto em que ocorrem, chama atenção para os
enunciados, tomando por base o diálogo real, em que se alternam as enunciações dos
interlocutores e que “por sua precisão e simplicidade, (…) é a forma clássica de comunicação
discursiva” (Bakhtin, 2003, p. 275). Essa concepção dialógica de enunciado, que envolve o
papel da alteridade na comunicação, é, então, estendida tanto para outras formas de
comunicação quanto para dentro do próprio enunciado.
Por um lado, as formas de expressão mais insuspeitas, como obras de arte, sinfonias, livros,
peças de teatro também seriam enunciados e, como partes de um diálogo, seriam respostas a
e respondidas por outros enunciados. No nível interno de cada enunciado, Bakhtin também vê
um diálogo entre autor e ouvinte – dentre outras personagens.
Bakhtin (2003) se dedica a detalhar este potente conceito, relacionando-o claramente ao
diálogo real e apresentado seis das suas características: estilo, construção composicional,
unidade temática, relação com o falante/outros participantes, conclusibilidade e alternância
dos sujeitos de fala. As três primeiras são características que os enunciados, unidades reais
da comunicação, têm em comum com as orações, períodos e palavras - unidades
convencionais da comunicação. Já as três últimas são características que diferenciam os
enunciados das unidades linguísticas convencionais.
Cabe destacar que essas características, apesar de tratadas individual e sequencialmente
neste dispositivo, estão inarredavelmente imbricadas, dialogando e exercendo influência umas
sobre as outras.
No que tange às características em comum com as unidades convencionais, o estilo de um
enunciado é constituído pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da
língua. Já o conteúdo temático referencial se trataria do conteúdo propriamente dito enquanto
a construção composicional corresponderia à estrutura do enunciado. É bastante claro, para o
autor, que “todos esses três elementos (…) estão indissoluvelmente ligados no todo do
enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um determinado campo da
comunicação”(BAKHTIN, 2003, p.262).
As características que diferenciam os enunciados das unidades convencionais - relação com o
falante/outros participantes, conclusibilidade e alternância dos sujeitos de fala -, entendo ser
conveniente detalhá-las mais um pouco. A relação do enunciado com o próprio falante se dá
justamente pelo fato de a escolha dos meios linguísticos estar diretamente relacionada tanto
às ideias quanto à “relação subjetiva emocionalmente valorativa do falante com o conteúdo do
objeto e do sentido do seu enunciado” (BAKHTIN, 2003, p.289). Essa relação com objeto e
sentido afetaria, igualmente, o estilo do enunciado. O autor destaca que esse aspecto
19
Autor pertencente ao chamado Círculo de Bakhtin, grupo multidisciplinar de intelectuais russos que se
reuniam regularmente entre 1919 e 1929. Para Faraco (2003), porém, três desses intelectuais merecem
atenção – Bakhtin, Voloshinov e Medvedev –, não só devido à confusão de autoria dos textos, mas
também pela representatividade desses a cerca do pensamento do Círculo.
valorativo não pode ser , de forma alguma, considerado um elemento da língua. Isso se deve
ao fato de que o arsenal de recursos linguísticos usados para exprimir emoções, apesar de
vasto, é totalmente neutro: “as palavras não são de ninguém, em si mesmas nada valorizam,
mas podem abastecer (...) os juízos de valor mais diversos de qualquer falante.” (BAKHTIN,
2003, p.290).
Já a relação do enunciado com os outros participantes se dá por duas maneiras principais. A
primeira vem do fato de que “muito amiúde a expressão do nosso enunciado é determinada
não só – e vez por outra não tanto – pelo conteúdo semântico-objetal desse enunciado mas
também pelos enunciados do outro sobre o mesmo tema, aos quais respondemos, com os
quais polemizamos” (BAKHTIN, 2003, p.297). Por esse ponto de vista, qualquer enunciado
sobre um objeto levaria em consideração, em maior ou menor grau, tudo que os outros já
disseram sobre ele. Já a segunda forma principal de relação do outro com o enunciado vem
justamente da antecipação que o falante faz das respostas do ouvinte. “A quem se destina o
enunciado, como o falante (ou o que escreve) percebe e representa para si os seus
destinatários, qual é a força e a influência deles no enunciado – disto dependem tanto a
composição quanto, particularmente, o estilo do enunciado” (BAKHTIN, 2003, p.297).
A conclusibilidade é um aspecto interno do enunciado, e que está intimamente relacionado à
alternância de sujeitos falantes. Ela sinalizaria que o falante já teria dito tudo o que queria
dizer naquele turno de fala e, assim, caberia ao ouvinte responder ao enunciado. É importante
ressaltar que resposta, nesse contexto, deve ser entendida de forma mais geral. Nas palavras
do próprio autor “o primeiro e mais importante critério de conclusibilidade do enunciado é a
possibilidade de responder a ele, em termos mais precisos e amplos, de ocupar uma posição
responsiva (cumprir uma ordem, por exemplo)” (BAKHTIN, 2003, 280). A conclusibilidade é
determinada por três fatores, organicamente ligados entre si e ao todo do enunciado: a
exauribilidade do objeto e do sentido; o projeto/vontade de discurso do falante e as formas
típicas composicionais e de gênero do acabamento. A ideia é que estes fatores, combinados
ou isoladamente, sinalizam claramente a conclusão do enunciado – e consequentemente, o
posicionamento responsivo do ouvinte. A exauribilidade semântico-objetal do tema do
enunciado pode se extremamente próxima da completude, nas questões mais cotidianas e
factuais - como pedidos de informações, ordens, etc. – ou ser bastante parcial e relativa,
como nos campos criativos e científicos. Nestes casos, o objeto é, de fato inexaurível, e a
única exauribilidade possível já estaria bastante próxima de uma ideia definida do autor – o
que nos leva ao próximo fator: a vontade de discurso do falante.
Quando escutamos um enunciado, “imaginamos o que o falante quer dizer, e com essa ideia
verbalizada (como a entendemos) é que medimos a conclusibilidade do enunciado” (BAKHTIN,
2003, 281). Assim, a vontade ou o projeto de discurso do falante, além de estar relacionada à
própria escolha do objeto, também influencia a exauribilidade semântico-objetal e a
conclusibilidade. É importante destacar que “essa ideia – momento subjetivo do enunciado –
se combina em uma unidade indissolúvel com o seu aspecto semântico-objetivo, restringindo
esse último, vinculando-o a uma situação concreta (singular) de comunicação discursiva, com
seus participantes pessoais, com suas intervenções – enunciados antecedentes” (BAKHTIN,
2003, p.281). Isso já nos aproxima do fator seguinte: os gêneros do discurso.
A ideia principal aqui é que, apesar de cada enunciado em particular ser individual, “cada
campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os
quais denominamos gêneros de discurso” (BAKHTIN, 2003, p.261). Assim, a vontade
discursiva do falante se realizaria, primeiramente, na escolha de um determinado gênero do
discurso, vinculado à situação concreta em que se encontra – o que também influenciaria a
exauribilidade do enunciado, uma vez que quando ouvimos o discurso de outra pessoa, “já
adivinhamos o gênero pelas primeiras palavras, adivinhamos um determinado volume (isto é,
uma extensão aproximada do conjunto do discurso), uma determinada construção
composicional, prevemos o fim” (BAKHTIN, 2003, p. 283). E, se podemos prever o fim, temos
justamente a noção da conclusibilidade. O assunto é reputado pelo autor como um dos mais
importantes para a análise linguística. No entanto, como voltarei ao assunto mais adiante,
finalizo ressaltando que Bakhtin, mantendo a diferenciação entre as unidades convencionais e
o enunciado, afirma que esse indício de completude do enunciado não se presta a definições
gramáticas ou abstrato-semânticas - e, portanto, também não pode ser encontrado na
neutralidade do sistema da língua.
A última das três propriedades que distinguem o enunciado das unidades convencionais de
análise é exatamente aquela que dá seus limites: a alternância dos sujeitos falantes.
Novamente, Bakhtin ressalta que esta propriedade é exclusiva dos enunciados e não pode ser
encontrada das unidades convencionais da língua: “os limites da oração enquanto unidade da
língua nunca são determinados pela alternância de sujeitos do discurso” (BAKHTIN, 2003,
p.277). No entanto, entendo que existe algo mais acerca dessa propriedade: o rigor e a
precisão com que Bakhtin se refere a ela, aliados às detalhadas diferenciações entre um
enunciado e uma oração, permitem usar a alternância de sujeitos falantes como um critério
unívoco para a existência / identificação de enunciados – o que é particularmente útil para
este dispositivo analítico. O potencial para a utilização desta propriedade como critério de
identificação pode ser percebido em trechos como “desse modo, a alternância dos sujeitos do
discurso, que emoldura o enunciado e cria para ele a massa firme, rigorosamente delimitada”
(BAKHTIN, 2003, p.279); “as enunciações (…) possuem, como unidades de comunicação
discursiva, peculiaridades comuns e, antes de tudo, limites absolutamente precisos”
(BAKHTIN, 2003, p.274). ; “Essa alternância dos sujeitos do discurso, que cria limites precisos
do enunciado” (BAKHTIN, 2003, p.275) . O desenvolvimento da argumentação é assunto da
próxima seção.
3.2.2 Enunciado e oração: identificação positiva, negativa e gêneros do discurso
Bakhtin (2003) dedica uma parte importante de "Os gêneros do discurso" para mostrar em que
condições e por que um mesmo material linguístico pode ser considerado um enunciado,
unidade da análise linguística que propõe, ou uma oração, unidade da análise linguística que
critica. Aponto aqui uma importante consequência dos pressupostos que norteiam essa
argumentação: no momento em que uma mesma sequencia de palavras pode ou não ser
considerada um enunciado, não há nada imanente a nenhum conjunto de palavras capaz de
identificá-lo univocamente como enunciado. Ou, dito de outra forma, o que quer que venha a
transformar texto em enunciado está fora da massa textual. De fato, "os limites da oração
enquanto unidade da língua nunca são determinados pela alternância de sujeitos do discurso.
Essa alternância, que emoldura a oração de ambos os lados converte-a em um enunciado
pleno" (BAKHTIN, 2003, p. 277).
Primeiramente, é importante relembrar que as três características que diferenciam os
enunciados das orações são a relação com o falante/outros outros participantes,
conclusibilidade e alternância dos sujeitos de falantes - e que elas estão sempre imbricadas
no todo do enunciado. É importante perceber também que a alternância de falantes é, dentre
as três, a única característica extraverbal. Em seguida, chamo atenção para o verbo
converter, na citação anterior e proponho que o sentido pretendido pelo autor seja o seguinte:
o material linguístico proferido por um falante, uma vez que respondeu ao turno anterior e foi
respondido pelo seguinte, terá, automaticamente, conclusibilidade e relação com os falantes e
outros participantes. Assim, entendo que essa característica, apesar de estar sempre
imbricada às outras duas, seria uma espécie de característica fundadora do enunciado, marca
indelével da sua inserção na cadeia real de comunicação verbal. Proponho, portanto, que a
alternância de falantes seja uma condição suficiente para a existência e consequente
identificação de um enunciado.
Igualmente importante para a elaboração deste dispositivo são os trechos de “Os gêneros do
discurso” que tratam das situações e condições em que o material linguístico não pode ser
considerado um enunciado. Uma delas, mais simples, é aquela em que o material linguístico é
retirado do contexto concreto em que foi produzido. Neste caso, não estaria emoldurado pelo
material linguístico de outros falantes e, consequentemente, não seria um enunciado. No
entanto, a outra situação apresentada por Bakhtin (2003) é mais delicada: trata-se do material
linguístico contido em um enunciado - por exemplo, a segunda oração de um enunciado
formado por três orações consecutivas. Neste caso, apesar de sermos tentados a tratar essa
oração como um enunciado, é importante lembrar que o contexto dessa oração
“É o contexto da fala do mesmo sujeito de discurso (falante); a oração
não se correlaciona de imediato nem pessoalmente com o contexto
extraverbal da realidade (a situação, o ambiente, a pré-história) nem
com as enunciações de outros falantes, mas tão-somente através de
todo o contexto que a rodeia, isto é, através do enunciado em seu
conjunto” (BAKHTIN, 2003, p.277)
Assim, a segunda oração deste exemplo não pode ser considerada um enunciado. A mesma
argumentação sustenta que palavras, frases ou trechos de enunciados não podem ser
considerados enunciados.
Outro conceito importante para a elaboração deste dispositivo é o de gêneros de discurso.
Apesar de afirmar que o uso da língua se faz na forma de enunciados concretos, únicos e
individuais, Bakhtin ressalta que “cada campo de utilização da língua elabora seus tipos
relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso”.
(BAKHTIN, 2003, p.277) Assim, em cada uma das situações concretas de comunicação de
que participa, o falante não estaria exatamente livre para falar o que quisesse, mas teria suas
opções de fala restritas àqueles enunciados que integram o gênero de discurso adequado
para aquela situação. “Até mesmo no bate-papo mais descontraído e livre nós moldamos o
nosso discurso por determinadas formas de gênero, às vezes padronizadas e estereotipadas,
às vezes mais flexíveis, plásticas e criativas” (BAKHTIN, 2003, p.282). E, apesar de as formas
dos gêneros serem mais flexíveis, plásticas e livres que as formas da língua, o falante
bakhtiniano tem sua enunciação moldada tanto pela língua quanto pelo gênero de discurso.
Os gêneros se dividem em dois grupos: os primários e os secundários. Os primários, mais
simples, estão relacionados à comunicação discursiva imediata, como a carta e os vários tipos
de diálogo cotidiano. Já os secundários, mais complexos - como romances, dramas,
pesquisas científicas, etc. - surgem nas condições de um convívio cultural mais desenvolvido
e organizado a partir de uma incorporação e reelaboração dos gêneros primários. A diferença
entre estes gêneros não é funcional: “esses gêneros primários, que integram os complexos, aí
se transformam e adquirem um caráter especial: perdem o vínculo imediato com a realidade
concreta e os enunciados reais alheios” (BAKHTIN, 2003, p. 263). E, exatamente por isso,
deixam de ser enunciados - entendo ser esta a transformação de que fala o autor. Assim, uma
carta ou uma réplica do diálogo cotidiano, no momento em que são inseridos num romance,
por exemplo, deixam de ser um enunciado e passam a ser um acontecimento artístico
literário, integrando a realidade concreta apenas como parte do romance. Bakhtin ressalta que
“no seu conjunto, o romance é um enunciado, como a réplica do diálogo cotidiano ou uma
carta privada (ele tem a mesma natureza das duas), mas à diferença deles é um enunciado
secundário (complexo)” (BAKHTIN, 2003, p.264). O autor retorna a essa questão quando
propõe a tese de que o enunciado é precisamente delimitado pela alternância de falantes,
afirmando que
“Nos gêneros secundários do discurso, particularmente nos retóricos,
encontramos fenômenos que parecem contrariar a essa nossa tese.
Muito amiúde o falante (ou quem escreve) coloca questões no âmbito
do seu enunciado, faz objeções a si mesmo e refuta suas próprias
objeções, etc. Mas esses fenômenos não passam de representação
convencional da comunicação discursiva nos gêneros primários de
discurso” (BAKHTIN, 2003, 276).
Assim, enquanto vemos nos gêneros primários os limites criados pela alternância real de
sujeitos falantes, são “as cicatrizes desses limites (que) estão nos gêneros secundários”
(BAKHTIN, 2003, 276).
Finalizo esta seção esperando ter esclarecido as seguintes ideias, indispensáveis tanto para a
estruturação quanto para a precisão do presente dispositivo: i) todo material linguístico
proferido por um falante e emoldurado pelo material linguístico de outros falantes é um
enunciado ii) a alternância de falantes é condição suficiente para a identificação e existência
de um enunciado iii) um trecho de um enunciado não pode ser considerado um enunciado.
3.2.3 O contexto extraverbal
Em “Discurso na vida e discurso na arte: sobre a poética sociológica” (VOLOSHINOV, 1926),
o autor critica o método linguístico formal, em que toma-se o verbal não como um fenômeno
sociológico mas de um ponto de vista abstrato, defendendo a importância do método
sociológico, para o estudo da poética. Mostra os vários pontos em comum entre a palavra na
arte e na vida cotidiana, destaca a importância no enunciado – e não da palavra neutra – para
o estudo de ambas e vai além, apresentando de forma quase didática, um raríssimo exemplo
de análise de enunciados.
O autor analisa uma situação de uso da linguagem no cotidiano para ressaltar, de
um lado a relação entre o material, a forma e o conteúdo de uma produção verbal, e, de
outro, as relações intersubjetivas que estruturam e organizam a produção, seja ela
artística ou não. A situação em questão refere-se a duas pessoas que estão sentadas
numa sala, ambas em silêncio. Então, uma delas diz “Bem”. A outra não responde. O
autor argumenta que para nós, que estamos ouvindo de fora, esta conversa apresenta-se
completamente incompreensível. Porém, “esse colóquio peculiar de duas pessoas,
consistindo numa única palavra – ainda que, certamente, pronunciada com entoação
expressiva – faz pleno sentido, é completo e pleno de significação” (VOLOSHINOV,
1926, p.5). Seu argumento baseia-se no fato de que por mais que se dê valor à parte
verbal, com seus fatores fonéticos, morfológicos e semânticos da palavra do enunciado,
ou seja, da palavra “bem”, não será possível dar um único passo para o entendimento do
colóquio se não levarmos em consideração o contexto extraverbal. O contexto
extraverbal do colóquio era o seguinte: ambos os interlocutores olhavam para a janela e
perceberam que começava a nevar, ambos sabiam que já se encontravam no mês de
maio e que já era hora de chegar a primavera, e, finalmente, ambos estavam cansados do
prolongado e desapontados com a neve que ainda persistia em cair. Dessa forma, aponta
o autor, a palavra “bem” se expandiria em alguma expressão metafórica tal como “que
inverno teimoso, ele não vai parar, e Deus sabe que é hora” (VOLOSHINOV, 1926, p.
8).
Segundo o autor, o contexto extraverbal apresentado acima compreende três
fatores: 1) o horizonte comum dos interlocutores (a unidade visível – neste caso a sala, a
janela, etc), 2) o conhecimento e a compreensão comum da situação por parte dos
interlocutores e 3) sua avaliação comum dessa situação. Cabe ressaltar que “comum”
aqui não significa, necessariamente, concordância ou coincidência com o horizonte real,
mas sim compartilhamento de determinada situação entre sujeitos participantes: onde o
campo de alcance é mais amplo, o enunciado pode agir apenas se sustentando “em
fatores constantes e estáveis da vida e em avaliações sociais substantivas e
fundamentais” (VOLOSHINOV, 1926, p.6). Assim, diante do exposto, conclui o autor
que:
“um enunciado concreto como um todo significativo compreende
duas partes: (1) a parte percebida ou realizada em palavras e (2) a
parte presumida. É nesse sentido que o enunciado concreto pode ser
comparado ao entinema20” (VOLOSHINOV, 1926, p. 6).
20
O entinema é uma forma de silogismo em que uma das premissas não é expressa, mas presumida. Por
exemplo: Sócrates é um homem, portanto é mortal”. A premissa presumida: “Todos os homens são
mortais” (nota do autor)
Dessa forma, o individual e o subjetivo têm impregnado, o social e o objetivo e
“apenas o que todos nós falantes sabemos, amamos, reconhecemos – apenas estes
pontos nos quais estamos todos unidos podem se tornar a parte presumida de um
enunciado” (VOLOSHINOV, 1926, p. 6). Assim, ao falarmos sobre julgamentos de
valores presumidos, estes só serão possíveis não nas emoções individuais, mas nos atos
sociais e regulares, ou seja, as “emoções individuais podem surgir apenas como
sobretons acompanhando o tom básico da avaliação social. O “eu” pode realizar-se
verbalmente apenas sobre a base do nós.” (VOLOSHINOV, 1926, p.6)
Voloshinov (1926) ainda salienta que o horizonte espacial comum pode
expandir-se tanto no tempo como no espaço, dependendo do enunciado: “o presumido
pode ser aquele da família, do clã, da nação, da classe e pode abarcar dias ou anos ou
épocas inteiras” (p.6) e “quanto mais amplo for o horizonte global e seu correspondente
grupo social, mais constantes se tornam os fatores presumidos em um enunciado” (p.6).
Estes dois aspectos serão de extrema valia para as análises desenvolvidas na presente
dissertação.
Ainda em sua crítica a abordagem linguística formal e, também, a abordagem
psicológica, ele reafirma que elas são extremamente falhas ao desconsiderar que
qualquer locução dita em voz alta ou escrita para uma comunicação inteligível, ou seja,
qualquer palavra exceto as depositadas num dicionário, é o produto da interação
social de três participantes: o falante (autor), o interlocutor (leitor/ouvinte) e o tópico (o
que ou quem) da fala (o herói). Ao desconsiderar esta abordagem sociológica, o
linguístico formal e psicológico, embora absolutamente indispensável em suas
abstrações, não atende à demanda, pois cada uma das abordagens, por si só e
isoladamente, são inertes:
“Onde a análise linguística vê apenas palavras e as interrelações de
seus fatores abstratos fonéticos, morfológicos, sintáticos) a percepção
artística viva e a análise sociológica concreta revelam relações entre
pessoas, relações meramente refletidas e fixadas no material verbal. O
discurso verbal é o esqueleto que só toma forma viva no processo da
percepção criativa consequentemente, só no processo da comunicação
social” (VOLOSHINOV, 1926, p. 12)
O autor então, ao fornecer um quadro dos fatores essenciais nas interrelações dos
participantes de um evento artístico, afirma que o autor, o herói e o ouvinte de que fala
o tempo todo não são entidades fora da própria percepção da obra, muito pelo contrário,
eles são fatores constitutivos essenciais da obra. “Eles são a força viva que determina a
forma e o estilo e são diretamente detectáveis por qualquer contemplador competente”
(VOLOSHINOV, 1926, p.13). O autor também considera que o ouvinte, em todos os
casos, é entendido como o ouvinte que o próprio autor leva em conta, “aquele a quem a
obra é orientada e que, por consequência, intrinsecamente determina a estrutura da
obra” (p.13) e que, portanto, de modo algum nos referimos às pessoas reais, em carne e
osso, que de fato formam o público leitor do autor em questão. Assim como também
não podemos nos referir ao autor em questão como a pessoa de carne de osso que
escreve: “
“Mesmo se o poeta, de fato, extrai sua paixão em grande parte das
circunstâncias de sua própria vida privada, ainda assim ele precisa
socializar esse sentimento, e, consequentemente, elaborar o evento
correspondente ao nível de significação social” (VOLOSHINOV,
1926, p. 13)
3.2.4 Enunciado e vozes
A ideia de que autor, herói e ouvinte não coincidem com as pessoas que, de fato,
falam/escrevem e leem/escutam o texto não está restrita ao ensaio “Discurso na vida,
discurso na arte”. Em “Os gêneros do discurso”, Bakhtin novamente ressalta que
"O destinatário do enunciado pode, por assim dizer, coincidir
pessoalmente com aquele (ou aqueles) a quem responde o
enunciado.(...) Mas nos casos de tal coincidência pessoal uma pessoa
desempenha dois papéis, e essa diferença de papéis é justamente o que
importa. Porque o enunciado daquele a quem eu respondo (com o qual
concordo, ao qual faço objeção, o qual executo, levo em conta, etc.) já
está presente; a sua resposta (ou compreensão responsiva) ainda está
por vir" (BAKHTIN, 2003, p.301-302).
Fica claro então que, para o autor, o que faz parte do meu enunciado não é o destinatário,
mas a imagem que faço dele. Essa imagem é inarredavelmente distinta do destinatário
propriamente dito por uma série de motivos, a começar pela própria ontologia: enquanto a
imagem que faço de uma pessoa quando enuncio é uma concepção, um pensamento - e,
portanto, imaterial - a pessoa propriamente dita é de carne e osso, material - e, por isso, a ela
seria impossível "entrar" num texto. Entendo que o reconhecimento desta alteridade, desta
clara diferenciação entre sujeitos “de texto” e sujeitos “de carne e osso” é um aspecto central
do pensamento bakhtiniano e, por conseguinte, deste dispositivo. Assim, para colaborar com
esse detalhamento, trarei os aportes de Amorim e Faraco, relacionando, sempre que possível,
os textos destes autores aos originais de Bakhtin.
No polo da significação, há dois sujeitos a distinguir. O destinatário propriamente dito - ou
destinatário real, como propõe Amorim (2002) - é um sujeito empírico, extratextual e que, ao
fim e ao cabo, será o leitor do texto. Já a imagem que o falante faz do destinatário destinatário suposto (AMORIM, 2002) - é um sujeito de discurso, intratextual. Este sim, tem
tamanha força e influência sobre o que se diz e sobre como se diz que é considerado co-autor
dos enunciados. No entanto, não custa repetir, é uma figura inarredavelmente ficcional, uma
criação do enunciador feita a partir das impressões que tem acerca de seu interlocutor.
Voloshinov (1926) o chama de ouvinte.
No momento em que encontramos, no nível da significação, uma alteridade entre
destinatários, seria razoável esperar que o autor propusesse algo semelhante no polo da
enunciação. De fato, para Bakhtin, “a identidade absoluta de meu eu com o eu de que falo é
tão impossível quanto tentar suspender-se pelos próprios cabelos!” (BAKHTIN apud AMORIM,
2002. 10). Amorim traz esta frase a propósito da diferenciação entre o autor, que escreveu o
texto, e o locutor, que diz "eu" no texto. Já Faraco (2005), tratando a questão da autoria em
Bakhtin, afirma que desde "O autor e o herói na atividade estética", escrito na década de
1920, o autor propõe a diferenciação entre autor-pessoa e autor-criador. Haveria, então, 3
"sujeitos" no polo da enunciação: autor-pessoa, autor-criador/autor e locutor. É importante
reconhecer a alteridade entre eles.
O autor-pessoa seria o escritor propriamente dito, sujeito empírico, sendo perfeitamente
possível, de acordo com Amorim, identificá-lo como autor de um texto e continuar sem nada
saber acerca de sua pessoa. Em “Os gêneros do discurso”, Bakhtin se refere a esse sujeito
como falante. Já o autor-criador (ou autor, para Amorim) é o responsável pelo todo estético da
obra, sua voz é "portadora de um olhar e de um ponto de vista que trabalha o texto do início
ao fim" (AMORIM, 2002, p.11). E, "por ser uma função imanente ao objeto estético e por
definir-se como uma posição axiológica, o autor-criador (a voz segunda) é, para Bakhtin, pura
relação: não se trata de um ente físico (não é possível encontrar um Dom Casmurro nas ruas
como tal)" (FARACO, 2005, p.42). Em “Discurso na vida, discurso na arte”, Voloshinov (1926)
o chama de autor.
É importante, ainda, distinguir o autor-criador do locutor, aquele que diz "eu" no texto. Para
Amorim, a voz do autor não está nas declarações do locutor, mesmo quando este faz
declarações diretas do tipo "gosto disso", "concordo com aquilo", etc. Isso ocorre pois o
"locutor é sempre um personagem, enquanto a voz do autor está em todo lugar e em nenhum
lugar em particular. Mais precisamente, ela pode ser ouvida ali, no ponto crucial de encontro
entre a forma e o conteúdo do texto" (AMORIM, 2002, p. 10). Tanto Amorim quanto Faraco
dão bastante destaque ao fato de que, para Bakhtin, essas distinções devem ser feitas mesmo
em textos autobiográficos e em forma de diário.
Finalmente, se levarmos em conta que “na poesia, com na vida, o discurso verbal é um
cenário de um evento” (VOLOSHINOV, 1926, p. 12) e que neste cenário interagem autor,
ouvinte e herói, é importante, também, ressaltarmos a presença deste último sujeito “de texto”
que, para o autor, tanto pode ser alguém como algo sobre o que se fala. Assim, tanto os
objetos quantos as personagens – e, até mesmo, o locutor - estariam na categoria de herói.
Recapitulando, teríamos, numa situação bakhtiniana de comunicação verbal: i) o autorpessoa, ii) o autor-criador, iii) o herói – objeto, personagem ou locutor 21, iv) o destinatário
suposto e v) a voz do destinatário real. Cabe distinguir que enquanto o autor-pessoa e o
destinatário real são sujeitos empíricos e extratextuais, os demais sujeitos são figuras de
discurso, intratextuais.
Por entender que a explicitação da alteridade entre sujeitos contribuirá decisivamente para a
clareza do processo de análise, opto pela seguinte nomenclatura: o ser humano que profere
as palavras será chamado de autor-pessoa; o sujeito “de texto” responsável pelo todo estético
da obra será chamado de autor-criador; aquilo de que se fala / aquele sobre quem se fala /
aquele que fala no texto será chamado “herói” - em particular, o sujeito “de texto” que diz “eu”
no texto será chamado de locutor; o sujeito “de texto” que corresponde à imagem que o autorpessoa faz do destinatário será chamado “destinatário suposto” e o ser humano que de fato
lerá as palavras será chamado de “destinatário real”.
3.2.5 Apropriação Discursiva
O enunciado, enquanto elo na cadeia da comunicação discursiva, ocupa uma
posição definida em uma dada esfera da comunicação, em um dado assunto, etc, sendo
impossível alguém definir sua posição sem correlacioná-la com outras posições, sem
compreender que ele não está ligado apenas aos elos precedentes mas também aos
subsequentes da comunicação discursiva:
“O enunciado é pleno de tonalidades dialógicas, e sem levá-las em
conta é impossível entender até o fim o estilo de um enunciado.
Porque a nossa própria ideia – seja filosófica, científica, artística –
nasce e se forma no processo de interação e luta com os pensamentos
dos outros, e isso não pode deixar de encontrar o seu reflexo também
nas formas de expressão verbalizada do nosso pensamento”
(BAKHTIN, 2003, p. 298)
Sendo encarada desta forma, fica evidente que a experiência discursiva
individual se forma e se desenvolve em uma interação contínua e constante com os
enunciados individuais dos outros. Para Bakhtin (2003), essa experiência pode, em certo
21
Cabe destacar que numa autobiografia, por exemplo, o locutor – aquele que diz “eu” no texto” – é
também o herói - aquilo sobre o que se fala no texto.
sentido, ser caracterizada como um processo de assimilação da palavra do outro, com
um tom mais ou menos criador. Esse tom criador aparece pelo fato de que nosso
discurso é pleno de palavras dos outros, “de um grau vário de alteridade ou de
assimilabilidade, de um grau vário de aperceptibilidade e de relevância. Essas palavras
dos outros trazem consigo a sua expressão, o seu tom valorativo que assimilamos,
reelaboramos e reacentuamos” (p. 295).
Assim, é possível associar a assimilação ao que Bakhtin (2006b) aponta, em
outra obra, como apropriação, na medida em que considera a última como um
movimento em que a mescla de discursos, o próprio com o alheio, é capaz de melhor
mediar suas próprias intenções, seus próprios acentos.
Como a vida, coisa sócio-ideológica concreta, a língua situa-se na fronteira entre
si e o outro. A palavra na língua é metade de alguém. Ela se torna "própria" apenas
quando o falante preenche-a com sua própria intenção, seu próprio acento, quando ele
se apropria da palavra, adaptando-o à sua própria intenção semântica e expressiva.
Porém, nem todas as palavras se submeterão facilmente e igualmente a apropriação, a
esta apreensão e transformação em propriedade privada por parte do falante: muitas
palavras teimam em resistir, outras permanecem estrangeiras, estranhas à boca daquele
que apropriam-se delas; eles não conseguem assimilá-las em seu próprio contexto, é
como se o falante colocasse aspas na palavra, fazendo uma espécie de citação direta à
palavra do outro, mesmo contra sua vontade.
Mesmo antes do momento de apropriação, a palavra já não existe de forma
neutra e impessoal (como já expus anteriormente, não é, afinal, do dicionário que os
falantes retiram suas palavras), mas ela existe na boca de outras pessoas, em contextos
de outras pessoas, servindo a intenções de outras pessoas: é a partir destas situações que
tomamos a palavra e as tornamos própria. Por isso:
“pode-se dizer que qualquer palavra existe para o falante em três
aspectos: como palavra da língua neutra e não pertencente a ninguém;
como palavra alheia dos outros, cheia de ecos de outros enunciados; e,
por último, como palavra minha, porque, uma vez que eu opero com
ela em uma situação determinada, com uma intenção discursiva
determinada, ela já está compenetrada da minha expressão
(BAKHTIN, 2003, p.294)
Ora, se o último momento [apropriação] consiste em operar em determinada
situação com intenção discursiva própria, expressão própria, serão aí, identificadas as
perspectivas dos professores cursistas acerca dos PCNEM de Física.
Bakhtin fornece também uma categorização das palavras alheias pautada não no
que elas informam ou nos modelos que fornecem, mas na sua intenção de “definir as
próprias bases de nossa atitude ideológica em relação ao mundo e de nosso
comportamento” (BAKHTIN, 1993, p.142). Trata-se do discurso de autoridade e do
discurso internamente persuasivo. O processo de formação ideológica normalmente vai
caracterizar-se pela divergência desses dois discursos e, nessas circunstâncias, o
discurso alheio caracteriza-se como um campo de tensões entre duas categorias.
Entretanto é possível que, eventualmente, autoridade e persuasão interior se unam numa
mesma palavra ou num mesmo discurso. Bakhtin (1993) afirma que “o discurso
autoritário exige o nosso reconhecimento incondicional e não absolutamente uma
compreensão e assimilação livre em nossas próprias palavras.(...) entra em nossa
consciência verbal como uma massa compacta e indivisível, é preciso confirmá-la por
inteiro ou recusá-la na íntegra” (p.144) . Já o discurso do outro internamente persuasivo
nos revela possibilidades bastante diferentes. “À diferença da palavra autoritária
exterior, a palavra persuasiva interior, no processo de sua assimilação positiva, se
entrelaça estreitamente com a ‘nossa palavra’” (BAKHTIN, 1993, p. 144-5).
A palavra persuasiva interior constitui-se como metade nossa, metade do outro, é
a palavra semi-alheia propriamente dita e sua “produtividade criativa consiste
precisamente em que ela desperta nosso pensamento e nossa palavra autônoma”
(BAKHTIN, 1993, p.145), organizando nossas palavras, não se mantendo isolada,
imóvel. Se por um lado a palavra autoritária se distancia do diálogo, a palavra
persuasiva interior está aberta a ele. No entanto, não se trata de imitação ou réplica de
outros discursos, mas envolve um confronto de nossos contextos, com nossas palavras,
num processo criativo de transformação do discurso alheio, provocando o diálogo
interno. Nem todas as palavras se submeterão facilmente à apropriação por qualquer
pessoa, podendo as mesmas permanecerem alheias ou soando como estrangeiras na
boca de quem delas se apropriou, não sendo, assim, assimiladas ao novo contexto. Essa
resistência das palavras se deve ao fato de que:
“a linguagem não é um meio neutro que passa livremente e facilmente
para a propriedade privada das intenções de um falante, ela é povoada
- superpovoada - com as intenções de outros. Expropriá-la, forçando-a
a se submeter a sua própria intenção e acentos, é um processo difícil e
complicado. (BAKHTIN, 1993, p. 294)”
Dessa forma, podemos afirmar que o povoamento da palavra do outro com
nossas próprias palavras se dará de maneira mais plena ao lidarmos com um discurso
internamente persuasivo, um discurso mais aberto. Porém, isto não significa afirmar que
defronte a um discurso de autoridade não seja possível uma valoração, um acento, uma
intenção própria ao empregar tal discurso e que, por vezes, as enunciações se
constituem como espaço de luta entre essas forças e, sendo assim, sua existência é
sempre tensa, contraditória, ambivalente.
3.2.6 - Procedimentos de análise
Bakhtin (2006a) propõe que a metodologia do estudo da língua deve seguir três
etapas: i) as formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições
concretas em que se realiza ii) as formas das distintas enunciações, dos atos de fala
isolados, em ligação estreita com a interação de que constituem os elementos, isto é, as
categorias de atos de fala na vida e na criação ideológica que se prestam a uma
determinação pela interação verbal. iii) A partir daí, exame das formas da língua na sua
interpretação linguística habitual. Seria possível dizer que quando o autor se refere a
“atos de fala isolados” está falando dos enunciados? Seriam as “categorias de atos de
fala na vida” os gêneros de discurso? E como seria, exatamente, a ligação entre os tipos
de interação verbal e as condições em que se realizam? Com base nos conceitos
bakhtinianos apresentados no capítulo anterior é possível esclarecer estas questões e
finalizar o dispositivo analítico.
Quanto à primeira questão, tudo o que foi dito acerca da alternância dos sujeitos
falantes como característica fundadora dos enunciados permite concluir que todo ato de
fala isolado está, no meu ponto de vista, cercado pelas falas de outros sujeitos.
Quanto à segunda, considero que a resposta é afirmativa, pois de acordo com
Bakhtin (2003):
“O fenômeno dos gêneros do discurso foi estudado por Bakhtin ainda
nos trabalhos da segunda metade da década de 20. Em Marxismo e
Filosofia da Linguagem (...) há o esboço de um programa de estudo
“dos gêneros das manifestações discursivas na vida, determinados pela
interação discursiva, e na criação ideológica” e, “a partir daí, uma
revisão das formas da língua em seu habitual tratamento linguístico”
Aqui mesmo é feita uma breve descrição dos gêneros cotidianos da
comunicação discursiva. (p. 446)
Finalmente, a terceira questão é possível responder a partir do que o próprio
autor apresenta em “Discurso na vida, discurso na arte”: O enunciado como um todo
tem duas partes: uma presumida e a outra realizada em palavras. Na parte presumida,
faremos a análise do 1) o horizonte espacial comum dos interlocutores (a unidade do
visível – neste caso, a sala, a janela, etc.), 2) o conhecimento e a compreensão comum
da situação por parte dos interlocutores e 3) sua avaliação comum dessa situação. Já na
parte realizada em palavras, caberá a análise linguística habitual. (VOLOSHINOV,
1926)
E assim, as etapas do dispositivo que proponho são:
1 - Identificação do enunciado
A partir das ideias apresentadas nas seções 3.2.1 e 3.2.2, pode-se concluir
que a própria alternância entre os sujeitos falantes já é suficiente para identificar
o enunciado, ou seja, o enunciado inicia-se no momento em que o falante toma a
palavra para si e finaliza-se no momento em que este termina o que gostaria de
dizer, permitindo que o outro também fale.
2 - Leitura preliminar do enunciado
O objetivo desta etapa é o primeiro contato com os enunciados no sentido
de: identificar preliminarmente seus elementos linguísticos (estilo, construção
composicional, unidade temática, relação com o falante/outros participantes,
conclusibilidade) e fazer uma articulação prévia entre o material linguístico, as
questões de pesquisa e os conceitos bakhtinianos.
3 - Descrição do contexto extraverbal
A partir da leitura preliminar e da articulação prévia das questões de
pesquisa aos conceitos bakhtinianos, é realizada uma investigação do contexto
extraverbal para identificar, dentre os vários elementos, aqueles que mais
contribuirão para a análise. Esses elementos são então descritos e articulados
com vistas a estabelecer o horizonte espacial comum dos interlocutores, seu
conhecimento e compreensão da situação, sua avaliação comum dessa situação,
o momento social e histórico em que ocorre, a rede de enunciados a que se
relaciona, etc.
Nesta etapa também serão trazidos os contextos individuais dos
professores enquanto autores-pessoas – formação, tempo de magistério, idade,
região e Estado da federação a que pertence, etc. – na tentativa de trazer outros
elementos que poderão melhor compor o entendimento dos enunciados. Embora
a partir do referencial bakhtiniano não haja uma identidade entre autor-criador e
autor-pessoa não se pode deixar de considerar que entre eles há uma relação
muito próxima e íntima.
4 - Análise do enunciado
Consiste em articular os elementos linguísticos (estilo, construção
composicional, unidade temática, relação com o falante/outros participantes,
conclusibilidade), o contexto extraverbal e os conceitos bakhtinianos envolvidos
para responder as questões de pesquisa.
Excetuando-se a primeira e segunda etapas, cuja finalização é bem definida, a
terceira etapa – descrição do contexto extraverbal - poderá ser revista e ampliada, a
qualquer momento da análise caso seja necessário buscar outros elementos do contexto
extraverbal para melhor compreensão do enunciado.
Abaixo segue um esquema para melhor compreensão das etapas a serem
percorridas no presente dispositivo analítico:
Figura 1 – Esquema das etapas do dispositivo analítico
Questões
de Pequisa
Etapa 1
Identificação
do Enunciado
Etapa 2
Leitura
Preliminar
Etapa 3
Descrição do
Contexto
Extraverbal
Conceitos
Bakhtinianos
Elementos
Linguísticos
Etapa 4
Análise
do Enunciado
3.3 Objetivo e questões de pesquisa
Diante do exposto, o objetivo do presente estudo consiste em identificar, a partir
do conceito bakhtiniano de apropriação, perspectivas de professores de Física acerca
dos PCNEM. Entendendo a perspectiva como a voz do(a) professor(a) e que a mesma
não pode ser construída a não ser a partir do diálogo com outras perspectivas, considero
que as seguintes questões de pesquisa ajudam a investigá-la:
- Como os professores, em seus enunciados, se posicionam diante das políticas
curriculares, em especial, diante dos PCNEM de Física?
- Qual concepção de currículo e o posicionamento diante da implementação de
um currículo nacional estão implícitos na perspectiva do professor?
- Quais as aproximações e afastamentos encontrados entre as perspectivas dos
professores investigados?
Tais questões permearão todo o processo de análise, na tentativa de respondê-las a
partir da análise do enunciado do professor.
3.4 Delimitação do estudo
Esclareço que embora o presente estudo tenha como contexto um curso de
formação continuada a distância, como será melhor descrito no próximo capítulo, não
pretendo investigar as especificidades das mediações pedagógicas e tecnológicas
presentes em um curso a distância, sendo estas entendidas apenas contexto de produção
dos enunciados dos participantes. Tampouco aspectos relativos ao desempenho dos
professores no curso são parte do objeto de estudo. Sendo assim, considero que as
contribuições deste estudo para o ensino de Física podem ser mais relevantes para a
compreensão do discurso e prática dos professores do que para o entendimento das
especificidades da modalidade de educação à distância.
4 CONTEXTO DO ESTUDO
4.1 Contexto do Estudo
A investigação foi realizada no âmbito da formação continuada de professores
de ciências, no contexto de um curso de extensão online para professores de Física do
Ensino Médio, que se realizou numa sala de aula Moodle acoplada ao ambiente virtual
InterAge (REZENDE et al., 2003). O curso foi gratuito, certificado pela Pró-Reitoria de
Extensão da UFRJ (PR-5) e teve a duração de 10 semanas, cobrindo o equivalente a um
total de 40 horas/aula. Problematizou questões referentes aos PCNEM de Física, os
objetivos do ensino de Física e a relação entre o ensino de Física e o mercado de
trabalho. Dentre os 39 professores selecionados para fazer o curso, 17 chegaram até o
final e, por terem apresentado produção adequada, receberam o certificado de
conclusão. O curso foi mediado por dois tutores, estudantes de mestrado, e coordenado
por uma professora doutora do NUTES/UFRJ.
Embora o presente estudo tenha como recorte apenas uma das atividades
realizadas durante o curso – como será explicitado na seção 4.2 – todo o curso será
descrito nas seções seguintes para melhor entendimento do contexto em que o estudo se
insere. Além disso, também cabe destacar que eu – a própria pesquisadora – atuei como
elaboradora e tutora do curso. Sendo assim, tanto o curso quanto a análise que irei
empreender, são, inarredavelmente, não neutros. Interessa-me aqui, apresentar a
singularidade de um olhar atento sobre o objeto de estudo, estudá-lo a partir de
ferramentas teórico-metodológicas consistentes com os fundamentos da filosofia da
linguagem de Bakhtin, reconhecendo e explicitando minha interferência no processo.
4.1.1 O ambiente virtual
O InterAge (http://nutes2.nutes.ufrj.br/interage) foi elaborado em 2004 com base
na perspectiva construtivista e com o objetivo de prover aos seus usuários - os
professores de ciências - recursos tecnológicos para realizar a ruptura com o modelo de
transmissão de conhecimentos. O princípio deste ambiente online é permitir que os
professores construam o conhecimento de forma ativa, assumindo o controle do próprio
processo de aprendizagem (REZENDE et al, 2003). Seus recursos tecnológicos e
pedagógicos foram desenvolvidos com o intuito de levar o professor a refletir sobre sua
prática profissional e também para promover, por meio de fóruns de discussão e email, a
interatividade e a colaboração entre professores e tutores. Ao longo dos cursos, os
professores têm acesso a materiais educativos e textos de pesquisa em educação em
ciências. O ambiente atualmente conta com 1.468 professores cadastrados.
Em 2011, com o objetivo de facilitar o manuseio dos recursos técnicos e a gestão
dos cursos por estudantes de pós-graduação e de iniciação científica não especialistas
em Informática, decidiu-se integrar as funcionalidades do Moodle (versão 1.9.7) ao
ambiente virtual já existente. O primeiro passo do processo de integração foi fazer uma
sala de aula no Moodle (http://www.interageufrj.org) com o objetivo de familiarizar
professores e tutores com a nova interface e com as funcionalidades de gestão técnica e
administrativa. O curso em questão foi o primeiro a ser realizado nesta sala - e, a julgar
pelos retorno dos professores e tutores, o processo de adaptação foi bastante bem
sucedido.
4.1.2 Cursistas
Divulgação
A estratégia de divulgação do curso consistia em duas partes. Na primeira, o
curso seria divulgado por email para os professores que já estavam cadastrados na base
de dados do InterAge e, na segunda, faríamos a divulgação para os professores em
geral, por intermédio de contatos com secretarias estaduais, municipais, escolas e pelo
site da PR-5. No entanto, como a primeira parte da divulgação foi suficiente para
preencher as vagas oferecidas, a segunda parte da divulgação ficou restrita à publicação
(automática) do curso no site da PR-5. Os 1.468 professores cadastrados no InterAge
foram avisados por email da oferta do curso, entre os dias 15 e 17/02/2011. O email
continha uma ementa do curso e uma ficha de inscrição, que, em caso de interesse,
deveria ser preenchida e anexada ao email de resposta, entre os dias 18 e 25/02. A
equipe recebeu, nesse período, um total de 219 respostas.
Distribuição de vagas e seleção
Inicialmente, seriam oferecidas 25 vagas. No entanto, levando em consideração
o grande número de interessados e uma possível evasão, a equipe decidiu aumentar o
número de vagas para 40. Levando em consideração o princípio da isonomia, a equipe
procurou distribuir essas vagas o mais equitativamente possível no que diz respeito i) às
regiões do país, ii) atuação em escolas públicas e privadas e iii) a diversidade em
relação ao tempo de formado. A equipe também levou em consideração a formação em
área exata22, a atuação como professor de Física e a formação específica na área. É
importante destacar aqui que, como os emails de seleção foram enviados a toda a base
de dados do Interage, alguns professores de outras áreas e licenciados que não estavam
atuando responderam ao convite enviando a ficha de inscrição. O passo-a-passo do
critério foi seguinte:
1) Descartar as fichas de inscrição dos professores que não tinham formação em
área exata.
2) Descartar as fichas do professores que não atuavam como professores de
Física no Ensino Médio
2) Separar as fichas de inscrição por região
3) Dentro de cada região
3.1) Se houver mais de 8 candidatos, filtrar por formação específica em Física,
diversidade público/privado, diversidade tempo de formado, nesta ordem, até
haver 8 candidatos.
3.2) Se houver 8 candidatos ou menos, está encerrada a seleção
Foram selecionados 39 professores, 17 dos quais concluíram o curso. Dentre os
22 que não concluíram o curso, 3 confirmaram inscrição mas nunca acessaram o
ambiente. Os outros 19 foram contatados pelos tutores quando começaram a se afastar
do curso e atribuíram o afastamento a problemas de agenda. Nas tabelas abaixo estão
registradas a distribuição dos professores que iniciaram e a dos concluíram o curso,
divididos por região, tempo de formado, tipo da escola em que trabalha e formação e
também é apresentado um mapa do país que representa a diversidade regional dos
professores cursistas que iniciaram o curso.
Fig. 1 – Diversidade regional dos professores cursistas
22
Licenciatura em Física e outras áreas das Ciências Naturais.
Tabela 5 - Distribuição de professores por tempo de formação
Tempo de
formado
Iniciaram o
curso
%
Concluíram o
curso
%
menos de 5 anos
15
38%
7
41%
De 5 a 10 anos
14
36%
4
24%
De 11 a 15 anos
5
13%
3
18%
mais de 15 anos
5
13%
3
18%
23
Tabela 6 - Distribuição de professores por tipo de escola em que trabalham
Tipo de escola
em que trabalha
Iniciaram o
curso
%
Concluíram o
curso
%
Pública
28
62%
13
72%
Privada
17
38%
5
28%
Tabela 7 - Distribuição dos professores por formação
23
Formação
Iniciaram o curso
%
Concluíram o curso
%
Licenciatura em Física
27
69%
11
65%
Alguns professores trabalhavam em escolas públicas e privadas. Isso explica o fato de a soma dos que
iniciaram o curso superar 39 e de a soma dos que concluíram o curso superar 17.
Bacharelado e Licenciatura em
Física
3
8%
3
18%
Licenciatura. em Matemática com
habilitação em Física
1
3%
1
6%
Licenciatura em Ciências Plenas
com habilitação em Física
1
3%
1
6%
Física
2
5%
1
6%
Licenciatura em Matemática
2
5%
0
0%
Licenciatura em Matemática e
Licenciatura em Física
1
3%
0
0%
Licenciatura. Plena em Ciências
Naturais e Matemática com
habilitação em Física
1
3%
0
0%
Ciências
1
3%
0
0%
4.1.3 Atividades pedagógicas do curso
A proposta de formação do curso se alinhou com a defesa da atuação do
professor enquanto intelectual transformador que, assim como afirma Giroux (1997),
não permite que o professor seja reduzido ao status de técnico de alto nível que apenas
cumpre os ditames, objetivos e parâmetros traçados por especialistas:
“Encarando os professores como intelectuais, nós podemos começar a repensar
e reformar as tradições e condições que têm impedido que os professores
assumam todo o seu potencial como estudiosos e profissionais ativos e
reflexivos. Acredito que é importante não apenas encarar os professores como
intelectuais, mas também contextualizar em termos políticos e normativos as
funções sociais concretas desempenhadas pelos mesmos. Desta forma,
podemos ser mais específicos acerca das diferentes relações que os professores
têm tanto com seu trabalho como com a sociedade dominante.” (GIROUX,
1997)
Todo o curso foi baseado no modelo de formação continuada para professores de
Ciências proposto por Rezende e Castells (2009) cujos pressupostos construtivistas
visam estimular a reflexão sobre a prática; promover a interatividade; incentivar a
colaboração entre os participantes de modo a desenvolver o conhecimento profissional
do professor. Neste sentido, também tivemos como preocupação elaborar um curso
democraticamente, de forma a incorporar ao máximo as contribuições dos professores
cursistas. Assim, a equipe InterAge – da qual faziam parte eu, um outro tutor e a
coordenadora do curso - realizou um roteiro inicial de atividades e, com o desenrolar do
curso, foi adaptando e alterando essas atividades a partir do material gerado pelos
próprios professores nos fóruns de discussão anteriores. A flexibilidade e agilidade de
edição e publicação de atividades no Moodle foi decisiva para a implementação dessa
proposta de desenho instrucional. Outro recurso bastante explorado foi a incorporação
de vídeos à interface Moodle. Os vídeos foram gravados usando câmeras de
celular/webcams, armazenados no YouTube e inseridos nas introduções das atividades e
em alguns fóruns de discussão, sempre a partir de algum evento do curso. Essa técnica
mais informal de gravação de vídeos, bem como o tom mais pessoal dos enunciados das
atividades e das mediações foram utilizados para aumentar a proximidade entre os
professores cursistas e os tutores.
4.1.4 Descrição do curso
O curso foi dividido em cinco etapas: i) Apresentação Pessoal, com duração de
prevista de 10 dias; ii) Os Pcnem de Física, com duração prevista de 20 dias); iii)
Objetivos do Ensino de Física, com duração prevista de 15 dias; iv) Ensino de Física e o
Mundo do Trabalho, com duração prevista de 15 dias e v) Avaliação do curso, duração
prevista de 10 dias. Apresento a seguir a descrição de cada etapa do curso e ao final, um
quadro (Quadro 1) que sintetiza todo o curso.
Apresentação Pessoal
A Apresentação Pessoal teve por objetivo promover a familiarização dos
cursistas com a interface Moodle e permitir que eles verificassem se seu software e
hardware estavam em condições para que participassem do restante do curso. Para isso,
foram apresentadas informações em diversos formatos, dentre as quais destaco o
cronograma do curso, no formato PDF e um vídeo do YouTube incorporado
diretamente na interface Moodle. Foram apresentados também o Fórum Problemas
Técnicos, projetado para ser o canal para resolução de problemas técnicos e o InterAge
Café, espaço em que os cursistas poderiam criar fóruns de discussão para assuntos
extra-acadêmicos. A atividade consistiu justamente numa visita ao InterAge Café e na
participação no fórum Atividade 1, em que os tutores convidavam os professores a se
apresentarem por intermédio de uma imagem, que seria retirada da internet e inserida no
post. Para ajudar os professores que não tivessem tanta familiaridade com a interface, a
equipe InterAge elaborou e disponibilizou um tutorial para inserção de imagens no
Moodle. Foi realizada também uma atividade usando o recurso do Moodle “Escolha”,
em que os professores informaram o tempo a partir do qual desistem de esperar
respostas a uma participação que tenham feito num ambiente online. É importante aqui
destacar a grande popularidade do InterAge Café, que foi extensivamente utilizado
pelos professores até o final do curso.
Como o objetivo principal desta atividade era a familiarização dos cursistas com
o ambiente e os outros participantes, nesta etapa não foi apresentado nenhum tipo de
texto/conteúdo para discussão.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio de Física
Esta etapa do curso teve por objetivo familiarizar os professores com os PCNEM
e propor a reflexão sobre o texto “Quem defende os PCN para o ensino médio?”
(LOPES, 2006) por intermédio de atividades e discussões. A primeira atividade,
realizada no fórum de discussão “Atividade 1”, convidou os professores a ler os
PCNEM de Física, selecionar três trechos e postá-los no fórum, juntamente com as
justificativas de sua escolha. Na segunda atividade, “Atividade 2”, os professores foram
convidados a fazer uma participação para relatar suas experiências prévias com os
PCNEM, se já os conheciam, se os conheceram apenas no curso, etc. Com o objetivo de
deixar os cursistas o mais à vontade possível, os tutores gravaram o enunciado da
atividade num vídeo e o incorporaram ao fórum. Nesse vídeo, contaram sua vivência
com os PCNEM de forma bastante informal e pessoal, estimulando os professores a
participar da mesma maneira. A terceira atividade, “Atividade 3”, consistiu na leitura e
discussão de Lopes (2006) por intermédio da identificação e seleção de trechos com os
quais os participantes concordassem ou discordassem. É importante destacar que, ao
longo desta atividade, as discussões realizadas nos fóruns levaram à criação de duas
outras atividades complementares. A primeira teve como tema uma possível associação
entre a má qualidade das aulas de Física e a formação em áreas correlatas (Matemática,
Engenharia, etc.), citada por várias vezes nos fóruns. A outra foi feita a partir da
sugestão direta de um dos cursistas e dizia respeito à viabilidade de um currículo único
e relacionado ao vivencial dos alunos num país tão grande e com tantas discrepâncias
quanto o nosso. As discussões destes fóruns, apesar de concorrentes com aquelas das
atividades originalmente propostas pela equipe, foram muito produtivas. Foi criado um
fórum de discussão para que cursistas e tutores pudessem marcar um horário comum
para um chat, que ficou agendado para o dia 29/04/11. Finalmente, o trabalho final
consistiu na redação de um texto individual de 3.000 caracteres, com espaços, em que
cada cursista foi convidado a responder a pergunta “Quem defende os PCNEM?”. A
entrega foi feita por intermédio da própria interface Moodle. A avaliação levou em
consideração a assiduidade e qualidade das participações bem como a qualidade do
trabalho final.
Os objetivos do ensino de Física
Esta etapa teve como objetivo promover a discussão sobre os objetivos do
ensino de Física e o contato com textos de pesquisa sobre os objetivos do ensino de
ciências (FOUREZ, 2003). Na primeira atividade, os professores foram convidados a
reler os PCNEM, selecionar dois trechos que identificassem como objetivos do ensino
de Física e postá-los no fórum, acompanhados de uma justificativa. A segunda atividade
foi dividida em duas partes. Na primeira parte, foram convidados a ler o texto de
pesquisa e decidir, em grupo, qual das controvérsias listadas pelo autor seria discutida
na parte seguinte. Já a segunda parte consistiria na discussão propriamente dita.
Novamente, as discussões deram origem a uma atividade complementar, em que os
professores foram chamados a apresentar os objetivos que pretendiam atingir com seu
trabalho junto aos alunos. O chat com os alunos foi realizado e, apesar de contar com
apenas 2 dos 17 alunos ativos - além dos 2 tutores - foi muito produtivo pois foi
possível trabalhar em mais detalhes questões relativas ao texto de Lopes (2006).
Finalmente, no trabalho final o professor foi convidado a escolher uma das
controvérsias apresentadas por Fourez (2003) e redigir um documento de 3.000
caracteres, com espaços, mostrando de que forma os atores do seu entorno imediato se
organizam a partir dessa controvérsia. A entrega desse trabalho e a divulgação das notas
do trabalho anterior foram feitas por intermédio da própria interface Moodle. A
avaliação do desempenho dos participantes do curso levou em consideração a
assiduidade e qualidade das participações bem como a qualidade do trabalho final.
O ensino de Física e o mercado de trabalho
Esta etapa consistiu num fórum de discussão sobre as relações entre ensino de
Física e o mundo produtivo, que foi dividido em três partes: na primeira parte, com
duração de aproximadamente 5 dias, os professores foram convidados a participar e
discutir a partir de suas visões prévias sobre o assunto. No sexto dia, foram
disponibilizados alguns trechos de textos de pesquisa (FRIGOTTO 1988, 1995; PARO,
1999; LOPES, 2006; GANDRA, 2011; CASTRO, 2008) trazendo outras visões sobre o
tema, dentre as quais destaco os pontos de vista de outros setores da sociedade
(organismos financeiros internacionais, candidatos à presidência, empresas, imprensa,
etc) sobre o tema. As íntegras dos textos também foram disponibilizadas caso houvesse
interesse dos professores por uma leitura mais aprofundada. A discussão então
continuou até o final do fórum, quando cada participante entregou um texto de uma
lauda com a sua perspectiva sobre o ensino de Física e o mundo produtivo, articulando
os pontos de vista apresentados. Todas as etapas da discussão foram mediadas pelo tutor
e a entrega do documento foi feita eletronicamente, por intermédio da plataforma
Moodle.
Avaliação
A Avaliação do curso teve a duração de cinco dias e consistiu, basicamente, na
participação opcional num fórum de sugestões e críticas sobre o curso e no
preenchimento de um questionário individual de avaliação do curso.
A avaliação dos participantes levou em consideração a assiduidade e qualidade
das participações bem como a qualidade do trabalho final. Dos 17 concluintes, três
tiveram bom desempenho, mas receberam a avaliação “razoável” devido a questões de
assiduidade e de atraso nos prazos de entrega; 6 tiveram desempenho excelente, mas
receberam a avaliação “bom” também por problemas de assiduidade e de atraso na
entrega dos trabalhos finais e, finalmente, 8 receberam a avaliação “excelente”.
Quadro 1: Síntese das etapas do curso e respectivas atividades
Etapa
Apresentação Pessoal
Os Parâmetros Curriculares
Nacionais do Ensino
Médio de Física
Atividades
Atividade: familiarização do usuário com o ambiente virtual e
com os outros participantes
1ª atividade: leitura dos PCNEM de Física destacando e
postando no fórum de discussão três trechos com no máximo 5
linhas, justificando o motivo por ter escolhido os respectivos
trechos
2ª atividade: relato das experiências dos professores com os
PCNEM de Física
3ª atividade: leitura e discussão de texto de pesquisa relacionado
à implantação do currículo nacional no Brasil (LOPES, 200624)
4ª atividade: entrega de trabalho final respondendo à pergunta:
“Quem defende os PCNEM?”
1ª atividade: leitura dos PCNEM de Física identificando no
texto dois objetivos do ensino de Física, postando-os no fórum
para posterior discussão.
Os objetivos do ensino
de Física
2ª atividade: leitura e discussão de texto de pesquisa que
abordava a relação entre o que se espera do ensino do Ciências e
sua atual crise (FOUREZ, 200325)
3ª atividade: chat com os tutores com o objetivo de os
professores colocarem suas reflexões não só sobre o que estava
24 LOPES, A. 2006, Quem defende os PCN para o ensino médio?. In: Alice Casimiro Lopes; Elizabeth
Macedo. (Org.). Políticas de currículo em contextos disciplinares. 1 ed. São Paulo: Cortez, v. , p. 126158.
25 FOUREZ, G., 2003. Crise no ensino de ciências. Investigações em ensino de ciências, 8(2), pp. 109123
sendo discutido no curso mas sobre sua prática pedagógica em
geral.
4ª atividade: entrega de trabalho final se apoiando em uma das
controvérsias apresentadas no texto estudado.
1ª atividade: participação dos professores nos fóruns dando suas
visões prévias sobre as relações entre o ensino de Física e o
mercado de trabalho
O ensino de Física e o mercado de
trabalho
2ª atividade: leitura de alguns trechos de textos que tratavam
sobre o assunto sob diferentes pontos de vista (FRIGOTTO,
1988 26 , 1995 27 ; PARO, 1999 28 ; LOPES, 2002 29 ; CASTRO,
200830; GANDRA, 201131)
3ª atividade: discussão dos textos em fóruns.
4ª atividade: entrega de trabalho final no qual o participante
apresenta sua perspectiva sobre as relações entre o ensino de
Física e o mundo produtivo, articulando os pontos de vista
apresentados no curso
Avaliação do curso: participação em fórum de sugestões e
críticas e no preenchimento de questionário individual
Avaliação
Avaliação do participante: assiduidade, participação e trabalho
final
4.1.5 Mediação dos tutores
Todas as etapas e discussões do curso contaram com mediações pedagógicas dos
tutores. Estas mediações consistiam basicamente de intervenções nos fóruns de
discussão que: traziam para a discussão outros elementos que pudessem auxiliar os
professores a se posicionarem; incitavam a discussão trazendo pontos controversos;
faziam interrelações entre as postagens de diferentes professores; chamavam todos os
professores para participar das discussões, etc.
4.2 Corpus do estudo
O corpus do presente estudo foi composto por 5 enunciados de professores32 de
cada uma das cindo regiões do país – Norte, Sul, Sudeste, Nordeste e Centro-Oeste – e
26 FRIGOTTO, G., 1988. Formação profissional no 2º. grau: em busca do horizonte da Educação
Politécnica. Cadernos de Saúde Pública, 4, pp.435–445.
27 FRIGOTTO, G. 1995. Educação e formação humana: ajuste neoconservador e alternativa democrática.
In Pablo Gentili & Tomaz Tadeu da Silva (orgs) Neoliberalismo, qualidade total e educação. Petrópolis,
RJ: Vozes
28 PARO, V. H., 1999. Parem de Preparar para o Trabalho – Reflexões acerca dos efeitos do
neoliberalismo sobre a gestão e o papel da escola básica. In: FERRETI, C.J. – Trabalho, Formação e
Currículo: Para onde vai a escola. São Paulo: Xamã.
29 LOPES, A.C., 2002. Os Parâmetros curriculares nacionais para o ensino médio e a submissão ao
mundo produtivo: o caso do conceito de contextualização. Educação & Sociedade, 23(80).
30 CASTRO, C. M.., 2008 Educação não é mercadoria!. Acesso em <21/05/2011>.
<http://arquivoetc.blogspot.com/2008/04/claudio-de-moura-castro.html>
31 GANDRA, A., 2011. Academia Brasileira de Ciências quer avanços em pesquisa e no ensino de
ciências nas escolas.
32
É importante destacar que todos estes professores analisados declararam estar de acordo com o Termo
de Consentimento Livre e Esclarecido (Anexo I)
todos atuantes apenas em escolas públicas em resposta ao que foi solicitado na primeira
atividade do curso quando discutimos os PCNEM de Física em um fórum de discussão.
Embora 21 professores tenham respondido à atividade, considerei mais interessante para
o presente estudo compor um corpus que apresentasse semelhanças – todos pertencentes
a escolas públicas – e diferenças – todos pertencentes a regiões diferentes – entre os
professores, na tentativa de melhor compreender quais as aproximações e afastamentos
encontrados entre as perspectivas desses professores e suas possíveis relações com os
contextos individuais em que estão inseridos. Cumpre-se destacar que as diferenças
regionais existentes serão delimitadas pelo último Índice de Desenvolvimento da
Educação Básica (IDEB33), ocorrido em 2009, tanto da região quanto do Estado a que o
professor pertence. A atividade foi apresentada pelo seguinte texto:
Prezados professores,
Nesta atividade, convidamos vocês a fazerem o seguinte:
1) Leiam os PCN de Física cuidadosamente (cliquem aqui para download do
documento)
2) Selecionem 3 trechos com no máximo 5 linhas cada.
3) Postem neste fórum os trechos, justificando o mais detalhadamente possível,
a sua escolha.
Caprichem nesta atividade, pois ela será necessária para as próximas. Além de,
é claro, em um curso sobre os PCN, o estudo profundo do documento torna-se
imprescindível =)
Boa leitura e estudo,
Tutor 1 e Tutor 2
Esta foi a primeira atividade formal e com conteúdo do curso, já que a atividade
anterior consistia apenas em apresentações pessoais e familiarização com o ambiente
virtual. Assim sendo, ao eleger estes enunciados para análise, tive a intenção de
encontrar a perspectiva do professor anterior às discussões teóricas realizadas ao longo
do curso. Diante disso, como já foi mencionado no Quadro Teórico Metodológico, não
serão considerados aspectos pedagógicos do curso, isto é, as especificidades das
mediações pedagógicas e tecnológicas presentes em um curso a distância. Embora tenha
havido discussões e mediações posteriores à postagem dos três trechos pelos
professores, o recorte do estudo consistiu em analisar apenas esta primeira postagem,
descartando as demais.
33
O IDEB foi criado em 2007 para medir a qualidade de cada escola e de cada rede de ensino. O
indicador é calculado com base no desempenho do estudante em avaliações do (INEP) e em taxas de
aprovação. Assim, para que o IDEB de uma escola ou rede cresça é preciso que o aluno aprenda, não
repita o ano e frequente a sala de aula (MEC, 2007). O índice é medido a cada dois anos e o objetivo é
que o país, a partir do alcance das metas municipais e estaduais, tenha nota 6 em 2022 – correspondente à
qualidade do ensino em países desenvolvidos. (MEC, 2007)
A justificativa da atividade mencionada reside no fato de que um curso em que a
discussão principal girava em torno dos PCNEM de Física seria inconcebível sem a
leitura do documento. Com o objetivo de que a leitura fosse uma atividade mais
reflexiva, propusemos esta atividade onde o professor teria não apenas que ler o
documento, mas destacar e justificar a escolha de três trechos do mesmo.
Do ponto de vista da pesquisa, esta atividade também mostrava-se promissora
pois, em consonância com o conceito de apropriação de Bakhtin, ao fazer uma seleção e
ao ter de justificar sua escolha, o professor estaria povoando a palavra do outro - ou
seja, o documento oficial - , com suas próprias palavras e sua própria visão de mundo.
É necessário ressaltar que, em nenhum momento, foi pedido que o trecho
devesse ser escolhido em função do que o professor considerasse certo ou errado, ou do
que ele concordasse ou discordasse: deixar essa avaliação ainda mais a critério de cada
professor foi também uma estratégia para que emergisse sua própria voz.
5. APROPRIAÇÃO
PROFESSORES
DISCURSIVA
DOS
PCNEM
DE
FÍSICA
POR
Neste capítulo, serão apresentadas as análises dos enunciados de 5 professores,
todos atuantes em escolas públicas, porém pertencentes à diferentes regiões da
federação, que responderam à primeira atividade da segunda etapa do curso – “Os
Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio de Física” -, descrita abaixo:
Prezados professores,
Nesta atividade, convidamos vocês a fazerem o seguinte:
1) Leiam os PCN de Física cuidadosamente (cliquem aqui para download do
documento)
2) Selecionem 3 trechos com no máximo 5 linhas cada.
3) Postem neste fórum os trechos justificando, o mais detalhadamente possível,
a sua escolha.
Caprichem nesta atividade, pois ela será necessária para as próximas. Além de,
é claro, em um curso sobre os PCN, o estudo profundo do documento torna-se
imprescindível =)
Boa leitura e estudo,
Tutor 1 e Tutor 2
As análises serão realizadas à luz da teoria de Bakhtin e a partir das orientações
do dispositivo analítico, ambas apresentadas no Quadro Teórico Metodológico
A partir da teoria bakhtiniana, podemos apontar alguns pontos importantes sobre
os autores-criadores em questão – comuns a todos os professores que postaram seus
enunciados: são professores de Física participantes do curso online “Os Parâmetros
Curriculares Nacionais e os objetivos do ensino de Física”, oferecido no ambiente
virtual de formação de professores, InterAge, do NUTES/UFRJ. Seus destinatários
supostos são os tutores do curso, que entendemos que representam a UFRJ, em
particular, e a academia, de maneira geral e também os outros professores participantes
do curso.
Ressalto que, nas partes da resposta dadas na primeira pessoa do singular,
entendo que a voz que diz “eu” não é a do autor-criador, mas a do locutor. A voz do
autor-criador, perspectiva estética e axiológica responsável pelo todo do enunciado, não
pode ser encontrada em nenhum ponto específico da obra. Assim, posicionar-se usando
a primeira pessoa é um dentre muitos recursos estéticos e axiológicos à disposição do
autor-criador.
O herói, ou seja, aquilo sobre o que o autor-criador fala, são os PCNEM de
Física e, especificamente, os temas tratados nos trechos destacados pelos
professores.
O horizonte espacial comum é um curso de 10 semanas, divididos em 5
módulos: apresentação pessoal, os PCNEM de Física, os objetivos de ensino de Física, a
relação entre o ensino de Física e o mercado de trabalho e avaliação do curso. O
módulo em questão, em que pela primeira vez se apresenta um conteúdo a ser estudado,
refere-se aos PCNEM de Física. O módulo foi composto por 6 atividades: 3 fóruns
previstos no desenho inicial do curso; 2 fóruns com questões complementares que
surgiram ao longo das discussões e um trabalho individual final. O enunciado estudado
é uma resposta a primeira atividade do módulo. A atividade foi conduzida num fórum
de discussão, em que todos poderiam ler e comentar as respostas dos colegas de curso e
não houve limite de caracteres para a resposta. A duração do fórum foi de 10 dias e
contou com a participação de 25 professores.
O conhecimento e compreensão comum da situação compreende uma série de
conhecimentos tácitos presumidos pelo autor-pessoa no ato de sua fala: os
cursistas/tutores, por serem professores atuantes/pesquisadores em educação, sabem da
existência e leram, por conta da atividade, os PCNEM e que eles são a materialização de
uma política curricular oficial brasileira; todos os cursistas/tutores, por serem
professores atuantes/pesquisadores em educação, reconhecem a importância do
processo de formação continuada tanto para a aprendizagem em si como para a
obtenção de certificados e a consequente valorização profissional; todos os participantes
conheciam uns aos outros através das apresentações pessoais realizadas no início do
curso e sabiam que, ao longo do curso, estariam sendo avaliados pela instituição,
representada, no caso, pelos tutores. A obtenção dos certificados dependeria dessa
avaliação. No que diz respeito ao contrato didático, todos os participantes são adultos e
professores, conhecendo, assim, por um lado a agenda cheia da vida de um adulto que
trabalha como professor e, por outro, a importância dos prazos e regras um ambiente de
aprendizagem.
A avaliação comum presumida pelo falante sobre a situação é a de que o
contexto de um curso sobre o assunto, ministrado pela UFRJ, é um espaço
particularmente relevante para discussão e estudo dos PCNEM. Existe também a ideia
de que sua contribuição, além de colaborar com os colegas, encontrará eco junto à
academia.
As linhas dos enunciados foram numeradas para facilitar sua recorrência, ao
longo da análise. O enunciado intercala trechos dos PCNEM – em itálico – com a
justificativa dada pelo professor.
5.1 Enunciado do Professor Norte
O enunciado do Professor Norte, tal qual ‘postado’ no fórum de discussão, em
resposta à atividade proposta, é apresentado abaixo.
1 “... é essencial que o conhecimento físico seja explicitado como um processo
2 histórico, objeto de contínua transformação e associado às outras formas de
3 expressão e produção humana. É necessário também que essa cultura em Física
4 inclua a compreensão do conjunto de equipamentos e procedimentos, técnicos ou
5 tecnológicos, do cotidiano doméstico, social e profissional”.
6
7 Justificativa:
8
9 Escolhi esse trecho do PCNEM de Física por considerar importante que o professor
10 possibilite que os alunos tenham ciência de como foram (e como vão sendo)
11 construídos os conhecimentos científicos. Não menos importante, é necessário
12 também que o professor promova situações onde os alunos possam entender os
13 princípios físicos que estão por trás das aplicações práticas que movimentam nossa
14 sociedade e nossa vida.
15
16 “... é imprescindível considerar o mundo vivencial dos alunos, sua realidade
17 próxima ou distante, os objetos e fenômenos com que efetivamente lidam, ou os
18 problemas e indagações que movem sua curiosidade”.
19
20 Justificativa:
21
22 Achei esse trecho bastante interessante, pois expõe uma preocupação que muitos
23 professores não têm quando planejam suas aulas. No ensino de física, é comum os
24 professores direcionarem, quase que exclusivamente, suas ações didáticas no sentido
25 de preparar os estudantes para os competitivos exames de vestibular, colocando em
26 plano secundário a formação de jovens capazes de relacionarem o que é apresentado
27 na sala de aula com sua vida, a sua realidade e o seu cotidiano.
28
29 “Lidar com o arsenal de informação atualmente disponível depende de habilidades
30 para obter, sistematizar, produzir e mesmo difundir informações, aprendendo a
31 acompanhar o ritmo de transformação do mundo em que vivemos. Isso inclui ser
32 um leitor crítico e atento das notícias científicas divulgadas de diferentes formas:
33 vídeos, programas de televisão, sites da internet ou notícias de jornais.
34
35 Justificativa:
36
37 Selecionei esse trecho por considerar importante a discussão em sala de aula de
38 questões atuais como, por exemplo, aquecimento global, energia nuclear, GPS, etc.
39 Não há como negar que esses temas contemporâneos têm efeitos imediatos em
40 nossas vidas. Acredito que a grande dificuldade dos professores de física é como
41 transpor a informação veiculada na mídia eletrônica e impressa para o ambiente
42 escolar. Infelizmente a formação acadêmica não nos capacita para isso. Somos
43 “treinados” na universidade para fazer conta. Como reverter essa situação? Acredito
44 que indo atrás de livros e artigos publicados que tratam do assunto ajuda muito...
5.1.1 A análise da apropriação discursiva dos PCNEM de Física pelo Professor
Norte
O autor-pessoa é um professor de 31 anos, natural do Piauí, porém residente em
Tocantins onde leciona a disciplina de Física nos níveis médio e técnico de ensino em
uma instituição de ensino pública. Sua formação em Licenciatura Plena em Física
ocorreu em 2008 em uma instituição federal de ensino do estado do Piauí e possui
Especialização em Metodologia do Ensino de Matemática e Física.
O Estado do Tocantins ocupa hoje a 12ª posição dentre os 27 Estados, com 3,4
pontos no IDEB para o ensino médio de ensino. A Região Norte, a qual Tocantins
pertence, ocupa, com 3,3 pontos, a última posição dentre as regiões da federação,
juntamente com a região Nordeste (Fonte: INEP 2009).
O primeiro trecho do enunciado (linha1 a linha5) é um recorte dos três trechos
dos PCNEM solicitados pela atividade. No que diz respeito ao tema, trata da
necessidade de se explicitar o conhecimento físico como produto social e da ideia de
que a cultura em Física deve incluir o conhecimento sobre os dispositivos cotidianos.
As palavras “essencial” (linha 1) e “necessário” (linha 3) dão um tom prescritivo ao
texto. E, no que diz respeito à composição/estrutura é possível perceber a ocultação do
agente da passiva no texto, fato especialmente importante se recordarmos o fato de que
o enunciado bakhtiniano é um cenário 34 e que, neste caso, um dos principais
protagonistas - o professor - foi removido. “É essencial que o conhecimento físico seja
explicitado” (linha 1) por quem?
Sua justificativa (linha 7 a linha 14), acompanha, do ponto de vista do tema, o
trecho selecionado dos PCNEM. A primeira parte remete à importância do
conhecimento físico como produto social e a segunda à inclusão, na cultura sobre
Física, do conhecimento sobre “os princípios físicos que estão por trás das aplicações
práticas que movimentam nossa sociedade e nossa vida” (linha 12 a linha 14). Já no que
diz respeito à composição/estrutura, o autor explicita algo que estava oculto no trecho
selecionado: é importante que “o professor” (linha 9) possibilite que os alunos tenham
ciência. Além disso, o fato de não estar se falando de um professor específico faz com
que a expressão “o professor” seja sinônimo de “todos os professores”. A repetição
desta expressão, na linha 12, reforça a compreensão de que o autor se apropria dos
PCNEM enfatizando e reforçando o caráter prescritivo do documento. O acento próprio,
neste caso, consistiria na explicitação e extensão das prescrições aos demais
professores.
O segundo trecho selecionado (linha 16 a linha 18) dos PCNEM refere-se,
também, à necessidade de se considerar o mundo vivencial dos alunos, e mais uma vez,
aponta para a importância da compreensão dos dispositivos com que estes lidam
cotidianamente. A conjunção “ou” (linha 17), apesar de alternativa por excelência, tem
34
“Na poesia, como na vida, o discurso verbal é o cenário de um evento” (VOLOSHINOV, p.12).
aqui um caráter aditivo, e inclui, nos conteúdos a serem considerados pelo ensino de
Física, problemas e indagações que, apesar não fazerem parte do dia-a-dia dos alunos,
instigam sua curiosidade.
A justificativa do autor-criador (linha 20 a linha 27) para este trecho se modifica:
em vez de reverberar o tema do trecho selecionado, utiliza o tema como um critério de
classificação, dividindo os professores em dois grupos e criticando um deles. Esta
divisão é proposta no momento em que se refere a uma preocupação que “muitos
professores não têm” (linha 22 e linha 23). O primeiro grupo, criticado pelo autor, é
formado pelos professores que não têm a preocupação com os objetos cotidianos e a
curiosidade dos alunos quando planejam suas aulas. Suas ações didáticas são, quase que
exclusivamente, direcionadas no sentido de preparar os estudantes para os competitivos
exames de vestibular (linha 24 a linha 27). O segundo grupo seria formado pelos
professores que tem como objetivo “formar jovens capazes de relacionarem o que é
apresentado na sala de aula com sua vida, a sua realidade e o seu cotidiano” (linha 26 e
linha 27). Ao utilizar as palavras “muitos” (linha 22) e a expressão “é comum” (linha
23) para descrever o primeiro grupo deixa claro que este é significativamente maior que
o segundo. Assim, as aulas planejadas de acordo com os PCN formariam um cidadão
capaz de fazer relações entre o que aprende e o mundo à sua volta. Isso colocaria em
dúvida a qualidade da formação obtida com aulas que preparam diretamente e
exclusivamente para o vestibular. Dessa forma, o professor se apropriou do trecho em
questão para dirigir uma crítica aos seus colegas de profissão que preparam para os
exames vestibulares e reforçar a sua ideia de como o ensino de Física deve realizar-se considerando o mundo vivencial do aluno.
No terceiro trecho selecionado pelo autor (linha
29 a 33), o tema toca,
novamente, a presença da Física no cotidiano, porém, por um outro viés: o das
informações científicas veiculadas pelos meios de comunicação bem como das
habilidades necessárias para lidar com esse “arsenal de informações” (linha 29) - entre
elas, a leitura crítica destas informações. Pressupõe também uma sociedade cujo ritmo
de transformação é ditado - ou, pelo menos, fortemente influenciado - pelos temas
científicos.
Pela terceira vez, o autor-criador, inicia sua justificativa utilizando o verbo na
primeira pessoa do singular como recurso para se posicionar como locutor: “(eu)
selecionei esse trecho” (linha 37). Nas três primeiras linhas, acompanha o tema do
trecho selecionado. Nas linhas seguintes afirma que a “grande dificuldade dos
professores de física” (linha 40) é fazer a transposição do conteúdo da mídia para a sala
de aula, pressupondo assim que i) essa transposição é um dos pontos centrais do ensino
de física ii) a transposição, a ser feita pelo professor, é a melhor maneira de formar o
leitor crítico e atento a que se refere os PCN. Essa grande dificuldade é atribuída a uma
formação acadêmica deficiente, que treina os professores, inclusive o locutor evidenciado pelo uso da conjugação “somos” (linha 42) - para fazer conta (linha 43). O
locutor apresenta, como sugestão para que se supere essa dificuldade, a “leitura de
livros e artigos publicados que tratam do assunto” (linha 44), o que sugere i) uma
aproximação com a pesquisa da área, ii) uma importância da formação continuada,
formal ou informal e iii) a ideia de que uma das funções da pesquisa é prover soluções
para problemas concretos de prática de ensino. É importante perceber o fato de que a
mesma academia responsabilizada e criticada pela má formação inicial também publica
os livros e artigos que podem ajudar a resolver o problema apontado pelo autor-criador.
O autor-criador, então, se apropria deste trecho dos PCN para apontar a grande
dificuldade do professor de física, afirmar a importância da transposição do conteúdo da
mídia para o currículo de Física, para criticar a formação inicial - e, por consequência, a
academia - e para ressaltar a importância da formação continuada formal e informal.
No que diz respeito ao tema, destaco o fato de, dentre as várias dimensões do
ensino de Física abordadas pelos PCN, o autor ter escolhido apenas trechos relacionados
à dimensão vivencial. Entendo que, com isso, o autor se apropria dos PCN para
explicitar a centralidade do assunto para a sua concepção de ensino de Física. Podemos
ainda indicar que o fato de o professor ser recém-formado (ano de 2008), uma década
após os PCNEM de Física terem sido publicados – e toda a importância dada ao ensino
que leve em consideração o mundo vivencial do aluno – pode ter influenciado
fortemente sua formação docente neste sentido. O professor apropria-se, também, dos
PCN tanto para fazer uma prescrição dessa concepção de ensino aos outros colegas
quanto para diferenciá-los em dois grupos. Entendo que esse processo de constituição
da identidade profissional a partir da crítica aos colegas de profissão, apesar de não
dizer respeito diretamente à questão de estudo, é uma marca dos destinatários
supostos - no caso, os colegas professores - no enunciado. Já na prescrição de uma
determinada prática de ensino aos colegas, identifico uma marca do destinatário suposto
academia, no momento em que o autor está numa situação de formação continuada e
dialogando com os representantes da organização que oferece formação continuada que, eventualmente, poderá aceitar e implementar sua sugestão.
O autor apropria-se dos PCNEM, ainda, para dirigir suas críticas : i) ao ensino
preparatório exclusivo para o vestibular – do qual, a partir de suas informações pessoais,
ele não participa - que coloca em plano secundário a formação de jovens capazes de
relacionar, criticamente, o ensino de Física ao seu mundo vivencial; ii) a formação
inicial deficiente, que treina os professores para fazer contas, cuja crítica é feita até
mesmo em sua apresentação pessoal.
A partir dessas críticas e do todo estético do enunciado é possível fazer algumas
considerações acerca da perspectiva do autor sobre o documento no contexto estudado.
A primeira seria que o planejamento de ensino em consonância com a característica que
destaca dos PCNEM - a inclusão da contextualização, que, muito embora o autorcriador não tenha utilizado a palavra propriamente dita, alinha-se quando o autor-criador
referencia e destaca os temas do mundo vivencial - seria desejável e capaz de formar
cidadãos críticos. Nessa perspectiva, o ensino de acordo com os PCNEM teria qualidade
superior ao ensino que visa a preparar exclusivamente para ao vestibular. Podemos
perceber que para o professor, a deficiência do aluno em não aprender não se limita aos
aspectos cognitivos do ensino-aprendizagem, antes, porém, seria necessário dar as
ferramentas – ensino contextualizado - para que o aluno seja conduzido ao aprendizado,
que seja dado a ele a possibilidade de traduzir seus esquemas mentais em habilidades
(competências). Retomando as ideias de Lopes (2002), cuja afirmação é a de que a
contextualização é um dos processos de formação das competências necessárias ao
mundo produtivo, podemos perceber que o professor desconsidera outros aspectos
socioculturais e econômicos do processo de ensino-aprendizagem, agregando ao seu
discurso o discurso do eficientismo social. A segunda seria a de que a formação inicial,
ao não prepará-los para transpor o conteúdo da mídia para a sala de aula recomendação que identifica nos PCNEM - ignora o documento e suas orientações - ou
seja, o autor-criador indica que há uma ruptura entre os processos de formação inicial e
as políticas curriculares governamentais. Em contraposição, o autor-criador assume que,
uma das soluções para suprir tal deficiência da formação, encontra-se na formação
continuada, formal ou informal - através de livros e artigos publicados - onde se obtém
subsídios de implementar estas políticas. Além disso, no momento em que afirma que o
grande problema do professor de Física é o “como” transpor o conteúdo da mídia para a
sala de aula, o autor criador dá por correta, garantida e desejável a proposta dos PCN,
além de focar sua prática pedagógica apenas em aspectos metodológicos. Ela estaria
bastante além da atual realidade das salas de aula e se constituiria numa espécie de
solução ou de meta para o ensino de Física.
Assim como na pesquisa em ensino de Física, percebemos também que no
discurso do professor permanece a perspectiva do currículo como prescrição. Embora,
ele não conceda ao documento força de lei, fica evidente, a partir de seu reconhecimento
incondicional, que o professor assume o documento enquanto um discurso de
autoridade, ainda que seja dada uma valoração, um acento, uma intenção própria ao
empregar tal discurso. Neste sentido, como aponta Goodson (2007), há uma aceitação
dos modelos estabelecidos de relação de poder, o que pode tornar-se perigoso na medida
em que o professor não se assume enquanto intelectual transformador, que é capaz de
identificar as relações entre currículo, poder e sociedade nem enquanto propositor de
alternativas aos modelos vigentes.
5.2 O enunciado do Professor Sul
O enunciado do Professor Sul, tal qual ‘postado’ no fórum de discussão, em
resposta à atividade proposta, é apresentado abaixo.
1 Olá. Segue abaixo os trechos por mim escolhido e meus comentários. Grande abraço a
2 todos.
3
4 “O ensino de física tem-se realizado frequentemente mediante a apresentação de
5 conceitos e fórmulas, de forma desarticulada, distanciados do mundo vivido pelos
6 alunos e professores e não só, mas também por isso, vazios de significados.”
7
8 É o que acontece na grande maioria das vezes, a física é apresentada ao aluno como
9 sendo uma extensão da matemática, apenas, isto é, uma imensidão de equações a
10 serem decoradas e aplicadas, sem nenhum significado, sem nenhuma conexão com o
11 mundo real e então surge a fatídica pergunta, que muitos de nós ficamos reféns,
12 “onde eu uso isso? Para que eu aprendo isso?” e muitas e muitas vezes não sabemos
13 responder, por que também não sabemos, também questionamos e não obtivemos
14 resposta ou quando a obtivemos, reproduzimos: no vestibular, no próximo ano, no
15 próximo conteúdo. Precisamos nós, antes de mais ninguém identificarmos qual o
16 significado daquilo que estamos passando ao nosso aluno, para que ele articule os
17 conhecimentos formal e informal.
18
19 “Insiste na solução de exercícios repetitivos, pretendendo que o aprendizado ocorra
20 pela automatização ou memorização e não pela construção do conhecimento através
21 das competências adquiridas”
22
22 O quadro que se apresenta quando você ouve falar em física é esse, um monte de
23 equações para ser decoradas e muitos exercícios de memorização e repetição do que
24 foi trabalhado anteriormente. Tinha-se um modelo e a partir daí os demais seriam
25 parecidos com ele. Com os modelos de provas do ENEM, a mudança começa ocorrer
26 lentamente, a metodologia começa a ser modificada, mas ainda é um processo lento.
27 Talvez isso ocorra pelo nosso despreparo em trabalharmos dessa forma e também
28 porque muitos professores que atuam na área da física não tenham a formação
29 adequada, embora, também vejamos muitos com formação, trabalhando de forma a
30 priorizar o trabalho mecânico ao intelectual.
31 “É preciso rediscutir qual física ensinar para possibilitar uma melhor compreensão
32 do mundo e uma formação para a cidadania mais adequada. Sabemos todos que,
33 para tanto, não existem soluções simples ou únicas, nem receitas prontas que
34 garantam o sucesso.”
35 O ensino de física necessita sim de uma reformulação, é necessário adequar os
36 conteúdos de forma que venham a abranger o cotidiano do nosso aluno e comecem a
37 fazer sentido, caso contrário, continuaremos a “falar grego”. Contextualizar,
38 trabalhar de forma interdisciplinar, proporcionar ao aluno a construção do
39 conhecimento, em que este seja um sujeito ativo nesse processo e não mais passivo e
40 trabalhar aliando prática e teoria são sem dúvida algumas opções que já vem sendo
41 discutidas e rediscutidas ao longo dos anos. Faz-se necessário deixar de lado a
42 discussão somente e colocar essas propostas em prática. Fácil? Não, nunca é. Vai dar
43 certo? Talvez, somente tentando saberemos.
5.2.1 A análise da apropriação discursiva dos PCNEM de Física pelo Professor Sul
O autor-pessoa é um professor de 43 anos, natural do Rio Grande do Sul e
residente na cidade de São Vicente do Sul do mesmo Estado, onde leciona a disciplina
de Física nos níveis fundamental e médio em duas instituições públicas de ensino. Sua
formação em Física ocorreu em 2004 em uma instituição federal de ensino do Rio
Grande do Sul.
O Estado do Rio Grande do Sul ocupa hoje a 3ª posição dentre os 27 Estados
com 3,9 pontos no IDEB para o ensino médio de ensino. A Região Sul, a qual Rio
Grande do Sul pertence, ocupa, com 4,1 pontos, a primeira posição dentre as 5 regiões
da federação (Fonte: INEP 2009).
O professor inicia seu enunciado com uma saudação ‘a todos’ (linha1)
explicitando, assim, a quem seu enunciado se dirige. Esta introdução elege participantes
do curso e tutores como seus destinatários supostos.
O primeiro trecho selecionado dos PCNEM (linha 4 a linha 6) dirige uma crítica
ao ensino que apresenta ‘conceitos’ e ‘fórmulas’ (linha 5) desarticulados do mundo
vivencial de alunos e professores e, principalmente por este motivo, esses conceitos e
fórmulas acabam por se tornar vazios de significados. Por analogia, embora o trecho
não traga a palavra ‘contextualização’, podemos entender o documento sugere que este
‘vazio’ seja preenchido mediante um ensino contextualizado. Em relação à
composição/estrutura do trecho, a forma ‘tem-se realizado’ na voz passiva deixa
indeterminado o agente, já que o ensino de física torna-se o sujeito da frase. Fica em
aberto assim, quem tem realizado o ensino de forma desarticulada. Mais uma vez,
levando em consideração que o enunciado bakhtiniano é um cenário, temos um dos
principais protagonistas – o professor – removido propositalmente.
A justificativa do professor também segue nesta linha logo na primeiro período
do seu enunciado: quando diz que ‘a física é apresentada ao aluno’ (linha 8) ele também
oculta quem apresenta esta física. Além disso, o professor tem por intenção atribuir a
falta de sentido do ensino de física ao fato dele ser tratado apenas como uma ‘extensão
da matemática’ (linha 9), o que o transformaria em ensino sem nenhuma conexão com o
mundo real’ (linha 9). Assim como os PCNEM, embora o professor não utilize a
palavra ‘contextualização’, parece clara a sua concordância com este conceito, sua
intenção de inserir o conceito no processo de ensino-aprendizagem e sua crítica aos
professores que apresentam o ensino de Física apenas sob o enfoque matemático.
O professor se coloca pela primeira vez no enunciado como locutor – recurso
axiológico e estético para trazer a si mesmo como personagem do enunciado - no
momento em que utiliza a primeira pessoal do plural ‘nós’ (linha 11) para afirmar que,
assim como os outros professores, permanece refém de perguntas ainda sem respostas
do por quê ensinar física e onde utilizar estes conhecimentos. Para o professor, o motivo
de os professores – inclusive ele - não saberem responder estas indagações reside no
fato de, ao questionarem sobre estas perguntas, ‘não obtivemos respostas’ (linha 14) e,
segundo ele, quando as obtém, suas repostas reproduzem que o ensino de física serve
para o ´vestibular´ (linha 14), para compreender os ‘próximos conteúdos’ dos ‘próximos
anos’ (linha 14). O uso da palavra ‘reproduzir’ acaba por incluir o eco de outras vozes
no seu enunciado, que pretensamente, poderiam ser seus colegas, professores de Física e
talvez também de outras matérias, que repetem essa tradição.
Aqui podemos destacar que o professor, implicitamente, reconhece que os
próprios PCNEM de Física, embora sugiram um ensino contextualizado e próximo ao
mundo vivencial do aluno, não obtêm sucesso ao informar aos professores a que o
ensino de Física se propõe e quais são seus objetivos, deixando os professores à mercê
de discursos que propõem, por exemplo, a preparação para o exame vestibular. Se por
um lado o questionamento do professor sobre motivos ‘por quê’ ensinar Física poderia
ser interessante no sentido de manifestar um senso crítico diante do currículo de Física,
por outro, a importância exagerada dada por ele ao conceito de contextualização parece
indicar que essa forma de ensino é a resposta procurada, o que poderia ser, na visão de
Lopes (2002b), aproximada de um ‘eficientismo social’ já comentado anteriormente.
O professor finaliza a justificativa do trecho selecionado informando que ‘nós’
(linha15) – os próprios professores – ‘antes de mais ninguém’ (linha15) é que devemos
identificar o real significado daquilo que é passado aos alunos, retirando assim, a
responsabilidade das políticas curriculares oficiais sobre este aspecto. Por outro lado,
quando finaliza a sentença “para que ele articule os conhecimentos formal e informal”,
torna a reforçar a contextualização, como o meio de significar o ensino da Física.
A temática do segundo trecho selecionado refere-se, assim como o primeiro
trecho, a uma crítica ao ensino descontextualizado: ‘solução de exercícios repetitivos’
(linha19), ‘automatização e memorização’ (linha 20) de conteúdos e falta de ‘construção
de conhecimentos’ (linha 20) a partir das ‘competências adquiridas’ (linha 21). Cumprese destacar que neste trecho, assim como discutido na Revisão de Literatura sobre o
conceito de competência, há ausência de clareza sobre como essas ‘competências
adquiridas’ resultam em uma ‘construção de conhecimentos’. Além disso, a presença
dos verbos ‘adquirir’ – ideia de coisa pronta - e ‘construir’- ideia de coisa a ser
constituída - na mesma frase parece colocar ‘competências’ e ‘conhecimento’ em
extremos opostos.
A intenção do autor-criador em relação a escolha do trecho destacado
permanece: dirigir críticas ao ensino de Física excessivamente matemático e
descontextualizado.
Para o professor, o quadro atual ainda é o da Física apresentada mediante ‘um
monte de equações a ser decoradas’ (linha 24) e ‘exercícios de memorização e
repetição’ (linha 24). Porém, segundo ele, os modelos de prova do ENEM35 podem ser
considerados uma pequena mudança neste aspecto, embora ainda este seja um ‘processo
lento’ (linha 27). Ao utilizar o pronome possessivo em ‘nosso despreparo’ (linha 28), o
professor se assume despreparado para empreender tal mudança metodológica. Porém,
ao utilizar um pronome indefinido em ‘muitos professores’ (linha 29) para se referir à
falta de ‘formação adequada’ (linha 30) desses professores não fica claro se seu
despreparo também se relaciona à falta de formação. O que parece claro é que ele não se
coloca no grupo de professores que detém esta formação diferenciada capaz de
empreender um ensino mais contextualizado mas que ainda assim prioriza o ‘trabalho
mecânico ao intelectual’ (linha 31).
O terceiro trecho selecionado, em consonância com os anteriores, também
valoriza um ensino de Física que possibilite ‘uma melhor compreensão do mundo’
(linha 31). Entretanto, o trecho também destaca a necessidade de o ensino de Física
possibilitar ‘uma formação para a cidadania mais adequada’ (linha 33). Ao utilizar o
verbo conjugado na primeira pessoa do plural ‘sabemos todos’ (linha 34), o documento
intenta um viés mais intimista com o leitor - que muito embora saibamos, por analogia,
se tratar dos professores, mais uma vez omite este personagem. Assim, o documento
admite que todos têm conhecimento da dificuldade de se alcançarem tais objetivos e que
35
O Exame Nacional para o Ensino Médio (ENEM) tem como referência a LDB, os PCNEM, a Reforma
do Ensino Médio, bem como os textos que sustentam sua organização curricular em Áreas de
Conhecimento. O objetivo fundamental do exame é avaliar o desempenho do aluno ao término da
escolaridade básica, para aferir o desenvolvimento de competências fundamentais ao exercício pleno da
cidadania (MEC/INEP, 1998)
não existem ‘soluções simples ou únicas’ (linha 34) e nem ‘receitas prontas’ (linha 34)
que ‘garantam o sucesso’ (linha 35).
O início da justificativa do autor-criador pela escolha deste trecho se dá por
meio do verbo ‘é necessário’/‘necessita’ (linha 37) indicando que para ele não há outra
possibilidade para o ensino de física ‘fazer sentido’ (linha 39) a não ser ‘abranger o
cotidiano’ (linha 38) do aluno, pois, caso contrário, ‘continuaremos a falar grego’ (linha
39). Pela primeira vez em todo o enunciado, o professor explicitamente traz o termo
‘contextualizar’ (linha 39) – embora implicitamente a todo tempo a ele faça referência e o integra ao conceito de interdisciplinaridade – que em nenhum momento é citado
explicitamente em todo o documento (LOPES, 2002c) - para proporcionar ao aluno ‘a
construção do conhecimento’. A partir desta integração, o professor tem por intenção
tornar o aluno ‘sujeito ativo’ (linha 41) do processo. Como sugestão para atingir tais
objetivos, o professor sugere aliar ‘prática e teoria’ (linha 42), cuja união, segundo ele,
já tem sido ‘discutida e rediscutida’ (linha 43) ao longo dos anos, sendo o atual
momento o de deixar as discussões de lado para colocar as propostas em prática. Assim
como o documento, o professor afirma que a tarefa ‘nunca é’ (linha 43) fácil e cuja
possibilidade de dar ou não certo ele afirma que ‘somente tentando saberemos’ (linha
45). Também chama atenção na justificativa deste trecho, a ausência da apropriação,
pelo professor, do conceito de cidadania. Fica a hipótese de que a melhor compreensão
do mundo e a formação para a cidadania seriam a mesma coisa e que por meio da
contextualização e da interdisciplinaridade seria possível alcançar essa ‘coisa’.
A partir do que foi descrito e do todo estético do enunciado faço algumas
considerações acerca da perspectiva do autor sobre o documento no contexto estudado.
Destaco, primeiramente, o fato de, dentre as várias outras dimensões do ensino
de Física presente nos PCNEM, o autor ter escolhido apenas os trechos que faziam
menção à dimensão vivencial, ao ensino contextualizado. Entendo, com isso, que o
autor se apropria dos PCNEM majoritariamente com a intenção de apoiar a concepção
de ensino de Física contextualizado proposta no documento e, ainda, convencer os
demais participantes do curso da importância e vantagens da contextualização através
de um discurso persuasivo em que ele próprio se coloca enquanto ‘refém’ do ensino
matematizado e distante do mundo vivencial do aluno. Seu enunciado pode ser
entendido como uma espécie de chamamento dos outros professores a empreenderem
este tipo de ensino. A contextualização aparece então na perspectiva do professor como
a solução dos males do ensino de Física.
Embora utilize os trechos dos PCNEM para apoiar sua concepção de ensino
contextualizado, o professor não entende o documento como doador de respostas aos
seus questionamentos sobre como empreender tal ensino. Esta perspectiva parece se
alinhar com a crítica apontada na Revisão de Literatura do presente estudo em que,
muito embora o documento tente se afastar do ensino propedêutico e se aproximar do
mundo vivencial do aluno, ainda há fortes traços deste ensino propedêutico no texto do
documento, não oferecendo subsídios aos professores sobre como tornar o ensino, de
fato, significativo e próximo da realidade do aluno.
A perspectiva do ensino de Física contextualizado seria, para o professor,
requisito indispensável que, junto com a interdisciplinaridade, permitiria uma atuação
mais efetiva dos alunos na construção do conhecimento.
Assim como na pesquisa da área de Ensino de Ciências, se faz presente no
discurso do professor a perspectiva do currículo como prescrição, na medida em que ele
não traz nenhuma crítica aos modelos de relação entre currículo, poder e sociedade já
estabelecidos (Goodson, 2007). Assim, nesta perspectiva, o “como” fazer do currículo
se torna mais importante para o professor em questão do que o “por quê” e, assim como
textos da área apontam, a falta de formação adequada acaba por torna-se o principal
motivo para a não implementação das políticas curriculares.
Permanece então, em seu enunciado, uma aceitação acrítica daquilo que o
documento propõe, sem estabelecer diálogo com todo o conjunto de perspectivas
trazidas nos capítulos iniciais deste estudo: as intenções neoliberais e mercantilistas
presentes no documento; suas ambiguidades epistemológicas; a circunscrição do ensino
às habilidades e competências que visariam, assim como a contextualização, ao
eficientismo social,.
Embora não tenha abordado explicitamente, ao que parece, a perspectiva do
professor estaria de acordo também com a seleção de conteúdos que o documento
prescreve a nível nacional, desde que o conjunto de conteúdos mínimos sejam ensinados
de forma contextualizada e próximos à realidade dos alunos.
5.3 O enunciado do Professor Sudeste
O enunciado do Professor Sudeste, tal qual ‘postado’ no fórum de discussão, em
resposta à atividade 1 do curso, é apresentado abaixo.
1 Olá a todos
2 Demorei um pouco a responder, mas aí estão os trechos que escolhi:
3
4 1 - ...É necessário também que essa cultura em Física inclua a compreensão do
5 conjunto de equipamentos e procedimentos, técnicos ou tecnológicos, do cotidiano
6 doméstico, social e profissional.
7
8 De uma maneira geral, acho que as propostas do PCN são muito ambiciosas diante do
9 que temos hoje em termos de realidade na maioria das escolas. Esse trecho é um
10 pouco o exemplo disso. Concordo sim que deve-se incluir "a compreensão do
11 conjunto de equipamentos e procedimentos, técnicos ou tecnológicos, do cotidiano
12 doméstico, social e profissional", mas da forma como é colocado, me parece que há
13 uma obrigação de que esta e outras dezenas de coisas sejam feitas, mas só temos 2
14 ou 3 aulas por semana, e muitas vezes nenhum equipamento disponível. Como
15 cobrar do professor que isso seja feito? Acho importente sim que o parâmetro de
16 qualidade seja elevado, mas isso deve ser cobrado gradualmente, e de várias
17 instâncias, não só do professor.
18
19 2 - ...Enfatiza a utilização de fórmulas, em situações artificiais,desvinculando a
20 linguagem matemática que essas fórmulas representam de seu significado físico
21 efetivo. Insiste na solução de exercícios repetitivos, pretendendo que o aprendizado
22 ocorra pela automatização ou memorização e não pela construção do conhecimento
23 através das competências adquiridas.
24
25 Concordo que o ensino de física se utiliza de situações artificiais. Mas, teríamos
26 condições de ensinar a trabalhar situações "reais"? Com resistência do ar, fluxos
27 turbulentos, pêndulos físicos com atrito e tudo mais? Honestamente, não consigo
28 nem fazer com que os alunos entendam situações fisicamente mais simples, quanto
29 mais as mais complexas, com mais variáveis? Não acho que o uso de fórmulas
30 necessariamente desvincula o significado físico e privilegie a automatização e
31 memorização. Fórmulas existem como síntese de um processo de descoberta e
32 modelização visando a resolução de problemas mais simples, ou a simplificação de
33 algumas situações, que podem ser didaticamente trabalhadas. Como ensinar o que
34 (para mim...) é mais complexo, se não consigo nem fazer os alunos entender o que é
35 a princípio mais simples?
36
37 3 - ...Esse quadro não decorre unicamente do despreparo dos professores, nem de
38 limitações impostas pelas condições escolares deficientes. Expressa, ao contrário,
39 uma deformação estrutural, que veio sendo gradualmente introjetada pelos
40 participantes do sistema escolar e que passou a ser tomada como coisa natural.
41
42 Pouca gente dá atenção a isso. É muito fácil culpar o professor. Aliás, já vi
43 professores culparem outros professores pelo "fracasso" de suas aulas e outras
44 empreitadas, quando na verdade, deveriam ajudar-se e ter consciência de que
45 compartilham de um problema em comum. Acredito sim, de que seja um problema
46 estrutural, essencial, da natureza da origem do ensino, da forma como o ensino de
45 física foi concebido.
47
48 Em resumo, sei que é preciso mudar muita coisa, mas na prática, não sei o que fazer.
49 Leio e re-leio os PCNs, me parecem ótimas sugestões, concordo com a maioria, mas
50 acho que é preciso exemplos de como fazer. Atualmente, essa é a minha busca.
51
52 Um abraço a todos!
53 Professor Sudeste
5.3.1 A análise da apropriação discursiva dos PCNEM de Física pelo Professor
Sudeste
O autor-pessoa é um professor de 32 anos, residente na cidade de Cotia em São
Paulo, onde leciona a disciplina de Física nos níveis fundamental e médio em
instituições públicas de ensino. Sua formação em Licenciatura Plena em Física ocorreu
em 2009 em uma instituição federal de ensino de São Paulo.
O Estado de São Paulo ocupa hoje a 3ª posição dentre os 27 Estados, com 3,9
pontos no IDEB para o ensino médio de ensino. A Região Sudeste, a qual São Paulo
pertence, ocupa, com 3,8 pontos, a segunda posição dentre as 5 regiões da federação,
sendo ultrapassada apenas pela Região Sul (Fonte: INEP 2009).
O autor-criador inicia seu enunciado reconhecendo que demorou para responder
à atividades Sua intenção indica um pedido de desculpas e, consequentemente, de
consideração e estima com os participantes do curso e tutores.
O primeiro trecho destacado dos PCNEM refere-se a algo ‘necessário’ (linha 4)
e, sendo assim, imprescindível ao ensino de Física: incluir na cultura em Física, a
compreensão de aparatos e processos técnicos e tecnológicos do cotidiano do aluno –
seja ele doméstico, social ou profissional. O uso da palavra ‘necessário’ retoma a ideia
apresentada na ‘Revisão de Literatura’ de que, embora o documento afirme não ser uma
‘receita’ a ser seguida, algumas orientações são sim prescrições claras dirigidas ao
professor. Esta prescrição refere-se a um ensino de Física contextualizado que
possibilite ao aluno uma leitura científica dos instrumentos tecnológicos presentes no
cotidiano.
O professor inicia sua justificativa não se referindo, diretamente, à temática
destacada em si. Na verdade sua intenção é dirigir uma crítica ao documento: a de que
suas propostas são ‘muito ambiciosas’ (linha 8) para a ‘realidade na maioria das
escolas’ (linha 9). Ao utilizar ‘as propostas do PCN’ (linha 8) – em detrimento de ‘essa
proposta’ ou ‘a proposta acima’ - podemos entender que a crítica não se refere apenas
ao trecho destacado mas a todo documento. Essa perspectiva fica ainda mais clara na
oração seguinte, quando o professor afirma que o trecho é ‘um pouco o exemplo disso’
(linha 10 – grifo meu). Embora utilize o recurso gramatical da primeira pessoa do
singular para afirmar que concorda com o trecho destacado, a perspectiva do professor é
modulada com a expressão ‘na forma como é colocado’ (linha 12) para se reposicionar,
afirmando que as orientações do documento aparentam ser ‘uma obrigação’ (linha 13)
para que esta e outras ‘dezenas de coisas’ (linha 13) sejam feitas. Aqui parece claro que
o professor não assume o texto do PCNEM como um discurso de autoridade, mas
aponta que a própria maneira em que as orientações são colocadas no documento dá a
entender um caráter de obrigatoriedade dessas orientações. Sua intenção com esse
apontamento é o de trazer a impossibilidade do professor em cumpri-las pelo fato de ter
‘só 2 ou 3 aulas por semana’ (linha 14) e ‘nenhum equipamento disponível’ (linha 14).
Ao fazer a pergunta ‘Como cobrar do professor que isso seja feito?” (linha 14) o
professor parece estar indicando uma marca do seu destinatário suposto, ou seja, a quem
sua pergunta se dirige: à academia, representada pelos tutores do curso, e aos outros
participantes do curso.
O professor destaca que acha importante existir um ‘parâmetro de qualidade
elevado’ (linha 16) desde que seja implementado e ‘cobrado’ (linha 16) gradualmente e
de todas as instâncias, ‘não só do professor’ (linha 17). Neste trecho, o professor
identifica o documento com qualidade. A partir dessa identidade, sua perspectiva não é
de posicionar contra os PCNEM, mas de apontar as dificuldades de implementá-lo –
sendo inclusive desejável que fosse possível seguir suas orientações – em consonância
com a tendência das pesquisas na área de ensino de Ciências.
O segundo trecho destacado dos PCNEM tem por objetivo criticar o ensino de
Física até então praticado, que ‘enfatiza a utilização de fórmulas’ (linha 19) em
situações não reais – ‘artificiais’ (linha 19) – e que desvincula a linguagem matemática
que essas fórmulas ‘representam’ (linha 20) do seu real ‘significado físico’ (linha 20).
Também critica a solução de ‘exercícios repetitivos’ (linha 21) e a ‘automatização e
memorização’ (linha 22) em detrimento da ‘construção do conhecimento’ (linha 22) a
partir das ‘competências adquiridas’ (linha 23). Assim como ocorre em quase todo o
documento, a composição e a estrutura gramatical do texto não deixam claro quem, de
carne e osso, ‘enfatiza’ (linha 19) ou ‘insiste’ (linha 21) neste ensino tão criticado.
O autor-criador, de um modo geral, utiliza-se do mesma linha de argumentação
anterior: concorda com as orientações do documento, porém a elas dirige crítica quanto
as possibilidades de implementá-las. A marca do locutor – aquele que diz “eu” no texto
– assim como na primeira justificativa, também é muito forte nesta: o professor
continua trazendo, a todo tempo, verbos conjugados na primeira pessoa do singular para
se posicionar e participar como personagem do enunciado. Mais uma vez o professor
traz uma pergunta aos seus interlocutores – destinatários supostos – ‘teríamos condições
de ensinar a trabalhar situações reais?’ (linha 26). Seu posicionamento sobre o assunto,
iniciado com um ‘honestamente’ (linha 27) – dando a entender de que é algo que ele
próprio não gostaria de dizer, mas que é a realidade - é o de que sequer consegue
ensinar aos alunos ‘situações fisicamente mais simples’ (linha 29) quanto mais ‘as mais
complexas’ (linha 29). Assim, ensinar situações reais, na perspectiva do professor seria
ensinar situações que envolvessem ‘resistência do ar, fluxos turbulentos, pêndulos
físicos com atrito’ (linha 27). Nessa colocação, o professor elaborou uma identidade
entre situação artificial e situação simples, atribuindo assim, à primeira, um sentido que
não seria necessariamente o mesmo atribuído pelos autores do documento.
O professor considera que o uso de fórmulas não privilegie apenas a
‘automatização e memorização’ (linha 31) e que não necessariamente seu uso
desvincule o significado físico e sim que as fórmulas auxiliam na ‘modelização’ (linha
32) de ‘problemas mais simples’ (linha 33) ou ‘simplificação de algumas situações’
(linha 33) a serem trabalhadas didaticamente. Assumindo as situações simples como
opostas às situações reais (que seriam, assim, mais complexas), o professor parece
discordar dos PCNEM entendendo que o documento apontaria que as fórmulas –
utilizadas no nível médio de ensino – dariam conta de representar situações reais. Mais
uma vez utilizando como recurso para se posicionar uma pergunta dirigida aos tutores e
colegas, ele demarca bem que tudo que foi dito é um posicionamento dele – utilizando
para isso a expressão entre parênteses ‘para mim...’ (linha 34) .
Julgo importante destacar que embora no trecho selecionado dos PCNEM seja
feita referência à ‘construção do conhecimento’ (linha 22) e ‘competências adquiridas’
(linha 23) o professor se silencia a respeito destes termos e suas implicações. A
perspectiva do professor é essencialmente construída a partir das dicotomias o que é
proposto versus o que é possível e situação simples versus situação complexa..
O terceiro trecho selecionado tem por intenção não culpabilizar única e
exclusivamente os professores, pois o quadro de dificuldades no ensino-aprendizagem
de Física ‘não decorre unicamente do despreparo dos professores’ (linha 37 – grifo
meu). A primeira coisa que cumpre-se destacar é o fato do documento assumir,
tacitamente, que os professores estão despreparados para empreender tal ensino
proposto pelo documento. A segunda, refere-se à citação, explícita, de ‘professores’
(linha 37). Assim como exposto na Revisão de Literatura, o estilo e estrutura
composicional do documento se materializa com o apagamento do professor como
sujeito das orações, como aquele que realiza as ações. Porém, no tocante a quem são os
culpados, parece importante colocá-los, explicitamente, neste cenário. O documento
também assume as próprias limitações ‘escolares deficientes’ (linha 38) como outro
empecilho para melhoria do ensino de Física, mas não apenas. Para o documento existe
uma ‘deformação estrutural’ (linha 39) introjetada ‘gradualmente’ (linha 39) no sistema
escolar e que passou a ser tomada como ‘coisa natural’ (linha 40). Que tipo de
deformação estrutural seria essa? O documento não explicita.
A perspectiva do professor em relação ao assunto vai na direção apontada pelo
documento: o professor não pode ser o único culpado pelos problemas do ensino de
Física. Para ele ‘é muito fácil culpar o professor’ (linha 42) pelo ‘fracasso (linha 43) de
suas aulas. O professor afirma ainda que muitos de seus colegas professores se
culpabilizam mutuamente. Neste aspecto, o professor se posiciona afirmando que, na
verdade, esses professores deveriam se ajudar e terem consciência de que
‘compartilham um problema em comum’ (linha 45). Ainda utilizando a primeira pessoa
do singular ele se posiciona afirmando que o problema é sim ‘estrutural’ (linha 46) e
tenta definir qual seria. Para ele, o problema estaria na ‘natureza da origem do ensino’
(linha 46) e na ‘forma como o ensino de física foi concebido’ (linha 47).
O professor finaliza seu enunciado assumindo que é preciso ‘mudar muita coisa’
(linha 48), porém ele não sabe ‘o que fazer’ (linha 48). Isso indica que o professor
assume o documento como orientador de sua prática, mas que o mesmo não se
materializa. Assumindo uma concepção altamente prescritiva sobre o currículo, o
professor afirma que precisa de ‘mais exemplos de como fazer’ (linha 50) e que
atualmente esse ‘o que fazer’ (linha 28) configura a sua ‘busca’ (linha 50). Esse fato
parece trazer uma certa ambiguidade no seu discurso, pois, em outro momento do
enunciado, o professor critica o fato de os PCNEM se colocarem como uma obrigação a
ser seguida.
Com um ‘abraço a todos’ (linha 52) o professor se despede.
Diante do que foi exposto podemos afirmar que a intenção principal do autorcriador é utilizar os trechos destacados dos PCNEM para chamar atenção para as
impossibilidades de implementar as propostas nele contido. Assim, sua perspectiva é a
de que documento por si só – embora eleito como um ‘parâmetro de qualidade’ (linha
15) – não basta para que o ensino de Física sofra melhorias significativas. Assim, sob a
perspectiva desse professor, parece haver uma indicação de que a melhoria significativa
ocorreria caso fosse possível implementar aquilo que os PCNEM propõem. Em nenhum
momento o professor se opôs às orientações, indicando assim que elas são desejáveis
porém distantes da realidade escolar atual.
O professor, usa os trechos para expor a distância entre a qualidade, encontrada
nas orientações do documento e a realidade das escolas, mantendo sua preocupação
voltada para aspectos das dificuldades e (im)possibilidades de implementação do
currículo. Parece bem clara sua tentativa de se impor no enunciado, registrando a sua
voz, a sua perspectiva, a partir do seu posicionamento sempre na primeira pessoal do
singular (eu).
A partir daquilo que o professor disse concordar, podemos apontar que o
professor valoriza um ensino contextualizado, que inclua a compreensão de
equipamentos tecnológicos presentes no cotidiano do aluno. Ele entende também que o
documento recomenda o estudo de situações reais, interpretadas por ele como situações
físicas de maior complexidade.
O professor não se manifesta em relação a outros conceitos estruturantes dos
PCNEM tais como competências, habilidades, interdisciplinaridade, embora em um dos
trechos selecionados apareça claramente o termo ‘competência’ (linha 23).
De maneira geral, sua perspectiva está de acordo com a pesquisa em ensino de
Ciências que, em sua grande maioria, aceita acriticamente as orientações do documento
como padrão de qualidade e aponta para as dificuldades de implementá-lo. Ela também
se alinha com a concepção do currículo como prescrição, embora, como já comentado,
exista no seu discurso uma ambiguidade a esse respeito.
Outros diálogos com as perspectivas apresentadas na ‘Revisão de Literatura’ não
fizeram parte do enunciado do professor, como, por exemplo, as relações de poder
estabelecidas através do currículo, a submissão dos PCNEM ao mundo produtivo, etc.
5.4 O enunciado do Professor Nordeste
O enunciado do Professor Nordeste, tal qual ‘postado’ no fórum de discussão,
em resposta à atividade proposta, é apresentado abaixo.
1 Bom dia a todos. Espero que todos estejam gostando do curso como estou. Já fiz
2 alguns amigos, mesmo que virtuais e espero conhecer mais pessoas.
3 Um grande abraço e aí vai a minha resposta.
4
5 1 - “...o aprendizado da Física promove a articulação de toda uma visão de mundo,
6 de uma compreensão dinâmica do universo, mais ampla do que nosso entorno
7 material imediato, capaz portanto de transcender nossos limites temporais e
8 espaciais. Assim, ao lado de um caráter mais prático, a Física revela também uma
9 dimensão filosófica, com uma beleza e importância que não devem ser subestimadas
10 no processo educativo.”
11
12 Nos tempos de hoje, com toda a produção tecnológica advinda de estudos da física
13 (nosso entorno material), com todas as questões postas na relação da sociedade com
14 estes bens de consumo e as inevitáveis transformações sociais que elas geram
15 (dimensão filosófica) e, ainda, com todas as possibilidades de descobertas, dentro e
16 fora do nosso âmbito de domínio – planeta Terra - que nos trazem questões
17 milenares, como a existência de vida em outros sistemas, por exemplo, (visão de
18 mundo e compreensão do universo), é praticamente impossível pensar na sociedade
19 atual sem os conhecimentos básicos desta ciência.
20 Teríamos, pois a incumbência de levar conhecimentos relativos a estes problemas
21 postos para toda a comunidade – alfabetização e letramento científicos – e, com a
22 ajuda dos outros segmentos das ciências traçarmos soluções para a melhoria do nível
23 da qualidade de vida de todos.
24
25 2 - “O ensino de Física tem-se realizado frequentemente mediante a apresentação
26 de conceitos, leis e fórmulas, de forma desarticulada, distanciados do mundo vivido
27 pelos alunos e professores e não só, mas também por isso, vazios de significado.
28 Privilegia a teoria e a abstração, desde o primeiro momento, em detrimento de um
29 desenvolvimento gradual da abstração que, pelo menos, parta da prática e de
30 exemplos concretos.”
31
32 Não é raro vermos os alunos privilegiando esta forma de ensino. Isso se dá por conta
33 de uma certa “valorização” de uma única forma (ou manifestação) da inteligência.
34 Sabe-se que para o professor é muito mais cômodo trabalhar da forma conteudista,
35 pois com ela transfere-se a responsabilidade do aprender única e exclusivamente ao
36 aluno. Daí, o aluno que se sai bem com esta abordagem torna-se “o sabichão”, “o Rei
37 da cocada preta”, “o Cara”, etc. Assim, este aluno que apresenta tais facilidades
38 propaga para os outros que a única forma de se saber é esta, e como tem o aval do
39 professor, esta ideia se propaga e os outros passam a se conformar com resultados de
40 avaliações medíocres e, sabedores que são, de que a escola dará todas as chances
41 possíveis e imagináveis para que ele progrida, mesmo sem o domínio da disciplina,
42 ele faz o famoso jogo do “Ele finge que ensina, eu finjo que aprendo e vamos nós”.
43
44 3 - “Investigar tem, contudo, um sentido mais amplo e requer ir mais longe,
45 delimitando os problemas a serem enfrentados, desenvolvendo habilidades para
46 medir e quantificar, seja com réguas, balanças, multímetros ou com instrumentos
47 próprios, aprendendo a identificar os parâmetros relevantes, reunindo e analisando
48 dados, propondo conclusões.”
49
50 Como visto no item anterior, a forma de trabalho que é cômoda não é eficaz. A
51 eficácia do ensino de física deve ser buscada através de pesquisas e trabalhos
52 voltados à realidade da vida de todos.
53 Temos tantos exemplos da física aplicada ao cotidiano e a escola simplesmente se
54 nega a perceber isto, como se fosse o avesso da escola aquilo que é da vida prática.
55 Mas, para trabalhar desta forma o professor tem de suar a camisa. Muitas vezes tem
56 de abandonar seu “recanto” para ir ao mundo mostrá-lo ao educando, mas isso requer
57 esforço. Embora seja o modo mais gratificante de se trabalhar.
58 Enquanto o professor não se aperceber de que o mundo nos dá todo o ferramental
59 para trabalhar estaremos “malhando em ferro frio”. Ou a física invade o mundo dos
60 ou eles não aceitam a física!
5.4.1 A análise da apropriação discursiva dos PCNEM de Física pelo Professor
Nordeste
O autor-pessoa é um professor de 28 anos, residente na cidade de Fortaleza no
Estado do Ceará, onde leciona a disciplina de Física no nível Médio em instituições
públicas de ensino. Sua formação em Física ocorreu em 2007 em uma instituição
estadual de ensino do Ceará.
O Estado do Ceará ocupa hoje a 10ª posição dentre os 27 Estados, com 3,6
pontos no IDEB para o ensino médio de ensino. A Região Nordeste, a qual Ceará
pertence, ocupa, com 3,3 pontos, a última posição dentre 5 regiões da federação,
juntamente com a Região Norte (Fonte: INEP 2009).
O autor-criador inicia seu enunciado afirmando que está gostando do curso e que
espera que seus colegas também estejam gostando. Considera alguns dos participantes
do curso como amigos ‘mesmo que virtuais’ (linha 2) procurando estabelecer um certo
grau de proximidade com alguns de seus destinatários supostos.
O primeiro trecho escolhido pelo professor destaca a afirmação de que o
‘aprendizado de Física’ (linha 5) – colocado no texto como sujeito da frase – por si só é
capaz de possibilitar ao aluno uma articulação de ‘toda uma visão de mundo’ (linha 6).
Atente-se para o uso do pronome ‘toda’ que passa uma ideia de que o mundo, em toda
sua dimensão, poderá ser compreendido a partir dos conhecimentos da Física,
transcendendo assim os ‘limites temporais e espaciais’ (linha 8). E mais: o aprendizado
de Física também promoveria uma ‘compreensão dinâmica do universo’ mais ampla
que o ‘entorno material imediato’ (linha 7). Neste sentido, a Física teria um ‘caráter
mais prático’ (linha 8) – ligado a um entorno imediato – e também uma ‘dimensão
filosófica’ (linha 9) – transcendendo o espaço tempo. Pode-se depreender que o
documento pretendia aludir aos conhecimentos relativos à astronomia e à cosmologia. O
documento ainda destaca que a dimensão filosófica da Física – com sua ‘beleza e
importância’ (linha 9) não ‘devem’ (linha 9) ser ‘subestimadas no processo educativo’
(linha 10). O uso de ‘devem’ indica uma intenção de obrigação de se considerar tal
dimensão, podendo-se destacar, mais uma vez, a ambiguidade que existe nesta
obrigação e o fato de o documento afirmar não ser uma receita a ser seguida.
O professor inicia sua justificativa trazendo o leitor para o tempo presente – ‘nos
tempos de hoje’ (linha 12) – fazendo-se entender que nem sempre essa foi uma
realidade. Para compor esta parte do seu enunciado o professor utiliza verbos na
primeira pessoa do plural – nós – indicando que inclui e chama para a sua ‘causa’ os
demais professores. Na perspectiva do professor, possuir ‘conhecimentos básicos’ (linha
19) de Física mostra-se de extrema necessidade diante das ‘questões postas pela
sociedade, (...) das possibilidades de descobertas (...) das questões milenares, como a
existência de vida em outros planetas’ (linhas 13 a 18) sendo, inclusive, ‘praticamente
impossível pensar na sociedade atual sem os conhecimentos desta ciência” (linhas 18 e
19). O professor, ao utilizar palavras do próprio documento entre parênteses, parece
querer explicar o significado de cada um destes termos: ‘toda a produção tecnológica
advinda de estudos de física’ (linha 12) seria, na sua perspectiva, ‘nosso entorno
material’ (linha 13) e ‘as inevitáveis transformações sociais que elas geram’ (linha14)
seria a ‘dimensão filosófica’ (linha 15) do ensino de Física.
Tendo descrito o contexto no primeiro parágrafo, o professor chama os outros
professores à responsabilidade – utilizando o verbo na primeira pessoa do plural –
afirmando que todos os professores teriam a ‘incumbência’ (linha 20) de levar
‘conhecimentos relativos’ (linha..) a estes problemas ‘postos para toda a comunidade’
(linha..), alfabetizando e letrando cientificamente seus alunos e ‘com a ajuda de outros
segmentos das ciências’ (linha 22) o que permitiria então traçar ‘soluções para a
melhoria do nível de qualidade de vida de todos’ (linhas 22 e 23). O tempo verbal
utilizado pelo professor – ‘teríamos’ – isto é, o futuro do pretérito, passa a ideia de
hipótese, incerteza e irrealidade, pois seria algo que já deveria ter ocorrido no passado,
mas que ainda não aconteceu no presente e espera-se que se realize no futuro. O
professor, embora não enuncie explicitamente o termo ‘interdisciplinaridade’, aponta
que para se atingir o objetivo maior – ‘qualidade de vida de todos – as outras ciências
devem se aliar à Física, ou vice-versa. A apropriação que o professor faz do documento
preenche o vazio deixado pelas expressões ‘visão de mundo’ e ’mundo vivido’ de uma
forma muito mais ampla e abrangente que possivelmente os autores dos documentos
quiseram significar – embora, assim como os documentos, também as relacione como
sendo parte de um ensino contextualizado. Formulado no contexto atual, o enunciado do
professor dialoga com uma realidade ambiental muito diferente daquela existente do
final da década de 90, quando os PCNEM foram escritos. Ele vai muito além do
documento, chamando a responsabilidade dos professores em resolver problemas
sociais e conseguir melhorar a qualidade de vida das pessoas.
O segundo trecho selecionado dos PCNEM (linha 25 a 26) dirige uma crítica ao
ensino de Física, que apresenta conceitos e fórmulas desarticulados do mundo vivencial
de alunos e professores e, por este motivo, esses conceitos e fórmulas acabam por se
tornarem vazios de significados. Por analogia, embora o trecho não traga a palavra
contextualização, podemos entender que o documento sugere que este ‘vazio’ pode ser
preenchido mediante um ensino contextualizado. Em relação à composição/estrutura do
trecho, é possível perceber a ocultação do agente da passiva – quem tem realizado o
ensino de forma desarticulada? – fato também constatado no trecho destacado pelo
Professor Sul. Mais uma vez, levando em consideração que o enunciado bakhtiniano é
um cenário, temos um dos principais protagonistas – o professor – removido do
contexto. O trecho do documento continua dirigindo críticas ao ensino que ‘privilegia a
abstração’ (linha 28) e ‘desde o primeiro momento’ (linha 28)
não engloba um
desenvolvimento gradual dessas abstração que, ao menos, ‘parta da prática e de
exemplos concretos’ (linha 30). Assim, o documento não se assume enquanto contrário
à abstração no ensino de Física e sim na forma desarticulada dessa abstração com o
mundo vivencial e casos concretos.
A principal intenção do professor não parece, de antemão, criticar o ensino
descontextualizado e sim a valorização do ensino conteudista como uma ‘única forma
(ou manifestação) de inteligência’ (linha 33). Neste sentido, quando ele declara que para
os professores ‘é muito mais cômodo trabalhar da forma conteudista’ (linha 34) pelo
fato de que nesta forma de ensino ‘transfere-se a responsabilidade de aprender única e
exclusivamente ao aluno’, fica claro que seu olhar para o ensino puramente abstrato e
descontextualizado é de reprovação e que este tipo de ensino é prevalente apenas por ser
o mais cômodo para o professor. Não fica claro em seu discurso se o aluno tem ou não
uma parcela de responsabilidade no seu aprendizado ou se o professor torna-se
inteiramente responsável pelo processo: o que fica claro é que não é apenas o aluno o
culpado pelo seu não aprendizado. Sua crítica à aprendizagem excessivamente abstrata
fica clara também pelos ‘apelidos’, que expressam um tom pejorativo, dados aos alunos
que conseguem obter êxito, tais como ‘o sabichão’ (linha 36), ‘o rei da cocada preta’
(linha 37), ‘o cara’ (linha 37). O professor também afirma que esta realidade se propaga
aos outros alunos menos favorecidos por este tipo de aprendizagem que também passam
a considerá-la a ‘única forma de saber’ (linha 38) e, com o aval do professor, passam a
se conformar com ‘resultados medíocres’ (linha 40) com a certeza de que a escola ‘dará
todas as chances possíveis e imagináveis’ (linha 41) para que ‘ele progrida mesmo sem
o domínio da disciplina’ (linha 41). O professor ainda aponta que este quadro faz parte
do ‘famoso jogo’ (linha 42) ‘ele finge que ensina, eu finjo que aprendo’ (linha 42).
Analisando esse trecho do enunciado mais profundamente podemos indicar uma
ambiguidade no discurso do professor: se por um lado ele critica o ensino abstrato como
única forma de saber, por outro ele critica o fato de que a escola dê chances de o aluno
passar de ano sem ‘domínio da disciplina’, ficando implícita que este domínio da
disciplina se relaciona com o ensino abstrato.
No terceiro trecho destacado percebe-se uma sequência lógica e rígida de passos
que começa pela observação – ‘investigar’ (linha 44) e culmina com a proposição de
‘conclusões’. Assim como abordado na ‘Revisão de literatura’, essa sequência remete
ao empirismo e a um pretendo método científico, na medida em que apaga o papel da
teoria no processo de construção do conhecimento científico. Esse apagamento da
construção do conhecimento fica ainda mais evidente quando destaca-se o
‘desenvolvimento de habilidades’ (linha 46), que como vimos, juntamente com as
competências, visam ao ‘saber fazer’.
O professor inicia sua justificativa afirmando que a ‘forma de trabalho mais
cômoda não é a mais eficaz’ (linha 50). Essa forma de trabalho refere-se à tratada no
‘item anterior’ (linha 50), ou seja, o ensino conteudista. Na perspectiva do professor ‘a
eficácia do ensino de física’ deve ser buscada ‘através de pesquisas e trabalhos voltados
à realidade da vida de todos’. Em parte, podemos interpretar esta perspectiva do autorcriador como uma marca de seus destinatários supostos – os tutores que são também
pesquisadores - e o fato de ele buscar um curso de formação continuada numa
instituição de ensino voltada para a pesquisa e ensino. Por outro lado, ao tornar como
objeto dessa ‘pesquisa’ a realidade da vida de todos, ele chega, finalmente à
contextualização, que parecia implícita nos outros trechos, como a solução para o
problema do ensino de Física, apontado pelos PCNEM.
O professor continua seu enunciado afirmando que ‘a escola’ (linha 53) se nega
a perceber que existem ‘tantos exemplos de física aplicada ao cotidiano’ (linha 53). O
motivo dessa omissão da escola não se mostra clara no enunciado do professor e ele
coloca como hipótese a ideia de que o ‘avesso da escola’ (linha 54) seria ‘aquilo que é
da vida prática’ (linha 54). O professor também aponta as dificuldades enfrentadas pelos
próprios professores para empreenderem tal ensino, tendo que ‘suar a camisa’ (linha 55)
e ‘abandonar seu recanto para ir ao mundo mostrá-lo ao educando’ (linhas 55 e 56). O
professor conclui seu enunciado afirmando que ‘o mundo nos dá todo o ferramental’
(linha 58) para trabalhar e caso não percebamos isso estaremos ‘malhando em ferro frio’
(linha 60) e, fatalisticamente, afirma que ‘ou a física invade o mundo dos alunos ou eles
não aceitam a física’ (linha 61) indicando que só há um caminho a ser seguido para que
se logre êxito no ensino de Física junto aos alunos: o conhecimento contextualizado.
Considerando o enunciado como um todo, para o professor, o ensino de Física
que considere o mundo vivencial dos alunos seria requisito indispensável que, junto
com a interdisciplinaridade – ‘outros segmentos das ciências’ – permitiria uma melhoria
na qualidade de vida do alunos. A perspectiva do professor vai além de concordar com o
documento, atribuindo a contextualização papéis muito mais abrangentes e relevantes,
como a do letramento científico e à possiblidade de melhoria da qualidade de vida de
todos.
5.5 O enunciado do Professor Centro-Oeste
O enunciado do Professor Centro-Oeste, tal qual ‘postado’ no fórum de
discussão, em resposta à atividade 1 do curso, é apresentado abaixo.
1 Olá a todos, os trechos escolhidos por mim são os abaixo descritos.
2
3 “Para isso, é imprescindível considerar o mundo vivencial dos alunos, sua realidade
4 próxima ou distante, os objetos e fenômenos com que efetivamente lidam, ou os
5 problemas e indagações que movem sua curiosidade” pg 3
6
7 Escolhi este trecho pois devemos levar em consideração os conhecimento que os
8 alunos tem, todos os alunos tem um certo conhecimento que trazem para a sala de
9 aula, então a partir dos conhecimentos que eles trazem, podemos elaborar uma
10 discussão e então encaminhá-los para o que se deseja, e com isso fica mais fácil
11 construir o conhecimento, pois são os alunos que dão inicio aos trabalhos, exemplo
12 real é o livro Na vida dez, na escola zero de Terezinha Carraher, e outros, onde na
13 feira o personagem fazia as contas e passava o troco e na escola não conseguia
14 efetuar tais contas.
15
16 “Forma e conteúdo são, portanto, profundamente interdependentes e condicionados
17 aos temas a serem trabalhados”pg 3
18
19 Como havia uma certa continuação nos trechos este segundo evidencia os
20 planejamentos que devemos fazer para que o mundo vivencial dos alunos sejam
21 privilegiados e incluídos, é bem possível que isso só ira se realizar com a prática,
22 pois o planejamento acontece antes do contato com os alunos, porém podemos ter
23 uma ideia das duvidas e dos conhecimentos que os alunos trazem.
24
25 “Como ponto de partida, trata-se de identificar questões e problemas a serem
26 resolvidos, estimular a observação, classificação e organização dos fatos e
27 fenômenos à nossa volta segundo os aspectos físicos e funcionais relevantes” pg 4
28
29 E, como há um encadeamento das ideias, tem que ter um desenvolvimento, este
30 trecho retrata bem como poderemos desenvolver as habilidades e incluir no nosso
31 planejamento por em pratica toda essa gama de conhecimentos, através das
32 orientações do trecho em questão.
33
34 Bons estudos a todos. Professor H
5.5.1 A análise da apropriação discursiva dos PCNEM de Física pelo Centro-Oeste
O autor-pessoa é um professor de 40 anos, residente na cidade Valparaizo no
Estado de Goiás, onde leciona a disciplina de Física no nível médio de ensino em uma
instituição pública estadual de ensino. Sua formação em Licenciatura Plena em Física
ocorreu em 2009 em uma instituição particular no Distrito Federal.
O Estado e Goiás ocupa hoje no IDEB para o ensino médio de ensino a 12ª
posição dentre os 27 Estados, com 3,4 pontos. A Região Centro-Oestes, a qual Goiás
pertence, ocupa, com 3,5 pontos, a terceira posição dentre as 5 regiões da federação
(Fonte: INEP 2009).
O primeiro trecho destacado pelo autor-criador dos PCNEM (linhas 3 a 5)
refere-se à necessidade de se considerar o mundo vivencial dos alunos e da importância
da compreensão dos dispositivos com que estes lidam cotidianamente. A conjunção
“ou” (l.17), apesar de alternativa por excelência, tem aqui um caráter aditivo, e inclui,
nos conteúdos de Física a serem considerados, problemas e indagações que, ainda que
não façam parte do dia-a-dia dos alunos, instigam sua curiosidade. A palavra
“imprescindível” (linha 3) é responsável pelo tom altamente prescritivo empregado pelo
documento.
O autor-criador se apropria do trecho dos PCNEM para corroborar a sua
concepção de ensino que leva em consideração ‘os conhecimentos que os alunos tem’
(linha 8). Podemos supor que esta consideração aproxima-se de uma noção cognitivista
de ensino academicamente consideradas ‘concepções construtivistas sobre a
aprendizagem’ - mais especificamente ‘concepções prévias’ 36 . Para ele, é de suma
importância ‘elaborar discussão’ (linha 10) que se encaminhe para o que os alunos
desejam, ficando assim, os alunos encarregados de dar ‘início aos trabalhos’ (linha 11).
Assim, o professor aproxima o sentido do mundo vivencial, dos objetos e fenômenos do
cotidiano ou dos problemas que movem a curiosidade do aluno, presentes no
documento, de seus conhecimentos sobre pré-concepções dos alunos , trazendo
inclusive a expressão ‘construir conhecimento’ - em detrimento de ‘adquirir’ cuja ideia
perpassa a de o aluno apenas como um depósito de conhecimento - e a citação do livro
“Na vida dez, na escola zero” (linha 12) no qual o aluno que trabalha numa feira ‘fazia
contas e passava troco’ (linha 13) e na escola, onde este mundo vivencial do aluno não
era considerado, esse aluno não conseguia realizar tais contas. Na composição do
enunciado, o professor emprega a todo tempo sua própria voz utilizando-se para isso
verbos na primeira pessoa do singular e também traz ao enunciado seus colegas quando
emprega verbos na primeira pessoa do plural.
O segundo trecho dos PCNEM destacado pelo professor trata da relação forma e
conteúdo: afirma serem profundamente interdependentes e condicionados aos temas
trabalhados.
36
Nesta concepção considera-se que alunos trazem para a sala de aula teorias e explicações sobre o seu o
seu cotidiano oriundas de várias fontes, tais como conversas com amigos, familiares, mídia, contextos
social e cultural, entre outras. Estas apresentam um caráter espontâneo, antes de intervenções na escola e
referenciam explicações do mundo embasadas basicamente na experiência e nas percepções sensoriais.
Portanto, são de nível conceitual menos complexo e estão relacionadas com o que se convencionou
chamar de conhecimento cotidiano, um conhecimento experiencial e muito contextualizado (GARCIA,
1998, 199 apud KRUGER e GIL, 2005)
O professor inicia sua justificativa afirmando que esta ideia é uma continuidade
do trecho que ele destacou acima. Para ele este segundo trecho evidencia como devem
ser realizados os planejamentos para se alcançar o mundo vivencial do aluno no ensino
de Física, isto é, que este mundo vivencial seja ‘privilegiado e incluído’ (linha 21) em
todos os planejamentos realizados. O professor afirma que apenas com ‘a prática’ (linha
21) é que ‘isso irá se realizar’ (linha 21) pois apenas após o ‘contato com os alunos’
(linha 22) é que se pode ter conhecimento das ‘dúvidas’ (linha 23) e dos
‘conhecimentos’ (linha 23) que estes alunos trazem. Mais uma vez parece clara que essa
perspectiva do professor se alinha com a teoria sobre concepções prévias dos alunos.
Podemos perceber que a relação estabelecida pelo professor com os PCNEM,
especificamente, é de que ele não é um discurso completo, pois apenas a partir da
própria prática é que o professor conseguirá atender melhor às necessidades dos seus
alunos. A composição do texto ainda se dá na primeira e terceira pessoa do singular, já
deixando bem delimitado que seu discurso pretende-se persuasivo: sua intenção é
chamar os outros professores participantes do curso para corroborar suas perspectivas.
O terceiro trecho destacado podemos considerar que as palavras usadas remetem
ao pretenso método científico. Embora use ‘ponto de partida’ no singular, estes são
vários: ‘identificar questões e problemas a serem resolvidos, estimular a observação,
classificação e organização dos fatos e fenômenos à nossa volta segundo os aspectos
físicos e funcionais relevantes’ (linhas 25 a 27). O documento não faz referência ao
professor enquanto sujeito das ações de ‘identificar’, ‘estimular’, etc. Mais uma vez,
assim como abordado nas análises anteriores, há o apagamento do professor enquanto
personagem do cenário trazido pelos PCNEM de Física.
Iniciando mais uma vez pela afirmação de que o trecho destacado faz parte de
um encadeamento de ideias, o professor afirma que o mesmo ‘retrata bem’ (linha 30)
como se pode ‘desenvolver as habilidades’ e, assim, incluir no ‘nosso planejamento’
(linha 31) – dele e de todos os professores – essa ‘gama de conhecimentos’ (linha 31)
trazidas pelo documento. É interessante notar que o professor não dialoga com os
termos trazidos pelo PCNEM, que remetem ao pretenso método científico e se apropria
deste trecho incluindo o desenvolvimento de habilidades. Cabe destacar que em nenhum
dos trechos houve o uso de tal termo. Embora não tenha explicitado, parece que ele está
se referindo ao desenvolvimento das habilidades dos alunos, mas por outro lado, assume
que os PCNEM também se voltam para orientar os professores, em como por em prática
os conhecimentos trazidos pelo documento. Aqui, a perspectiva do professor é a de
assumir o documento enquanto conhecimento e enquanto orientador de sua prática.
De uma maneira geral, o professor tem por objetivo principal valorizar o ensino
que se inicie a partir do conhecimento do aluno, que aproximou do mundo vivencial e
do ensino contextualizado, enfatizado no documento. Seu público alvo são seus colegas
professores a quem ele coloca a todo tempo no cenário do enunciado com o uso do
verbo na primeira pessoa do plural.
Percebe-se que ao se apropriar de ‘desenvolvimento de habilidades’, que
complementa o ensino por competências, o professor parece priorizar o ‘aprender a
fazer’ - já discutido na Revisão de Literatura do presente estudo.
O professor assume explicitamente, no terceiro trecho, uma posição de aceitação
das orientações dos PCNEM e desconsiderando as relações de poder que podem estar
implicadas no currículo ao dar ao documento o status de ser uma
‘gama de
conhecimento’ (linha 31) e toma o currículo como prescrição na medida em valorizar e
aceita acriticamente suas orientações.
6. SÍNTESE DA ANÁLISE, DISCUSSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo do presente estudo consistiu em identificar, a partir do conceito
bakhtiniano de apropriação, perspectivas de professores de Física acerca dos PCNEM
em enunciados redigidos por eles em resposta a uma atividade proposta no âmbito de
um curso de extensão a distância. A partir da síntese das perspectivas de cada professor
apresentadas na primeira seção deste capítulo e entendendo a perspectiva como a voz, o
posicionamento do professor, retomo as questões da pesquisa, que irão balizar a
discussão e as considerações finais, na seção seguinte: Como os professores, em seus
enunciados, se posicionam diante das políticas curriculares, em especial, diante dos
PCNEM de Física? Qual concepção de currículo e o posicionamento diante da
implementação de um currículo nacional estão implícitos na perspectiva do professor?
Quais as aproximações e afastamentos encontrados entre as perspectivas dos professores
investigados?
6.1 Síntese da análise
Os cinco enunciados analisados respondiam a uma atividade que solicitava que
os professores escolhessem três trechos dos PCNEM de Física e justificassem suas
escolhas. Sendo os PCNEM, o herói – aquilo sobre o que se fala – no cenário desenhado
pelos enunciados, é importante observar que a escolha dos trechos do documento
(Quadro 3) já é parte da apropriação que cada professor faz do documento.
Quadro 3: Trechos do PCNEM escolhidos pelos professores
Professor
Trechos dos PCNEM
Nordeste
“O aprendizado da Física promove a articulação de toda uma visão de mundo,
de uma compreensão dinâmica do universo, mais ampla do que nosso entorno
material imediato, capaz portanto de transcender nossos limites temporais e
espaciais. Assim, ao lado de um caráter mais prático, a Física revela também
uma dimensão filosófica, com uma beleza e importância que não devem ser
subestimadas no processo educativo”
“O ensino de Física tem-se realizado frequentemente mediante a apresentação
de conceitos, leis e fórmulas, de forma desarticulada, distanciados do mundo
vivido pelos alunos e professores e não só, mas também por isso, vazios de
significado. Privilegia a teoria e a abstração, desde o primeiro momento, em
detrimento de um desenvolvimento gradual da abstração que, pelo menos,
parta da prática e de exemplos concretos”
Sudeste
“Investigar tem, contudo, um sentido mais amplo e requer ir mais longe,
delimitando os problemas a serem enfrentados, desenvolvendo habilidades para
medir e quantificar, seja com réguas, balanças, multímetros ou com
instrumentos próprios, aprendendo a identificar os parâmetros relevantes,
reunindo e analisando dados, propondo conclusões.”
“É necessário também que essa cultura em Física inclua a compreensão do
conjunto de equipamentos e procedimentos, técnicos ou tecnológicos, do
cotidiano doméstico, social e profissional.”
“Enfatiza a utilização de fórmulas, em situações artificiais, desvinculando a
linguagem matemática que essas fórmulas representam de seu significado físico
efetivo. Insiste na solução de exercícios repetitivos, pretendendo que o
aprendizado ocorra pela automatização ou memorização e não pela construção
do conhecimento através das competências adquiridas.”
Sul
“Esse quadro não decorre unicamente do despreparo dos professores, nem de
limitações impostas pelas condições escolares deficientes. Expressa, ao
contrário uma deformação estrutural, que veio sendo gradualmente introjetada
pelos participantes do sistema escolar e que passou a ser tomada como coisa
natural.”
“Insiste na solução de exercícios repetitivos, pretendendo que o aprendizado
ocorra pela automatização ou memorização e não pela construção do
conhecimento através das competências adquiridas”
“O ensino de física tem-se realizado frequentemente mediante a apresentação
de conceitos e fórmulas, de forma desarticulada, distanciados do mundo vivido
pelos alunos e professores e não só, mas também por isso, vazios de
significados.”
Centro-Oeste
“É preciso rediscutir qual física ensinar para possibilitar uma melhor
compreensão do mundo e uma formação para a cidadania mais adequada.
Sabemos todos que, para tanto, não existem soluções simples ou únicas, nem
receitas prontas que garantam o sucesso.”
“Para isso, é imprescindível considerar o mundo vivencial dos alunos, sua
realidade próxima ou distante, os objetos e fenômenos com que efetivamente
lidam, ou os problemas e indagações que movem sua curiosidade”
“Forma e conteúdo são, portanto, profundamente interdependentes e
condicionados aos temas a serem trabalhados”
Norte
“Como ponto de partida, trata-se de identificar questões e problemas a
serem resolvidos, estimular a observação, classificação e organização dos fatos
e fenômenos à nossa volta segundo os aspectos físicos e funcionais relevantes”
“É essencial que o conhecimento físico seja explicitado como um processo
histórico, objeto de contínua transformação e associado às outras formas de
expressão e produção humana. É necessário também que essa cultura em Física
inclua a compreensão do conjunto de equipamentos e procedimentos, técnicos
ou tecnológicos, do cotidiano doméstico, social e profissional.
“É imprescindível considerar o mundo vivencial dos alunos, sua realidade
próxima ou distante, os objetos e fenômenos com que efetivamente lidam, ou
os problemas e indagações que movem sua curiosidade”
“Lidar com o arsenal de informação atualmente disponível depende de
habilidades para obter, sistematizar, produzir e mesmo difundir informações,
aprendendo a acompanhar o ritmo de transformação do mundo em que
vivemos. Isso inclui ser um leitor crítico e atento das notícias científicas
divulgadas de diferentes formas: vídeos, programas de televisão, sites da
internet ou notícias de jornais.”
Os trechos selecionados pelos cinco professores têm como tema o ensino
contextualizado, sendo que três destacam ainda, trechos que criticam o ensino
propedêutico baseado na memorização ou no uso de fórmulas sem significado para o
aluno e distantes do seu mundo vivencial. Cumpre-se destacar que diante de um
documento com nove páginas, alguns professores selecionaram o mesmo trecho,
conforme destacado na tabela em cores iguais.
O Quadro 3 permitiu-nos observar uma uniformidade entre os trechos
selecionados pelos professores de Física investigados, apesar de atuarem nas diferentes
regiões do país. Todos elegeram a crítica ao ensino tradicional (ainda que dois
professores, apenas implicitamente) e a defesa do ensino contextualizado para
dissertarem em suas justificativas.
A partir do Quadro 3, não seria difícil prever que as perspectivas enunciadas
estariam relacionadas ao ensino contextualizado. Além de se apropriarem de temas
semelhantes, essas perspectivas silenciam-se em relação a outros aspectos mencionados
nos trechos destacados, como por exemplo, cidadania, leitura crítica da mídia e a todos
os outros aspectos que estão no restante do documento, não selecionados pelos
professores, como por exemplo, a menção feita ao final do documento, à abordagem
CTS.
Porém, é na justificativa de determinada escolha, que se materializa a
apropriação em si na medida em que o autor preenche de significado termos, conceitos e
ideias não detalhados pelo documento, empregando assim à palavra do outro – o
documento - seu próprio tom valorativo, sua própria intenção, seu próprio acento. Sua
apropriação é feita por meio do diálogo com uma cadeia particular de enunciados, com
o contexto extraverbal e com o seu contexto individual.
Na medida em que o dispositivo utilizado permitiu descrever detalhadamente
vários aspectos da apropriação dos PCNEM (Quadro 4) que estavam imbricados na
construção de cada perspectiva, pudemos ver semelhanças e diferenças entre elas, no
que diz respeito a vários aspectos que estão ligados às questões de pesquisa.
Quadro 4: Síntese dos principais aspectos da apropriação dos PCNEM pelos
professores
Principais
aspectos da
apropriação
Posicionamen
to em relação
ao documento
Intenções
Prof Sudeste
Prof Sul
Prof Nordeste
Prof Norte
Aceitação
Prof
CentroOeste
Aceitação
Aceitação
Aceitação
Criticar as
propostas dos
PCNEM na
medida de suas
impossibilidades
de
implementação,
especialmente do
ensino
contextualizado –
que é aceito e
desejado pelo
professor
Criticar o ensino
preparatório
exclusivo para o
vestibular e
distanciado do
mundo vivencial
do aluno e a
formação inicial
deficiente, que
treina os
professores a
fazer contas
Chamar os
professores à
responsabilidade
de formação em
ensino de Física
que considere o
mundo vivencial
de seus alunos e
que esse
aprendizado em
Física seja capaz
de traçar soluções
para melhoria da
Valorizar o
ensino que
propicie a
construção
de
conhecimen
to, que se
inicia a
partir dos
conhecimen
tos prévios
dos alunos,
que
aproximou
Apontar o
ensino
contextualiz
ado como
imprescindí
vel ao
ensino de
Física
Aceitação
Concepção de
currículo
Posicionamen
to em relação
ao currículo
nacional
Prescritiva
Prescritiva
qualidade de vida
desses alunos.
Prescritiva
Não há
Não há
Não há
do mundo
vivencial
Prescritiva
Prescritiva
Não há
Não há
A partir das análises realizadas, é inegável que os enunciados dos professores
investigados apresentam uma perspectiva favorável em relação aos PCNEM de Física.
Todos os professores se manifestaram favoráveis aos PCNEM, se apropriando da crítica
que o documento faz ao ensino propedêutico, como se estivessem ‘vestindo a carapuça’.
Além de concordarem com a crítica, concordam com o principal caminho apontado pela
legislação: o ensino contextualizado.
Embora nem sempre explicitem a palavra contextualização, todos os professores
aproximam a expressão mundo vivencial do ensino contextualizado, operando
praticamente uma relação de identidade entre ambos, sentido aparentemente desejável
do ponto de vista do documento. Ainda em consonância com este sentido, o Professor
Centro-Oeste o esclarece aproximando-o dos conhecimentos prévios trazidos pelos
alunos, etapa considerada por ele, imprescindível para a construção do conhecimento.
Entretanto, o Professor Nordeste vai bem além dessa aproximação, entendendo a
consideração do mundo vivencial como alternativa para auxiliar no desenvolvimento de
soluções para a melhoria da qualidade de vida das pessoas.
Ao demonstrarem uma posição de aceitação das orientações dos PCNEM, os
professores investigados desconsideraram em seu discurso as perspectivas trazidas na
Problemática e Revisão da Literatura do presente estudo, tais como as relações de poder
implicadas no currículo; a relação entre o currículo e a submissão ao mundo produtivo;
a contextualização enquanto ferramenta para se atingir ao eficientismo social, o
questionamento sobre a seleção de conhecimentos que compõem um currículo nacional,
as implicações da implementação de um currículo nacional, etc. As críticas levantadas
pelos professores são de outra natureza, se relacionando principalmente às dificuldades
de implementação das propostas oficiais pelos professores e não diretamente ao teor do
documento.
Na medida em que desconsideram as perspectivas críticas, o discurso desses
professores acaba por legitimar o conteúdo dos PCNEM; a concepção do currículo
como prescrição; o conteúdo mínimo nacional; e as relações de poder existentes no
currículo, o que não os deixou que se assumissem enquanto intelectuais
transformadores.
Em relação à composição e ao estilo dos enunciados, observamos que, ao
optarem pelo emprego dos pronomes pessoais da primeira pessoal do singular – eu – e
da primeira pessoa do plural – nós –, mesmo considerando que os mesmos não
coincidem com o autor-pessoa, estes professores não se omitiram ao expressar suas
perspectivas sobre os PCNEM.
As principais divergências encontradas dizem respeito às intenções de cada
professor ao utilizar, principalmente, os conceitos de contextualização e mundo
vivencial. O potencial do referencial discursivo bakhtiniano permitiu um escrutínio
detalhado da perspectiva de cada professor e revelou deslocamentos importantes na
apropriação do conceito de contextualização, da mesma forma em que outros
referenciais discursivos utilizados recentemente por autores da área de currículo (como
por exemplo, Basil Bernstein, Stephan Ball e Ernesto Laclau) têm possibilitado.
O Professor Nordeste tem como principal intenção chamar os professores à
responsabilidade de formação em ensino de Física que considere o mundo vivencial de
seus alunos e que - conjuntamente com outras áreas das Ciências – esse aprendizado
em Física seja capaz de melhorar a qualidade de vida desses alunos. Assim, o professor
se apropria e preenche de forma muito mais ampla e abrangente o conceito de mundo
vivencial que possivelmente os autores do documento quiseram significar: ele vai além
do documento, chamando justamente a responsabilidade dos professores em resolver
problemas sociais desse mundo vivencial e conseguir melhorar a qualidade de vida das
pessoas. A perspectiva do professor vai além de apenas concordar com o documento – o
que é feito em todo o enunciado - atribuindo a contextualização papéis muito mais
abrangentes e relevantes, como a do letramento e alfabetização científica e a
possibilidade de melhoria da qualidade de vida de todos.
O Professor Centro-Oeste, de uma maneira geral, tem por objetivo principal
valorizar o ensino que se inicie a partir do conhecimento do aluno, que aproximou do
mundo vivencial, enfatizado no documento. Cabe destacar que a partir do seu
enunciado, podemos supor que o professor preenche o sentido de mundo vivencial –
contextualizado – a partir de uma consideração dos conhecimentos prévios trazidos
pelos alunos: aproxima o mundo vivencial de uma noção cognitivista de ensino. O
professor também mostra uma apropriação do termo desenvolvimento de habilidades
embora em nenhum dos trechos selecionados houvesse menção a tal termo.
O Professor Sul tem por intenção principal dirigir críticas ao ensino de Física
excessivamente matemático e descontextualizado. Na perspectiva do professor não há
outra saída para o ensino de Física a não ser a de abranger o cotidiano. O professor faz
referência explícita ao termo contextualizar e o integra ao termo interdisciplinaridade –
que não é citado em todo o documento – para possibilitar a construção do
conhecimento. Embora utilize os trechos dos PCNEM para apoiar sua concepção de
ensino contextualizado com o qual concorda, o professor não entende o documento
como doador de respostas aos seus questionamentos sobre como empreender tal ensino.
Esta perspectiva parece se alinhar com a crítica apontada na Revisão da Literatura do
presente estudo em que, muito embora o documento tente se afastar do ensino
propedêutico e apontar o mundo vivencial do aluno como alternativa, ainda há fortes
traços deste ensino propedêutico no texto do documento, não oferecendo subsídios aos
professores sobre como tornar o ensino, de fato, significativo e próximo da realidade do
aluno.
O Professor Sudeste concorda com as orientações do documento, porém a elas
dirige crítica quanto às possibilidades de implementá-las – especialmente a
implementação de um ensino de fato contextualizado que é aceito e desejado pelo
professor. Assim, seu enunciado é marcado por afirmações que se alinham a uma
perspectiva de que as propostas dos PCNEM são muito ambiciosas para a realidade na
maioria das escolas. Também parece claro em seu enunciado que o professor não
assume o texto do PCNEM como um discurso de autoridade, mas aponta que a própria
maneira em que as orientações são colocadas no documento lhe confere um caráter de
obrigatoriedade. O professor considera o documento como de qualidade elevada e,
sendo assim, sua perspectiva não é de posicionar contra o conteúdo dos PCNEM, mas
de apontar as dificuldades de implementá-lo, em consonância com a tendência das
pesquisas na área de ensino de Ciências. Embora utilize trechos que fazem referência à
construção do conhecimento e competências adquiridas, o professor não faz menção a
elas em suas justificativas, corroborando ainda mais sua principal perspectiva
construída, essencialmente, a partir das dicotomias entre que é proposto versus o que é
possível. Assim, de uma maneira geral, permanece sua perspectiva de que documento
por si só – embora eleito como um parâmetro de qualidade – não basta para que o
ensino de Física sofra melhorias significativas.
A perspectiva do professor Sudeste também opera um deslocamento de sentido
em relação a uma expressão usada no documento. Na medida em que os PCNEM não
explicitam o que vem a ser a deformação estrutural do ensino de Física, o professor
preenche seu sentido como sendo relacionada à sua origem e à forma como o ensino de
física foi concebido.
O Professor Norte apropria-se dos PCNEM para dirigir suas críticas ao ensino
que visa exclusivamente ao vestibular, que coloca em plano secundário a formação de
jovens capazes de relacionar criticamente o ensino de Física ao seu mundo vivencial e a
formação inicial deficiente, que treina os professores a fazer contas. Para o professor, o
planejamento de ensino em consonância com a característica que destaca dos PCNEM a inclusão da contextualização, que embora o autor-criador não tenha citado diretamente
se alinhe com os temas destacados - seria desejável e capaz de formar cidadãos críticos.
Nessa perspectiva, o ensino de acordo com os PCNEM teria qualidade superior ao
ensino que visa a preparar exclusivamente para ao vestibular. O professor também
atribui fundamental importância à formação continuada, formal ou informal - através de
livros e artigos publicados - onde se obtém subsídios de implementar estas políticas e,
assim, suprir a deficiência da formação inicial. Neste sentido, seu enunciado se alinha
com propostas direcionadas à formação do professor de Física comumente encontradas
na produção da área de ensino de Ciências, levantadas na revisão da literatura.
6.2 Discussão e considerações finais
Os professores autores-criadores dos enunciados analisados têm em comum o
fato de terem participado de um mesmo curso a distância sobre os PCNEM de Física,
considerado como contexto extraverbal. Por outro lado, se consideramos os contextos
individuais, observamos que os professores têm idade, formação e tempo de magistério
diferentes, além de atuarem em escolas públicas que pertencem a diferentes regiões da
federação. Ainda que não haja uma relação de identidade entre os autores-criadores e
autores-pessoa, não se pode negar a influência do autor-pessoa no ato da criação do
enunciado, como já foi abordado no Quadro Teórico Metodológico.
A partir da análise realizada, não foi possível identificar marcas explícitas dos
contextos individuais dos professores – região do país e Estado a que pertencem, tempo
de formação, tempo de magistério, idade, etc. – em seus enunciados, que pudessem nos
remeter a alguma relação entre este contexto e a perspectiva do professor autor-criador.
Assim, apesar das diferenças regionais – os IDEB das regiões do Brasil variam de 4,1 a
3,3 e os dos Estados variam entre de 3,9 a 3,4 – não foi possível identificar, por
exemplo, o quanto estas diferenças impactaram as diferentes significações de termos
presentes nos PCNEM assumidas por alguns professores autores-criadores, embora
também não seja possível afirmar que esses diferentes contextos estão completamente
apartados do enunciado.
Também apesar das diferenças individuais entre os professores, foi observada a
aceitação acrítica do documento em todas as perspectivas. Uma hipótese para explicar
tal convergência poderia estar na forma como eles construíram a imagem do seu
destinatário suposto: no momento em que os tutores pertencem a uma instituição federal
pode parecer ao professor que o discurso oficial – os PCNEM – é considerado pelos
tutores com válido e desejável. Levando-se também em consideração que esta foi, de
fato, a primeira atividade formal do curso, é coerente pensar que os professores
pudessem não sentir totalmente à vontade para dirigir críticas ao documento. Porém,
esta é apenas uma suposição, pois outras imagens podem ter sido construídas por eles,
como por exemplo, a de que um curso de extensão mediado por pesquisadores em
educação em ciências poderia configurar um contexto favorável à discussão e à crítica.
Mesmo lembrando que o destinatário suposto é considerado como co-autor do
enunciado, é a imagem do destinatário real que está em jogo.
A apropriação acrítica do ensino contextualizado também aponta para uma
sintonia com as pesquisas realizadas no ensino de Ciências, já que muitos dos trabalhos
fazem menção e enaltecem o ensino contextualizado e, assim, os aspectos
metodológicos do ensino de Física como sinalizado em mapeamento recentemente
realizado por Rezende et al, (2009).
Não se trata de rejeitar por completo o ensino contextualizado, mas entender que
este não deveria ser o único aspecto a ser valorizado e considerado redentor de todos os
males do ensino de Física, como já salientado por Ferraz et al., (2010a). O silêncio em
relação à formação do cidadão e sua inserção na sociedade, os objetivos do atual
currículo e sua relação com o mercado de trabalho, a quem se pretende formar, ao papel
do professor enquanto intelectual transformador e não apenas enquanto técnico que
implanta propostas curriculares são apenas alguns exemplos que poderiam trazer a
perspectiva do professor para um viés mais crítico, problematizando-as e relativizandoas a partir de outros fatores que não a mera consideração do mundo vivencial do aluno
na sua prática pedagógica.
Este silêncio molda igualmente a perspectiva dos professores autores-criadores e
acentua a preocupação metodológica excessiva que visa meramente à transposição
didática dos conteúdos exigidos pelo currículo, deixando de fora o questionamento
sobre por que se tem este currículo e não outro.
Buscando investigar as relações entre os contextos regionais e as perspectivas
expressas pelos professores investigados, encontramos no trabalho de Carvalho, R.
(2011), uma possibilidade de compreensão. A autora analisou a recontextualização dos
PCNEM por professores das ciências naturais de duas escolas públicas, sendo uma com
índice do ENEM alto e outra de índice de ENEM baixo e descobriu que na voz dos
professores, a contextualização do conhecimento científico assume diferentes
significados, condicionados pela realidade socioeconômica e educacional que
enfrentam: os professores da escola de alto ENEM usavam a contextualização como
um método de ensino, visando à preparação para os exames oficiais, enquanto os
professores da escola de baixo ENEM usavam a contextualização para ensinar algo mais
significativo para a vida do aluno, como uma espécie de prêmio de consolação.
Assumindo que quatro dos professores investigados no presente estudo atribuíram ao
conceito de contextualização o sentido de método de ensino, visando melhorar a
aprendizagem de Física, seria possível afirmar que eles compartilham a perspectiva dos
professores da escola de alto ENEM estudados por Carvalho (2011) e que apenas um
professor, que assume um sentido mais amplo para o conceito de contextualização,
relacionando a este conceito o caminho para a melhoria da qualidade de vida da
população, assume perspectiva semelhante aos professores das escolas que enfrentam
realidades educacionais adversas. Caberia aqui um futuro estudo, incluindo novos dados
relevantes partindo desta hipótese.
Estas e outras questões poderão ser investigadas dando-se continuidade à
análise, ampliando o corpus com os enunciados dos demais professores que
participaram do curso, e assim, aumentando a diversidade de contextos regionais e
individuais. Juntando as perspectivas desses professores a respeito dos PCNEM de
Física às já identificadas, teremos mais elementos para aprofundar a compreensão da
homogeneidade aparente encontrada no presente estudo e dialeticamente virmos a
compreender a possível heterogeneidade entre perspectivas docentes que possivelmente
venha a caracterizar o conjunto mais amplo.
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ANEXO
ANEXO I
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