UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO GLEICE FERRAZ VALADARES PIRAJÁ NOVOA PERSPECTIVAS DE PROFESSORES DE FÍSICA SOBRE AS POLÍTICAS CURRICULARES NACIONAIS PARA O ENSINO MÉDIO RIO DE JANEIRO 2012 Gleice Ferraz Valadares Pirajá Novoa PERSPECTIVAS DE PROFESSORES DE FÍSICA SOBRE AS POLÍTICAS CURRICULARES NACIONAIS PARA O ENSINO MÉDIO Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências e Saúde, Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Educação em Ensino de Ciências e Saúde Orientadora: Profa. Dra. Flavia Rezende Valles dos Santos Rio de Janeiro 2012 Novoa, Gleice Ferraz Valadares Pirajá. Perspectivas de professores de física sobre as políticas curriculares nacionais para o ensino médio / Gleice Ferraz Valadares Pirajá Novoa.– 2012. 129 f. : il. ; 30 cm. Orientador: Flavia Rezende Valles dos Santos. Dissertação (mestrado) -- Universidade Federal do Rio de Janeiro, Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, 2012. Bibliografia: f. 123-126. 1. Professores de física. 2. Professores - Participação no planejamento curricular. 3. Física (Ensino médio). I. Santos, Flavia Rezende Valles dos. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Nutes, Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências Gleice Ferraz Valadares Pirajá Novoa PERSPECTIVAS DE PROFESSORES DE FÍSICA SOBRE AS POLÍTICAS CURRICULARES NACIONAIS PARA O ENSINO MÉDIO Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências e Saúde, Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Educação em Ensino de Ciências e Saúde. Aprovada em ________________________________________ ___________________________________________________________ Profa. Dra. Flavia Rezende Valle dos Santos – UFRJ ___________________________________________________________ Profa. Dra. Guaracira Gouvêa - UFRJ ___________________________________________________________ Profa. Dra.Alcina Maria Testa Braz da Silva - IFRJ Aos meus pais, Ricardo e Lucimar, por abrirem mão de tantos sonhos para a realização dos meus Ao meu irmão, Ricardinho, pelo carinho e amor Ao meu marido, Carlos Eduardo, por ter vibrado comigo nos momentos de alegria e me consolado nos momentos de tristeza. Aos meus antepassados, que onde quer que estejam se fizeram presentes em todos os momentos. À minha vó, Lúcia, a quem jamais esqueço. Agradeço... A Deus, o princípio de tudo. À professora Flavia Rezende, por quem tenho enorme carinho e admiração. Obrigada pelas intermináveis horas de reunião no Skype, pelos puxões de orelha, pelas orientações sempre preciosas, pela amizade e compreensão. Nesses cinco anos de convivência – é, isso tudo! – só tenho a agradecer todo o aprendizado que me proporcionou. Ao meu queridíssimo parceiro e amigo de mestrado, Aroaldo Veneu, a quem dedico muitas páginas desta dissertação. Obrigada pela `orelha`, pelas gargalhadas, pelo aprendizado, pelas co-autorias, por tudo! Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Saúde da UFRJ, por expandir meus horizontes com seus conhecimentos e experiências. À professora Fernanda Ostermann, pelas ótimas sugestões apresentadas no exame de qualificação. À professora Guaracira Gouvêa, que além de ter contribuído com suas sugestões no exame de qualificação aceitou participar desta etapa final. Às professoras Alcina Maria, Deise Vianna e Rita Villanova que aceitaram tão gentilmente o convite para compor a banca de defesa desta dissertação. Aos colegas do Grupo de Pesquisa do Observatório, o qual eu tive prazer de integrar, cujas discussões e resultados enriquecerem meu aprofundamento sobre o campo da educação. Aos colegas de trabalho Sandra Machado, Roberta Comissanha, Richard Martin, Gabriela Borges, Leilane Oliveira, Tais Leira, Luziane Schwartz, Márcia Duarte (in memorian), Mara Costa, Ana Beja, pela maravilhosa convivência que tivemos ao longo desses anos. Aos colegas de mestrado, pela troca, pelo carinho, pela amizade, pelos risos e, claro, pelos encontros etílicos. Aos funcionários da secretaria, por terem dado mais emoção à minha vida acadêmica a cada email enviado ‘para ontem’. A todos os grandes mestres e professores que fizeram parte de toda a minha trajetória. Ao meu Caduzinho, por me fazer seguir em frente, por acreditar em mim, por respeitar o meu trabalho e, acima de tudo, por me amar. À minha mãe Lucimar, por ser meu maior exemplo de coragem e dedicação. A próxima será você! Ao meu pai Ricardo, a quem a mim e ao meu irmão tudo dedicou. Espero ter feito valer a pena! Ao meu irmão Ricardinho, por amor, carinho e amizade Às minhas irmãs Vitória e Pâmela, que tornaram minha família ainda mais linda. A toda a minha família, pelos momentos sempre especiais. Aos meus grandes amigos Guilherme Soares e Thiago Valle, valeu a pena! À Livuda, pela amizade incondicional. A todos os meus amigos, que mesmo com um sorriso e um gesto carinhoso me motivaram a chegar até aqui. Aos professores que participaram do curso, por me possibilitar aprender com vocês. A todos que de alguma forma me incentivaram e que ficam felizes com mais essa conquista pessoal e profissional. RESUMO O presente estudo investigou o discurso de 5 professores de Física de nível médio que participaram de um curso online de formação continuada à distância sobre os PCNEM de Física. Tomando por base a filosofia da linguagem de M. Bakhtin, buscouse investigar a apropriação discursiva dos PCNEM por professores que atuam em diferentes realidades regionais, procurando identificar em que medida suas perspectivas dialogavam com outras perspectivas sobre currículo, currículo nacional, relações de poder implicadas no currículo, objetivos do currículo e a submissão ao mundo produtivo. Os professores autores-criadores dos enunciados analisados têm em comum o fato de terem participado do mesmo curso, considerado como contexto extraverbal. Por outro lado, têm idade, formação e tempo de magistério diferentes, além de atuarem em escolas públicas que pertencem a diferentes regiões da federação. O referencial discursivo bakhtiniano em conjunto com um dispositivo analítico desenvolvido no âmbito deste estudo permitiram o escrutínio detalhado da perspectiva de cada professor. Apesar das diferenças individuais, a partir das análises realizadas, é inegável que os enunciados de todos os professores investigados apresentaram uma perspectiva favorável em relação aos PCNEM de Física, se apropriando também da condenação ao ensino propedêutico. Como solução, os professores concordam com o principal caminho apontado pela legislação: o ensino contextualizado. Na medida em que desconsideram as perspectivas críticas de currículo, o discurso desses professores acaba por legitimar o conteúdo dos PCNEM; a concepção do currículo como prescrição; o conteúdo mínimo nacional; e as relações de poder existentes no currículo. A apropriação acrítica do ensino contextualizado pelos professores está em sintonia com as pesquisas realizadas no ensino de Ciências, já que muitos dos trabalhos fazem menção e enaltecem o ensino contextualizado, silenciando um viés mais crítico que problematizaria outros fatores envolvidos no currículo e se voltando à mera consideração do mundo vivencial do aluno na prática pedagógica. O silêncio dos professores investigados em relação a aspectos não metodológicos do ensino de Física molda igualmente suas perspectivas e acentua a preocupação com a transposição didática dos conteúdos exigidos pelo currículo, deixando de fora questionamentos sobre por que se tem este e não outro currículo. Palavras-chave: Apropriação discursiva; Perspectivas docentes; Políticas curriculares ABSTRACT The present study investigated the discourses of five high schools Physics teachers who participated in a continuing education online course on Physics High School National Curricular Parameters (PCNEM). Based on the M. Bakhtin´s philosophy of language, we sought to investigate the discursive appropriation of PCNEM by teachers who worked in different regional realities, trying to identify to what extent their perspectives dialogued with other perspectives on curriculum, national curriculum, power relations involved in the curriculum objectives curriculum and submission to the productive world. Teachers whose statements were analyzed, considered as bakhtinianauthors-creators, have in common the fact that they attended the same course, which was considered as an extraverbal context. On the other hand, they are from different age groups, attended different undergraduate courses, took up teaching at different points of their lives as and work in public schools that belong to different regions of the federation. The bakhtinian concepts, together with an analytical framework developed in this study allowed the detailed scrutiny of each teacher's perspective. Despite the individual differences, our analysis showed that the statements of all surveyed teachers had an undeniably positive perspective of Physics PCNEM. They have also appropriated the Parameters critique to traditional teaching. . As a solution, teachers agree with the main path indicated by the legislation: the ontextualized teaching. These teachers´ discourses disregard the critical perspectives of curriculum, what would eventually legitimize the PCNEM´s contents, the idea of a curriculum as a prescription; the national minimum content; and the power relations existing in the curriculum. This uncritical appropriation of contextualized teaching is aligned to current research in science education, since many of the papers mention and praise contextualized teaching, silencing a more critical bias that would take into account other factors involved in the curriculum and proposing a pedagogical practice which is reduced to the mere consideration of the experiential world of the student. The silence of investigated teachers regarding the non-methodological aspects of Physics teaching shapes also their perspectives and accentuates the concern with the didactic transposition of curriculum required content, leaving out questions about why this and not another curriculum was chosen. Keywords: Discursive appropriation; Teachers’ perspectives; Curriculum policies SUMÁRIO 1 PROBLEMÁTICA 10 2 REVISÃO DE LITERATURA 19 2.1 Uma trajetória do conceito de currículo 19 2.2 O currículo nacional em pauta 24 2.3 Perspectivas acadêmicas sobre as políticas curriculares oficias 26 2.3.1 Análise dos discursos das políticas curriculares 30 2.3.2 Políticas curriculares e formação docente 32 2.3.3 Política curriculares na prática docente 33 2.3.4 Políticas curriculares e as finalidades da educação 35 2.3.5 Abordagens metodológicas para a pesquisa em políticas curriculares 36 2.3.6 Relações entre o Estado e as políticas curriculares 36 2.3.7 Uma síntese 37 2.4 Parâmetros curriculares nacionais para a área de ensino de Ciências da Natureza Matemática e suas Tecnologias 38 2.4.1 Habilidades, competências e interdisciplinaridade 39 2.4.2 O conceito de contextualização 45 2.5 O ensino de Física segundo os PCNEM 47 3 QUADRO TEÓRICO METODOLÓGICO 53 3.1 Filosofia da linguagem de Bakhtin: fundamentos 53 3.2 Bases teóricas para um dispositivo analítico 56 3.2.1 Enunciado: características 57 3.2.2 Enunciado e oração: identificação positiva, negativa e gêneros do discurso 61 3.2.3 O contexto extraverbal 63 3.2.4 Enunciado e vozes 66 3.2.5 Apropriação discursiva 68 3.3 Objetivo e questões de pesquisa 73 3.4 Delimitação do estudo 73 4 CONTEXTO DO ESTUDO 74 4.1 Contexto do estudo 74 4.1.1 O ambiente virtual 74 4.1.2 Cursistas 75 4.1.3 Atividades pedagógicas do curso 78 4.1.4 Descrição do curso 79 4.1.5 Mediação dos tutores 83 4.2 Corpus do estudo 83 5 APROPRIAÇÃO DISCURSIVA DOS PCNEM DE FÍSICA POR PROFESSORES 86 5.1 Enunciado do Professor Norte 88 5.1.1 A análise da apropriação discursiva dos PCNEM de Física pelo Professor Norte 5.2 Enunciado do Professor Sul 89 93 5.1.1 A análise da apropriação discursiva dos PCNEM de Física pelo Professor Sul 5.3 Enunciado do Professor Sudeste 94 99 5.3.1 A análise da apropriação discursiva dos PCNEM de Física pelo Professor Sudeste 5.4 Enunciado do Professor Nordeste 100 104 5.4.1 A análise da apropriação discursiva dos PCNEM de Física pelo Professor Nordeste 5.5 Enunciado do Professor Centro-Oeste 106 110 5.5.1 A análise da apropriação discursiva dos PCNEM de Física pelo Professor Centro-Oeste 110 6 SÍNTESE DA ANÁLISE, DISCUSSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS 114 6.1 Síntese da análise 114 6.2 Discussão e considerações finais 120 REFERÊNCIAS 123 ANEXOS 127 1. PROBLEMÁTICA Entre os anos de 1995 e 1998, o governo de Fernando Henrique Cardoso empreendeu uma reforma educacional preconizada pela Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, conhecida como Lei de Diretrizes e Bases para a Educação (LDB), que estabeleceu as diretrizes e bases da educação nacional em resposta ao novo contexto socioeconômico mundial e o consequente posicionamento do Brasil neste contexto. Embora contemplasse outros aspectos, como mudanças nas legislações, na gestão das escolas, nas formas de financiamento, etc., foram as mudanças nas políticas curriculares que ganharam maior destaque na reforma empreendida, a ponto de serem analisadas como se fossem a reforma educacional em si (LOPES, 2004b). Para a autora, a centralidade do currículo não vem a ser uma característica apenas desse ou daquele governo; desse ou daquele país. JALLADE (apud LOPES, 2004b) destaca o fato de que para o Banco Interamericano de Desenvolvimento1 (BID), o currículo é o coração de um empreendimento educacional e nenhuma política ou reforma educacional pode ter sucesso se não colocar o currículo no seu centro. Diante desta constatação, podemos supor ser bastante difícil que a concepção de currículo do BID não repercuta junto aos seus países membros, incluindo o Brasil Lopes (2004b) ainda acrescenta que as diretrizes do BID – e seus reflexos em diferentes países – se coadunam com a ideia de que pelas mudanças curriculares, o poder central de um país constrói uma atmosfera extremamente favorável de uma reforma muito mais ampla que a dos currículos, onde: “as práticas curriculares anteriores à reforma são negadas e/ou criticadas como desatualizadas, de forma a instituir o discurso favorável ao que será implantado: mudanças nas políticas educacionais visando à constituição de distintas identidades pedagógicas consideradas necessárias ao projeto político–social escolhido” (LOPES, 2004b, p. 110) Assim, à luz do contexto socioeconômico mundial, podemos considerar os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN 2 ) como o principal fruto da reforma educacional ocorrida na década de 1990 e o principal empreendimento de implantação de um currículo nacional ocorrido no país. Este documento foi criado no sentido de nortear o que deve ser aprendido pelos estudantes no nível médio em cada disciplina 1 O Banco Interamericano de Desenvolvimento ou BID é uma organização financeira internacional com sede na cidade de Washington, E.U.A, e criada no ano de 1959 com o propósito de financiar projetos viáveis de desenvolvimento econômico, social e institucional e promover a integração comercial regional na área da América Latina e o Caribe. Atualmente o BID é o maior banco regional de desenvolvimento a nível mundial e serviu como modelo para outras instituições similares a nível regional e subregional. (Fonte: www.iadb.org) 2 Utilizarei a sigla PCN para me referir aos parâmetros curriculares tanto do Ensino Fundamental quanto o Ensino Médio e utilizarei PCNEM para me referir, exclusivamente, aos parâmetros curriculares para o Ensino Médio servindo ao mesmo tempo como orientação para a formação do novo cidadão do século XXI e como referencial de qualidade para a educação no país. Como afirma Moreira (1994), o processo que originou a versão preliminar dos PCN iniciou–se no final de 1994 e contou com uma equipe composta por representantes do MEC e cerca de 60 estudiosos da educação brasileira e mais representantes da Argentina, Colômbia, Chile e Espanha (todos ligados ao BID) países nos quais haviam sido recentemente promovidas mudanças curriculares em sintonia com a visão neoliberal da educação. Nesta visão, a educação deixa de ser parte do campo social e político para ingressar no mercado e funcionar a sua semelhança (SILVA, 1995). Registre–se que a experiência de fato inspiradora dos nossos Parâmetros foi espanhola, sendo o professor César Coll, catedrático de Psicologia Educacional da Universidade de Barcelona e um dos teóricos mais diretamente engajados na reforma educativa espanhola, um dos consultores do trabalho desenvolvido no nosso país (MOREIRA, 1996). Em relação ao currículo do nível fundamental, a Constituição Brasileira, já em 1988, previa em seu Art. 210 que seriam fixados “conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais” (BRASIL, 1988). Embora o artigo refira–se apenas ao ensino fundamental, o entendimento fixado pela jurisprudência é o de que a necessidade de definição de conteúdos mínimos se estende por toda educação básica, incluindo o ensino médio. A grande crítica que se faz ao poder constituinte se refere a não especificidade do significado da expressão “conteúdo mínimo” e a ausência de outorga a quem cabe essa definição (MOREIRA, 1996). A partir dessa breve exposição, percebermos que a instituição dos PCN não foi, de fato, um movimento apartado de toda a dinâmica política, social e econômica que vinha se dando no Brasil e no mundo. Assim como toda política curricular, os PCN devem ser colocados numa moldura mais ampla que engloba suas determinações sociais, sua historia, sua produção contextual (SILVA, 1996). Com o objetivo de incorporar nas escolas mudanças referentes às práticas educacionais, o Ministério da Educação e Cultura (MEC) procurou então promover as novas orientações curriculares tanto para o nível médio quanto para o ensino fundamental a partir das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) e dos PCN, ambos redigidos à luz da LDB de 20 de dezembro de 1996 (BRASIL, 1996). As DCN são obrigatórias por serem estabelecidas a partir da exigência constitucional em que, de acordo com os art. 22 e art. 210 da Constituição Federal de 1988, compete privativamente à União legislar sobre as diretrizes e base da educação nacional e afixar conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais. Já os PCN são um documento sem caráter de obrigatoriedade que se apresenta enquanto um “subsídio teórico metodológico para a implementação das propostas [presentes nos DCN] na sala de aula” (RICARDO e ZYLBERSTAJN, 2008, p.258). Apoiados em habilidades e competências básicas, os PCNEM têm como objetivo preparar o jovem estudante para a chegada à vida adulta e para o exercício pleno da cidadania. Surgem com a proposta de direcionar e organizar o aprendizado no Ensino Médio, a fim de gerar um conhecimento real, com significado próprio, não apenas voltado para o acúmulo de informações (BRASIL, 1997). Acerca destes conceitos – competências e habilidades – pude verificar, a partir de uma pesquisa nos trabalhos das área de educação e de educação em ciências, que há uma escassez de produção teórica a respeito. A literatura parece tornar–se mais pródiga quando se adentra nas áreas de ensino profissionalizante e administração de empresas. Além da escassez de fontes de consulta, o que contribui para deixar ainda menos inteligível a compreensão desses conceitos é a falta de clareza e de completeza com que são abordados, seja na literatura consultada, seja nos próprios documentos oficiais, como nas DCN e nos PCNEM. Os próprios elaboradores dos PCNEM de Física, por exemplo, não chegam a um consenso sobre a distinção e conceituação dos termos (RICARDO e ZYLBERSTAJN, 2008). Diante da falta de aprofundamento desses conceitos tanto na pesquisa em educação e educação em ciências como no próprio PCNEM, retomarei esta discussão na “Revisão de Literatura” onde procurarei recuperar o histórico e algumas concepções da noção de competências e habilidades. Por ora, sendo estes conceitos de extrema importância no documento – chegando a ser considerados ‘eixos de apoio’ – sigo, neste capítulo, expondo a conceituação dos referidos termos a partir do próprio texto dos PCNEM. De acordo com os PCNEM, as habilidades representam os valores e atitudes que se pretendem desenvolver e as competências, os objetivos a alcançar. Na medida em que se desenvolvem com referência ao mundo vivencial, as habilidades permitem articular diversos conhecimentos e as competências vêm, então, para promover o reconhecimento do significado deste ou daquele conceito em outros contextos, não restringindo, portanto, a atenção em um único objeto de estudo. Ambas devem ser desenvolvidas por meio de ações concretas, objetos, assuntos, experiências que envolvem determinado olhar acerca da realidade. Nesse sentido, as habilidades e competências podem ser abordadas em tópicos diferentes, com formas distintas em cada caso, sendo mais ou menos adaptadas dependendo do contexto em que estão sendo trabalhadas (BRASIL, 1997). Tendo como uma de suas preocupações centrais a promoção da autonomia na aprendizagem e a inserção dos jovens na vida adulta, visto que a escolha de uma profissão ainda pode estar sendo gerada, algumas competências seriam indispensáveis para possibilitar “a independência de ação e aprendizagem futura”. (BRASIL, 1997, p.24). A esse respeito o documento afirma: “o mundo do trabalho e a prática social estão mais exigentes quanto à educação necessária para o homem do nosso tempo, esperando dele flexibilidade, capacidade de adaptação, raciocínio lógico, habilidades de análise, síntese, prospecção, leitura de sinais e agilidade na tomada de decisões” (BRASIL, 1997, p. 6). Além das competências e habilidades, a contextualização também integra os eixos principais em que os PCNEM se apoiam, sendo muitas as críticas dirigidas ao ensino ‘descontextualizado, compartimentalizado e baseado no acúmulo de informações’ ao longo de todo o documento. Segundo os PCNEM, ao contrário deste ensino, é necessário: “dar significado ao conhecimento escolar, mediante a contextualização; evitar a compartimentalização, mediante a interdisciplinaridade; e incentivar o raciocínio e a capacidade de aprender” (BRASIL, 1997, p.4) As críticas aos parâmetros curriculares, desde a sua versão preliminar até a sua ampla divulgação oficial, pelas comunidades educacionais, foram muitas. A primeira e principal delas diz respeito ao documento se constituir em uma tentativa de currículo nacional (MOREIRA, 1996; LOPES, 2002a, 2006). Ainda que não haja um consenso sobre o que deve ser entendido por currículo nacional (MOREIRA, 1996), indubitavelmente, a proposta de um currículo nacional parte do pressuposto de que a homogeneidade de padrões e saberes básicos a serem ensinados a todos seria mais que desejável, seria necessário. Para Lopes (2006), manifestamente opositora ao currículo nacional, essa regulação de sentidos cerceia as diferenças e silencia as múltiplas possibilidades de saberes e valores nas diversas práticas curriculares, nos diversos locais. Muito embora em determinada época tenha se admitido a ideia de que a globalização seria capaz de saturar contextos locais, gerando o que Gentili (apud LOPES, 2002a) denominou de ‘mcdonaldização’ da educação em um ‘mcmundo’, hoje são frequentes os trabalhos que reconhecem a heterogeneidade como parte do processo de apropriação das políticas curriculares pelas realidades nacionais e locais (CANDAU, 1999 apud LOPES, 2006; LOPES, 2006). Para esses autores: “Não é negada a instituição de alguns marcos estabelecidos por um projeto global, mas é defendido que a materialização das propostas globais em contextos nacionais encontram–se hibridizadas aos projetos políticos locais. Em outras palavras, para constituírem–se um projeto global, as políticas de currículo nacional tiveram de articular– se às concepções locais, dar conta de responder aos projetos em disputa nos Estados–nação, gerando uma heterogeneidade de orientações curriculares nos diferentes países.” (LOPES,2006, p.130) Lopes (2004b) não só reconhece este processo de hibridização como defende que é essencial retirar dos PCN a marca de documento padrão, concebendo–o apenas como uma das propostas possíveis e permitindo que outras possíveis propostas curriculares tenham espaço para produzir novos sentidos nos estados, nos municípios e nas próprias escolas, “valorizando o currículo como espaço de pluralidade de saberes, de valores e de racionalidades” (p.116). Uma segunda crítica feita aos PCN se refere à preconização do ensino baseado em competências e habilidades (MOREIRA, 1996; VALENTE, 2000; LOPES, 2001, 2004b, 2006). Para Lopes (2001) é possível perceber como concepção dominante nos PCNEM que o currículo voltado às habilidades e competências é entendido como capaz de proporcionar a inserção dos estudantes numa dinâmica social que se modifica de forma contínua, permanecendo presente um discurso que atrela a educação ao processo formativo responsável por inserir os sujeitos na estrutura social vigente e em seus processos produtivos. A esse respeito, Lopes (2006) aponta que as relações da educação com o mercado permanecem como um dos marcos de colonização das práticas curriculares em que a cultura comum é valorizada enquanto moeda de troca no mercado, permanecendo a ideia de que a educação deve servir de ferramenta de inserção social, vinculando–se ao mundo produtivo, sem se preocupar com os questionamentos de como se constituiu e/ou se constitui este mundo. A terceira e última principal crítica feita pela comunidade educacional que abordo nesta problemática se refere aos objetivos do currículo e às suas relações de poder (LOPES, 2002b; SILVA, 1996;). Para Silva (1996), o currículo não pode ser considerado um elemento inocente e neutro com pretensões desinteressadas. Pelo contrário, o currículo está implicado em relações de poder e “transmite visões sociais particulares e interessadas, [...] produz identidades individuais e sociais particulares” (p. 83). Por exemplo, a partir do estudo da Lopes (2002b) sobre o conceito de contextualização, o qual pode–se considerar como um pilar tão importante quanto as noções de competência e habilidade, a visão particular interessada e a produção de identidades individuais e sociais dos PCNEM têm por objetivo a inserção social no mundo produtivo. A autora pretende demonstrar que o conceito de contextualização “associa–se a princípios eficientistas: a vida assume uma dimensão especialmente produtiva do ponto de vista econômico, em detrimento de sua dimensão cultural mais ampla” (p.390). Já em 1994, Apple (1994b), a partir do contexto norteamericano da época, chamava atenção para a constituição deste vínculo entre o currículo e mundo produtivo enquanto uma espécie de exportação da crise econômica e de relações de autoridade para as escolas que poderia resolver vários problemas da sociedade: “Se as escolas, seus professores e seus currículos fossem mais rigidamente controlados, mais estreitamente vinculados às necessidades das empresas e das indústrias, mais tecnicamente orientadores e mais fundamentados nos valores tradicionais e nas normas e regulamentos dos locais de trabalho, então os problemas de aproveitamento escolar, de desemprego, de competitividade econômica internacional, de deterioração das áreas das grandes cidades, etc., desapareceriam quase que por completo, assim querem nos convencer” (p.40) Embora a questão curricular tenha status central no campo político, a revisão da literatura3 sobre PCNEM e políticas curriculares em artigos publicados em periódicos4 das áreas de Educação e Educação em Ciências entre os anos 2000 e 2010 mostrou que, desde a sua ampla divulgação até os dias atuais, ainda há pouca reflexão sobre o tema. Na área de Educação em Ciências foram encontrados 12 trabalhos que tinham como foco as políticas curriculares num total de 1.558 e na área de Educação, apenas 09 trabalhos, num total de 1.266. No entanto, embora sejam poucos os trabalhos que discutam as políticas curriculares (apenas 0,78% do total de trabalhos publicados nas revistas pesquisadas), pode–se notar que são variadas as reações da comunidade acadêmica, gerando múltiplas temáticas5, como por exemplo, políticas curriculares e formação docente; o Estado e as políticas curriculares; as políticas curriculares e os objetivos da educação; etc. Dentro deste número reduzido de artigos, muito poucos vão além da preocupação com a implementação das políticas curriculares. Nessa perspectiva, 3 O trabalho, do qual fui co-autora (FERRAZ et al., 2011) foi apresentado no VIII ENPEC, em dezembro de 2011, cujos anais se encontram no prelo. 4 Ciência & Educação, Investigações em Ensino de Ciências, Caderno Brasileiro de Ensino de Física, Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, Ensaio - Pesquisa em Educação em Ciências, A Física na Escola, Revista Brasileira de Educação, Revista Brasileira de Ensino de Física, Cadernos de Pesquisa, Educação e Sociedade. 5 A categorização e as análises estão descritas em Ferraz et al (2011). criticam a formação inicial por não proporcionar aos futuros professores o contato com os documentos oficiais de maneira a dificultar a sua implementação correta, porém não há nenhuma crítica em relação ao entendimento desses professores do currículo como algo dado e indiscutível, que não o encare enquanto um produto sociocultural a ser problematizado e discutido. Essa atitude demonstra que, em um grande número de trabalhos nas áreas de ensino de Ciências e de Educação, a concepção predominante é a do currículo como prescrição (GOODSON, 2007). Essa concepção de currículo presente tanto na esfera governamental (LOPES, 2004b) quanto no meio acadêmico limita as escolas à sua capacidade de implementação, ou não, dos PCN. Assim, os dirigentes questionam a escola e os professores por não seguirem devidamente as políticas oficiais e os professores questionam o governo por produzir políticas que as escolas não conseguem implementar e, em ambos os casos, se faz presente a perspectiva da prática como espaço para implementação das propostas oficiais. Ricardo (2003), por exemplo, indica que os entraves à implementação dos PCNEM – sejam elas quais forem – em sala de aula, se devem principalmente, à falta de formação do professor, não problematizando outros fatores provenientes do próprio documento, tal qual seu caráter prescritivo e distante das múltiplas realidades escolares (LOPES, 2002a). Nos trabalhos que abrangem os discursos sobre currículo e o processo de hibridismo, onde há um viés mais crítico, percebemos um consenso de que as políticas curriculares nas escolas e nas comunidades disciplinares são frutos da recontextualização, processo que confere aos textos curriculares novos sentidos, assumindo modificações como parte do processo. Houve também, neste levantamento, artigos que apenas citavam as políticas curriculares sem tê–lo como foco de estudo. Nestes trabalhos, observamos a intenção de legitimação da prática pedagógica por meio da reprodução do discurso oficial. Um dos nove trabalhos localizados na área de Educação aponta o baixo impacto das reformas curriculares na realidade escolar. Neste trabalho, Santos (2002) afirma que seria cabível pensarmos que, definindo um currículo nacional, selecionando os livros didáticos a serem adotados pelas escolas, capacitando os professores para desenvolver as competências consideradas fundamentais para o exercício de sua função, haveria uma notável melhoria no sistema educacional brasileiro. Entretanto, a autora salienta que não sendo as escolas e os professores como tábulas rasas, prontas a assimilar tudo que lhes é apresentado, parâmetros e normatizações elaboradas como propostas fechadas esbarram com inovações singulares, gerando muitas vezes conflitos com os discursos e as práticas em desenvolvimento nas escolas. Dessa forma, embora seja na esfera governamental que se dê a produção das políticas educacionais e formulação de propostas curriculares, as pesquisas na área têm demonstrado que mesmo quando os professores aderem às novas propostas curriculares, elas são sempre reinterpretadas e adaptadas às suas próprias necessidades, dando seu próprio acento aos conteúdos e às práticas de ensino (LOPES, 2002b, 2004). O processo de reinterpretação e adaptação no nível do discurso das políticas curriculares será considerado, neste estudo, como sendo a apropriação discursiva dessas políticas, pois, segundo Bakhtin (2006b), a apropriação consiste, justamente, em povoar a palavra do outro com suas próprias palavras, sua própria intenção, seu próprio acento, adaptando–a à sua própria intenção semântica e expressiva. A apropriação de propostas curriculares por professores pode ser ilustrada por meio de um estudo de caso sobre a apropriação dos PCNEM por um professor de Física (FERRAZ et al, 2010a). Os autores deste estudo verificaram que no discurso deste professor, o caráter apenas orientador das práticas educativas dos PCNEM foi superestimado. Ao se apropriar do documento, seu próprio acento empregou força de lei ao documento e às orientações contidas nele. Embora a teoria de Bakhtin não nos permita atingir uma identidade entre discurso e prática – como será visto mais detalhadamente no Quadro Teórico Metodológico – o discurso professor dá indícios de que a sua prática pedagógica e a dos demais professores deveria seguir estritamente os PCNEM, parecendo admitir a política do conhecimento oficial enquanto descrição neutra do mundo (APPLE, 1994). O estudo foi um indício de que as propostas curriculares oficiais, e mesmo o currículo em ação nas escolas, são sempre constituídos por processos de apropriação, que impõe, simultaneamente um reposicionamento e uma refocalização dessas políticas por parte dos professores tanto no nível do discurso – a apropriação discursiva – e, assim como afirma Lopes (2001, 2004b), um reposicinamento também no nível da prática Diante das possíveis perspectivas sobre o currículo e sobre as políticas curriculares preliminarmente levantadas nesta introdução, o presente trabalho pretende investigar o discurso dos professores de Física de nível médio no contexto de uma atividade desenvolvida num curso online de formação continuada à distância. O objetivo principal é identificar como se dá a apropriação discursiva dos PCNEM de Física, por diferentes professores que atuam em diferentes realidades regionais, procurando sinalizar em que medida as perspectivas dos professores em relação ao documento dialogam com perspectivas apresentadas aqui e no próximo capítulo dentre outras perspectivas não levantadas na presente dissertação, mas que venham a integrar o discurso do professor e, ainda, as aproximações e afastamentos entre as perspectivas apresentadas por cada um desses professores. 2. REVISÃO DE LITERATURA Sendo o interesse dessa pesquisa investigar a apropriação discursiva dos PCNEM por professores de Física e entendendo que sua apropriação será permeada pelo diálogo com outras perspectivas, vejo a necessidade de pontuar, nesta revisão, algumas perspectivas que suponho fazerem parte do universo discursivo com o qual os professores de Física de nível médio poderão dialogar. Tendo certeza de que este universo não poderá ser esgotado, já que seria impossível prever sua totalidade, elegi algumas perspectivas às quais tive acesso no meio acadêmico. Entre elas: uma breve revisão teórica sobre o conceito de currículo incluindo uma discussão sobre a implantação do currículo nacional; perspectivas acadêmicas sobre os PCNEM enquanto núcleo de uma política curricular com base em um levantamento bibliográfico apresentado em evento recente da área de ensino de Ciências; outras perspectivas acadêmicas especificamente relacionadas aos PCNEM da área de Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias; e perspectivas acerca do documento da área de Física, com base em um trabalho também apresentado recentemente em um evento científico. Dessa forma, o breve mapeamento teórico aqui empreendido tem por finalidade mapear as possibilidades discursivas que poderão servir como referência para a compreensão das perspectivas dos professores. 2.1 Uma trajetória do conceito de currículo Mesmo antes de constituir-se como objeto de estudo, o currículo sempre foi o centro das atenções de todos que buscavam melhor entendimento e maior organização do processo educativo escolar (MOREIRA E SILVA, 2008). Porém, apenas no final do século XIX, um número significativo de educadores começou a tratar o currículo de maneira mais sistemática, iniciando, dessa forma, uma série de estudos e iniciativas envolvendo problemas e questões curriculares, que, em pouco tempo, configuraram o surgimento de um novo campo (MOREIRA E SILVA, 2008). Esse processo originou-se nos Estados Unidos, nos anos 20, onde, pela primeira vez, elegeu-se o currículo como foco central da Sociologia da Educação numa abordagem sociológica e crítica do currículo (MOREIRA E SILVA, 2008). Os autores afirmam que o contexto sócio-histórico americano da época consistia na economia pósguerra dominada pelo capital industrial onde o sistema de competição livre, então prevalente, estava rapidamente sendo substituído pelos monopólios. Para que houvesse a produção em larga escala, era necessário o aumento das instalações e do número de mão-de-obra. Os procedimentos administrativos sofisticaram-se e assumiram um caráter “científico” e o processo de produção tornou-se mais complexo e socializado. Moreira e Silva (2008) apontam que nesse contexto: “Uma nova concepção de sociedade, baseada em novas práticas e valores derivados do mundo industrial, começou a ser aceita e difundida. Cooperação e especialização, ao invés de competição, configuravam os núcleos de uma nova ideologia. O sucesso na vida profissional passou a requerer evidências de mérito na trajetória escolar. Ou seja, novas credenciais, além de esforço e ambição, tornaram-se necessárias para se “chegar ao topo” ” (p.10) Nessa época, segundo Silva (2000), houve um intenso processo de massificação da escolarização e o currículo passou a ser utilizado como instrumento para racionalizar os resultados educacionais – especificando-os e medindo-os cuidadosamente – e os estudantes considerados como produtos a serem processados. Cabia às escolas, a partir do controle social que se pretendia estabelecer com o currículo, “inculcar os valores, as condutas e os hábitos ‘adequados’ ”(MOREIRA E SILVA, 2008, p.10), promovendo assim a adaptação das novas gerações às transformações que ocorriam nas esferas econômica, social e cultural. Dessa forma, o conceito de currículo apresentava como propósito mais amplo o planejamento “científico” das atividades pedagógicas e seu controle, afim de evitar comportamentos e pensamentos dos alunos que os desviassem de metas e padrões pré-definidos (SILVA, 2000) e, por consequência, sua organização foi pensada de modo a conferir-lhe características de ordem, racionalidade e eficiência (MOREIRA E SILVA, 2008). No final da década de 50, a partir da derrota na corrida espacial, instaurou-se nos Estados Unidos um processo de culpabilização dos educadores por parte dos cidadãos americanos que insistiam na necessidade e urgência de se restaurar a qualidade supostamente perdida pela escola (MOREIRA E SILVA, 2008). A esfera federal norteamericana entrou então em ação e recursos foram disponibilizados para as reformas nos currículos de Ciências, Matemática, Estudos Sociais, entre outros, bem como foram elaborados e implementados novos programas, materiais, estratégias e propostas de treinamento de professores com o intuito de redirecionar e fortalecer o campo do currículo (SILVA, 2000). Porém, estas ações pareceram não ter contribuído, de fato, para a revolução pedagógica e curricular que pretendeu se desenvolver no país. Moreira e Silva (2008) apontam que essa tentativa: “Foi, ao menos em parte, neutralizada pelos problemas que desafiaram a sociedade americana nos anos sessenta. Racismo, desemprego, violência urbana, (...) representaram motivo de vergonha para os que desejaram ver a riqueza mais bem distribuída e sonhavam com a concretização de uma sociedade mais democrática, justa e humana. A revolta contra todos esses problemas levou a uma série de protestos e ao questionamento das instituições e dos valores tradicionais” (p. 12) A escola e os educadores foram novamente culpabilizados e: “Denunciou-se que a escola não promovia ascensão social e que, mesmo para as crianças dos grupos dominantes, era tradicional, opressiva, castradora, violenta e irrelevante. Seria necessário transformá-la e democratizá-la ou então aboli-la e substituí-la por outro tipo de instituição (MOREIRA, 1989 apud MOREIRA e SILVA, 2008). Assim, diante da crise, muitos foram os grupos norteamericanos que se levantaram: os que defendiam uma escola eficaz, porém aliada à ideais tradicionais; os que pregavam a liberdade na escola e seus fins humanistas e os que defendiam o fim das escolas. Porém, nenhum grupo questionava a sociedade capitalista que se consolidou no país, nem o papel da escola enquanto perpetuadora dessa sociedade (SILVA, 1995). Dessa forma, autores interessados em denunciar o papel da escola e do currículo na reprodução da estrutura social e preocupados com a construção de uma escola e currículo que se alinhassem com os interesses dos grupos oprimidos nos EUA passaram a “buscar apoio em teorias sociais desenvolvidas principalmente na Europa para elaborar e justificar suas reflexões e propostas” (MOREIRA e SILVA, 2008, p. 14). Assim, ainda segundo os autores, o neomarxismo, a teoria crítica da Escola de Frankfurt, as teorias de reprodução, a etnometodologia, etc., embora divergentes, influenciaram, em grande parte, os estudos acerca do currículo das décadas subsequentes. O currículo possui, certamente, uma história vinculada a formas específicas e contingentes de organização da sociedade e da educação (MOREIRA E SILVA, 2008). Os autores ressaltam que este processo de reelaboração da concepção de currículo não se restringiu à sociedade americana, ao contrário, a partir daí, adentrou a agenda de discussões sobre o currículo e suas implicações em diversos países. Essas e outras novas tendências ajudaram a reconceituar o campo na década de 70, favorecendo a análise e compreensão de outras questões – não mais eram supervalorizados o planejamento, a implementação e o controle de currículos; não mais eram enfatizados os objetivos comportamentais; não mais se incentivava, como forma de produzir conhecimento, a pesquisa tradicional quantitativa; não mais se estimulava a utilização de procedimentos “científicos” de avaliação (MOREIRA e SILVA, 2008). Em síntese, os focos e as preocupações relacionadas ao currículo começaram a ser deslocados e renovados. No Brasil, não por coincidência, as primeiras preocupações com o currículo também surgiram nos anos 20 e caracterizavam-se pela transferência instrumental de teorias americanas. Porém, a partir da década de 80, a hegemonia das referências norteamericanas foi abalada pelo início da redemocratização brasileira e enfraquecimento da Guerra Fria (LOPES e MACEDO, 2002). O currículo deixou de ser uma área meramente técnica, voltada a questões relacionadas aos procedimentos e métodos, para assumir uma tradição crítica, orientada por questões de cunho epistemológico, político e sociológico. Nesta perspectiva, ainda que o “como” do currículo permaneça importante, só terá sentido quando se relacionam com questões que perguntem “por quê” das formas de organização do conhecimento escolar. Para Silva (2000), ainda que haja variações em diversos aspectos, saber qual conhecimento deverá ser ensinado é o ponto comum entre as várias teorias, tanto as tradicionais quanto as críticas. Em consonância com as teorias educacionais mais amplas, as teorias do currículo estão repletas de informações de como as coisas deveriam ser e, ainda que essas escolhas estejam baseadas nos “tipos” de sujeitos considerados ideais para uma dada sociedade, a cada tipo de sociedade há “um modelo” de ser humano desejável, e portanto, a cada um desses “modelos” corresponderá, consequentemente, um tipo de currículo. Cabe às teorias do currículo, justificar por que “esses” e não “aqueles” conhecimentos devem ser escolhidos. Assim, as teorias do currículo deduzem o tipo de conhecimento assumido como relevante exatamente a partir de definições sobre o tipo de sujeito que consideram ideal (SILVA, 2000). Analisado dessa forma, o currículo, mais que uma questão de conhecimento, é também uma questão de identidade, na qual, segundo Silva (1996), as teorias do currículo encontrarão apoio. Estão implicadas aqui, as relações de poder, transmitidas por visões particulares e interessadas, produzindo identidades individuais e sociais particulares: ao escolher estes e aqueles saberes, privilegiar uns em detrimento de outros, destacando uma identidade desejável, estamos diante de operações de poder (SILVA, 1996). A expressão máxima do poder do currículo reside no fato de que os conteúdos são reproduzidos pelos indivíduos de forma que estes sejam preparados para desempenhar seus papéis na sociedade, sem questioná-lo (SILVA,2000). Assumindo que existe uma dicotomia entre as teorias tradicionais e teorias críticas/pós-críticas de currículo, Silva (2000) afirma que as teorias tradicionais pretendem ser teorias imparciais e desinteressadas, ao passo que as teorias críticas e pós-críticas julgam esse posicionamento – imparcial e desinteressado – impossível. Além disso, enquanto as teorias tradicionais envolvem-se com questões meramente técnicas e de organização curricular, as outras estão preocupadas com a relação existente entre saber, identidade e poder, invertendo os fundamentos das teorias tradicionais e nos possibilitando olhar a questão curricular e educacional sob uma nova perspectiva. Silva (2000) associa as teorias tradicionais à aceitação, ajuste e adaptação e as teorias críticas/pós-críticas à desconfiança, questionamento e transformação radical. O status quo, entendido como referencial desejável pelas teorias tradicionais, é apontado pelas teorias críticas/pós-críticas como responsável pelas desigualdades e injustiças sociais. O importante nas teorias críticas/pós-críticas não é desenvolver técnicas de “como” fazer o currículo, mas desenvolver conceitos que nos permitam entender o que, de fato, o currículo faz. Goodson (2007) alerta para o fato de que o currículo foi inventado, basicamente, como um conceito para dirigir e controlar o credenciamento dos professores e sua potencial liberdade nas salas de aula: “Ao longo dos anos, a aliança entre prescrição e poder foi cuidadosamente fomentada, de forma que o currículo se tornou um mecanismo de reprodução das relações de poder existentes na sociedade. As crianças cujos pais são poderosos e ricos se beneficiam da inclusão pelo currículo, e os menos favorecidos sofrem a exclusão pelo currículo. Como argumentou Bourdieu, dessa maneira o ‘capital cultural’ dos pais efetivamente compra o sucesso para seus filhos estudantes” (p.243) Para o autor, a visão de currículo como prescrição se desenvolve “a partir da crença de que podemos imparcialmente definir os principais ingredientes do desenvolvimento do estudo, e então ensinar os vários segmentos e sequências de forma sistemática” (p.242). Ainda que não seja a única visão existente, o autor acredita que este tipo de currículo é, sem dúvida, a principal perspectiva presente nos dias de hoje. O currículo como prescrição sustenta algumas ideias importantes sobre estado, escolarização e sociedade: a especialização e o controle são inerentes ao Estado, às burocracias educacionais e à comunidade universitária e, desde que ninguém revele essa mística, a “prescrição retórica” e a “escolarização como prática” podem coexistir (GOODSON, 2007). Segundo o autor, as agências do currículo são “vistas como ‘distribuidoras’ (e podem conquistar um bom grau de autonomia, se aceitarem as regras)” (GOODSON, 2007, p. 242). O autor ainda alerta sobre a existência dos “custos de cumplicidade”, ou seja, o preço que se paga pela aceitação de um currículo como prescrição, pois envolve, sobretudo e sob vários aspectos, a aceitação de modelos estabelecidos de relações de poder. O mais relevante para ele talvez seja que os mais intimamente ligados à construção social cotidiana do currículo, os professores, sejam efetivamente alijados do “discurso de escolarização”, mantendo seu poder cotidiano em silêncio e sem registro para que continuem a existir. No entanto, ele aponta que as prescrições curriculares determinam alguns parâmetros, mas algumas transgressões ocasionais são permitidas, desde que a retórica e o gerenciamento das prescrições não sejam desafiados. Lopes (2004b) critica os estudos sobre currículo de ciências, destacando que, de uma maneira geral, têm sido enfatizados aspectos metodológicos e epistemológicos, desconsiderando-se a educação como “campo de produção cultural e, portanto, intrinsecamente político e social” (p.117). Na área de Ensino de Ciências a preocupação no “como” fazer do currículo tem sido assim, maximizado, tornando-se praticamente a única perspectiva. Sendo os PCN uma proposta de currículo a ser seguida nacionalmente, que mesmo sem possuir força de lei adentrou fortemente as salas de aula e os discursos dos professores (SANTOS, 2002), julgo importante compreender o que esses professores pensam, falam (e fazem) deste documento e como avaliam a existência de um determinado conjunto de conhecimentos prescrito e tomado como o mais relevante para todo o país. Para contribuir neste sentido, apresento na próxima seção, uma discussão sobre a implantação de um currículo nacional e suas implicações. 2.2 O currículo nacional em pauta A implantação de um currículo nacional vem sendo processada desde a década de 80 em diversos países tais como Espanha, Inglaterra, Estados Unidos e Argentina. No Brasil, esta implantação iniciou-se com a divulgação para as escolas e professores das DCN e dos PCN (MOREIRA, 1996). Para Moreira (1996), esse movimento de instituição de um currículo nacional ocorrido nestes diferentes países vem sendo associado à visão neoliberal da educação na medida em que a educação vem adquirindo papel estratégico no neoliberalismo. A esse respeito, Silva (1995) aponta que este movimento internacional aliado a um projeto neoliberal tem duas dimensões principais: “De um lado, é central, na reestruturação buscada pelos ideólogos neoliberais, atrelar a educação institucionalizada aos objetivos estreitos de preparação para o local de trabalho. (...) De outro, é importante também utilizar a educação como veículo de transmissão das ideias que proclamam as excelências do livre mercado e da livre iniciativa” (p.12) Neste viés, continua o autor, em diversos países, incluindo o Brasil, há um grande esforço de utilizar o currículo nacional – e mínimo – não apenas voltado para a preparação para o local de trabalho, mas também com o objetivo de inculcar nos alunos os postulados do credo liberal. Notadamente afinado com a perspectiva neoliberal, o currículo nacional facilita e viabiliza o sistema de avaliação unificado e o ranqueeamento das escolas. Este processo é realizado sem levar em conta as diferenças sociais e econômicas entre a escolas e, dessa forma, alimenta a retórica do neoliberalismo, apontando que se há problemas na educação – e nas escolas – esse problema reside, fundamentalmente, na má administração institucional (SILVA, 1995). Para Moreira (1996), esta solução de ranquear as escolas tornou-se muito útil para ‘superar’ a escassez de recursos a serem gastos na educação: se são poucos os recursos, há que se contemplar as boas escolas e os bons professores, definidos a partir das avaliações, restando para os outros meramente o que sobrar6. O currículo nacional, visando à construção e preservação de uma cultura comum tida constitucionalmente como básica para o desenvolvimento de um sentimento nacional, privilegia, segundo Moreira (1996), discursos dominantes e tende a excluir das salas de aula os discursos e vozes de professores e alunos pertencentes aos grupos sociais oprimidos, vistos como ‘não merecedores de serem ouvidos’ (p.13). Neste processo, fica claro que regulação e controle da conduta humana estão implicados no currículo. Embora reconheçam que a regulação do currículo pelo poder oficial perpasse a ideia de homogeneidade, alguns autores consideram que ainda assim o currículo só ganha vida nas salas de aula, quando experimentado pelos estudantes e que, neste aspecto, o processo não garante a tal homogeneidade pretendida (ZUMWALT 1995 apud MOREIRA, 1996; LOPES, 2004b). Nesse sentido, Zumwalt (apud MOREIRA, 1994) afirma que a concepção de currículo nacional chega a ser uma contradição, visto não ser possível um currículo ser experimentado e vivido nacionalmente e Lopes (2004b) aponta que embora o currículo nacional permaneça, ainda há espaços de ‘reinterpretação’ das políticas curriculares capazes de permitir um projeto político social ‘diferente dos marcos estabelecidos pelo neoliberalismo’ (p.112) Os efeitos das políticas curriculares oficiais no contexto da prática pedagógica seriam condicionados por questões institucionais e disciplinares (BALL e BOWE, 1992 apud LOPES, 2004b), na medida em que: “as instituições e seus grupos disciplinares têm diferentes histórias, concepções pedagógicas e formas de organização, que produzem diferentes experiências e habilidades em responder, favoravelmente ou não às mudanças curriculares, reinterpretando-as” Em suma, as políticas curriculares – incluindo-se, obviamente, a implantação de um currículo nacional – seriam sempre passíveis de ‘múltiplas leituras’ realizadas por 6 Ainda hoje, quase 18 anos após o estudo de Moreira, este tipo de avaliação e ‘ranqueamento’ permanece. No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, o Sistema de Avaliação da Educação do Estado do Rio de Janeiro (SAERJ) desde 2008 premia escolas e professores classificados nas primeiras posições. ‘múltiplos leitores’ (BALL 2001 apud LOPES, 2004b). Porém, se por um lado essas possibilidades de reinterpretação e adaptação das políticas curriculares existem, por outro os professores continuam se sentindo reféns das prescrições detalhadas a que se veem submetidos e mantêm-se ocupados em tentar qualificar-se para obter êxito na implementação das propostas curriculares oficiais em sala de aula (MOREIRA, 1996). Para Giroux (1997), essa obediência técnica e mecânica aos ditames curriculares que vem sendo empreendida pelos professores esvazia seu potencial crítico e transformador reduzindo-os ao status de técnicos de alto nível que apenas cumprem objetivos e parâmetros traçados por especialistas – em sua maioria distantes do cotidiano escolar. A consequência, diz Apple (apud MOREIRA, 1996), é que os professores passam a depender mais de especialistas, que lhes dizem o que e como fazer, do que de seus conhecimentos adquiridos ao longo dos anos. Moreira (1996) traz alguns estudos que retratam bem esta submissão do professor aos ditames curriculares oficiais: em um deles, os professores, julgados pelos resultados que seus alunos obtêm em testes oficiais, acabam por se preocupar mais com o adestramento dos seus alunos a partir das habilidades e competências exigidas nestes testes do que com os aspectos sociais, políticos, culturais, etc., do processo educacional. Em outras palavras, o currículo deixa de atender aos interesses das crianças e pode transformar-se em uma atividade corrompida (CUBAN 1995 apud MOREIRA, 1994). 2.3 Perspectivas acadêmicas sobre as politicas curriculares nacionais Nesta seção apresentamos uma revisão da literatura sobre as políticas curriculares nacionais a partir de um levantamento realizado em periódicos da área de Educação e Ensino de Ciências, já mencionado no capítulo 1. As DCN e os PCNEM7, considerados os principais documentos balizadores da reforma curricular brasileira, acabam por expressar os princípios dessa reforma e indicam intenções públicas para a escolarização. As ações propostas nesses documentos visam fazer as escolas rediscutirem suas formas de organizar os saberes, seja pela busca de maior inter-relação entre os mesmos, via interdisciplinaridade, seja por maior sintonia desses saberes com a vida contemporânea, via contextualização e tecnologias (LOPES, 2002a, 2002b). Os documentos curriculares oficiais são vistos como um instrumento para a qualidade do ensino, já que se espera que venham orientar o trabalho pedagógico do professor em exercício. Tais textos oferecem critérios e referências para 7 No trabalho a que estou fazendo referência (FERRAZ et al 2011) por tratarmos as políticas curriculares para o nível médio, nos referimos aos Parâmetros Curriculares Nacionais utilizando a sigla PCNEM. Ao analisarmos os trabalhos de outros autores, mesmo se tratando de políticas curriculares para o nível médio, utilizamos a sigla escolhida pelos próprios (PCN ou PCNEM). decisões de planejamento, intervenção direta no processo de ensino/aprendizagem e avaliação. Nas escolas, diversos fatores têm influência sobre o uso ou não destes documentos, tais como a interpretação que os professores fazem dos documentos, os recursos materiais e humanos disponíveis nas escolas, os interesses pessoais e profissionais dos docentes e o conjunto da política educacional vigente. Assim, segundo Lopes (2004b), por mais que a elaboração das políticas educacionais seja orientada, de forma geral, pelas agências internacionais de fomento, em cada contexto particular há especificidades locais, finalidades sociais que direcionam a demanda dessas políticas. Para a autora, toda política curricular seria, deste modo, uma política cultural, pois é fruto de uma seleção da cultura, de embate entre sujeitos, concepções de conhecimento, formas de entender e construir o mundo. O que a pesquisa tem apontado é o baixo impacto das reformas curriculares na melhoria da realidade escolar. De acordo com Santos (2002), seria cabível pensarmos que, definindo um currículo nacional, selecionando os livros didáticos a serem adotados pelas escolas, capacitando os professores para desenvolver as competências consideradas fundamentais para o exercício de sua função, haveria uma notável melhoria no sistema educacional brasileiro, porém este processo não é tão simples como parece. Na área de pesquisa em ensino de Ciências, Rezende e Ostermann (2005) apontam que, de uma maneira geral, há uma aceitação acrítica dos PCN por parte de professores e pesquisadores. As autoras observaram, a partir de um levantamento de trabalhos publicados na pesquisa nesta área, a grande preocupação em atender à proposta dos PCN e, assim, respaldar o que está sendo pesquisado. As autoras também afirmam que, em alguns casos, as orientações contidas nos documentos desempenham o papel de referencial teórico dos estudos. Em um levantamento mais amplo, Rezende et al. (2009) afirmam que a ênfase das pesquisas da área de Ensino de Ciências é colocada nos aspectos cognitivos do processo de ensino-aprendizagem, deixando-se de fora outros aspectos envolvidos nele, como por exemplo, a discussão sobre o currículo. Diante do silêncio encontrado nos estudos mencionados e da necessidade de se fomentar a discussão sobre as políticas curriculares, o levantamento enfocou a apropriação acadêmica das políticas curriculares do nível médio por pesquisadores das áreas de Educação e de Educação em Ciências. A análise da apropriação das políticas curriculares pelos pesquisadores em Educação e em Ensino de Ciências consistiu nas seguintes etapas: a) levantamento do universo de trabalhos que tinham os PCNEM e as DCNEM como principal foco de estudo ou que apenas citavam as políticas; b) classificação e caracterização dos trabalhos segundo temáticas a partir da análise do conteúdo8; c) síntese dos trabalhos e d) análise das intenções dos autores, mostrando indícios da apropriação das políticas curriculares. O universo de trabalhos foi composto pelo total de trabalhos publicados no período de 2000 a 2010 nos volumes dos principais periódicos nacionais nas áreas de Educação e de Ensino de Ciências como apresenta a coluna total de artigos acessados, nas Tabelas 1 e 2. Decidiu-se por incluir no levantamento não apenas os periódicos da área de Ensino de Ciências, mas também da área de Educação por considerarmos a apropriação acadêmica das políticas curriculares comum a essas duas áreas. O período analisado foi escolhido devido ao fato dos principais documentos curriculares oficiais terem sido divulgados no final da década de 1990. Dessa forma, foi analisado como a pesquisa tem refletido sobre estes documentos desde a sua divulgação até a presente data. Para identificar os trabalhos sobre políticas curriculares, cada um dos trabalhos publicados foi acessado individualmente e buscou-se em seu corpo de texto referência às palavras: PCN, PCNEM, Parâmetros Curriculares Nacionais, política curricular, DCN, DCNEM, diretrizes curriculares. Caso fosse encontrada alguma das palavras, o conteúdo do trabalho era então analisado para identificar se o trabalho tratava de um estudo cujo foco principal era a discussão das políticas (Tabelas 1 e 2, coluna artigos com foco nas políticas curriculares) ou se apenas citava as políticas curriculares de maneira superficial (Tabela 3). Além dos trabalhos publicados em língua estrangeira, foram excluídos os artigos que tratavam do Ensino Fundamental e aqueles relacionados às política educacionais de maneira muito geral, e não especificamente às políticas curriculares. Tabela 1: Trabalhos com foco nas políticas curriculares na área de Ensino de Ciências Periódicos da Área de Ensino de Ciências Caderno Bras. de Ens. Física A Física na Escola Investigações em Ens. Ciências Revista Bras. de Ens. de Física Revista Bras. De Pesq. Educ. Ciências Ensaio Pesq. em Educ. em Ciências Ciência & Educação Volume 17 - 27 1 - 11 5 - 15 22 - 32 1 – 10 2 - 12 7 - 16 Total Total de artigos Artigos com foco nas acessados políticas curriculares 268 180 159 607 110 149 274 1.588 02 01 03 02 01 00 03 12 Tabela 2: Trabalhos com foco nas políticas curriculares na área de Educação 8 A análise do conteúdo aqui não refere-se à metodologia para descrever e interpretar o conteúdo de documentos e textos (Bardin, 1995). Na presente situação, fizemos apenas uma leitura geral e algumas marcações textuais que auxiliaram na classificação dos trabalhos em temáticas Periódico da Área de Educação Revista Brasileira de Educação Educação e Sociedade Cadernos de Pesquisa Volume Total de artigos Artigos com foco nas acessados políticas curriculares 286 609 331 1.266 04 04 01 09 13 - 42 21 - 31 34 - 40 Total Tabela 3: Trabalhos que apenas citam as políticas curriculares Periódicos Total de artigos que citam as políticas curriculares Cadernos de pesquisa Educação e sociedade Revista Brasileira de Educação Ciência & Educação Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências Revista Bras. de Pesq. em Educ. em Ciências Revista Brasileira de Ensino de Física Investigações em Ensino de Ciências A Física na Escola Caderno Brasileiro de Ensino de Física 53 70 21 64 17 6 14 26 9 19 A classificação de cada trabalho foi feita a partir da análise de cada trabalho e visou, fundamentalmente, levantar seu objeto de estudo e identificar sua principal temática. As sínteses dos trabalhos foram elaboradas a partir da identificação dos objetivos dos estudos, dos referencias teóricos utilizados e dos resultados dos artigos analisados. Sendo a apropriação o povoamento da palavra do outro com suas próprias intenções (BAKHTIN, 2006b), buscou-se, nesta etapa do levantamento, identificar o posicionamento e intenções dos autores em relação às políticas curriculares. A análise de conteúdo dos trabalhos permitiu identificar e distribuir os trabalhos em temáticas (Tabela 4). Ressaltamos que estas categorias não foram elaboradas a priori e sim ao longo das análises realizadas. A distribuição dos 21 trabalhos que tinham como foco as políticas curriculares em temáticas mostrou que, embora apenas 0,74% dos artigos publicados nas áreas de Ensino de Ciências e de Educação se debrucem sobre o tema, são variadas as reações da comunidade acadêmica em relação a esse tema. As subseções seguintes apresentam as principais ideias dos autores agrupados em cada temática. Tabela 4: Classificação dos trabalhos com foco nas políticas curriculares em temáticas Temática Nº de trabalhos Na área de Educação Análise dos discursos das políticas curriculares Políticas curriculares e a formação docente Políticas curriculares na prática docente Políticas curriculares e as finalidades da educação 7 2 6 3 3 0 0 3 Na área de Ensino de Ciências 4 2 6 0 Abordagens metodológicas para a pesquisa em políticas curriculares Relações entre Estado e as políticas curriculares Total 1 1 0 2 21 2 9 0 12 2.3.1.Análise dos discursos das políticas curriculares A partir da abordagem do ciclo de políticas de Stephen Ball e do entendimento de comunidade disciplinar escolar de Ivor Goodson, Busnardo e Lopes (2010) buscam relacionar os principais discursos que circulam no âmbito das discussões da comunidade de Ensino de Biologia com a produção das políticas curriculares. O estudo baseou-se na análise dos trabalhos relacionados à temática “currículo” apresentados nos principais eventos da área de Ensino de Biologia e em sua maioria autorados por professores da Educação Básica. Os resultados apontam para produções de múltiplos contextos, fruto da circularidade de discursos, pois muitos dos discursos apresentados nos documentos oficiais incluem sentidos do contexto da prática assim como discursos dos documentos são incorporados à prática dos professores. Lopes (2005) tem como objetivo defender a ideia de que a disciplina escolar é um híbrido de discursos curriculares. Para sustentar tal ideia, é analisado como os textos na área de ensino de Química influenciam as políticas de currículo, hibridizando discursos oficiais e outros discursos curriculares. São articuladas as discussões teóricas de Ball sobre políticas de currículo, de Goodson sobre disciplinas escolares, de Bernstein sobre recontextualização, e de Canclini sobre hibridismo. Ao final da análise, a autora considera evidente o quanto as políticas não são produção exclusiva da esfera oficial, mas contam com uma participação efetiva dos grupos disciplinares em ensino das disciplinas específicas. Tais grupos interferem nas políticas e também regulam seus efeitos na prática. Nesse sentido, compreender os sentidos que são produzidos por esses grupos nas políticas curriculares e os processos de legitimação associados a essas políticas permite entender alguns dos mecanismos que efetivamente condicionam a constituição do conhecimento escolar. A partir da recontextualização pela comunidade disciplinar de ensino de Física, da concepção de competências propostas oficialmente a partir de 1990, Silva e Lopes (2007) têm como um dos seus objetivos trazer à discussão ideias e princípios adotados em política de currículo. Com base nas discussões teóricas de Ball sobre políticas de currículo, de Goodson sobre disciplinas escolares, de Bernstein sobre recontextualização, e de Canclini sobre hibridismo, defendem que o currículo por competências, apesar de ser um currículo interdisciplinar, é recontextualizado por sua incorporação a um discurso marcado pela valorização dos conteúdos e da estrutura disciplinar, tradicionalmente valorizado na Educação. A partir da análise de textos selecionados, que compreendiam trabalhos publicados nos principais eventos e revistas da aérea de Ensino de Física, além de trabalhos de pessoas que se destacavam na área, os autores concluem que na medida em que, na maioria dos trabalhos analisados, se busca o apoio nos PCNEM e nas DCNEM para legitimar as propostas curriculares desejadas, a vinculação com a segunda possibilidade acaba por ser igualmente legitimada, conferindo às competências e habilidades uma centralidade que pode contribuir para a desvalorização de conteúdos e para o empobrecimento da discussão cultural no currículo, reforçando o caráter instrumental de forma mais ampla. Martins (2000) pretende oferecer contribuições para o debate sobre as mudanças propostas pelas Diretrizes Curriculares Nacionais elaboradas para a reforma do ensino médio no Brasil e divide seu estudo em duas partes: na primeira, avalia o cenário político e econômico como cenário gerador da reforma educacional ocorrida em 90 e, na segunda, discute a Resolução do Conselho Nacional de Educação, de 16/06/1998, que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, bem como as Bases Legais – Parte I – dos PCN tomando como referência metodológica para análise desse discurso oficial a proposição de Bardin (1995) para os modelos de análise estrutural, procurando revelar os valores implícitos e as condições dos textos legais. A partir dessa análise, o autor finaliza afirmando que é possível que as escolas de nível médio construam seus próprios caminhos para percorrer a complicada relação com novos referenciais teóricos contextualizando os temas culturais e políticos a partir da dinâmica da sociedade brasileira, que tem sido profundamente influenciada pelo redimensionamento da acumulação do capital. Corazza (2001) e Lopes (2004) têm como foco de estudo a teorização crítica do currículo mostrando a sua contextualização histórico-social e a mescla de diferentes tendências a discursos distintos e muitas vezes contraditórios sobre o tema. Estes autores penetram na complexidade desses processos mostrando a necessidade da apropriação crítica do conceito de hibridismo no sentido de que sejam indagados e postos em foco os processos políticos e socioculturais em que as propostas curriculares se inserem. Tais discussões permitem o questionamento das relações de poder que envolvem nossa sociedade e as políticas curriculares educacionais indicando a existência de tais relações de poder nas políticas curriculares. Abreu et al. (2005) analisam os conceitos de contextualização e tecnologias presentes nos PCN confrontando-os com as concepções que aparecem em livros didáticos de Biologia e Química, objetivando compreender como esses discursos são apropriados e hibridizados. Os autores defendem a ideia de que entender quais os discursos híbridos presentes nos livros e envolvidos permite identificar as relações de poder que as políticas instituem. A partir deste entendimento, mostram que as orientações sobre contextualização e tecnologias expressas nos livros didáticos de Biologia e Química são hibridizadas a partir de recortes e influências dos campos de pesquisa em ensino da Ciência de referência, dos textos e discursos oficiais e dos discursos sociais circulantes que valorizam princípios gerais no panorama mundial. 2.3.2 Políticas curriculares e a formação docente O artigo de Carvalho, A. (2001) tem por objetivo analisar o impacto das novas legislações educacionais brasileiras na formação do professor. A autora discute elementos fundamentais que estão sofrendo mudanças na atualidade. Alguns dos elementos apontados pela autora referem-se à dificuldade de entendimento, por parte dos docentes, de conceitos como multidisciplinaridade e integração com a realidade do aluno, presentes nos PCN, e como esta dificuldade interfere no planejamento das disciplinas científicas. Afirmando que está completamente de acordo com os critérios estabelecidos pela Base Comum Nacional para a formação de todos os professores nos diversos cursos de Licenciatura, e que também está de acordo com a elevação do número de horas de prática de ensino para esses cursos, a autora conclui que somente o professor que tem uma sólida formação nos saberes conceituais e metodológicos de seu conteúdo específico é capaz de planejar atividades de ensino que integrem os três aspectos: o conceitual, o procedimental e o atitudinal propostos pelos PCN. A pesquisa de Ricardo e Zylbersztajn (2007) tem como objetivo principal investigar como estão sendo tratados os PCN na formação inicial dos futuros professores de ensino médio das disciplinas da área das Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias, bem como verificar a opinião dos seus formadores acerca desses documentos e sua compreensão a respeito dos principais conceitos neles contidos, a saber, competências, interdisciplinaridade e contextualização, além de discutir alguns aspectos teóricos em relação a essas noções presentes na literatura recente. Foram entrevistados os professores das disciplinas de Metodologia de Ensino e/ou Prática de Ensino dos cursos de licenciatura em biologia, física, matemática e química de três universidades públicas. A partir da análise destas entrevistas, os autores identificaram que há uma boa aceitação dos PCN pelos formadores e que estes os entendem como síntese dos temas pesquisados na área de Ensino das Ciências, inclusive na identificação de problemas que a comunidade acadêmica vem apontando no ensino praticado e que, por outro lado, apenas um pequeno número de professores se coloca contrário aos PCN, seja pela forma que chegaram nas escolas, seja pelo teor dos documentos. 2.3.3 Políticas curriculares na prática docente O estudo de Veit e Teodoro (2002) tem por objetivo discutir a importância da utilização das novas tecnologias de informação e comunicação no ensino em conexão com os PCNEM no processo de aprendizagem, defendendo o uso de uma ferramenta computacional que favorece a aprendizagem construtivista. Afirmando ser indispensável o uso adequado das tecnologias de informação, os autores apostam numa grande contribuição dos PCNEM no desenvolvimento dos planejamentos e dialoga, a todo tempo, com trechos do documento na elaboração dos planejamentos de aulas que venham a facilitar a construção do conhecimento através das tecnologias. Tendo como principal objetivo mostrar e discutir algumas diferenças relevantes entre a versão preliminar e a versão oficial das novas Orientações Curriculares para o Ensino Médio, Ricardo et al (2008) investigam, mais especificamente, as modificações acerca da concepção de competências e do ensino de Física Moderna na prática docente. Os autores entendem que tais esclarecimentos podem facilitar a compreensão e implementação das orientações sugeridas no documento e alimentar a permanente reflexão das práticas educacionais e defendem que um ensino por competências, tal como proposto nas novas Orientações Curriculares Nacionais, não implica uma revisão apenas nos conteúdos, mas nas práticas dos professores, pois o que se espera deles é que consigam encontrar uma conjunção entre atividades experimentais, aplicações e discussões conceituais, considerando-se seus aspectos históricos e sociais. Pena e Ribeiro Filho (2003) têm por objetivo discutir a influência dos PCN para o uso didático da História da Ciência com base em relatos de experiências pedagógicas publicados em periódicos nacionais especializados em ensino de Física (2000 – 2006). O estudo aponta que apesar das orientações dos PCN, a referida abordagem histórica ainda não foi traduzida, de maneira significativa, em experiências didáticas. Muitas dificuldades são apontadas para explicar tal fato, como por exemplo, os obstáculos encontrados para estabelecer relações entre Ciência e educação dentro de uma perspectiva histórica associada a aspectos sociais, econômicos e políticos; a formação precária do corpo docente neste contexto e a falta de materiais didáticos adequados que possam ser utilizados nesta abordagem de ensino. Ricardo e Zylbersztajn (2002) tiveram como objetivos principais de seu estudo identificar as percepções dos professores do Ensino Médio, da área Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias, bem como da diretoria e da supervisora educacional de determinada escola, sobre os PCN e a atual situação de sua implantação no ambiente escolar. O estudo apontou que são vários os obstáculos encontrados para levar à prática as propostas das políticas curriculares sendo um dos principais a dificuldade de compreensão do professores, diretores e supervisores dos conceitos presentes no documento, como competências e habilidades. Também foram citadas outras dificuldades relacionadas às disciplinas em análise, como a falta e rotatividade de professores, além de dificuldades da escola no âmbito geral, como a desvalorização do profissional e escassez de livros. Dentre as opiniões dos professores, os autores identificaram uma preocupação dos professores com o como fazer, com a operacionalidade dos PCN. Ricardo (2003) tem por objetivo discutir alguns conceitos presentes nas DCN e nos PCN para o Ensino Médio, tais como contextualização, competências e interdisciplinaridade, cuja incompreensão tem se mostrado um dos entraves à implementação das propostas desses documentos em sala de aula. O autor observa que há uma distância a ser vencida entre a proposta e a prática, cujo sucesso depende da superação de algumas dificuldades detectadas em pesquisas anteriores, dentre as quais se destacam: falta de espaço para discussão das propostas do MEC em seu todo e para a elaboração coletiva do projeto político-pedagógico da escola; ausência de programas de formação continuada; desencontro de informações entre as instâncias federais, estaduais e a escola; pouco material didático disponível verdadeiramente compatível com os PCN e afirma que para que se atinja a dimensão da reforma educacional pretendida há a necessidade de rever não só os conteúdos a ensinar, mas, principalmente, as concepções e práticas educacionais correntes. Partindo de pesquisas anteriores em que identificam a grande dificuldade de compreensão dos principais conceitos presentes nas DCNEM, PCN e PCN+, a saber, competências, habilidades, interdisciplinaridade e contextualização, por parte dos professores de Ciências do Ensino Médio, Ricardo e Zylbersztajn (2008) pretendem com este estudo oferecer alguns esclarecimentos acerca destes conceitos fundamentais sob o ponto de vista dos seus elaboradores, utilizando entrevistas semi-estruturadas. Como resultado o autor aponta que mesmo entre os elaboradores há ambiguidade terminológica com os conceitos de habilidade e competência. Para os elaboradores a ideia de interdisciplinaridade não é a de se opor às disciplinas, mas de vislumbrar competências e habilidades que, para serem construídas, necessitam dos conhecimentos de mais de uma disciplina. 2.3.4. Políticas curriculares e as finalidades da educação Dias e Abreu (2006) discutem, a partir dos discursos sobre o mundo do trabalho nos livros didáticos da área de Ciências da coleção “De olho no mundo do trabalho” (editora Scipione), a estreita relação ente educação, economia e os objetivos do currículo. Baseando-se na teoria de Ball, as autoras entendem a constituição das políticas curriculares como um processo de negociação complexo que inclui influência, produção e disseminação de textos circulantes que estão sujeitos à recriação contínua no contexto da prática. Analisando como os discursos sobre o mundo do trabalho são apropriados e recontextualizados, as autoras afirmam que os livros didáticos se apropriam dos conceitos sociais e econômicos de valorização dos saberes necessários à produção de riquezas (científico-tecnológico) e de outros interesses, sofrendo influência de todos os contextos que participam do processo de formação das políticas curriculares. Posicionam-se, por fim, contra esta política na medida em que desta forma a educação e o conhecimento importam apenas quando seus fins podem gerar vantagens econômicas. Lopes (2002b) objetiva, neste trabalho, demonstrar que o processo de produção de um discurso curricular híbrido nos PCNEM tem por principal finalidade a inserção social do indivíduo no mundo produtivo. Sua crítica a esta finalidade reside no fato de que ela limita a dimensão cultural da educação. Desenvolvendo suas ideias a partir dos conceitos de recontextualização (Bernstein) e de hibridismo (Canclini) e apontado as ambiguidades expressas no conceito de contextualização nos documentos oficiais como exemplo do discurso híbrido, a autora afirma que essas ambiguidades são entendidas como uma ressignificação dos discursos curriculares acadêmicos e defende que tais ambiguidades são uma forma de se legitimar os parâmetros junto a diferentes grupos sociais. Macedo (2009) analisa os PCN, especialmente os de Ciências e os Temas Transversais tendo como foco articulações universalistas que buscam minar as demandas da diferença. Apoiam-se na teoria discursiva de Laclau e Mouffe, em que as políticas curriculares são entendidas como articulações hegemônicas em torno do que vem a ser entendido como “qualidade da educação”. Ao fazer a análise do documento, a autora afirma que ao falar da finalidade de educar para a cidadania o documento está falando em nome de uma totalidade impossível, de um universal que, como todo universal, constitui-se com base em exclusões. Nesse sentido, entende que, ao preencher o significante qualidade com a promessa de educar para a cidadania, os Temas Transversais jogam as demandas da diferença para a margem numa articulação que permite o controle desse espaço por discursos universalistas e excludentes. 2.3.5 Abordagens metodológicas para a pesquisa em políticas curriculares O trabalho de Oliveira e Destro (2005) tem por principal objetivo discutir concepções de política curricular para caracterizar uma abordagem metodológica de pesquisa que evidencie processos contra-hegemônicos em políticas curriculares. Os pressupostos dos autores residem na centralidade da cultura em termos epistemológicos, a ampliação do campo político e a lógica espacial não-binária dos estudos pós-coloniais. A política curricular é então entendida como uma política cultural ao ser definida como um processo histórico no qual diferentes protagonistas produzem tensões em torno da produção, circulação e consolidação de significados no currículo escolar. Dessa forma, os autores sugerem o deslocamento da abordagem metodológica hegemônica, ou seja, da perspectiva global/local para a perspectiva local/global, e "consideram um equívoco focalizar produção ou implementação, Estado ou cotidiano em pesquisas de política curricular.” (p.148) Enfim, pontuam algumas questões que podem pautar estudos com essa perspectiva. 2.3.6 Relações entre o Estado e as políticas curriculares Pacheco (2000) tem por objetivo identificar diferentes significados para o termo descentralização, nas questões curriculares e na construção do referencial das políticas curriculares, argumentando que o currículo é um processo intencional e prático em que os principais atores são os professores e os alunos. Para tanto, exibe um panorama do período da reforma educacional das décadas de 80 e 90 no Brasil, na qual, apesar de ter presentes ideias inovadoras da descentralização, o Estado continua a ser centralista nos aspectos mais substantivos do currículo pela formulação dos objetivos, da seleção e organização dos conteúdos, da proposta de atividades e do controle da avaliação, apagando assim o protagonismo dos seus principais atores. Hypólito (2010) objetiva analisar as políticas curriculares desenvolvidas no contexto da globalização e do neoliberalismo que têm orientado as ações do Estado no campo educacional, como forma de regulação social. Assim, discute os efeitos das políticas do Estado para o currículo e o modo de gestão que regula a educação e o trabalho escolar. O autor conclui afirmando que os modos de gestão, constantemente mostrados como a solução para a educação, chegam às escolas como formas estranhas de administração e a cada dia mais se mostram ineficientes para enfrentar os problemas escolares. 2.3.7 Uma síntese Diante do que foi levantado e à luz da perspectiva Bakhtiniana, foi possível apontar diferenças significativas entre as apropriações que os trabalhos fazem das políticas curriculares: nas temáticas “Análise do discurso das políticas curriculares”, “Políticas curriculares e as finalidades da educação”, “Abordagens metodológicas para a pesquisa em políticas curriculares” e “ Relações entre o Estado e as políticas curriculares”, notamos intenções mais críticas tanto em relação ao teor dos documentos curriculares oficiais quanto às suas finalidades e relações de poder envolvidas, ao passo que nas temáticas “Políticas curriculares e a formação docente” e “Políticas curriculares na prática docente”, os autores têm como intenção, fundamentalmente, discutir problemas da formação e da prática docente que dificultam a implementação das políticas curriculares nas escolas e, aceitando o discurso oficial, pouco refletem sobre essas políticas como algo que deve ser problematizado e discutido. Nos trabalhos sobre análise do discurso e processo de hibridismo nas políticas, pudemos perceber um acento valorativo positivo dado aos discursos extra-oficiais, nas escolas e comunidades disciplinares, que se fundem aos discursos oficiais. Esse processo confere aos textos curriculares oficiais novos sentidos e significados, independentemente de haver maior ou menor esclarecimento sobre esses textos (CORAZZA, 2001; LOPES, 2004b; BUSNARDO e LOPES, 2010; LOPES, 2005; SILVA e LOPES, 2007; ABREU et al., 2005). Quanto à relação das políticas curriculares com as finalidades da educação, a intenção dos autores é demonstrar que o currículo não é um artefato neutro e que existe nos documentos curriculares oficiais uma valorização de determinados conhecimentos em detrimento de tantos outros, com o objetivo de atingir determinadas finalidades, tais como inserir o indivíduo no mundo produtivo, gerando riquezas e vantagens econômicas (DIAS e ABREU, 2006; LOPES, 2002b) e a homogeneização dos indivíduos, ou seja, a tentativa de desvalorização das diferenças (MACEDO, 2009). Nos trabalhos que tratam da implementação das políticas curriculares, seja na formação ou na prática docente, as pesquisas acentuam a questão da distância entre o que está proposto nos documentos curriculares oficiais e o que ocorre de fato na prática escolar, tentando oferecer recursos para minimizar as dificuldades de implementação das políticas curriculares vigentes (RICARDO, 2003; RICARDO e ZYLBERSZTAJN, 2008; RICARDO e ZYLBERSZTAJN, 2002). Neste sentido, alguns trabalhos publicados nesta área têm também como intenção reivindicar uma melhoria na formação inicial para que esta implementação torne-se possível (RICARDO e ZYLBERSZTAJN, 2007; CARVALHO, A., 2001; VEIT e TEODORO; 2002; PENA e RIBEIRO FILHO, 2003). Pudemos verificar que as políticas curriculares e o currículo em si não têm sido contemplados pelas pesquisas: apenas 0,74% dos artigos publicados tanto nas áreas de ensino de Ciências e de Educação se debruçam sobre o tema. Esse dado fortalece a ideia de Silva (1995) que afirma que o currículo tem sido “tomado como algo dado e indiscutível, raramente sendo alvo de problematização, mesmo em círculos educacionais profissionais” (p.184). Assim como nenhum trabalho da área de Educação ocupou-se de discutir, na última década, a implementação das políticas curriculares na prática e formação docente, nenhum trabalho da área de Educação em Ciências ocupou-se das finalidades educacionais dessas políticas, indicando que existem diferenças substanciais na apropriação dos documentos oficiais pelos pesquisadores das duas áreas. A origem dessa diferença parece estar na apropriação do próprio conceito de currículo enquanto artefato político e cultural pela área de Educação e na base teórica em autores que problematizam as relações de poder implicadas nos processos de produção e reprodução das políticas curriculares. Tendo trazido, com este levantamento, um panorama da produção acadêmica recente sobre as políticas curriculares de um modo geral, dou continuidade ao debate a partir de um estudo específico sobre os aspectos mais centrais dos PCNEM da área de Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias e dos PCNEM de Física 2.4 Parâmetros curriculares nacionais para a área de Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias Pressupondo que as habilidades e competências a serem formadas exigem conteúdos de diferentes disciplinas, a organização dos PCNEM é realizada por módulos, de modo que cada módulo englobe atividades e conteúdos que sejam capazes de desenvolver determinado tipo de habilidade. Assim, os PCNEM tem nas Tecnologias o princípio integrador das áreas (Linguagens Códigos e suas Tecnologias; Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias; Ciências Humanas e suas Tecnologias) e como eixos estruturantes as competências e habilidades, a contextualização e a interdisciplinaridade. As competências necessárias para se atingir os objetivos propostos foram definidas pela Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI e correspondem a ‘aprender a conhecer`, `aprender a fazer`, `aprender a viver` e ‘aprender a ser’ (LOPES 2001). A partir da articulação das três grandes áreas já mencionadas, a estrutura curricular do documento tem por finalidade a ‘inter’ e a ‘transdisciplinaridade’ que visa superar “a organização por disciplinas estanques e revigorar a integração e a articulação dos conhecimentos, num processo permanente de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade” (BRASIL, 1997, p.2). Segundo o documento, essa estruturação do currículo também visa “assegurar uma educação de base científica e tecnológica, onde conceito aplicação e solução de problema concretos são combinados” (p.2) Na área de Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias, à qual a Física se integra, defende-se uma transdisciplinaridade e um conhecimento em rede sem que isto implique a extinção das respectivas disciplinas (MACHADO 1996 apud LOPES, 2004a). A aprendizagem das ciências e das tecnologias é vista de maneira a se fazer compreender que, enquanto produção humana, o mundo físico e natural difere dos objetos da Matemática, da Física, etc., embora este o tenha como referência (LOPES, 2004a). A autora considera que o discurso de valorização de uma base científica comum, cuja finalidade é formar alunos nos “conteúdos específicos potencializadores de progressivo domínio da integração ciência e tecnologia” (BRASIL, 1997, p. 4) é percebido como fundamental neste novo empreendimento educacional. Nas próximas subseções destacarei mais detalhadamente algumas discussões 9 acerca dos conceitos estruturantes dos PCNEM. Com a ajuda destas discussões, me debruçarei, ao final, sobre os PCNEM de Física, tentando trazer à cena algumas concepções presentes no próprio documento e em outros textos que possam auxiliar no entendimento das perspectivas dos professores. 2.4.1 Habilidades, competências e interdisciplinaridade A noção de competência invadiu o espaço educacional e os discursos sociais e científicos de forma avassaladora a partir dos anos 1970. Documentos oficiais fazem, a todo tempo, referência a ela e a estabelecem como direcionadora das práticas dos diversos e diferentes agentes; livros didáticos a enaltecem ou criticam a incorporação do ensino baseado em competências; diversos eventos são realizados tendo nas competências o seu carro chefe. As competências povoam as discussões pedagógicas e Estas discussões são alimentadas tanto por meio dos discursos advindos da área da pesquisa em educação quanto daqueles oriundos da pesquisa em educação em Ciências. Ainda que tenham sido considerados potencialmente como perspectivas com as quais os professores poderão dialogar para compor suas perspectiva, é importante esclarecer que os autores revisados vêm de campos de estudo diferentes e, por isso, abordam perspectivas distintas, o que acaba por caracterizar a seção como um diversificado conjunto de concepções. 9 levam os professores a buscarem elementos que os auxiliem no seu entendimento e formas de incorporá-las aos projetos educativos. Para Ghiraldelli (2000), a ênfase no ensino por competências, as quais pressupõem “aprender a aprender” e o “aprender a fazer”, sofreu grande influência e foi retomada a partir dos princípios pedagógicos já presentes na tendência educacional denominada Escola Nova ou Renovada que se propôs a colocar em prática a teoria educacional de Dewey, datada do final do século XIX. O propósito da Escola Nova consistia na inversão da ação pedagógica da chamada Escola Tradicional, dando mais ênfase à ação do que à teoria. Para tanto, a criança deveria estar preparada, através do aprendizado da metodologia de resolução de problemas, a lidar com a mudança, a contingência, a incerteza de um futuro imprevisível (GHIRALDELLI JR., 2000). As concepções teóricas de Bobbit, Charters e Tyler indicavam que a escola ensinaria de maneira mais eficiente caso optasse pela reprodução dos procedimentos de administração científica das fábricas (na época taylorista-fordista) e se empreendesse um minucioso planejamento dos objetivos a serem alcançados (LOPES, 2001). Segundo a autora, essa concepção está diretamente ligada à: “[...] ideia ainda muito presente no senso comum educacional de uma forma mais ampla, de que a qualidade do desenvolvimento curricular, e da educação de uma forma geral, depende da definição precisa dos objetivos [principalmente comportamentais] a serem implementados e, por conseguinte, do perfil de profissional, de cidadão ou de sujeito social que pretende formar, derivado do pensamento de que o currículo existe para atender às finalidades sociais do modelo produtivo dominante” (p.3). O caráter comportamental dos objetivos é defendido na medida em que o comportamento do aluno “como expressão objetiva, sem ambiguidades e inequívoca do processo educacional” (LOPES, 2001, p.3) possibilitaria a avaliação, igualmente inequívoca, da eficiência de todo o processo. Para a autora, o objetivo do ensino por competências – como conhecido atualmente – agrega ao comportamentalismo dimensões humanistas mais amplas de maneira a possibilitar a formação de comportamentos (competências) que representem metas sociais impostas aos jovens pela sociedade. A tendência tecnicista – com sua ênfase nos objetivos claramente determinados e na capacidade de realização dos indivíduos (o aprender a fazer) – também influenciou imensamente a abordagem por competência. Bloom (apud Valente 2002) – pedagogo e psicólogo norte-americano cuja teoria se insere no paradigma comportamentalista – em seu trabalho intitulado a “Aprendizagem para o Domínio”, afirma que 90 a 95% dos alunos têm possibilidade de aprender o que lhes é ensinado, desde que lhes sejam fornecidas as condições adequadas de aprendizado. Para Valente (2002), que considera Bloom o autor que mais influência exerceu nas teorias da aprendizagem na segunda metade do século XX – esta concepção pode ser encarada como a gênese do ensino por competências. Ropé e Tanguy (1997) alertam para o fato de que os diferentes usos da noção de competências nos diferentes espaços – escola, empresa, administração, etc. – causam dúvidas quanto ao seu real significado. Na área educacional, por exemplo, ela tende a substituir as noções de saberes e conhecimentos e, na esfera do trabalho, a noção de qualificação. Para os autores: “Os usos que são feitos da noção de competências e habilidades não nos permite uma definição conclusiva. Ela se apresenta, de fato, como uma dessas noções cruzadas, cuja opacidade semântica favorece seu uso inflacionado em lugares diferentes por agentes com interesses diversos” (ROPÉ e TANGUY, 1997, p.16). Da mesma forma, Perrenoud (1999), um dos mais influentes estudiosos acerca do assunto, se manifesta: “não existe uma definição clara e partilhada de competências. A palavra tem muitos significados e ninguém pode pretender dar a definição” (p.19). Embora assuma os múltiplos significados de competência, Perrenoud (1999) se posiciona em relação ao termo “como sendo uma capacidade de agir eficazmente em um determinado tipo de situação, apoiada em conhecimentos, mas sem limitar-se a eles” (p.7). Valente (2002) aponta que nas bibliografias podem ser encontrados dois eixos interpretativos/conceituais: a) um que explicita o significado de competência como ação que envolve uma série de atributos: conhecimentos, habilidades, aptidão. Neste caso as competências englobam as habilidades. b) outro que diferencia competências e habilidades, seja conceituando separadamente, ou apenas mencionando-as de forma distinta, porém sem adentrar nas diferenças – esta última contemplada nas DCN e nos PCNEM. Segundo Deffune e Depresbiterries (apud VALENTE, 2002), que também se dedicaram a buscar os diversos conceitos de competências, as definições variam de acordo com os aportes teóricos em que são baseadas, com a análise das atividades desenvolvidas no mundo do trabalho e com as diferentes formas como as competências serão traduzidas para o currículo. Lopes (2001) aponta que o conceito de competência vem configurando as reformas curriculares não só do Brasil, mas de muitos países do mundo ocidental. Tal direcionamento comum encontra-se expresso, por exemplo, no Relatório da UNESCO da Comissão Internacional sobre a Educação para o século XXI, que defende as competências enquanto conceito pedagógico central para a prática educativa no ensino de jovens e adultos, níveis médio e profissionalizante, propondo sua ampliação a todas as crianças. No Brasil, o ensino baseado em competências foi institucionalizado no sistema educacional com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 20 de dezembro de 1996 (LDB/96), que incumbiu à União: “Art 9º. IV - estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, competências e diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum” (BRASIL, 1996) Ricardo e Zylberstajn (2008) procuraram compreender como se deu a introdução das noções de competências e habilidades nas propostas dos PCNEM das Ciências da Natureza, além das noções de interdisciplinaridade e contextualização. Os autores destacam que, embora a construção dos PCNEM contemplasse a trajetória de seus autores, muitos aspectos, como o uso das competências e habilidades, sofreram forte influência da LDB/96. A esse respeito, um dos elaboradores declara que: “(...) a gente não definiu que a proposta deveria ser Parâmetros Curriculares Nacionais baseados em competências e habilidades. Isso já foi uma proposta do próprio MEC, quer dizer, nem nós tínhamos clareza, nem fomos nós que optamos que a proposta deveria ser através de competências e habilidades.” (entrevistado citado por Ricardo e Zylberstajn, 2008) A afirmação acima esclarece que a opção pela abordagem das competências e habilidades foi feita de “cima para baixo”, isto é, não ocorreu pela iniciativa dos autores dos PCNEM e sim, como já foi exposto anteriormente, a partir da incumbência dada pela LDB/96 à União – em colaboração dos Estados, Municípios e Distrito Federal - de instituir competências e diretrizes básicas para todos os níveis de educação. Embora os elaboradores assumam que o discurso por competências se mostrou pertinente para expressar objetivos mais amplos na formação dos alunos, superando a mera transmissão de conteúdos específicos, este discurso trouxe consigo problemas já tratados neste capítulo: o termo competência não era apenas uma palavra nova, cujo significado era consensual, pelo contrário, carregava concepções e significados distintos que, por não terem sido explicitados nas DCNEM e nos PCNEM, levaram a inúmeras críticas aos referidos documentos. Quanto a este aspecto, perguntados sobre a existência, ou não, de aportes teóricos em relação à noção de competências e habilidades os elaboradores são taxativos: “Eu posso lhe garantir que não havia um autor conhecido. Pouca gente conhecia o Perrenoud, por exemplo, ou o Le Boterf10, ou esses nomes que depois, nos últimos cinco anos se tornaram mais conhecidos.” (entrevistado citado por RICARDO E ZYLBERSTAJN, 2008) “(...) nós lemos muitas coisas que estavam discutindo sobre competências, lemos o Perrenoud, mas eu não diria para você que nós efetivamente seguimos a orientação de um autor, ou se os Parâmetros pensam as competências segundo o Philippe Perrenoud.” (entrevistado citado por RICARDO E ZYLBERSTAJN, 2008) Quanto à distinção entre competências e habilidades, alguns elaboradores entrevistados por Ricardo e Zylberstajn (2008) mencionam que a diferença estaria na abrangência de cada uma, porém, os próprios elaboradores admitem que tal diferenciação não é tão simples, nem tão claro e que no próprio documento não há uma distinção. A confusão terminológica também é percebida no fato de que nos PCNEM, ao final do documento, existe um quadro para cada disciplina intitulado “Competências e Habilidades” ao passo que nos PCN+11 o termo habilidades desaparece por completo. Por também terem participado do processo de construção das Matrizes Curriculares de Referência do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), alguns elaboradores tentam diferenciar os termos de acordo com a definição que aparecem nestas Matrizes, ou seja, colocando as competências relacionadas à esfera cognitiva , de construção e mobilização dos conhecimentos, e habilidade como um saber fazer, na esfera procedimental e instrumental. Porém, mesmo essa diferenciação não se mostra eficiente, conforme ilustra o exemplo a seguir: “Então, por exemplo, é uma habilidade você saber manusear o microscópio, ou saber como é que você calcula, ou como você procura uma informação, mas a competência estava relacionada com uma coisa mais ampla. Ela tem uma relação de uma coisa mais cognitiva, mas abrangente, e fortemente vinculada à resolução de problemas. Então, frente a um problema, você poderia ter várias competências. Você poderia, por exemplo, mobilizar conhecimentos, buscar informações, associar-se a outras pessoas.” (entrevistado citado por RICARDO E ZYLBERSTAJN, 2008) De acordo com Ricardo e Zylbersztajn (2008), neste exemplo, o próprio elaborador torna-se vítima da ambiguidade terminológica, pois no início da declaração, procurar uma informação é habilidade, porém, ao final, buscar informações é competência. Para alguns autores, como Silva (2000), a ausência de clareza e fluidez com que os termos competências e habilidades são tratados nas DCNEM e nos PCNEM 10 Le Boterf (1994) compara a competência a um “saber-mobilizar” : implica saber como mobilizar, integrar e transferir os conhecimentos, recursos e habilidades, num contexto profissional determinado. 11 Os PCN+ foram propostos como orientações complementares aos PCNEM e apresenta aos professores exemplos de aplicação das propostas previstas nos Parâmetros. praticamente inviabilizam sua utilização como conceitos norteadores das práticas pedagógicas e da organização curricular. Para Lopes (2001), o significado do conceito de competência assumido nos documentos curriculares oficiais do Ministério da Educação (MEC) mescla dimensões cognitivistas, “oriundas de teorias sobre competências em contextos não educacionais das ciências sociais” (p. 3) com “enfoques comportamentalistas do conceito de competências da teoria curricular” (p. 3). Nas palavras do secretário de educação média do governo Fernando Henrique, em que os PCN foram implementados, as competências são: “(...) os esquemas mentais, ou seja, as ações e operações mentais de caráter cognitivo, sócio-afetivo ou psicomotor, que mobilizadas e associadas a saberes teóricos ou experienciais geram habilidades, ou seja, um saber fazer. As competências são "modalidades estruturais da inteligência, ou melhor, ações e operações que utilizamos para estabelecer relações com e entre objetos, situações, fenômenos e pessoas que desejamos conhecer", operações mentais estruturadas em rede que mobilizadas permitem a incorporação de novos conhecimentos e sua integração significada a essa rede, possibilitando a reativação de esquemas mentais e saberes em novas situações, de forma sempre diferenciada. As habilidades decorrem das competências adquiridas e referem-se ao plano imediato do saber fazer. Através das ações e operações, as habilidades aperfeiçoam-se e articulam-se, possibilitando nova reorganização das competências” (BERGER FILHO, 1999) Dessa forma, segundo as palavras do secretário, as competências constituem-se em esquemas mentais que podem ser traduzidos em uma habilidade, uma ação, um comportamento a ser realizado; requerem a produção de habilidades, ou seja, um “saber fazer” necessário, principalmente, ao exercício profissional. Lopes (2001) relaciona este “saber fazer” ao mundo produtivo e ao conhecimento especializado e considera que ele: “tende a desconsiderar os indivíduos que têm competências adquiridas nas redes sociais cotidianas. Ou seja, as habilidades e comportamentos vinculados a relações sociais e práticas culturais cotidianas são substituídas por competências técnicas derivadas dos saberes especializados” (p.4) Assim como já foi apontado no presente estudo, o currículo por competências não é disciplinar, pois pressupõe que as habilidades e competências a serem formadas exigem conteúdos de diferentes disciplinas. Porém, para Lopes (2001) “os PCNEM permanecem garantindo a estabilidade que restringe o debate sobre os objetivos educacionais aos limites disciplinares” (p. 5). Isso ocorre porque seu processo de elaboração foi eminentemente disciplinar, ou seja, equipes disciplinares elaboram os documentos de forma isolada. Além disso, como aponta o trecho a seguir dos PCNEM, o conceito de interdisciplinaridade não visa a superação das disciplinas, mas: “(...) utilizar os conhecimentos de várias disciplinas para resolver um problema concreto ou compreender um determinado fenômeno sob diferentes pontos de vista. Em suma, a interdisciplinaridade tem uma função instrumental. Trata-se de recorrer a um saber diretamente útil e utilizável para responder às questões e aos problemas sociais contemporâneos.” (BRASIL, 1997, p.44) Sendo assim: “As competências, que não dependem de saberes disciplinares, se articulam nos PCNEM com as disciplinas, que pressupõem uma determinada seleção de conteúdos, e com a interdisciplinaridade, que pressupõe a inter-relação de disciplinas. Dessa forma, os PCNEM apresentam listagens de competências e habilidades para cada área e para cada disciplina, parecendo conferir um caráter disciplinar às competências específicas.” (LOPES, 2001, p.5) Dessa forma, os conteúdos ficam circunscritos às competências: interessam os conteúdos que, de alguma forma, permitem a formação das competências e habilidades previstas. Segundo Lopes (2001), esta visão se coaduna com uma perspectiva não crítica da educação, sobretudo no que diz respeito aos processos de inserção social e controle dos conteúdos a serem ensinados. Mesmo tentando superar limitações do currículo por objetivos e introduzir princípios mais humanistas, o currículo por competências permanece no contexto do eficientismo social. 2.4.2 O conceito de contextualização O conceito de contextualização foi incorporado aos PCNEM a partir de múltiplos discursos curriculares, nacionais e internacionais, provenientes de contextos acadêmicos, agências multilaterais e esferas oficiais (LOPES, 2002b). A autora destaca uma maior apropriação12 dos discursos acadêmicos, levando em consideração que: “Essa apropriação tanto pode ter sido realizada por influência direta dos textos acadêmicos sobre os elaboradores dos parâmetros, quanto por intermédio de uma mediação realizada em reformas educacionais de outros países que influenciaram a reforma brasileira e/ou pelas agências financiadoras multilaterais. No que concerne especificamente aos documentos do BID [Banco Interamericano de Desenvolvimento], o conceito aparece de forma incipiente, indicando aparentemente poucas referências específicas para a formulação realizada pelo MEC” (LOPES, 2002b, p.390). A contextualização surge então como possibilidade de “assegurar uma educação de base científica e tecnológica, onde conceito, aplicação e solução de problemas concretos são combinados com uma revisão dos componentes socioculturais (...)” (Brasil 1997, p. 5) o que, segundo Pereira (2000), significa formar indivíduos a partir de: “Experiências concretas e diversificadas, transpostas da vida cotidiana para as situações de aprendizagem. Educar para a vida requer a incorporação de vivências e a incorporação do aprendido em novas vivências” 12 O conceito de apropriação empregado por Lopes (2002) aqui não filia-se à teoria de Bakhtin. “Educar para a vida” tornou-se, então, uma afirmativa consagrada. Podemos entendê-la a partir das heranças deixadas pelo progressivismo de Dewey (apud LOPES, 2002b). Porém, os trabalhos do estudioso vão na contramão das teses dos eficientistas sociais que centravam-se no modelo fabril de educação e na perspectiva de inserção social (PINAR et al apud LOPES, 2002b). Para a autora, o conceito de contextualização “associa-se a princípios eficientistas: a vida assume uma dimensão especialmente produtiva do ponto de vista econômico, em detrimento de sua dimensão cultural mais ampla” (p.390). Já em 1994, Apple (1994b), baseando-se no contexto norteamericano, chamava atenção para o fato de que a associação entre educação e eficientismo social se constitui numa espécie de exportação da crise econômica e de relações de autoridade para as escolas que poderia resolver vários problemas da sociedade: “Se as escolas, seus professores e seus currículos fossem mais rigidamente controlados, mais estreitamente vinculados às necessidades das empresas e das indústrias, mais tecnicamente orientadores e mais fundamentados nos valores tradicionais e nas normas e regulamentos dos locais de trabalho, então os problemas de aproveitamento escolar, de desemprego, de competitividade econômica internacional, de deterioração das áreas das grandes cidades, etc., desapareceriam quase que por completo, assim querem nos convencer” (p.40) Nos PCNEM, apesar de serem apresentados três contextos (do trabalho, da cidadania e da vida pessoal, cotidiana e convivência) é ao contexto do trabalho que é conferida centralidade a ponto de os outros contextos dois ficarem subsumidos a ele (LOPES, 2002b). O uso das Tecnologias como princípio integrador de cada uma das áreas, já abordado anteriormente, considerado como tema por excelência capaz de contextualizar as disciplinas e conhecimentos no mundo produtivo indica, também, tal centralidade no contexto do trabalho (LOPES, 2002b). A autora conclui seu estudo acerca do conceito de contextualização afirmando que: “O ensino contextualizado vem sendo bem aceito na comunidade educacional, como atestam trabalhos apresentados em recentes congressos da área. Rapidamente, vem se fazendo uma substituição do conceito de cotidiano e de valorização dos saberes populares pelo conceito de contextualização, muitas vezes havendo a suposição de que se trata do mesmo enfoque educacional. Desconsidera-se que a contextualização é um dos processos de formação das competências necessárias ao trabalho na sociedade globalizada e à inserção no mundo tecnológico. Ainda que esse mundo seja muito diferenciado em relação ao início do século XX, quando foram produzidas as principais teorias da eficiência social, permanece a finalidade de submeter a educação ao mundo produtivo” (LOPES, 2002b, p.395) Dessa forma, assim como em relação aos conceitos de competência e habilidades, para a autora, prevalece a circunscrição do processo educativo à formação para o mercado de trabalho e para inserção do indivíduo na sociedade vigente, desconsiderando as relações existentes com o processo de formação cultural mais ampla, “capaz de conceber o mundo como possível de ser transformado em direção a relações menos excludentes” (LOPES, 2002b, p.396). 2.5 O ensino de Física segundo os PCNEM A equipe que elaborou a versão final dos PCNEM da área de Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias – que abrange as disciplinas de Física, Química, Biologia e Matemática – foi constituída por professores atuantes na formação de professores e/ou projetos de pesquisa e extensão das suas respectivas disciplinas coordenados pelo professor Luís Carlos de Menezes13. Como alerta Lopes (2004a), “os documentos são produções coletivas, que hibridizam os diferentes discursos em jogo” (p.60). Assim, continua a autora, ainda que os indivíduos que integram estas equipes tenham concepções próprias, vê-se registrado nestes documentos ‘convicções’ e ‘princípios teóricos’, hegemônicos ou não, dos grupos disciplinares a que pertencem. Dessa forma, embora exista uma base comum – denominada “Bases Legais dos PCNEM” – profundas diferenças epistemológicas e pedagógicas podem ser encontradas nos diferentes documentos disciplinares, expressando “recontextualizações diversas das concepções curriculares oficiais previstas para o ensino médio” (LOPES, 2004a, p. 59). A análise dessas diferenças não caberia no escopo deste texto, sendo nossa intenção apresentar uma análise preliminar de alguns aspectos epistemológicos e pedagógicos do documento de Física. O texto dos PCNEM de Física, acompanhando os outros textos da área de Ciências da Natureza e suas tecnologias, aborda ao mesmo tempo, os conteúdos curriculares do Ensino Médio e aspectos do ensino das disciplinas. Ao fazer isso, também constrói representações de ciência, da relação ensino-aprendizagem, do papel do cientista, da importância da ciência para a sociedade, etc. Apresentado nos PCNEM com o objetivo de levar a uma visão da Física que se volte à formação do cidadão contemporâneo, atuante e solidário, intervindo na realidade que o cerca, o conhecimento de Física deverá ser de tal forma apreendido que, mesmo findado o contato com o ambiente escolar, o aluno tenha alcançado a formação adequada à compreensão e participação no mundo em que vivem (BRASIL, 1997b). Assim, a questão a ser enfrentada pelos educadores de cada escola, de cada realidade 13 Professor titular do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) social, seria a de selecionar qual Física ensinar para promover uma melhor compreensão de mundo e uma formação para a cidadania mais adequada. Para isso, o documento prevê que “o ponto de partida, mas também o de chegada, seja considerar a realidade do aluno, quer próxima quer distante, os objetos e fenômenos com que lida em seu cotidiano, ou as questões que estimulam sua curiosidade” (p.23). Mais do que uma simples reformulação de conteúdos ou tópicos, pretende-se promover com o ensino de Física uma mudança de enfoque no aprendizado dos conhecimentos físicos, contextualizados e integrados, visando a individualidade, mas também a coletividade e a vida profissional do estudante do Ensino Médio (BRASIL, 1997b). O documento dirige uma crítica ao ensino tradicional afirmando que o ensino de Física tem sido realizado mediante a apresentação de conceitos, leis e fórmulas, distante do mundo vivenciado pelos alunos e professores e, embora não apenas, mas também por isso, vazio de significado. Segundo o documento, o conhecimento vem sendo apresentado como um produto acabado, fruto da genialidade de mentes como Galileu, Newton e Einstein, o que leva os alunos a concluírem que não resta mais nenhum problema significativo a ser resolvido. No entanto, o documento aponta que tal quadro não decorre única e exclusivamente do despreparo dos professores nem de limitações imputadas pelas imperfeitas e escassas condições escolares, mas sim, exprime uma deformação estrutural, gradualmente introjetada pelos atores do sistema escolar, que passou a ser tomada como algo natural. O conhecimento de Física “em si mesmo”, de acordo com os PCNEM, não é suficiente como objetivo, mas deve ser percebido acima de tudo como um meio, um instrumento para compreender o mundo, podendo ser prático, mas admitindo transpor o interesse imediato. No Ensino Médio, os temas da Física devem se tornar mais abrangentes, mas, ao mesmo tempo, devem ganhar uma certa especificidade disciplinar, já que, para desenvolver habilidades e competências em Física é preciso ocupar-se com os objetos da Física (BRASIL, 1997b). Espera-se que o ensino de Física na escola média contribua para a formação de uma cultura científica eficaz, que permita ao sujeito a interpretação dos fatos, fenômenos e processos naturais, situando e dimensionando a interação do ser humano com a natureza como parte da própria natureza em transformação (BRASIL, 1997b). As competências e habilidades são mencionadas ao longo do texto, estruturando toda a proposta para a disciplina. Embora o documento também proponha os conteúdos a serem ensinados – ótica, mecânica, eletromagnetismo, etc. – são as competências e habilidades a serem desenvolvidas que ganham maior destaque, sendo, inclusive, listadas no final do documento. Para Lopes (2004a), nos PCNEM de Física, está presente a ideia de que os conteúdos são meros instrumentos de formação de competências, ganhando sentido “pela possibilidade de ser mobilizados para ação em situações determinadas” (p.63). Para a autora, esse privilégio conferido às competências pode ser associado ao processo de submissão ao mundo produtivo, como já abordado anteriormente. Embora não haja menção direta ao mundo do trabalho ou mundo produtivo, o efetivo uso das tecnologias associado ao conceito de contextualização – muito enfatizada no documento e entendida como processo de relacionar os conceitos físicos com o mundo vivido pelos alunos e professores – associa-se a princípios eficientistas (LOPES, 2002b), como já foi exposto em um outro momento. Ao contrário dos PCNEM de outras áreas, o de Física não faz menção direta à interdisciplinaridade. O que existe é apenas uma rápida referência da importância de interligar a física à cultura humana mais ampla, apontando, inclusive, “a presença de elementos da física em obras literárias, peças de teatro ou obras de arte” (BRASIL, 1997b). Lopes (2004a) aponta que, embora a rejeição à interdisciplinaridade tenha ocorrido de maneira mais aguda no documento de Física, de uma maneira geral o conceito não se efetivou nos PCNEM. A autora considera que pode ter ocorrido no Brasil, processo semelhante ao ocorrido no Reino Unido, onde a força do currículo disciplinar foi maior que a proposta de um currículo nacional interdisciplinar. Uma análise dos conteúdos curriculares apresentados nos PCNEM de Física a partir da teoria Bakhtiniana14 mostrou que o documento se apropria majoritariamente da voz empirista 15 (PRAIA et al, 2002) que atribui à ciência, linguagem e métodos próprios: “A Física tem uma maneira própria de lidar com o mundo, que se expressa não só através da forma como representa, descreve e escreve o real, mas sobretudo na busca de regularidades, na conceituação e quantificação das grandezas, na investigação dos fenômenos, no tipo de síntese que promove. (p.22) A colocação da Física como sujeito da frase dá margem a um sentido de autonomia em relação aos atores sociais, cabendo ao homem entendê-la, interpretá-la e 14 Esta análise foi publicada nos anais do XII Encontro de Pesquisa em Ensino de Física (FERRAZ et al., 2010b). Ainda que o referido trabalho não esteja diretamente relacionado com a análise que irei empreender na presente dissertação, por enfatizar aspectos epistemológicos dos PCNEM, julguei importante trazer alguns resultados no sentido de mostrar a construção da perspectiva epistemológica do documento a partir do diálogo com outras perspectivas. 15 Doutrina ou atitude que admite, quanto à origem do conhecimento, que este provenha unicamente da experiência, seja negando a existência de princípios puramente racionais, seja negando que tais princípios, existentes embora, possam, independentemente da experiência, levar ao conhecimento da verdade (FERREIRA, 1993) utilizá-la, omitindo-se a construção humana, dando ideia de algo que se faz e se move com autonomia. O destaque dado ao conjunto de regras precisas e à lógica interna da ciência confere ao texto traços da corrente empirista. Porém, o documento apresenta instabilidades nesse posicionamento epistemológico quando, por exemplo, por meio de uma abordagem próxima ao racionalismo contemporâneo16 menciona a elaboração de modelos de evolução cósmica. Entretanto, ao utilizar na mesma sentença, o termo “investigar” (p.22) em detrimento de construção de modelo quando se refere ao conhecimento dos “mistérios do mundo submicroscópico” (p.22), o texto pode levar à interpretação de que este último seria construído a partir da observação da natureza, o que estaria compatível com o gênero discursivo empirista. A ambiguidade é reforçada pelo fato de que apesar de utilizar em seu discurso inicial a importância da construção de modelos, o documento não faz nenhuma referência às linhas epistemológicas, não possibilitando ao professor embasamento teórico para atingir o que é proposto. No primeiro momento que o documento traz o conteúdo da Física, este já vem contextualizado: “Não se trata, portanto, de elaborar novas listas de tópicos de conteúdo, mas sobretudo de dar ao ensino de Física novas dimensões. Isso significa promover um conhecimento contextualizado e integrado à vida de cada jovem. Apresentar uma Física que explique a queda dos corpos, o movimento da lua ou das estrelas no céu, o arco-íris e também os raios laser, as imagens da televisão e as formas de comunicação” (p.23) Neste trecho, o documento é claro quanto à abordagem do ensino de Física que privilegia a compreensão do mundo concreto entendido como mundo natural e tecnológico. A contraposição entre fenômenos como a ‘queda dos corpos’, o ‘movimento da lua ou das estrelas’ e ‘arco-íris’ e fenômenos tecnológicos com os ‘raios laser’, as ‘imagens de televisão’ e as ‘formas de comunicação’ marca a renovação curricular pela inclusão do mundo tecnológico, já que os fenômenos naturais já faziam parte do currículo de Física anteriormente. A ampliação do mundo real contemplando o mundo tecnológico é confirmada pela maioria dos exemplos listados. O documento exemplifica com os conteúdos de mecânica e termodinâmica a abordagem pedagógica que propõe a exploração do vivencial. Entretanto, o vivencial 16 “Na perspectiva racionalista contemporânea põe-se, em causa, toda a observação neutra e espontânea. Considera-se indispensável um enquadramento teórico que oriente a observação. Não defende, contudo, o abandono da observação.que ela não é nem neutra, nem objectiva (...). Não considera que os factos científicos sejam dados (no sentido empirista da palavra), como oferta gratuita do real. Admite, pelo contrário, que eles são construídos, ou seja, que resultam de um longo percurso através da teoria. Só por si um dado de observação não é entendido como um dado científico. Para que o seja, tem que ser uma construção da razão, inserido numa rede de razões, tem que ser visto com os olhos da mente” (PRAIA et al, 2002) apresentado não se distingue do vivencial presente nas propostas propedêuticas que no caso da mecânica focam a análise de “situações práticas” (p.25) de movimentos da realidade cotidiana e na termodinâmica são as máquinas térmicas e processos cíclicos. Além disso, a lista de conteúdos resultante também não se diferencia daquela que professores do ensino médio propedêutico já vinham ensinando antes da reforma curricular. Assim, parece que a novidade pedagógica trazida pelos PCNEM de Física seria a contextualização do mundo natural ampliada ao mundo tecnológico e na medida em que, segundo Lopes (2002b), a compreensão deste seria importante para atender aos requisitos da ‘vida adulta´ e, consequentemente, ao mundo produtivo, indica-se que o documento, assim como os de Química e Matemática, está submetido ao mundo do trabalho. A menção ao conhecimento como “construção” (p.22) em um parágrafo e como “saber adquirido” (p.23) em outro, e, nesta última concepção, o aluno como depósito de conhecimentos, indica uma visão ambígua da aprendizagem, seja pela sua composição englobando significados diferentes e opostos ou seja porque o uso indiscriminado destes termos pode levar à compreensão de que são processos semelhantes. O final do documento apresenta a preocupação de ligar a ciência-tecnologia e sociedade. Entretanto, percebe-se uma separação entre o cerne do documento e esta parte final. A nosso ver, o documento restringe-se ao “modismo” do chamado ensino cotidiano, que se limita a nomear cientificamente os processos físicos envolvidos no funcionamento dos aparelhos eletro-eletrônicos, por exemplo. Partilho da opinião de que essa seria: “uma forma de dourar a pílula, ou seja, de introduzir uma aplicação apenas para disfarçar a abstração excessiva de um ensino puramente conceitual, deixando, à margem, os reais problemas sociais” (SANTOS E MORTIMER, 2002, p. 4) O documento finaliza afirmando que os exemplos e os temas tratados não devem ser consideramos como receitas a serem seguidas, porém expressões como “é essencial”, “é necessário” e “é imprescindível”, utilizadas ao longo do texto, apontam contraditoriamente a esta afirmação. 3. QUADRO TEÓRICO METODOLÓGICO Neste estudo usarei elementos do arcabouço teórico bakhtiniano, descritos neste capítulo, para problematizar e analisar a linguagem utilizada pelos professores investigados com o objetivo de identificar suas perspectivas acerca dos PCNEM de Física. 3.1 Filosofia da Linguagem de Bakhtin: fundamentos A linguística do século XIX, ancorada principalmente nos aportes teóricos de Wilhelm Humboldt em que a língua é nacionalmente individual17, sem negar a função comunicativa da linguagem, entende essa função como se contida em um segundo plano, como um elemento secundário, sendo contemplada em primeiro plano a função da formação do pensamento, independentemente da comunicação. A fórmula de Humboldt seria então: “Sem fazer nenhuma menção à necessidade de comunicação entre os homens, a língua seria uma condição indispensável do pensamento para o homem até mesmo na sua eterna solidão” (HUMBOLDT, apud BAKHTIN, 2003, p. 270). Outros estudiosos, como os partidários de Vossler e sua filosofia da linguagem18, têm na função expressiva o seu plano principal de estudo. Embora existam diferenças nas concepções da função comunicativa da linguagem, a essência de todos estes estudos consiste na expressão do mundo individual do falante. A língua é assumida a partir da necessidade do homem de auto-expressar-se. Em essência, a linguagem aqui é considerada do ponto de vista do falante, sem que haja, necessariamente, a relação com outros participantes da comunicação discursiva. Mesmo ao considerarem o papel do outro na comunicação discursiva, o papel desempenhado era apenas o de ouvinte que compreende passivamente o falante. Ao chamar tais concepções de ficções, Bakhtin aponta que: “Até hoje ainda existem na linguística ficções como o “ouvinte” e o “entendedor” (parceiros do “falante”, do “fluxo único de fala”, etc). Tais ficções dão uma noção absolutamente deturpada do processo complexo e amplamente ativo da comunicação discursiva. (...) sugerese um esquema de processos ativos de discurso no falante e de respectivos processos passivos de recepção e compreensão do discurso no ouvinte” (BAKHTIN, 2003, p. 271). Bakhtin (2003) não pressupõe que estes esquemas sejam falsos ou que não correspondam, em algum momento, à realidade. Sua crítica está no fato de que esses esquemas não podem servir quando passamos aos objetivos reais da comunicação 17 Segundo Milani (1994), nessa visão de Humboldt, o indivíduo está contido em uma nação e, expurgadas as condições exteriores à nação, ela é comparável a um indivíduo que segue seu caminho, determinado pelo espírito que lhe é peculiar. 18 O que caracteriza primordialmente a escola de Vossler, é “a negação categórica e de princípio do positivismo linguístico, que não consegue ver mais além das formas linguísticas (em particular as fonéticas, as que são positivas) e do ato psicofisiológico que as engendra” (BAKHTIN, 2004, p. 74) discursiva. Neste caso, o ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguístico) do discurso, adota, uma atitude responsiva ativa em relação a esse discurso: “concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc.; essa posição responsiva do ouvinte se forma ao longo de todo o processo de compreensão desde o seu início, (...) da primeira fala do falante” (BAKHTIN, 2003, p. 271). Embora o grau desse ativismo seja bastante diverso, segundo Bakhtin, toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente responsiva. Dessa forma, toda compreensão é prenhe de resposta e isso nos leva a consequências práticas: o ouvinte se torna falante. O momento anterior a resposta em voz real alta, ou seja, da compreensão passiva do significado do discurso ouvido, é apenas um momento abstrato da compreensão ativamente responsiva real e plena. O autor admite que nem sempre ocorre, imediatamente, a reposta em voz alta ao discurso: a compreensão ativamente responsiva, por exemplo, de uma ordem militar, pode realizar-se imediatamente na ação (o cumprimento da ordem), pode também permanecer como compreensão responsiva silenciosa, como em quando assistimos a uma ópera. Porém, Bakhtin (2003) destaca que, cedo ou tarde, o que foi ouvido e ativamente respondido nestes momentos responde aos discursos subsequentes ou no comportamento do ouvinte, ao que ele chama de compreensão responsiva de efeito retardado. Vale ressaltar que, na teoria de Bakhtin, todos esses aportes sobre o discurso descritos acima refere-se igualmente, mutatis mutandis, ao discurso escrito e ao lido. Em resumo, toda compreensão real é ativamente responsiva e pressupõe uma fase inicial preparatória da resposta (seja qual for a forma e o momento em que ela se dê). O próprio falante não espera uma compreensão responsiva passiva: ele espera uma resposta, uma concordância, uma participação, uma objeção, uma execução, etc., do seu interlocutor. Além disso, todo falante é por si mesmo um respondente em maior ou menor grau: Porque ele não é o primeiro falante, o primeiro a ter violado o eterno silêncio do universo, e pressupõe não só a existência do sistema da língua que usa mas também de alguns enunciados antecedentes – dos seus e alheios – com os quais o seu enunciado entra nessas ou naquelas relações (baseia-se neles, polemiza com eles, simplesmente os pressupõe já conhecidos do ouvinte) (BAKHTIN, 2003, p. 272) Conclui Bakhtin que, o ouvinte com sua compreensão passiva, circunscrita nos desenhos esquemáticos das linguísticas em geral, não corresponde ao participante real da comunicação discursiva. “Aquilo que o esquema representa é apenas o momento abstrato do ato pleno e real de compreensão ativamente responsiva, que gera a resposta (a que precisamente visa o falante)” (BAKHTIN, 2003, p. 273). Dessa forma, o esquema das linguísticas em geral deve ser claramente compreendido apenas como uma abstração e não como fenômeno pleno concreto e real. Bakhtin (2003) também critica a concepção saussureana de que o objeto de estudo da linguística deve ser o sistema de signos, valores e suas estruturas, propondo que a língua seja estudada nas condições concretas (sociais e históricas) de comunicação em que se realiza. É importante ressaltar que Bakhtin reconhece a existência e a relevância do estudo das formas e normas da língua, mas assinala que, se descartarmos a multiplicidade das situações materiais de fala, estaremos negligenciando aspectos centrais para a compreensão dos fenômenos linguísticos. Uma mudança tão radical na forma de se estudar a linguagem certamente implica uma nova unidade para a análise linguística. Assim, enquanto as frases, períodos ou orações, sempre retirados do contexto em que se inserem, seriam unidades de análise da linguística clássica, a concepção bakhtiniana tem como unidade de análise o enunciado, sempre analisado na cadeia de comunicação verbal em que se insere. A par de todas as indefinições terminológicas e confusões dos linguistas acerca do que é a palavra, a fala, em que subtende-se por nossa fala qualquer enunciado de qualquer pessoa, Bakhtin afirma que: “A indefinição terminológica e a confusão em um ponto metodológico central no pensamento linguístico são o resultado do desconhecimento da real unidade da comunicação discursiva – o enunciado. Porque o discurso só pode existir de fato na forma de enunciações concretas de determinados falantes, sujeitos do discurso. O discurso sempre está fundido m forma de enunciado pertencente a um determinado sujeito do discurso, e fora dessa forma não pode existir. Por mais diferentes que sejam as enunciações pelo seu volume, pelo conteúdo, pela construção composicional, elas possuem como unidades da comunicação discursiva peculiaridades comum, e antes de tudo limites absolutamente precisos” (BAKHTIN, 2003, p.274) Um enunciado é então um ato de linguagem sempre destinado a um outro e seus contornos permitem e solicitam que este outro realize uma apreciação valorativa (um estabelecimento de valores) com relação àquilo que falamos ou escrevemos, numa alternância de sujeitos falantes. Ele não se reduz a formas sintáticas ou morfológicas isoladas, como orações ou parágrafos, nem tampouco a quantidade de palavras do discurso, pois pode ir de um polissêmico “Ai!” a um romance completo de Dostoievski. O enunciado "nos diversos campos da atividade humana e da vida, dependendo das diversas funções da linguagem e das diferentes condições de comunicação, é de natureza diferente e assume formas várias" (BAKHTIN, 2003, p. 275). O uso da língua nas várias esferas da atividade humana leva ao surgimento de tipos relativamente estáveis de enunciados, chamados por Bakhtin de gêneros de discurso. Assim, em qualquer situação de comunicação, os falantes envolvidos têm à sua disposição um conjunto finito de enunciados, uma espécie de repertório - variável, mas nem tanto - para dialogar. As situações de encontro e despedida, os gêneros literários, as cartas, o romance de espionagem, as ordens militares, a sinfonia, as distintas formas de publicidade, etc. são exemplos de gêneros de discurso. Para Bakhtin (2003) aprender a falar significa, antes de tudo, construir enunciados: não aprendemos a língua materna “a partir de dicionários e gramáticas mas de enunciações concretas que nós mesmos ouvimos e nós mesmos reproduzimos na comunicação discursiva viva com as pessoas que nos rodeiam” (p. 283). Assim, em cada uma das palavras que usamos para falar estão as vozes daqueles com quem as aprendemos - e as vozes daqueles com quem eles as aprenderam e assim por diante. O conceito de voz está intimamente relacionado ao enunciado, pois “um enunciado oral ou escrito se expressa sempre desde um ponto de vista (uma voz)” (WERTSCH, 1993, p. 71). Para Bakhtin (2006b), o conceito de voz pode ser descrito como a interação das múltiplas perspectivas individuais e sociais. O autor demonstra que as palavras por nós proferidas não são “nossas” apenas; “elas nascem, vivem e morrem na fronteira do nosso mundo e do mundo alheio; elas são respostas explícitas ou implícitas às palavras do outro” (p.55). Assim, não há enunciado neutro que não expresse uma visão de mundo, uma voz. Para explicitar a carga axiológica do conceito de voz, Wertsch (1993) o aproxima de “perspectiva”. Na concepção dialógica de Bakhtin, não pode existir uma voz isolada de outras vozes. Há sempre, pelo menos, duas vozes (a de quem fala e a da pessoa a qual o enunciado se dirige) e a compreensão de significados só existe quando essas duas ou mais vozes entram em contato. O falante não é um Adão Bíblico, o objeto do falante não se torna pela primeira vez objeto do discurso em um dado enunciado, e, por isso, o próprio objeto do discurso se torna inevitavelmente um palco de encontro de opiniões de interlocutores imediatos com pontos de vista, perspectivas, visões de mundo, correntes, teorias. 3.2 Bases teóricas para um dispositivo analítico Do ponto de vista conceitual, um dispositivo que pretenda se filiar à proposta bakhtiniana de análise linguística deve estar firmemente ancorado em duas concepções exaustivamente reiteradas pelo autor (BAKHTIN, 2003, 2006a): a de que a análise dos fenômenos linguísticos deve ser feita nas condições concretas em que se realiza e a de que a real unidade da comunicação verbal – e, consequentemente, de sua análise – não é a palavra, a frase ou a oração. A real unidade para a análise da comunicação verbal deve ser o enunciado. Já do ponto de vista operacional, seria importante, uma vez identificados os conceitos norteadores e a unidade de análise, estabelecer o conjunto de procedimentos a serem realizados. Nesse caso, uma investigação dos textos de Bakhtin revela, em vez das inúmeras ocorrências e desdobramentos dos conceitos de enunciado e linguagem, poucas e abreviadas referências – quase como se fossem pistas - sobre como deveria ser o conjunto de procedimentos de análise propriamente ditos. Assim, para elaborar os procedimentos deste dispositivo analítico, tomarei por base as diretrizes esboçadas em “Marxismo e Filosofia da Linguagem” (BAKHTIN, 2004a). No que diz respeito à unidade de análise, tratarei do conceito de enunciado a partir do ensaio “Os Gêneros do Discurso” (BAKHTIN. 2003), em que o autor aborda exaustivamente esse conceito, apresentando tanto as suas propriedades quanto uma forma inequívoca de identificá-lo. Trarei, ainda, duas outras propriedades do enunciado apresentadas no texto “O discurso na vida e o discurso na arte” (VOLOSHINOV 19, 1926), em uma das poucas vezes que vemos o autor analisar um enunciado mais detalhadamente a partir da sua concepção de linguagem. Esse exemplo de análise também será útil para detalhar e compreender melhor os procedimentos de análise esboçados em “Marxismo e Filosofia de Linguagem” (BAKHTIN, 2006a). 3.2.1 Enunciado: características Bakhtin (2003) constrói o conceito de enunciado a partir da comparação entre sua concepção de linguagem/comunicação e as concepções tradicionais à época. Assim, em vez das orações, palavras ou períodos extraídos do contexto em que ocorrem, chama atenção para os enunciados, tomando por base o diálogo real, em que se alternam as enunciações dos interlocutores e que “por sua precisão e simplicidade, (…) é a forma clássica de comunicação discursiva” (Bakhtin, 2003, p. 275). Essa concepção dialógica de enunciado, que envolve o papel da alteridade na comunicação, é, então, estendida tanto para outras formas de comunicação quanto para dentro do próprio enunciado. Por um lado, as formas de expressão mais insuspeitas, como obras de arte, sinfonias, livros, peças de teatro também seriam enunciados e, como partes de um diálogo, seriam respostas a e respondidas por outros enunciados. No nível interno de cada enunciado, Bakhtin também vê um diálogo entre autor e ouvinte – dentre outras personagens. Bakhtin (2003) se dedica a detalhar este potente conceito, relacionando-o claramente ao diálogo real e apresentado seis das suas características: estilo, construção composicional, unidade temática, relação com o falante/outros participantes, conclusibilidade e alternância dos sujeitos de fala. As três primeiras são características que os enunciados, unidades reais da comunicação, têm em comum com as orações, períodos e palavras - unidades convencionais da comunicação. Já as três últimas são características que diferenciam os enunciados das unidades linguísticas convencionais. Cabe destacar que essas características, apesar de tratadas individual e sequencialmente neste dispositivo, estão inarredavelmente imbricadas, dialogando e exercendo influência umas sobre as outras. No que tange às características em comum com as unidades convencionais, o estilo de um enunciado é constituído pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua. Já o conteúdo temático referencial se trataria do conteúdo propriamente dito enquanto a construção composicional corresponderia à estrutura do enunciado. É bastante claro, para o autor, que “todos esses três elementos (…) estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um determinado campo da comunicação”(BAKHTIN, 2003, p.262). As características que diferenciam os enunciados das unidades convencionais - relação com o falante/outros participantes, conclusibilidade e alternância dos sujeitos de fala -, entendo ser conveniente detalhá-las mais um pouco. A relação do enunciado com o próprio falante se dá justamente pelo fato de a escolha dos meios linguísticos estar diretamente relacionada tanto às ideias quanto à “relação subjetiva emocionalmente valorativa do falante com o conteúdo do objeto e do sentido do seu enunciado” (BAKHTIN, 2003, p.289). Essa relação com objeto e sentido afetaria, igualmente, o estilo do enunciado. O autor destaca que esse aspecto 19 Autor pertencente ao chamado Círculo de Bakhtin, grupo multidisciplinar de intelectuais russos que se reuniam regularmente entre 1919 e 1929. Para Faraco (2003), porém, três desses intelectuais merecem atenção – Bakhtin, Voloshinov e Medvedev –, não só devido à confusão de autoria dos textos, mas também pela representatividade desses a cerca do pensamento do Círculo. valorativo não pode ser , de forma alguma, considerado um elemento da língua. Isso se deve ao fato de que o arsenal de recursos linguísticos usados para exprimir emoções, apesar de vasto, é totalmente neutro: “as palavras não são de ninguém, em si mesmas nada valorizam, mas podem abastecer (...) os juízos de valor mais diversos de qualquer falante.” (BAKHTIN, 2003, p.290). Já a relação do enunciado com os outros participantes se dá por duas maneiras principais. A primeira vem do fato de que “muito amiúde a expressão do nosso enunciado é determinada não só – e vez por outra não tanto – pelo conteúdo semântico-objetal desse enunciado mas também pelos enunciados do outro sobre o mesmo tema, aos quais respondemos, com os quais polemizamos” (BAKHTIN, 2003, p.297). Por esse ponto de vista, qualquer enunciado sobre um objeto levaria em consideração, em maior ou menor grau, tudo que os outros já disseram sobre ele. Já a segunda forma principal de relação do outro com o enunciado vem justamente da antecipação que o falante faz das respostas do ouvinte. “A quem se destina o enunciado, como o falante (ou o que escreve) percebe e representa para si os seus destinatários, qual é a força e a influência deles no enunciado – disto dependem tanto a composição quanto, particularmente, o estilo do enunciado” (BAKHTIN, 2003, p.297). A conclusibilidade é um aspecto interno do enunciado, e que está intimamente relacionado à alternância de sujeitos falantes. Ela sinalizaria que o falante já teria dito tudo o que queria dizer naquele turno de fala e, assim, caberia ao ouvinte responder ao enunciado. É importante ressaltar que resposta, nesse contexto, deve ser entendida de forma mais geral. Nas palavras do próprio autor “o primeiro e mais importante critério de conclusibilidade do enunciado é a possibilidade de responder a ele, em termos mais precisos e amplos, de ocupar uma posição responsiva (cumprir uma ordem, por exemplo)” (BAKHTIN, 2003, 280). A conclusibilidade é determinada por três fatores, organicamente ligados entre si e ao todo do enunciado: a exauribilidade do objeto e do sentido; o projeto/vontade de discurso do falante e as formas típicas composicionais e de gênero do acabamento. A ideia é que estes fatores, combinados ou isoladamente, sinalizam claramente a conclusão do enunciado – e consequentemente, o posicionamento responsivo do ouvinte. A exauribilidade semântico-objetal do tema do enunciado pode se extremamente próxima da completude, nas questões mais cotidianas e factuais - como pedidos de informações, ordens, etc. – ou ser bastante parcial e relativa, como nos campos criativos e científicos. Nestes casos, o objeto é, de fato inexaurível, e a única exauribilidade possível já estaria bastante próxima de uma ideia definida do autor – o que nos leva ao próximo fator: a vontade de discurso do falante. Quando escutamos um enunciado, “imaginamos o que o falante quer dizer, e com essa ideia verbalizada (como a entendemos) é que medimos a conclusibilidade do enunciado” (BAKHTIN, 2003, 281). Assim, a vontade ou o projeto de discurso do falante, além de estar relacionada à própria escolha do objeto, também influencia a exauribilidade semântico-objetal e a conclusibilidade. É importante destacar que “essa ideia – momento subjetivo do enunciado – se combina em uma unidade indissolúvel com o seu aspecto semântico-objetivo, restringindo esse último, vinculando-o a uma situação concreta (singular) de comunicação discursiva, com seus participantes pessoais, com suas intervenções – enunciados antecedentes” (BAKHTIN, 2003, p.281). Isso já nos aproxima do fator seguinte: os gêneros do discurso. A ideia principal aqui é que, apesar de cada enunciado em particular ser individual, “cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros de discurso” (BAKHTIN, 2003, p.261). Assim, a vontade discursiva do falante se realizaria, primeiramente, na escolha de um determinado gênero do discurso, vinculado à situação concreta em que se encontra – o que também influenciaria a exauribilidade do enunciado, uma vez que quando ouvimos o discurso de outra pessoa, “já adivinhamos o gênero pelas primeiras palavras, adivinhamos um determinado volume (isto é, uma extensão aproximada do conjunto do discurso), uma determinada construção composicional, prevemos o fim” (BAKHTIN, 2003, p. 283). E, se podemos prever o fim, temos justamente a noção da conclusibilidade. O assunto é reputado pelo autor como um dos mais importantes para a análise linguística. No entanto, como voltarei ao assunto mais adiante, finalizo ressaltando que Bakhtin, mantendo a diferenciação entre as unidades convencionais e o enunciado, afirma que esse indício de completude do enunciado não se presta a definições gramáticas ou abstrato-semânticas - e, portanto, também não pode ser encontrado na neutralidade do sistema da língua. A última das três propriedades que distinguem o enunciado das unidades convencionais de análise é exatamente aquela que dá seus limites: a alternância dos sujeitos falantes. Novamente, Bakhtin ressalta que esta propriedade é exclusiva dos enunciados e não pode ser encontrada das unidades convencionais da língua: “os limites da oração enquanto unidade da língua nunca são determinados pela alternância de sujeitos do discurso” (BAKHTIN, 2003, p.277). No entanto, entendo que existe algo mais acerca dessa propriedade: o rigor e a precisão com que Bakhtin se refere a ela, aliados às detalhadas diferenciações entre um enunciado e uma oração, permitem usar a alternância de sujeitos falantes como um critério unívoco para a existência / identificação de enunciados – o que é particularmente útil para este dispositivo analítico. O potencial para a utilização desta propriedade como critério de identificação pode ser percebido em trechos como “desse modo, a alternância dos sujeitos do discurso, que emoldura o enunciado e cria para ele a massa firme, rigorosamente delimitada” (BAKHTIN, 2003, p.279); “as enunciações (…) possuem, como unidades de comunicação discursiva, peculiaridades comuns e, antes de tudo, limites absolutamente precisos” (BAKHTIN, 2003, p.274). ; “Essa alternância dos sujeitos do discurso, que cria limites precisos do enunciado” (BAKHTIN, 2003, p.275) . O desenvolvimento da argumentação é assunto da próxima seção. 3.2.2 Enunciado e oração: identificação positiva, negativa e gêneros do discurso Bakhtin (2003) dedica uma parte importante de "Os gêneros do discurso" para mostrar em que condições e por que um mesmo material linguístico pode ser considerado um enunciado, unidade da análise linguística que propõe, ou uma oração, unidade da análise linguística que critica. Aponto aqui uma importante consequência dos pressupostos que norteiam essa argumentação: no momento em que uma mesma sequencia de palavras pode ou não ser considerada um enunciado, não há nada imanente a nenhum conjunto de palavras capaz de identificá-lo univocamente como enunciado. Ou, dito de outra forma, o que quer que venha a transformar texto em enunciado está fora da massa textual. De fato, "os limites da oração enquanto unidade da língua nunca são determinados pela alternância de sujeitos do discurso. Essa alternância, que emoldura a oração de ambos os lados converte-a em um enunciado pleno" (BAKHTIN, 2003, p. 277). Primeiramente, é importante relembrar que as três características que diferenciam os enunciados das orações são a relação com o falante/outros outros participantes, conclusibilidade e alternância dos sujeitos de falantes - e que elas estão sempre imbricadas no todo do enunciado. É importante perceber também que a alternância de falantes é, dentre as três, a única característica extraverbal. Em seguida, chamo atenção para o verbo converter, na citação anterior e proponho que o sentido pretendido pelo autor seja o seguinte: o material linguístico proferido por um falante, uma vez que respondeu ao turno anterior e foi respondido pelo seguinte, terá, automaticamente, conclusibilidade e relação com os falantes e outros participantes. Assim, entendo que essa característica, apesar de estar sempre imbricada às outras duas, seria uma espécie de característica fundadora do enunciado, marca indelével da sua inserção na cadeia real de comunicação verbal. Proponho, portanto, que a alternância de falantes seja uma condição suficiente para a existência e consequente identificação de um enunciado. Igualmente importante para a elaboração deste dispositivo são os trechos de “Os gêneros do discurso” que tratam das situações e condições em que o material linguístico não pode ser considerado um enunciado. Uma delas, mais simples, é aquela em que o material linguístico é retirado do contexto concreto em que foi produzido. Neste caso, não estaria emoldurado pelo material linguístico de outros falantes e, consequentemente, não seria um enunciado. No entanto, a outra situação apresentada por Bakhtin (2003) é mais delicada: trata-se do material linguístico contido em um enunciado - por exemplo, a segunda oração de um enunciado formado por três orações consecutivas. Neste caso, apesar de sermos tentados a tratar essa oração como um enunciado, é importante lembrar que o contexto dessa oração “É o contexto da fala do mesmo sujeito de discurso (falante); a oração não se correlaciona de imediato nem pessoalmente com o contexto extraverbal da realidade (a situação, o ambiente, a pré-história) nem com as enunciações de outros falantes, mas tão-somente através de todo o contexto que a rodeia, isto é, através do enunciado em seu conjunto” (BAKHTIN, 2003, p.277) Assim, a segunda oração deste exemplo não pode ser considerada um enunciado. A mesma argumentação sustenta que palavras, frases ou trechos de enunciados não podem ser considerados enunciados. Outro conceito importante para a elaboração deste dispositivo é o de gêneros de discurso. Apesar de afirmar que o uso da língua se faz na forma de enunciados concretos, únicos e individuais, Bakhtin ressalta que “cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso”. (BAKHTIN, 2003, p.277) Assim, em cada uma das situações concretas de comunicação de que participa, o falante não estaria exatamente livre para falar o que quisesse, mas teria suas opções de fala restritas àqueles enunciados que integram o gênero de discurso adequado para aquela situação. “Até mesmo no bate-papo mais descontraído e livre nós moldamos o nosso discurso por determinadas formas de gênero, às vezes padronizadas e estereotipadas, às vezes mais flexíveis, plásticas e criativas” (BAKHTIN, 2003, p.282). E, apesar de as formas dos gêneros serem mais flexíveis, plásticas e livres que as formas da língua, o falante bakhtiniano tem sua enunciação moldada tanto pela língua quanto pelo gênero de discurso. Os gêneros se dividem em dois grupos: os primários e os secundários. Os primários, mais simples, estão relacionados à comunicação discursiva imediata, como a carta e os vários tipos de diálogo cotidiano. Já os secundários, mais complexos - como romances, dramas, pesquisas científicas, etc. - surgem nas condições de um convívio cultural mais desenvolvido e organizado a partir de uma incorporação e reelaboração dos gêneros primários. A diferença entre estes gêneros não é funcional: “esses gêneros primários, que integram os complexos, aí se transformam e adquirem um caráter especial: perdem o vínculo imediato com a realidade concreta e os enunciados reais alheios” (BAKHTIN, 2003, p. 263). E, exatamente por isso, deixam de ser enunciados - entendo ser esta a transformação de que fala o autor. Assim, uma carta ou uma réplica do diálogo cotidiano, no momento em que são inseridos num romance, por exemplo, deixam de ser um enunciado e passam a ser um acontecimento artístico literário, integrando a realidade concreta apenas como parte do romance. Bakhtin ressalta que “no seu conjunto, o romance é um enunciado, como a réplica do diálogo cotidiano ou uma carta privada (ele tem a mesma natureza das duas), mas à diferença deles é um enunciado secundário (complexo)” (BAKHTIN, 2003, p.264). O autor retorna a essa questão quando propõe a tese de que o enunciado é precisamente delimitado pela alternância de falantes, afirmando que “Nos gêneros secundários do discurso, particularmente nos retóricos, encontramos fenômenos que parecem contrariar a essa nossa tese. Muito amiúde o falante (ou quem escreve) coloca questões no âmbito do seu enunciado, faz objeções a si mesmo e refuta suas próprias objeções, etc. Mas esses fenômenos não passam de representação convencional da comunicação discursiva nos gêneros primários de discurso” (BAKHTIN, 2003, 276). Assim, enquanto vemos nos gêneros primários os limites criados pela alternância real de sujeitos falantes, são “as cicatrizes desses limites (que) estão nos gêneros secundários” (BAKHTIN, 2003, 276). Finalizo esta seção esperando ter esclarecido as seguintes ideias, indispensáveis tanto para a estruturação quanto para a precisão do presente dispositivo: i) todo material linguístico proferido por um falante e emoldurado pelo material linguístico de outros falantes é um enunciado ii) a alternância de falantes é condição suficiente para a identificação e existência de um enunciado iii) um trecho de um enunciado não pode ser considerado um enunciado. 3.2.3 O contexto extraverbal Em “Discurso na vida e discurso na arte: sobre a poética sociológica” (VOLOSHINOV, 1926), o autor critica o método linguístico formal, em que toma-se o verbal não como um fenômeno sociológico mas de um ponto de vista abstrato, defendendo a importância do método sociológico, para o estudo da poética. Mostra os vários pontos em comum entre a palavra na arte e na vida cotidiana, destaca a importância no enunciado – e não da palavra neutra – para o estudo de ambas e vai além, apresentando de forma quase didática, um raríssimo exemplo de análise de enunciados. O autor analisa uma situação de uso da linguagem no cotidiano para ressaltar, de um lado a relação entre o material, a forma e o conteúdo de uma produção verbal, e, de outro, as relações intersubjetivas que estruturam e organizam a produção, seja ela artística ou não. A situação em questão refere-se a duas pessoas que estão sentadas numa sala, ambas em silêncio. Então, uma delas diz “Bem”. A outra não responde. O autor argumenta que para nós, que estamos ouvindo de fora, esta conversa apresenta-se completamente incompreensível. Porém, “esse colóquio peculiar de duas pessoas, consistindo numa única palavra – ainda que, certamente, pronunciada com entoação expressiva – faz pleno sentido, é completo e pleno de significação” (VOLOSHINOV, 1926, p.5). Seu argumento baseia-se no fato de que por mais que se dê valor à parte verbal, com seus fatores fonéticos, morfológicos e semânticos da palavra do enunciado, ou seja, da palavra “bem”, não será possível dar um único passo para o entendimento do colóquio se não levarmos em consideração o contexto extraverbal. O contexto extraverbal do colóquio era o seguinte: ambos os interlocutores olhavam para a janela e perceberam que começava a nevar, ambos sabiam que já se encontravam no mês de maio e que já era hora de chegar a primavera, e, finalmente, ambos estavam cansados do prolongado e desapontados com a neve que ainda persistia em cair. Dessa forma, aponta o autor, a palavra “bem” se expandiria em alguma expressão metafórica tal como “que inverno teimoso, ele não vai parar, e Deus sabe que é hora” (VOLOSHINOV, 1926, p. 8). Segundo o autor, o contexto extraverbal apresentado acima compreende três fatores: 1) o horizonte comum dos interlocutores (a unidade visível – neste caso a sala, a janela, etc), 2) o conhecimento e a compreensão comum da situação por parte dos interlocutores e 3) sua avaliação comum dessa situação. Cabe ressaltar que “comum” aqui não significa, necessariamente, concordância ou coincidência com o horizonte real, mas sim compartilhamento de determinada situação entre sujeitos participantes: onde o campo de alcance é mais amplo, o enunciado pode agir apenas se sustentando “em fatores constantes e estáveis da vida e em avaliações sociais substantivas e fundamentais” (VOLOSHINOV, 1926, p.6). Assim, diante do exposto, conclui o autor que: “um enunciado concreto como um todo significativo compreende duas partes: (1) a parte percebida ou realizada em palavras e (2) a parte presumida. É nesse sentido que o enunciado concreto pode ser comparado ao entinema20” (VOLOSHINOV, 1926, p. 6). 20 O entinema é uma forma de silogismo em que uma das premissas não é expressa, mas presumida. Por exemplo: Sócrates é um homem, portanto é mortal”. A premissa presumida: “Todos os homens são mortais” (nota do autor) Dessa forma, o individual e o subjetivo têm impregnado, o social e o objetivo e “apenas o que todos nós falantes sabemos, amamos, reconhecemos – apenas estes pontos nos quais estamos todos unidos podem se tornar a parte presumida de um enunciado” (VOLOSHINOV, 1926, p. 6). Assim, ao falarmos sobre julgamentos de valores presumidos, estes só serão possíveis não nas emoções individuais, mas nos atos sociais e regulares, ou seja, as “emoções individuais podem surgir apenas como sobretons acompanhando o tom básico da avaliação social. O “eu” pode realizar-se verbalmente apenas sobre a base do nós.” (VOLOSHINOV, 1926, p.6) Voloshinov (1926) ainda salienta que o horizonte espacial comum pode expandir-se tanto no tempo como no espaço, dependendo do enunciado: “o presumido pode ser aquele da família, do clã, da nação, da classe e pode abarcar dias ou anos ou épocas inteiras” (p.6) e “quanto mais amplo for o horizonte global e seu correspondente grupo social, mais constantes se tornam os fatores presumidos em um enunciado” (p.6). Estes dois aspectos serão de extrema valia para as análises desenvolvidas na presente dissertação. Ainda em sua crítica a abordagem linguística formal e, também, a abordagem psicológica, ele reafirma que elas são extremamente falhas ao desconsiderar que qualquer locução dita em voz alta ou escrita para uma comunicação inteligível, ou seja, qualquer palavra exceto as depositadas num dicionário, é o produto da interação social de três participantes: o falante (autor), o interlocutor (leitor/ouvinte) e o tópico (o que ou quem) da fala (o herói). Ao desconsiderar esta abordagem sociológica, o linguístico formal e psicológico, embora absolutamente indispensável em suas abstrações, não atende à demanda, pois cada uma das abordagens, por si só e isoladamente, são inertes: “Onde a análise linguística vê apenas palavras e as interrelações de seus fatores abstratos fonéticos, morfológicos, sintáticos) a percepção artística viva e a análise sociológica concreta revelam relações entre pessoas, relações meramente refletidas e fixadas no material verbal. O discurso verbal é o esqueleto que só toma forma viva no processo da percepção criativa consequentemente, só no processo da comunicação social” (VOLOSHINOV, 1926, p. 12) O autor então, ao fornecer um quadro dos fatores essenciais nas interrelações dos participantes de um evento artístico, afirma que o autor, o herói e o ouvinte de que fala o tempo todo não são entidades fora da própria percepção da obra, muito pelo contrário, eles são fatores constitutivos essenciais da obra. “Eles são a força viva que determina a forma e o estilo e são diretamente detectáveis por qualquer contemplador competente” (VOLOSHINOV, 1926, p.13). O autor também considera que o ouvinte, em todos os casos, é entendido como o ouvinte que o próprio autor leva em conta, “aquele a quem a obra é orientada e que, por consequência, intrinsecamente determina a estrutura da obra” (p.13) e que, portanto, de modo algum nos referimos às pessoas reais, em carne e osso, que de fato formam o público leitor do autor em questão. Assim como também não podemos nos referir ao autor em questão como a pessoa de carne de osso que escreve: “ “Mesmo se o poeta, de fato, extrai sua paixão em grande parte das circunstâncias de sua própria vida privada, ainda assim ele precisa socializar esse sentimento, e, consequentemente, elaborar o evento correspondente ao nível de significação social” (VOLOSHINOV, 1926, p. 13) 3.2.4 Enunciado e vozes A ideia de que autor, herói e ouvinte não coincidem com as pessoas que, de fato, falam/escrevem e leem/escutam o texto não está restrita ao ensaio “Discurso na vida, discurso na arte”. Em “Os gêneros do discurso”, Bakhtin novamente ressalta que "O destinatário do enunciado pode, por assim dizer, coincidir pessoalmente com aquele (ou aqueles) a quem responde o enunciado.(...) Mas nos casos de tal coincidência pessoal uma pessoa desempenha dois papéis, e essa diferença de papéis é justamente o que importa. Porque o enunciado daquele a quem eu respondo (com o qual concordo, ao qual faço objeção, o qual executo, levo em conta, etc.) já está presente; a sua resposta (ou compreensão responsiva) ainda está por vir" (BAKHTIN, 2003, p.301-302). Fica claro então que, para o autor, o que faz parte do meu enunciado não é o destinatário, mas a imagem que faço dele. Essa imagem é inarredavelmente distinta do destinatário propriamente dito por uma série de motivos, a começar pela própria ontologia: enquanto a imagem que faço de uma pessoa quando enuncio é uma concepção, um pensamento - e, portanto, imaterial - a pessoa propriamente dita é de carne e osso, material - e, por isso, a ela seria impossível "entrar" num texto. Entendo que o reconhecimento desta alteridade, desta clara diferenciação entre sujeitos “de texto” e sujeitos “de carne e osso” é um aspecto central do pensamento bakhtiniano e, por conseguinte, deste dispositivo. Assim, para colaborar com esse detalhamento, trarei os aportes de Amorim e Faraco, relacionando, sempre que possível, os textos destes autores aos originais de Bakhtin. No polo da significação, há dois sujeitos a distinguir. O destinatário propriamente dito - ou destinatário real, como propõe Amorim (2002) - é um sujeito empírico, extratextual e que, ao fim e ao cabo, será o leitor do texto. Já a imagem que o falante faz do destinatário destinatário suposto (AMORIM, 2002) - é um sujeito de discurso, intratextual. Este sim, tem tamanha força e influência sobre o que se diz e sobre como se diz que é considerado co-autor dos enunciados. No entanto, não custa repetir, é uma figura inarredavelmente ficcional, uma criação do enunciador feita a partir das impressões que tem acerca de seu interlocutor. Voloshinov (1926) o chama de ouvinte. No momento em que encontramos, no nível da significação, uma alteridade entre destinatários, seria razoável esperar que o autor propusesse algo semelhante no polo da enunciação. De fato, para Bakhtin, “a identidade absoluta de meu eu com o eu de que falo é tão impossível quanto tentar suspender-se pelos próprios cabelos!” (BAKHTIN apud AMORIM, 2002. 10). Amorim traz esta frase a propósito da diferenciação entre o autor, que escreveu o texto, e o locutor, que diz "eu" no texto. Já Faraco (2005), tratando a questão da autoria em Bakhtin, afirma que desde "O autor e o herói na atividade estética", escrito na década de 1920, o autor propõe a diferenciação entre autor-pessoa e autor-criador. Haveria, então, 3 "sujeitos" no polo da enunciação: autor-pessoa, autor-criador/autor e locutor. É importante reconhecer a alteridade entre eles. O autor-pessoa seria o escritor propriamente dito, sujeito empírico, sendo perfeitamente possível, de acordo com Amorim, identificá-lo como autor de um texto e continuar sem nada saber acerca de sua pessoa. Em “Os gêneros do discurso”, Bakhtin se refere a esse sujeito como falante. Já o autor-criador (ou autor, para Amorim) é o responsável pelo todo estético da obra, sua voz é "portadora de um olhar e de um ponto de vista que trabalha o texto do início ao fim" (AMORIM, 2002, p.11). E, "por ser uma função imanente ao objeto estético e por definir-se como uma posição axiológica, o autor-criador (a voz segunda) é, para Bakhtin, pura relação: não se trata de um ente físico (não é possível encontrar um Dom Casmurro nas ruas como tal)" (FARACO, 2005, p.42). Em “Discurso na vida, discurso na arte”, Voloshinov (1926) o chama de autor. É importante, ainda, distinguir o autor-criador do locutor, aquele que diz "eu" no texto. Para Amorim, a voz do autor não está nas declarações do locutor, mesmo quando este faz declarações diretas do tipo "gosto disso", "concordo com aquilo", etc. Isso ocorre pois o "locutor é sempre um personagem, enquanto a voz do autor está em todo lugar e em nenhum lugar em particular. Mais precisamente, ela pode ser ouvida ali, no ponto crucial de encontro entre a forma e o conteúdo do texto" (AMORIM, 2002, p. 10). Tanto Amorim quanto Faraco dão bastante destaque ao fato de que, para Bakhtin, essas distinções devem ser feitas mesmo em textos autobiográficos e em forma de diário. Finalmente, se levarmos em conta que “na poesia, com na vida, o discurso verbal é um cenário de um evento” (VOLOSHINOV, 1926, p. 12) e que neste cenário interagem autor, ouvinte e herói, é importante, também, ressaltarmos a presença deste último sujeito “de texto” que, para o autor, tanto pode ser alguém como algo sobre o que se fala. Assim, tanto os objetos quantos as personagens – e, até mesmo, o locutor - estariam na categoria de herói. Recapitulando, teríamos, numa situação bakhtiniana de comunicação verbal: i) o autorpessoa, ii) o autor-criador, iii) o herói – objeto, personagem ou locutor 21, iv) o destinatário suposto e v) a voz do destinatário real. Cabe distinguir que enquanto o autor-pessoa e o destinatário real são sujeitos empíricos e extratextuais, os demais sujeitos são figuras de discurso, intratextuais. Por entender que a explicitação da alteridade entre sujeitos contribuirá decisivamente para a clareza do processo de análise, opto pela seguinte nomenclatura: o ser humano que profere as palavras será chamado de autor-pessoa; o sujeito “de texto” responsável pelo todo estético da obra será chamado de autor-criador; aquilo de que se fala / aquele sobre quem se fala / aquele que fala no texto será chamado “herói” - em particular, o sujeito “de texto” que diz “eu” no texto será chamado de locutor; o sujeito “de texto” que corresponde à imagem que o autorpessoa faz do destinatário será chamado “destinatário suposto” e o ser humano que de fato lerá as palavras será chamado de “destinatário real”. 3.2.5 Apropriação Discursiva O enunciado, enquanto elo na cadeia da comunicação discursiva, ocupa uma posição definida em uma dada esfera da comunicação, em um dado assunto, etc, sendo impossível alguém definir sua posição sem correlacioná-la com outras posições, sem compreender que ele não está ligado apenas aos elos precedentes mas também aos subsequentes da comunicação discursiva: “O enunciado é pleno de tonalidades dialógicas, e sem levá-las em conta é impossível entender até o fim o estilo de um enunciado. Porque a nossa própria ideia – seja filosófica, científica, artística – nasce e se forma no processo de interação e luta com os pensamentos dos outros, e isso não pode deixar de encontrar o seu reflexo também nas formas de expressão verbalizada do nosso pensamento” (BAKHTIN, 2003, p. 298) Sendo encarada desta forma, fica evidente que a experiência discursiva individual se forma e se desenvolve em uma interação contínua e constante com os enunciados individuais dos outros. Para Bakhtin (2003), essa experiência pode, em certo 21 Cabe destacar que numa autobiografia, por exemplo, o locutor – aquele que diz “eu” no texto” – é também o herói - aquilo sobre o que se fala no texto. sentido, ser caracterizada como um processo de assimilação da palavra do outro, com um tom mais ou menos criador. Esse tom criador aparece pelo fato de que nosso discurso é pleno de palavras dos outros, “de um grau vário de alteridade ou de assimilabilidade, de um grau vário de aperceptibilidade e de relevância. Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expressão, o seu tom valorativo que assimilamos, reelaboramos e reacentuamos” (p. 295). Assim, é possível associar a assimilação ao que Bakhtin (2006b) aponta, em outra obra, como apropriação, na medida em que considera a última como um movimento em que a mescla de discursos, o próprio com o alheio, é capaz de melhor mediar suas próprias intenções, seus próprios acentos. Como a vida, coisa sócio-ideológica concreta, a língua situa-se na fronteira entre si e o outro. A palavra na língua é metade de alguém. Ela se torna "própria" apenas quando o falante preenche-a com sua própria intenção, seu próprio acento, quando ele se apropria da palavra, adaptando-o à sua própria intenção semântica e expressiva. Porém, nem todas as palavras se submeterão facilmente e igualmente a apropriação, a esta apreensão e transformação em propriedade privada por parte do falante: muitas palavras teimam em resistir, outras permanecem estrangeiras, estranhas à boca daquele que apropriam-se delas; eles não conseguem assimilá-las em seu próprio contexto, é como se o falante colocasse aspas na palavra, fazendo uma espécie de citação direta à palavra do outro, mesmo contra sua vontade. Mesmo antes do momento de apropriação, a palavra já não existe de forma neutra e impessoal (como já expus anteriormente, não é, afinal, do dicionário que os falantes retiram suas palavras), mas ela existe na boca de outras pessoas, em contextos de outras pessoas, servindo a intenções de outras pessoas: é a partir destas situações que tomamos a palavra e as tornamos própria. Por isso: “pode-se dizer que qualquer palavra existe para o falante em três aspectos: como palavra da língua neutra e não pertencente a ninguém; como palavra alheia dos outros, cheia de ecos de outros enunciados; e, por último, como palavra minha, porque, uma vez que eu opero com ela em uma situação determinada, com uma intenção discursiva determinada, ela já está compenetrada da minha expressão (BAKHTIN, 2003, p.294) Ora, se o último momento [apropriação] consiste em operar em determinada situação com intenção discursiva própria, expressão própria, serão aí, identificadas as perspectivas dos professores cursistas acerca dos PCNEM de Física. Bakhtin fornece também uma categorização das palavras alheias pautada não no que elas informam ou nos modelos que fornecem, mas na sua intenção de “definir as próprias bases de nossa atitude ideológica em relação ao mundo e de nosso comportamento” (BAKHTIN, 1993, p.142). Trata-se do discurso de autoridade e do discurso internamente persuasivo. O processo de formação ideológica normalmente vai caracterizar-se pela divergência desses dois discursos e, nessas circunstâncias, o discurso alheio caracteriza-se como um campo de tensões entre duas categorias. Entretanto é possível que, eventualmente, autoridade e persuasão interior se unam numa mesma palavra ou num mesmo discurso. Bakhtin (1993) afirma que “o discurso autoritário exige o nosso reconhecimento incondicional e não absolutamente uma compreensão e assimilação livre em nossas próprias palavras.(...) entra em nossa consciência verbal como uma massa compacta e indivisível, é preciso confirmá-la por inteiro ou recusá-la na íntegra” (p.144) . Já o discurso do outro internamente persuasivo nos revela possibilidades bastante diferentes. “À diferença da palavra autoritária exterior, a palavra persuasiva interior, no processo de sua assimilação positiva, se entrelaça estreitamente com a ‘nossa palavra’” (BAKHTIN, 1993, p. 144-5). A palavra persuasiva interior constitui-se como metade nossa, metade do outro, é a palavra semi-alheia propriamente dita e sua “produtividade criativa consiste precisamente em que ela desperta nosso pensamento e nossa palavra autônoma” (BAKHTIN, 1993, p.145), organizando nossas palavras, não se mantendo isolada, imóvel. Se por um lado a palavra autoritária se distancia do diálogo, a palavra persuasiva interior está aberta a ele. No entanto, não se trata de imitação ou réplica de outros discursos, mas envolve um confronto de nossos contextos, com nossas palavras, num processo criativo de transformação do discurso alheio, provocando o diálogo interno. Nem todas as palavras se submeterão facilmente à apropriação por qualquer pessoa, podendo as mesmas permanecerem alheias ou soando como estrangeiras na boca de quem delas se apropriou, não sendo, assim, assimiladas ao novo contexto. Essa resistência das palavras se deve ao fato de que: “a linguagem não é um meio neutro que passa livremente e facilmente para a propriedade privada das intenções de um falante, ela é povoada - superpovoada - com as intenções de outros. Expropriá-la, forçando-a a se submeter a sua própria intenção e acentos, é um processo difícil e complicado. (BAKHTIN, 1993, p. 294)” Dessa forma, podemos afirmar que o povoamento da palavra do outro com nossas próprias palavras se dará de maneira mais plena ao lidarmos com um discurso internamente persuasivo, um discurso mais aberto. Porém, isto não significa afirmar que defronte a um discurso de autoridade não seja possível uma valoração, um acento, uma intenção própria ao empregar tal discurso e que, por vezes, as enunciações se constituem como espaço de luta entre essas forças e, sendo assim, sua existência é sempre tensa, contraditória, ambivalente. 3.2.6 - Procedimentos de análise Bakhtin (2006a) propõe que a metodologia do estudo da língua deve seguir três etapas: i) as formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições concretas em que se realiza ii) as formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em ligação estreita com a interação de que constituem os elementos, isto é, as categorias de atos de fala na vida e na criação ideológica que se prestam a uma determinação pela interação verbal. iii) A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação linguística habitual. Seria possível dizer que quando o autor se refere a “atos de fala isolados” está falando dos enunciados? Seriam as “categorias de atos de fala na vida” os gêneros de discurso? E como seria, exatamente, a ligação entre os tipos de interação verbal e as condições em que se realizam? Com base nos conceitos bakhtinianos apresentados no capítulo anterior é possível esclarecer estas questões e finalizar o dispositivo analítico. Quanto à primeira questão, tudo o que foi dito acerca da alternância dos sujeitos falantes como característica fundadora dos enunciados permite concluir que todo ato de fala isolado está, no meu ponto de vista, cercado pelas falas de outros sujeitos. Quanto à segunda, considero que a resposta é afirmativa, pois de acordo com Bakhtin (2003): “O fenômeno dos gêneros do discurso foi estudado por Bakhtin ainda nos trabalhos da segunda metade da década de 20. Em Marxismo e Filosofia da Linguagem (...) há o esboço de um programa de estudo “dos gêneros das manifestações discursivas na vida, determinados pela interação discursiva, e na criação ideológica” e, “a partir daí, uma revisão das formas da língua em seu habitual tratamento linguístico” Aqui mesmo é feita uma breve descrição dos gêneros cotidianos da comunicação discursiva. (p. 446) Finalmente, a terceira questão é possível responder a partir do que o próprio autor apresenta em “Discurso na vida, discurso na arte”: O enunciado como um todo tem duas partes: uma presumida e a outra realizada em palavras. Na parte presumida, faremos a análise do 1) o horizonte espacial comum dos interlocutores (a unidade do visível – neste caso, a sala, a janela, etc.), 2) o conhecimento e a compreensão comum da situação por parte dos interlocutores e 3) sua avaliação comum dessa situação. Já na parte realizada em palavras, caberá a análise linguística habitual. (VOLOSHINOV, 1926) E assim, as etapas do dispositivo que proponho são: 1 - Identificação do enunciado A partir das ideias apresentadas nas seções 3.2.1 e 3.2.2, pode-se concluir que a própria alternância entre os sujeitos falantes já é suficiente para identificar o enunciado, ou seja, o enunciado inicia-se no momento em que o falante toma a palavra para si e finaliza-se no momento em que este termina o que gostaria de dizer, permitindo que o outro também fale. 2 - Leitura preliminar do enunciado O objetivo desta etapa é o primeiro contato com os enunciados no sentido de: identificar preliminarmente seus elementos linguísticos (estilo, construção composicional, unidade temática, relação com o falante/outros participantes, conclusibilidade) e fazer uma articulação prévia entre o material linguístico, as questões de pesquisa e os conceitos bakhtinianos. 3 - Descrição do contexto extraverbal A partir da leitura preliminar e da articulação prévia das questões de pesquisa aos conceitos bakhtinianos, é realizada uma investigação do contexto extraverbal para identificar, dentre os vários elementos, aqueles que mais contribuirão para a análise. Esses elementos são então descritos e articulados com vistas a estabelecer o horizonte espacial comum dos interlocutores, seu conhecimento e compreensão da situação, sua avaliação comum dessa situação, o momento social e histórico em que ocorre, a rede de enunciados a que se relaciona, etc. Nesta etapa também serão trazidos os contextos individuais dos professores enquanto autores-pessoas – formação, tempo de magistério, idade, região e Estado da federação a que pertence, etc. – na tentativa de trazer outros elementos que poderão melhor compor o entendimento dos enunciados. Embora a partir do referencial bakhtiniano não haja uma identidade entre autor-criador e autor-pessoa não se pode deixar de considerar que entre eles há uma relação muito próxima e íntima. 4 - Análise do enunciado Consiste em articular os elementos linguísticos (estilo, construção composicional, unidade temática, relação com o falante/outros participantes, conclusibilidade), o contexto extraverbal e os conceitos bakhtinianos envolvidos para responder as questões de pesquisa. Excetuando-se a primeira e segunda etapas, cuja finalização é bem definida, a terceira etapa – descrição do contexto extraverbal - poderá ser revista e ampliada, a qualquer momento da análise caso seja necessário buscar outros elementos do contexto extraverbal para melhor compreensão do enunciado. Abaixo segue um esquema para melhor compreensão das etapas a serem percorridas no presente dispositivo analítico: Figura 1 – Esquema das etapas do dispositivo analítico Questões de Pequisa Etapa 1 Identificação do Enunciado Etapa 2 Leitura Preliminar Etapa 3 Descrição do Contexto Extraverbal Conceitos Bakhtinianos Elementos Linguísticos Etapa 4 Análise do Enunciado 3.3 Objetivo e questões de pesquisa Diante do exposto, o objetivo do presente estudo consiste em identificar, a partir do conceito bakhtiniano de apropriação, perspectivas de professores de Física acerca dos PCNEM. Entendendo a perspectiva como a voz do(a) professor(a) e que a mesma não pode ser construída a não ser a partir do diálogo com outras perspectivas, considero que as seguintes questões de pesquisa ajudam a investigá-la: - Como os professores, em seus enunciados, se posicionam diante das políticas curriculares, em especial, diante dos PCNEM de Física? - Qual concepção de currículo e o posicionamento diante da implementação de um currículo nacional estão implícitos na perspectiva do professor? - Quais as aproximações e afastamentos encontrados entre as perspectivas dos professores investigados? Tais questões permearão todo o processo de análise, na tentativa de respondê-las a partir da análise do enunciado do professor. 3.4 Delimitação do estudo Esclareço que embora o presente estudo tenha como contexto um curso de formação continuada a distância, como será melhor descrito no próximo capítulo, não pretendo investigar as especificidades das mediações pedagógicas e tecnológicas presentes em um curso a distância, sendo estas entendidas apenas contexto de produção dos enunciados dos participantes. Tampouco aspectos relativos ao desempenho dos professores no curso são parte do objeto de estudo. Sendo assim, considero que as contribuições deste estudo para o ensino de Física podem ser mais relevantes para a compreensão do discurso e prática dos professores do que para o entendimento das especificidades da modalidade de educação à distância. 4 CONTEXTO DO ESTUDO 4.1 Contexto do Estudo A investigação foi realizada no âmbito da formação continuada de professores de ciências, no contexto de um curso de extensão online para professores de Física do Ensino Médio, que se realizou numa sala de aula Moodle acoplada ao ambiente virtual InterAge (REZENDE et al., 2003). O curso foi gratuito, certificado pela Pró-Reitoria de Extensão da UFRJ (PR-5) e teve a duração de 10 semanas, cobrindo o equivalente a um total de 40 horas/aula. Problematizou questões referentes aos PCNEM de Física, os objetivos do ensino de Física e a relação entre o ensino de Física e o mercado de trabalho. Dentre os 39 professores selecionados para fazer o curso, 17 chegaram até o final e, por terem apresentado produção adequada, receberam o certificado de conclusão. O curso foi mediado por dois tutores, estudantes de mestrado, e coordenado por uma professora doutora do NUTES/UFRJ. Embora o presente estudo tenha como recorte apenas uma das atividades realizadas durante o curso – como será explicitado na seção 4.2 – todo o curso será descrito nas seções seguintes para melhor entendimento do contexto em que o estudo se insere. Além disso, também cabe destacar que eu – a própria pesquisadora – atuei como elaboradora e tutora do curso. Sendo assim, tanto o curso quanto a análise que irei empreender, são, inarredavelmente, não neutros. Interessa-me aqui, apresentar a singularidade de um olhar atento sobre o objeto de estudo, estudá-lo a partir de ferramentas teórico-metodológicas consistentes com os fundamentos da filosofia da linguagem de Bakhtin, reconhecendo e explicitando minha interferência no processo. 4.1.1 O ambiente virtual O InterAge (http://nutes2.nutes.ufrj.br/interage) foi elaborado em 2004 com base na perspectiva construtivista e com o objetivo de prover aos seus usuários - os professores de ciências - recursos tecnológicos para realizar a ruptura com o modelo de transmissão de conhecimentos. O princípio deste ambiente online é permitir que os professores construam o conhecimento de forma ativa, assumindo o controle do próprio processo de aprendizagem (REZENDE et al, 2003). Seus recursos tecnológicos e pedagógicos foram desenvolvidos com o intuito de levar o professor a refletir sobre sua prática profissional e também para promover, por meio de fóruns de discussão e email, a interatividade e a colaboração entre professores e tutores. Ao longo dos cursos, os professores têm acesso a materiais educativos e textos de pesquisa em educação em ciências. O ambiente atualmente conta com 1.468 professores cadastrados. Em 2011, com o objetivo de facilitar o manuseio dos recursos técnicos e a gestão dos cursos por estudantes de pós-graduação e de iniciação científica não especialistas em Informática, decidiu-se integrar as funcionalidades do Moodle (versão 1.9.7) ao ambiente virtual já existente. O primeiro passo do processo de integração foi fazer uma sala de aula no Moodle (http://www.interageufrj.org) com o objetivo de familiarizar professores e tutores com a nova interface e com as funcionalidades de gestão técnica e administrativa. O curso em questão foi o primeiro a ser realizado nesta sala - e, a julgar pelos retorno dos professores e tutores, o processo de adaptação foi bastante bem sucedido. 4.1.2 Cursistas Divulgação A estratégia de divulgação do curso consistia em duas partes. Na primeira, o curso seria divulgado por email para os professores que já estavam cadastrados na base de dados do InterAge e, na segunda, faríamos a divulgação para os professores em geral, por intermédio de contatos com secretarias estaduais, municipais, escolas e pelo site da PR-5. No entanto, como a primeira parte da divulgação foi suficiente para preencher as vagas oferecidas, a segunda parte da divulgação ficou restrita à publicação (automática) do curso no site da PR-5. Os 1.468 professores cadastrados no InterAge foram avisados por email da oferta do curso, entre os dias 15 e 17/02/2011. O email continha uma ementa do curso e uma ficha de inscrição, que, em caso de interesse, deveria ser preenchida e anexada ao email de resposta, entre os dias 18 e 25/02. A equipe recebeu, nesse período, um total de 219 respostas. Distribuição de vagas e seleção Inicialmente, seriam oferecidas 25 vagas. No entanto, levando em consideração o grande número de interessados e uma possível evasão, a equipe decidiu aumentar o número de vagas para 40. Levando em consideração o princípio da isonomia, a equipe procurou distribuir essas vagas o mais equitativamente possível no que diz respeito i) às regiões do país, ii) atuação em escolas públicas e privadas e iii) a diversidade em relação ao tempo de formado. A equipe também levou em consideração a formação em área exata22, a atuação como professor de Física e a formação específica na área. É importante destacar aqui que, como os emails de seleção foram enviados a toda a base de dados do Interage, alguns professores de outras áreas e licenciados que não estavam atuando responderam ao convite enviando a ficha de inscrição. O passo-a-passo do critério foi seguinte: 1) Descartar as fichas de inscrição dos professores que não tinham formação em área exata. 2) Descartar as fichas do professores que não atuavam como professores de Física no Ensino Médio 2) Separar as fichas de inscrição por região 3) Dentro de cada região 3.1) Se houver mais de 8 candidatos, filtrar por formação específica em Física, diversidade público/privado, diversidade tempo de formado, nesta ordem, até haver 8 candidatos. 3.2) Se houver 8 candidatos ou menos, está encerrada a seleção Foram selecionados 39 professores, 17 dos quais concluíram o curso. Dentre os 22 que não concluíram o curso, 3 confirmaram inscrição mas nunca acessaram o ambiente. Os outros 19 foram contatados pelos tutores quando começaram a se afastar do curso e atribuíram o afastamento a problemas de agenda. Nas tabelas abaixo estão registradas a distribuição dos professores que iniciaram e a dos concluíram o curso, divididos por região, tempo de formado, tipo da escola em que trabalha e formação e também é apresentado um mapa do país que representa a diversidade regional dos professores cursistas que iniciaram o curso. Fig. 1 – Diversidade regional dos professores cursistas 22 Licenciatura em Física e outras áreas das Ciências Naturais. Tabela 5 - Distribuição de professores por tempo de formação Tempo de formado Iniciaram o curso % Concluíram o curso % menos de 5 anos 15 38% 7 41% De 5 a 10 anos 14 36% 4 24% De 11 a 15 anos 5 13% 3 18% mais de 15 anos 5 13% 3 18% 23 Tabela 6 - Distribuição de professores por tipo de escola em que trabalham Tipo de escola em que trabalha Iniciaram o curso % Concluíram o curso % Pública 28 62% 13 72% Privada 17 38% 5 28% Tabela 7 - Distribuição dos professores por formação 23 Formação Iniciaram o curso % Concluíram o curso % Licenciatura em Física 27 69% 11 65% Alguns professores trabalhavam em escolas públicas e privadas. Isso explica o fato de a soma dos que iniciaram o curso superar 39 e de a soma dos que concluíram o curso superar 17. Bacharelado e Licenciatura em Física 3 8% 3 18% Licenciatura. em Matemática com habilitação em Física 1 3% 1 6% Licenciatura em Ciências Plenas com habilitação em Física 1 3% 1 6% Física 2 5% 1 6% Licenciatura em Matemática 2 5% 0 0% Licenciatura em Matemática e Licenciatura em Física 1 3% 0 0% Licenciatura. Plena em Ciências Naturais e Matemática com habilitação em Física 1 3% 0 0% Ciências 1 3% 0 0% 4.1.3 Atividades pedagógicas do curso A proposta de formação do curso se alinhou com a defesa da atuação do professor enquanto intelectual transformador que, assim como afirma Giroux (1997), não permite que o professor seja reduzido ao status de técnico de alto nível que apenas cumpre os ditames, objetivos e parâmetros traçados por especialistas: “Encarando os professores como intelectuais, nós podemos começar a repensar e reformar as tradições e condições que têm impedido que os professores assumam todo o seu potencial como estudiosos e profissionais ativos e reflexivos. Acredito que é importante não apenas encarar os professores como intelectuais, mas também contextualizar em termos políticos e normativos as funções sociais concretas desempenhadas pelos mesmos. Desta forma, podemos ser mais específicos acerca das diferentes relações que os professores têm tanto com seu trabalho como com a sociedade dominante.” (GIROUX, 1997) Todo o curso foi baseado no modelo de formação continuada para professores de Ciências proposto por Rezende e Castells (2009) cujos pressupostos construtivistas visam estimular a reflexão sobre a prática; promover a interatividade; incentivar a colaboração entre os participantes de modo a desenvolver o conhecimento profissional do professor. Neste sentido, também tivemos como preocupação elaborar um curso democraticamente, de forma a incorporar ao máximo as contribuições dos professores cursistas. Assim, a equipe InterAge – da qual faziam parte eu, um outro tutor e a coordenadora do curso - realizou um roteiro inicial de atividades e, com o desenrolar do curso, foi adaptando e alterando essas atividades a partir do material gerado pelos próprios professores nos fóruns de discussão anteriores. A flexibilidade e agilidade de edição e publicação de atividades no Moodle foi decisiva para a implementação dessa proposta de desenho instrucional. Outro recurso bastante explorado foi a incorporação de vídeos à interface Moodle. Os vídeos foram gravados usando câmeras de celular/webcams, armazenados no YouTube e inseridos nas introduções das atividades e em alguns fóruns de discussão, sempre a partir de algum evento do curso. Essa técnica mais informal de gravação de vídeos, bem como o tom mais pessoal dos enunciados das atividades e das mediações foram utilizados para aumentar a proximidade entre os professores cursistas e os tutores. 4.1.4 Descrição do curso O curso foi dividido em cinco etapas: i) Apresentação Pessoal, com duração de prevista de 10 dias; ii) Os Pcnem de Física, com duração prevista de 20 dias); iii) Objetivos do Ensino de Física, com duração prevista de 15 dias; iv) Ensino de Física e o Mundo do Trabalho, com duração prevista de 15 dias e v) Avaliação do curso, duração prevista de 10 dias. Apresento a seguir a descrição de cada etapa do curso e ao final, um quadro (Quadro 1) que sintetiza todo o curso. Apresentação Pessoal A Apresentação Pessoal teve por objetivo promover a familiarização dos cursistas com a interface Moodle e permitir que eles verificassem se seu software e hardware estavam em condições para que participassem do restante do curso. Para isso, foram apresentadas informações em diversos formatos, dentre as quais destaco o cronograma do curso, no formato PDF e um vídeo do YouTube incorporado diretamente na interface Moodle. Foram apresentados também o Fórum Problemas Técnicos, projetado para ser o canal para resolução de problemas técnicos e o InterAge Café, espaço em que os cursistas poderiam criar fóruns de discussão para assuntos extra-acadêmicos. A atividade consistiu justamente numa visita ao InterAge Café e na participação no fórum Atividade 1, em que os tutores convidavam os professores a se apresentarem por intermédio de uma imagem, que seria retirada da internet e inserida no post. Para ajudar os professores que não tivessem tanta familiaridade com a interface, a equipe InterAge elaborou e disponibilizou um tutorial para inserção de imagens no Moodle. Foi realizada também uma atividade usando o recurso do Moodle “Escolha”, em que os professores informaram o tempo a partir do qual desistem de esperar respostas a uma participação que tenham feito num ambiente online. É importante aqui destacar a grande popularidade do InterAge Café, que foi extensivamente utilizado pelos professores até o final do curso. Como o objetivo principal desta atividade era a familiarização dos cursistas com o ambiente e os outros participantes, nesta etapa não foi apresentado nenhum tipo de texto/conteúdo para discussão. Os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio de Física Esta etapa do curso teve por objetivo familiarizar os professores com os PCNEM e propor a reflexão sobre o texto “Quem defende os PCN para o ensino médio?” (LOPES, 2006) por intermédio de atividades e discussões. A primeira atividade, realizada no fórum de discussão “Atividade 1”, convidou os professores a ler os PCNEM de Física, selecionar três trechos e postá-los no fórum, juntamente com as justificativas de sua escolha. Na segunda atividade, “Atividade 2”, os professores foram convidados a fazer uma participação para relatar suas experiências prévias com os PCNEM, se já os conheciam, se os conheceram apenas no curso, etc. Com o objetivo de deixar os cursistas o mais à vontade possível, os tutores gravaram o enunciado da atividade num vídeo e o incorporaram ao fórum. Nesse vídeo, contaram sua vivência com os PCNEM de forma bastante informal e pessoal, estimulando os professores a participar da mesma maneira. A terceira atividade, “Atividade 3”, consistiu na leitura e discussão de Lopes (2006) por intermédio da identificação e seleção de trechos com os quais os participantes concordassem ou discordassem. É importante destacar que, ao longo desta atividade, as discussões realizadas nos fóruns levaram à criação de duas outras atividades complementares. A primeira teve como tema uma possível associação entre a má qualidade das aulas de Física e a formação em áreas correlatas (Matemática, Engenharia, etc.), citada por várias vezes nos fóruns. A outra foi feita a partir da sugestão direta de um dos cursistas e dizia respeito à viabilidade de um currículo único e relacionado ao vivencial dos alunos num país tão grande e com tantas discrepâncias quanto o nosso. As discussões destes fóruns, apesar de concorrentes com aquelas das atividades originalmente propostas pela equipe, foram muito produtivas. Foi criado um fórum de discussão para que cursistas e tutores pudessem marcar um horário comum para um chat, que ficou agendado para o dia 29/04/11. Finalmente, o trabalho final consistiu na redação de um texto individual de 3.000 caracteres, com espaços, em que cada cursista foi convidado a responder a pergunta “Quem defende os PCNEM?”. A entrega foi feita por intermédio da própria interface Moodle. A avaliação levou em consideração a assiduidade e qualidade das participações bem como a qualidade do trabalho final. Os objetivos do ensino de Física Esta etapa teve como objetivo promover a discussão sobre os objetivos do ensino de Física e o contato com textos de pesquisa sobre os objetivos do ensino de ciências (FOUREZ, 2003). Na primeira atividade, os professores foram convidados a reler os PCNEM, selecionar dois trechos que identificassem como objetivos do ensino de Física e postá-los no fórum, acompanhados de uma justificativa. A segunda atividade foi dividida em duas partes. Na primeira parte, foram convidados a ler o texto de pesquisa e decidir, em grupo, qual das controvérsias listadas pelo autor seria discutida na parte seguinte. Já a segunda parte consistiria na discussão propriamente dita. Novamente, as discussões deram origem a uma atividade complementar, em que os professores foram chamados a apresentar os objetivos que pretendiam atingir com seu trabalho junto aos alunos. O chat com os alunos foi realizado e, apesar de contar com apenas 2 dos 17 alunos ativos - além dos 2 tutores - foi muito produtivo pois foi possível trabalhar em mais detalhes questões relativas ao texto de Lopes (2006). Finalmente, no trabalho final o professor foi convidado a escolher uma das controvérsias apresentadas por Fourez (2003) e redigir um documento de 3.000 caracteres, com espaços, mostrando de que forma os atores do seu entorno imediato se organizam a partir dessa controvérsia. A entrega desse trabalho e a divulgação das notas do trabalho anterior foram feitas por intermédio da própria interface Moodle. A avaliação do desempenho dos participantes do curso levou em consideração a assiduidade e qualidade das participações bem como a qualidade do trabalho final. O ensino de Física e o mercado de trabalho Esta etapa consistiu num fórum de discussão sobre as relações entre ensino de Física e o mundo produtivo, que foi dividido em três partes: na primeira parte, com duração de aproximadamente 5 dias, os professores foram convidados a participar e discutir a partir de suas visões prévias sobre o assunto. No sexto dia, foram disponibilizados alguns trechos de textos de pesquisa (FRIGOTTO 1988, 1995; PARO, 1999; LOPES, 2006; GANDRA, 2011; CASTRO, 2008) trazendo outras visões sobre o tema, dentre as quais destaco os pontos de vista de outros setores da sociedade (organismos financeiros internacionais, candidatos à presidência, empresas, imprensa, etc) sobre o tema. As íntegras dos textos também foram disponibilizadas caso houvesse interesse dos professores por uma leitura mais aprofundada. A discussão então continuou até o final do fórum, quando cada participante entregou um texto de uma lauda com a sua perspectiva sobre o ensino de Física e o mundo produtivo, articulando os pontos de vista apresentados. Todas as etapas da discussão foram mediadas pelo tutor e a entrega do documento foi feita eletronicamente, por intermédio da plataforma Moodle. Avaliação A Avaliação do curso teve a duração de cinco dias e consistiu, basicamente, na participação opcional num fórum de sugestões e críticas sobre o curso e no preenchimento de um questionário individual de avaliação do curso. A avaliação dos participantes levou em consideração a assiduidade e qualidade das participações bem como a qualidade do trabalho final. Dos 17 concluintes, três tiveram bom desempenho, mas receberam a avaliação “razoável” devido a questões de assiduidade e de atraso nos prazos de entrega; 6 tiveram desempenho excelente, mas receberam a avaliação “bom” também por problemas de assiduidade e de atraso na entrega dos trabalhos finais e, finalmente, 8 receberam a avaliação “excelente”. Quadro 1: Síntese das etapas do curso e respectivas atividades Etapa Apresentação Pessoal Os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio de Física Atividades Atividade: familiarização do usuário com o ambiente virtual e com os outros participantes 1ª atividade: leitura dos PCNEM de Física destacando e postando no fórum de discussão três trechos com no máximo 5 linhas, justificando o motivo por ter escolhido os respectivos trechos 2ª atividade: relato das experiências dos professores com os PCNEM de Física 3ª atividade: leitura e discussão de texto de pesquisa relacionado à implantação do currículo nacional no Brasil (LOPES, 200624) 4ª atividade: entrega de trabalho final respondendo à pergunta: “Quem defende os PCNEM?” 1ª atividade: leitura dos PCNEM de Física identificando no texto dois objetivos do ensino de Física, postando-os no fórum para posterior discussão. Os objetivos do ensino de Física 2ª atividade: leitura e discussão de texto de pesquisa que abordava a relação entre o que se espera do ensino do Ciências e sua atual crise (FOUREZ, 200325) 3ª atividade: chat com os tutores com o objetivo de os professores colocarem suas reflexões não só sobre o que estava 24 LOPES, A. 2006, Quem defende os PCN para o ensino médio?. In: Alice Casimiro Lopes; Elizabeth Macedo. (Org.). Políticas de currículo em contextos disciplinares. 1 ed. São Paulo: Cortez, v. , p. 126158. 25 FOUREZ, G., 2003. Crise no ensino de ciências. Investigações em ensino de ciências, 8(2), pp. 109123 sendo discutido no curso mas sobre sua prática pedagógica em geral. 4ª atividade: entrega de trabalho final se apoiando em uma das controvérsias apresentadas no texto estudado. 1ª atividade: participação dos professores nos fóruns dando suas visões prévias sobre as relações entre o ensino de Física e o mercado de trabalho O ensino de Física e o mercado de trabalho 2ª atividade: leitura de alguns trechos de textos que tratavam sobre o assunto sob diferentes pontos de vista (FRIGOTTO, 1988 26 , 1995 27 ; PARO, 1999 28 ; LOPES, 2002 29 ; CASTRO, 200830; GANDRA, 201131) 3ª atividade: discussão dos textos em fóruns. 4ª atividade: entrega de trabalho final no qual o participante apresenta sua perspectiva sobre as relações entre o ensino de Física e o mundo produtivo, articulando os pontos de vista apresentados no curso Avaliação do curso: participação em fórum de sugestões e críticas e no preenchimento de questionário individual Avaliação Avaliação do participante: assiduidade, participação e trabalho final 4.1.5 Mediação dos tutores Todas as etapas e discussões do curso contaram com mediações pedagógicas dos tutores. Estas mediações consistiam basicamente de intervenções nos fóruns de discussão que: traziam para a discussão outros elementos que pudessem auxiliar os professores a se posicionarem; incitavam a discussão trazendo pontos controversos; faziam interrelações entre as postagens de diferentes professores; chamavam todos os professores para participar das discussões, etc. 4.2 Corpus do estudo O corpus do presente estudo foi composto por 5 enunciados de professores32 de cada uma das cindo regiões do país – Norte, Sul, Sudeste, Nordeste e Centro-Oeste – e 26 FRIGOTTO, G., 1988. Formação profissional no 2º. grau: em busca do horizonte da Educação Politécnica. Cadernos de Saúde Pública, 4, pp.435–445. 27 FRIGOTTO, G. 1995. Educação e formação humana: ajuste neoconservador e alternativa democrática. In Pablo Gentili & Tomaz Tadeu da Silva (orgs) Neoliberalismo, qualidade total e educação. Petrópolis, RJ: Vozes 28 PARO, V. H., 1999. Parem de Preparar para o Trabalho – Reflexões acerca dos efeitos do neoliberalismo sobre a gestão e o papel da escola básica. In: FERRETI, C.J. – Trabalho, Formação e Currículo: Para onde vai a escola. São Paulo: Xamã. 29 LOPES, A.C., 2002. Os Parâmetros curriculares nacionais para o ensino médio e a submissão ao mundo produtivo: o caso do conceito de contextualização. Educação & Sociedade, 23(80). 30 CASTRO, C. M.., 2008 Educação não é mercadoria!. Acesso em <21/05/2011>. <http://arquivoetc.blogspot.com/2008/04/claudio-de-moura-castro.html> 31 GANDRA, A., 2011. Academia Brasileira de Ciências quer avanços em pesquisa e no ensino de ciências nas escolas. 32 É importante destacar que todos estes professores analisados declararam estar de acordo com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Anexo I) todos atuantes apenas em escolas públicas em resposta ao que foi solicitado na primeira atividade do curso quando discutimos os PCNEM de Física em um fórum de discussão. Embora 21 professores tenham respondido à atividade, considerei mais interessante para o presente estudo compor um corpus que apresentasse semelhanças – todos pertencentes a escolas públicas – e diferenças – todos pertencentes a regiões diferentes – entre os professores, na tentativa de melhor compreender quais as aproximações e afastamentos encontrados entre as perspectivas desses professores e suas possíveis relações com os contextos individuais em que estão inseridos. Cumpre-se destacar que as diferenças regionais existentes serão delimitadas pelo último Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB33), ocorrido em 2009, tanto da região quanto do Estado a que o professor pertence. A atividade foi apresentada pelo seguinte texto: Prezados professores, Nesta atividade, convidamos vocês a fazerem o seguinte: 1) Leiam os PCN de Física cuidadosamente (cliquem aqui para download do documento) 2) Selecionem 3 trechos com no máximo 5 linhas cada. 3) Postem neste fórum os trechos, justificando o mais detalhadamente possível, a sua escolha. Caprichem nesta atividade, pois ela será necessária para as próximas. Além de, é claro, em um curso sobre os PCN, o estudo profundo do documento torna-se imprescindível =) Boa leitura e estudo, Tutor 1 e Tutor 2 Esta foi a primeira atividade formal e com conteúdo do curso, já que a atividade anterior consistia apenas em apresentações pessoais e familiarização com o ambiente virtual. Assim sendo, ao eleger estes enunciados para análise, tive a intenção de encontrar a perspectiva do professor anterior às discussões teóricas realizadas ao longo do curso. Diante disso, como já foi mencionado no Quadro Teórico Metodológico, não serão considerados aspectos pedagógicos do curso, isto é, as especificidades das mediações pedagógicas e tecnológicas presentes em um curso a distância. Embora tenha havido discussões e mediações posteriores à postagem dos três trechos pelos professores, o recorte do estudo consistiu em analisar apenas esta primeira postagem, descartando as demais. 33 O IDEB foi criado em 2007 para medir a qualidade de cada escola e de cada rede de ensino. O indicador é calculado com base no desempenho do estudante em avaliações do (INEP) e em taxas de aprovação. Assim, para que o IDEB de uma escola ou rede cresça é preciso que o aluno aprenda, não repita o ano e frequente a sala de aula (MEC, 2007). O índice é medido a cada dois anos e o objetivo é que o país, a partir do alcance das metas municipais e estaduais, tenha nota 6 em 2022 – correspondente à qualidade do ensino em países desenvolvidos. (MEC, 2007) A justificativa da atividade mencionada reside no fato de que um curso em que a discussão principal girava em torno dos PCNEM de Física seria inconcebível sem a leitura do documento. Com o objetivo de que a leitura fosse uma atividade mais reflexiva, propusemos esta atividade onde o professor teria não apenas que ler o documento, mas destacar e justificar a escolha de três trechos do mesmo. Do ponto de vista da pesquisa, esta atividade também mostrava-se promissora pois, em consonância com o conceito de apropriação de Bakhtin, ao fazer uma seleção e ao ter de justificar sua escolha, o professor estaria povoando a palavra do outro - ou seja, o documento oficial - , com suas próprias palavras e sua própria visão de mundo. É necessário ressaltar que, em nenhum momento, foi pedido que o trecho devesse ser escolhido em função do que o professor considerasse certo ou errado, ou do que ele concordasse ou discordasse: deixar essa avaliação ainda mais a critério de cada professor foi também uma estratégia para que emergisse sua própria voz. 5. APROPRIAÇÃO PROFESSORES DISCURSIVA DOS PCNEM DE FÍSICA POR Neste capítulo, serão apresentadas as análises dos enunciados de 5 professores, todos atuantes em escolas públicas, porém pertencentes à diferentes regiões da federação, que responderam à primeira atividade da segunda etapa do curso – “Os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio de Física” -, descrita abaixo: Prezados professores, Nesta atividade, convidamos vocês a fazerem o seguinte: 1) Leiam os PCN de Física cuidadosamente (cliquem aqui para download do documento) 2) Selecionem 3 trechos com no máximo 5 linhas cada. 3) Postem neste fórum os trechos justificando, o mais detalhadamente possível, a sua escolha. Caprichem nesta atividade, pois ela será necessária para as próximas. Além de, é claro, em um curso sobre os PCN, o estudo profundo do documento torna-se imprescindível =) Boa leitura e estudo, Tutor 1 e Tutor 2 As análises serão realizadas à luz da teoria de Bakhtin e a partir das orientações do dispositivo analítico, ambas apresentadas no Quadro Teórico Metodológico A partir da teoria bakhtiniana, podemos apontar alguns pontos importantes sobre os autores-criadores em questão – comuns a todos os professores que postaram seus enunciados: são professores de Física participantes do curso online “Os Parâmetros Curriculares Nacionais e os objetivos do ensino de Física”, oferecido no ambiente virtual de formação de professores, InterAge, do NUTES/UFRJ. Seus destinatários supostos são os tutores do curso, que entendemos que representam a UFRJ, em particular, e a academia, de maneira geral e também os outros professores participantes do curso. Ressalto que, nas partes da resposta dadas na primeira pessoa do singular, entendo que a voz que diz “eu” não é a do autor-criador, mas a do locutor. A voz do autor-criador, perspectiva estética e axiológica responsável pelo todo do enunciado, não pode ser encontrada em nenhum ponto específico da obra. Assim, posicionar-se usando a primeira pessoa é um dentre muitos recursos estéticos e axiológicos à disposição do autor-criador. O herói, ou seja, aquilo sobre o que o autor-criador fala, são os PCNEM de Física e, especificamente, os temas tratados nos trechos destacados pelos professores. O horizonte espacial comum é um curso de 10 semanas, divididos em 5 módulos: apresentação pessoal, os PCNEM de Física, os objetivos de ensino de Física, a relação entre o ensino de Física e o mercado de trabalho e avaliação do curso. O módulo em questão, em que pela primeira vez se apresenta um conteúdo a ser estudado, refere-se aos PCNEM de Física. O módulo foi composto por 6 atividades: 3 fóruns previstos no desenho inicial do curso; 2 fóruns com questões complementares que surgiram ao longo das discussões e um trabalho individual final. O enunciado estudado é uma resposta a primeira atividade do módulo. A atividade foi conduzida num fórum de discussão, em que todos poderiam ler e comentar as respostas dos colegas de curso e não houve limite de caracteres para a resposta. A duração do fórum foi de 10 dias e contou com a participação de 25 professores. O conhecimento e compreensão comum da situação compreende uma série de conhecimentos tácitos presumidos pelo autor-pessoa no ato de sua fala: os cursistas/tutores, por serem professores atuantes/pesquisadores em educação, sabem da existência e leram, por conta da atividade, os PCNEM e que eles são a materialização de uma política curricular oficial brasileira; todos os cursistas/tutores, por serem professores atuantes/pesquisadores em educação, reconhecem a importância do processo de formação continuada tanto para a aprendizagem em si como para a obtenção de certificados e a consequente valorização profissional; todos os participantes conheciam uns aos outros através das apresentações pessoais realizadas no início do curso e sabiam que, ao longo do curso, estariam sendo avaliados pela instituição, representada, no caso, pelos tutores. A obtenção dos certificados dependeria dessa avaliação. No que diz respeito ao contrato didático, todos os participantes são adultos e professores, conhecendo, assim, por um lado a agenda cheia da vida de um adulto que trabalha como professor e, por outro, a importância dos prazos e regras um ambiente de aprendizagem. A avaliação comum presumida pelo falante sobre a situação é a de que o contexto de um curso sobre o assunto, ministrado pela UFRJ, é um espaço particularmente relevante para discussão e estudo dos PCNEM. Existe também a ideia de que sua contribuição, além de colaborar com os colegas, encontrará eco junto à academia. As linhas dos enunciados foram numeradas para facilitar sua recorrência, ao longo da análise. O enunciado intercala trechos dos PCNEM – em itálico – com a justificativa dada pelo professor. 5.1 Enunciado do Professor Norte O enunciado do Professor Norte, tal qual ‘postado’ no fórum de discussão, em resposta à atividade proposta, é apresentado abaixo. 1 “... é essencial que o conhecimento físico seja explicitado como um processo 2 histórico, objeto de contínua transformação e associado às outras formas de 3 expressão e produção humana. É necessário também que essa cultura em Física 4 inclua a compreensão do conjunto de equipamentos e procedimentos, técnicos ou 5 tecnológicos, do cotidiano doméstico, social e profissional”. 6 7 Justificativa: 8 9 Escolhi esse trecho do PCNEM de Física por considerar importante que o professor 10 possibilite que os alunos tenham ciência de como foram (e como vão sendo) 11 construídos os conhecimentos científicos. Não menos importante, é necessário 12 também que o professor promova situações onde os alunos possam entender os 13 princípios físicos que estão por trás das aplicações práticas que movimentam nossa 14 sociedade e nossa vida. 15 16 “... é imprescindível considerar o mundo vivencial dos alunos, sua realidade 17 próxima ou distante, os objetos e fenômenos com que efetivamente lidam, ou os 18 problemas e indagações que movem sua curiosidade”. 19 20 Justificativa: 21 22 Achei esse trecho bastante interessante, pois expõe uma preocupação que muitos 23 professores não têm quando planejam suas aulas. No ensino de física, é comum os 24 professores direcionarem, quase que exclusivamente, suas ações didáticas no sentido 25 de preparar os estudantes para os competitivos exames de vestibular, colocando em 26 plano secundário a formação de jovens capazes de relacionarem o que é apresentado 27 na sala de aula com sua vida, a sua realidade e o seu cotidiano. 28 29 “Lidar com o arsenal de informação atualmente disponível depende de habilidades 30 para obter, sistematizar, produzir e mesmo difundir informações, aprendendo a 31 acompanhar o ritmo de transformação do mundo em que vivemos. Isso inclui ser 32 um leitor crítico e atento das notícias científicas divulgadas de diferentes formas: 33 vídeos, programas de televisão, sites da internet ou notícias de jornais. 34 35 Justificativa: 36 37 Selecionei esse trecho por considerar importante a discussão em sala de aula de 38 questões atuais como, por exemplo, aquecimento global, energia nuclear, GPS, etc. 39 Não há como negar que esses temas contemporâneos têm efeitos imediatos em 40 nossas vidas. Acredito que a grande dificuldade dos professores de física é como 41 transpor a informação veiculada na mídia eletrônica e impressa para o ambiente 42 escolar. Infelizmente a formação acadêmica não nos capacita para isso. Somos 43 “treinados” na universidade para fazer conta. Como reverter essa situação? Acredito 44 que indo atrás de livros e artigos publicados que tratam do assunto ajuda muito... 5.1.1 A análise da apropriação discursiva dos PCNEM de Física pelo Professor Norte O autor-pessoa é um professor de 31 anos, natural do Piauí, porém residente em Tocantins onde leciona a disciplina de Física nos níveis médio e técnico de ensino em uma instituição de ensino pública. Sua formação em Licenciatura Plena em Física ocorreu em 2008 em uma instituição federal de ensino do estado do Piauí e possui Especialização em Metodologia do Ensino de Matemática e Física. O Estado do Tocantins ocupa hoje a 12ª posição dentre os 27 Estados, com 3,4 pontos no IDEB para o ensino médio de ensino. A Região Norte, a qual Tocantins pertence, ocupa, com 3,3 pontos, a última posição dentre as regiões da federação, juntamente com a região Nordeste (Fonte: INEP 2009). O primeiro trecho do enunciado (linha1 a linha5) é um recorte dos três trechos dos PCNEM solicitados pela atividade. No que diz respeito ao tema, trata da necessidade de se explicitar o conhecimento físico como produto social e da ideia de que a cultura em Física deve incluir o conhecimento sobre os dispositivos cotidianos. As palavras “essencial” (linha 1) e “necessário” (linha 3) dão um tom prescritivo ao texto. E, no que diz respeito à composição/estrutura é possível perceber a ocultação do agente da passiva no texto, fato especialmente importante se recordarmos o fato de que o enunciado bakhtiniano é um cenário 34 e que, neste caso, um dos principais protagonistas - o professor - foi removido. “É essencial que o conhecimento físico seja explicitado” (linha 1) por quem? Sua justificativa (linha 7 a linha 14), acompanha, do ponto de vista do tema, o trecho selecionado dos PCNEM. A primeira parte remete à importância do conhecimento físico como produto social e a segunda à inclusão, na cultura sobre Física, do conhecimento sobre “os princípios físicos que estão por trás das aplicações práticas que movimentam nossa sociedade e nossa vida” (linha 12 a linha 14). Já no que diz respeito à composição/estrutura, o autor explicita algo que estava oculto no trecho selecionado: é importante que “o professor” (linha 9) possibilite que os alunos tenham ciência. Além disso, o fato de não estar se falando de um professor específico faz com que a expressão “o professor” seja sinônimo de “todos os professores”. A repetição desta expressão, na linha 12, reforça a compreensão de que o autor se apropria dos PCNEM enfatizando e reforçando o caráter prescritivo do documento. O acento próprio, neste caso, consistiria na explicitação e extensão das prescrições aos demais professores. O segundo trecho selecionado (linha 16 a linha 18) dos PCNEM refere-se, também, à necessidade de se considerar o mundo vivencial dos alunos, e mais uma vez, aponta para a importância da compreensão dos dispositivos com que estes lidam cotidianamente. A conjunção “ou” (linha 17), apesar de alternativa por excelência, tem 34 “Na poesia, como na vida, o discurso verbal é o cenário de um evento” (VOLOSHINOV, p.12). aqui um caráter aditivo, e inclui, nos conteúdos a serem considerados pelo ensino de Física, problemas e indagações que, apesar não fazerem parte do dia-a-dia dos alunos, instigam sua curiosidade. A justificativa do autor-criador (linha 20 a linha 27) para este trecho se modifica: em vez de reverberar o tema do trecho selecionado, utiliza o tema como um critério de classificação, dividindo os professores em dois grupos e criticando um deles. Esta divisão é proposta no momento em que se refere a uma preocupação que “muitos professores não têm” (linha 22 e linha 23). O primeiro grupo, criticado pelo autor, é formado pelos professores que não têm a preocupação com os objetos cotidianos e a curiosidade dos alunos quando planejam suas aulas. Suas ações didáticas são, quase que exclusivamente, direcionadas no sentido de preparar os estudantes para os competitivos exames de vestibular (linha 24 a linha 27). O segundo grupo seria formado pelos professores que tem como objetivo “formar jovens capazes de relacionarem o que é apresentado na sala de aula com sua vida, a sua realidade e o seu cotidiano” (linha 26 e linha 27). Ao utilizar as palavras “muitos” (linha 22) e a expressão “é comum” (linha 23) para descrever o primeiro grupo deixa claro que este é significativamente maior que o segundo. Assim, as aulas planejadas de acordo com os PCN formariam um cidadão capaz de fazer relações entre o que aprende e o mundo à sua volta. Isso colocaria em dúvida a qualidade da formação obtida com aulas que preparam diretamente e exclusivamente para o vestibular. Dessa forma, o professor se apropriou do trecho em questão para dirigir uma crítica aos seus colegas de profissão que preparam para os exames vestibulares e reforçar a sua ideia de como o ensino de Física deve realizar-se considerando o mundo vivencial do aluno. No terceiro trecho selecionado pelo autor (linha 29 a 33), o tema toca, novamente, a presença da Física no cotidiano, porém, por um outro viés: o das informações científicas veiculadas pelos meios de comunicação bem como das habilidades necessárias para lidar com esse “arsenal de informações” (linha 29) - entre elas, a leitura crítica destas informações. Pressupõe também uma sociedade cujo ritmo de transformação é ditado - ou, pelo menos, fortemente influenciado - pelos temas científicos. Pela terceira vez, o autor-criador, inicia sua justificativa utilizando o verbo na primeira pessoa do singular como recurso para se posicionar como locutor: “(eu) selecionei esse trecho” (linha 37). Nas três primeiras linhas, acompanha o tema do trecho selecionado. Nas linhas seguintes afirma que a “grande dificuldade dos professores de física” (linha 40) é fazer a transposição do conteúdo da mídia para a sala de aula, pressupondo assim que i) essa transposição é um dos pontos centrais do ensino de física ii) a transposição, a ser feita pelo professor, é a melhor maneira de formar o leitor crítico e atento a que se refere os PCN. Essa grande dificuldade é atribuída a uma formação acadêmica deficiente, que treina os professores, inclusive o locutor evidenciado pelo uso da conjugação “somos” (linha 42) - para fazer conta (linha 43). O locutor apresenta, como sugestão para que se supere essa dificuldade, a “leitura de livros e artigos publicados que tratam do assunto” (linha 44), o que sugere i) uma aproximação com a pesquisa da área, ii) uma importância da formação continuada, formal ou informal e iii) a ideia de que uma das funções da pesquisa é prover soluções para problemas concretos de prática de ensino. É importante perceber o fato de que a mesma academia responsabilizada e criticada pela má formação inicial também publica os livros e artigos que podem ajudar a resolver o problema apontado pelo autor-criador. O autor-criador, então, se apropria deste trecho dos PCN para apontar a grande dificuldade do professor de física, afirmar a importância da transposição do conteúdo da mídia para o currículo de Física, para criticar a formação inicial - e, por consequência, a academia - e para ressaltar a importância da formação continuada formal e informal. No que diz respeito ao tema, destaco o fato de, dentre as várias dimensões do ensino de Física abordadas pelos PCN, o autor ter escolhido apenas trechos relacionados à dimensão vivencial. Entendo que, com isso, o autor se apropria dos PCN para explicitar a centralidade do assunto para a sua concepção de ensino de Física. Podemos ainda indicar que o fato de o professor ser recém-formado (ano de 2008), uma década após os PCNEM de Física terem sido publicados – e toda a importância dada ao ensino que leve em consideração o mundo vivencial do aluno – pode ter influenciado fortemente sua formação docente neste sentido. O professor apropria-se, também, dos PCN tanto para fazer uma prescrição dessa concepção de ensino aos outros colegas quanto para diferenciá-los em dois grupos. Entendo que esse processo de constituição da identidade profissional a partir da crítica aos colegas de profissão, apesar de não dizer respeito diretamente à questão de estudo, é uma marca dos destinatários supostos - no caso, os colegas professores - no enunciado. Já na prescrição de uma determinada prática de ensino aos colegas, identifico uma marca do destinatário suposto academia, no momento em que o autor está numa situação de formação continuada e dialogando com os representantes da organização que oferece formação continuada que, eventualmente, poderá aceitar e implementar sua sugestão. O autor apropria-se dos PCNEM, ainda, para dirigir suas críticas : i) ao ensino preparatório exclusivo para o vestibular – do qual, a partir de suas informações pessoais, ele não participa - que coloca em plano secundário a formação de jovens capazes de relacionar, criticamente, o ensino de Física ao seu mundo vivencial; ii) a formação inicial deficiente, que treina os professores para fazer contas, cuja crítica é feita até mesmo em sua apresentação pessoal. A partir dessas críticas e do todo estético do enunciado é possível fazer algumas considerações acerca da perspectiva do autor sobre o documento no contexto estudado. A primeira seria que o planejamento de ensino em consonância com a característica que destaca dos PCNEM - a inclusão da contextualização, que, muito embora o autorcriador não tenha utilizado a palavra propriamente dita, alinha-se quando o autor-criador referencia e destaca os temas do mundo vivencial - seria desejável e capaz de formar cidadãos críticos. Nessa perspectiva, o ensino de acordo com os PCNEM teria qualidade superior ao ensino que visa a preparar exclusivamente para ao vestibular. Podemos perceber que para o professor, a deficiência do aluno em não aprender não se limita aos aspectos cognitivos do ensino-aprendizagem, antes, porém, seria necessário dar as ferramentas – ensino contextualizado - para que o aluno seja conduzido ao aprendizado, que seja dado a ele a possibilidade de traduzir seus esquemas mentais em habilidades (competências). Retomando as ideias de Lopes (2002), cuja afirmação é a de que a contextualização é um dos processos de formação das competências necessárias ao mundo produtivo, podemos perceber que o professor desconsidera outros aspectos socioculturais e econômicos do processo de ensino-aprendizagem, agregando ao seu discurso o discurso do eficientismo social. A segunda seria a de que a formação inicial, ao não prepará-los para transpor o conteúdo da mídia para a sala de aula recomendação que identifica nos PCNEM - ignora o documento e suas orientações - ou seja, o autor-criador indica que há uma ruptura entre os processos de formação inicial e as políticas curriculares governamentais. Em contraposição, o autor-criador assume que, uma das soluções para suprir tal deficiência da formação, encontra-se na formação continuada, formal ou informal - através de livros e artigos publicados - onde se obtém subsídios de implementar estas políticas. Além disso, no momento em que afirma que o grande problema do professor de Física é o “como” transpor o conteúdo da mídia para a sala de aula, o autor criador dá por correta, garantida e desejável a proposta dos PCN, além de focar sua prática pedagógica apenas em aspectos metodológicos. Ela estaria bastante além da atual realidade das salas de aula e se constituiria numa espécie de solução ou de meta para o ensino de Física. Assim como na pesquisa em ensino de Física, percebemos também que no discurso do professor permanece a perspectiva do currículo como prescrição. Embora, ele não conceda ao documento força de lei, fica evidente, a partir de seu reconhecimento incondicional, que o professor assume o documento enquanto um discurso de autoridade, ainda que seja dada uma valoração, um acento, uma intenção própria ao empregar tal discurso. Neste sentido, como aponta Goodson (2007), há uma aceitação dos modelos estabelecidos de relação de poder, o que pode tornar-se perigoso na medida em que o professor não se assume enquanto intelectual transformador, que é capaz de identificar as relações entre currículo, poder e sociedade nem enquanto propositor de alternativas aos modelos vigentes. 5.2 O enunciado do Professor Sul O enunciado do Professor Sul, tal qual ‘postado’ no fórum de discussão, em resposta à atividade proposta, é apresentado abaixo. 1 Olá. Segue abaixo os trechos por mim escolhido e meus comentários. Grande abraço a 2 todos. 3 4 “O ensino de física tem-se realizado frequentemente mediante a apresentação de 5 conceitos e fórmulas, de forma desarticulada, distanciados do mundo vivido pelos 6 alunos e professores e não só, mas também por isso, vazios de significados.” 7 8 É o que acontece na grande maioria das vezes, a física é apresentada ao aluno como 9 sendo uma extensão da matemática, apenas, isto é, uma imensidão de equações a 10 serem decoradas e aplicadas, sem nenhum significado, sem nenhuma conexão com o 11 mundo real e então surge a fatídica pergunta, que muitos de nós ficamos reféns, 12 “onde eu uso isso? Para que eu aprendo isso?” e muitas e muitas vezes não sabemos 13 responder, por que também não sabemos, também questionamos e não obtivemos 14 resposta ou quando a obtivemos, reproduzimos: no vestibular, no próximo ano, no 15 próximo conteúdo. Precisamos nós, antes de mais ninguém identificarmos qual o 16 significado daquilo que estamos passando ao nosso aluno, para que ele articule os 17 conhecimentos formal e informal. 18 19 “Insiste na solução de exercícios repetitivos, pretendendo que o aprendizado ocorra 20 pela automatização ou memorização e não pela construção do conhecimento através 21 das competências adquiridas” 22 22 O quadro que se apresenta quando você ouve falar em física é esse, um monte de 23 equações para ser decoradas e muitos exercícios de memorização e repetição do que 24 foi trabalhado anteriormente. Tinha-se um modelo e a partir daí os demais seriam 25 parecidos com ele. Com os modelos de provas do ENEM, a mudança começa ocorrer 26 lentamente, a metodologia começa a ser modificada, mas ainda é um processo lento. 27 Talvez isso ocorra pelo nosso despreparo em trabalharmos dessa forma e também 28 porque muitos professores que atuam na área da física não tenham a formação 29 adequada, embora, também vejamos muitos com formação, trabalhando de forma a 30 priorizar o trabalho mecânico ao intelectual. 31 “É preciso rediscutir qual física ensinar para possibilitar uma melhor compreensão 32 do mundo e uma formação para a cidadania mais adequada. Sabemos todos que, 33 para tanto, não existem soluções simples ou únicas, nem receitas prontas que 34 garantam o sucesso.” 35 O ensino de física necessita sim de uma reformulação, é necessário adequar os 36 conteúdos de forma que venham a abranger o cotidiano do nosso aluno e comecem a 37 fazer sentido, caso contrário, continuaremos a “falar grego”. Contextualizar, 38 trabalhar de forma interdisciplinar, proporcionar ao aluno a construção do 39 conhecimento, em que este seja um sujeito ativo nesse processo e não mais passivo e 40 trabalhar aliando prática e teoria são sem dúvida algumas opções que já vem sendo 41 discutidas e rediscutidas ao longo dos anos. Faz-se necessário deixar de lado a 42 discussão somente e colocar essas propostas em prática. Fácil? Não, nunca é. Vai dar 43 certo? Talvez, somente tentando saberemos. 5.2.1 A análise da apropriação discursiva dos PCNEM de Física pelo Professor Sul O autor-pessoa é um professor de 43 anos, natural do Rio Grande do Sul e residente na cidade de São Vicente do Sul do mesmo Estado, onde leciona a disciplina de Física nos níveis fundamental e médio em duas instituições públicas de ensino. Sua formação em Física ocorreu em 2004 em uma instituição federal de ensino do Rio Grande do Sul. O Estado do Rio Grande do Sul ocupa hoje a 3ª posição dentre os 27 Estados com 3,9 pontos no IDEB para o ensino médio de ensino. A Região Sul, a qual Rio Grande do Sul pertence, ocupa, com 4,1 pontos, a primeira posição dentre as 5 regiões da federação (Fonte: INEP 2009). O professor inicia seu enunciado com uma saudação ‘a todos’ (linha1) explicitando, assim, a quem seu enunciado se dirige. Esta introdução elege participantes do curso e tutores como seus destinatários supostos. O primeiro trecho selecionado dos PCNEM (linha 4 a linha 6) dirige uma crítica ao ensino que apresenta ‘conceitos’ e ‘fórmulas’ (linha 5) desarticulados do mundo vivencial de alunos e professores e, principalmente por este motivo, esses conceitos e fórmulas acabam por se tornar vazios de significados. Por analogia, embora o trecho não traga a palavra ‘contextualização’, podemos entender o documento sugere que este ‘vazio’ seja preenchido mediante um ensino contextualizado. Em relação à composição/estrutura do trecho, a forma ‘tem-se realizado’ na voz passiva deixa indeterminado o agente, já que o ensino de física torna-se o sujeito da frase. Fica em aberto assim, quem tem realizado o ensino de forma desarticulada. Mais uma vez, levando em consideração que o enunciado bakhtiniano é um cenário, temos um dos principais protagonistas – o professor – removido propositalmente. A justificativa do professor também segue nesta linha logo na primeiro período do seu enunciado: quando diz que ‘a física é apresentada ao aluno’ (linha 8) ele também oculta quem apresenta esta física. Além disso, o professor tem por intenção atribuir a falta de sentido do ensino de física ao fato dele ser tratado apenas como uma ‘extensão da matemática’ (linha 9), o que o transformaria em ensino sem nenhuma conexão com o mundo real’ (linha 9). Assim como os PCNEM, embora o professor não utilize a palavra ‘contextualização’, parece clara a sua concordância com este conceito, sua intenção de inserir o conceito no processo de ensino-aprendizagem e sua crítica aos professores que apresentam o ensino de Física apenas sob o enfoque matemático. O professor se coloca pela primeira vez no enunciado como locutor – recurso axiológico e estético para trazer a si mesmo como personagem do enunciado - no momento em que utiliza a primeira pessoal do plural ‘nós’ (linha 11) para afirmar que, assim como os outros professores, permanece refém de perguntas ainda sem respostas do por quê ensinar física e onde utilizar estes conhecimentos. Para o professor, o motivo de os professores – inclusive ele - não saberem responder estas indagações reside no fato de, ao questionarem sobre estas perguntas, ‘não obtivemos respostas’ (linha 14) e, segundo ele, quando as obtém, suas repostas reproduzem que o ensino de física serve para o ´vestibular´ (linha 14), para compreender os ‘próximos conteúdos’ dos ‘próximos anos’ (linha 14). O uso da palavra ‘reproduzir’ acaba por incluir o eco de outras vozes no seu enunciado, que pretensamente, poderiam ser seus colegas, professores de Física e talvez também de outras matérias, que repetem essa tradição. Aqui podemos destacar que o professor, implicitamente, reconhece que os próprios PCNEM de Física, embora sugiram um ensino contextualizado e próximo ao mundo vivencial do aluno, não obtêm sucesso ao informar aos professores a que o ensino de Física se propõe e quais são seus objetivos, deixando os professores à mercê de discursos que propõem, por exemplo, a preparação para o exame vestibular. Se por um lado o questionamento do professor sobre motivos ‘por quê’ ensinar Física poderia ser interessante no sentido de manifestar um senso crítico diante do currículo de Física, por outro, a importância exagerada dada por ele ao conceito de contextualização parece indicar que essa forma de ensino é a resposta procurada, o que poderia ser, na visão de Lopes (2002b), aproximada de um ‘eficientismo social’ já comentado anteriormente. O professor finaliza a justificativa do trecho selecionado informando que ‘nós’ (linha15) – os próprios professores – ‘antes de mais ninguém’ (linha15) é que devemos identificar o real significado daquilo que é passado aos alunos, retirando assim, a responsabilidade das políticas curriculares oficiais sobre este aspecto. Por outro lado, quando finaliza a sentença “para que ele articule os conhecimentos formal e informal”, torna a reforçar a contextualização, como o meio de significar o ensino da Física. A temática do segundo trecho selecionado refere-se, assim como o primeiro trecho, a uma crítica ao ensino descontextualizado: ‘solução de exercícios repetitivos’ (linha19), ‘automatização e memorização’ (linha 20) de conteúdos e falta de ‘construção de conhecimentos’ (linha 20) a partir das ‘competências adquiridas’ (linha 21). Cumprese destacar que neste trecho, assim como discutido na Revisão de Literatura sobre o conceito de competência, há ausência de clareza sobre como essas ‘competências adquiridas’ resultam em uma ‘construção de conhecimentos’. Além disso, a presença dos verbos ‘adquirir’ – ideia de coisa pronta - e ‘construir’- ideia de coisa a ser constituída - na mesma frase parece colocar ‘competências’ e ‘conhecimento’ em extremos opostos. A intenção do autor-criador em relação a escolha do trecho destacado permanece: dirigir críticas ao ensino de Física excessivamente matemático e descontextualizado. Para o professor, o quadro atual ainda é o da Física apresentada mediante ‘um monte de equações a ser decoradas’ (linha 24) e ‘exercícios de memorização e repetição’ (linha 24). Porém, segundo ele, os modelos de prova do ENEM35 podem ser considerados uma pequena mudança neste aspecto, embora ainda este seja um ‘processo lento’ (linha 27). Ao utilizar o pronome possessivo em ‘nosso despreparo’ (linha 28), o professor se assume despreparado para empreender tal mudança metodológica. Porém, ao utilizar um pronome indefinido em ‘muitos professores’ (linha 29) para se referir à falta de ‘formação adequada’ (linha 30) desses professores não fica claro se seu despreparo também se relaciona à falta de formação. O que parece claro é que ele não se coloca no grupo de professores que detém esta formação diferenciada capaz de empreender um ensino mais contextualizado mas que ainda assim prioriza o ‘trabalho mecânico ao intelectual’ (linha 31). O terceiro trecho selecionado, em consonância com os anteriores, também valoriza um ensino de Física que possibilite ‘uma melhor compreensão do mundo’ (linha 31). Entretanto, o trecho também destaca a necessidade de o ensino de Física possibilitar ‘uma formação para a cidadania mais adequada’ (linha 33). Ao utilizar o verbo conjugado na primeira pessoa do plural ‘sabemos todos’ (linha 34), o documento intenta um viés mais intimista com o leitor - que muito embora saibamos, por analogia, se tratar dos professores, mais uma vez omite este personagem. Assim, o documento admite que todos têm conhecimento da dificuldade de se alcançarem tais objetivos e que 35 O Exame Nacional para o Ensino Médio (ENEM) tem como referência a LDB, os PCNEM, a Reforma do Ensino Médio, bem como os textos que sustentam sua organização curricular em Áreas de Conhecimento. O objetivo fundamental do exame é avaliar o desempenho do aluno ao término da escolaridade básica, para aferir o desenvolvimento de competências fundamentais ao exercício pleno da cidadania (MEC/INEP, 1998) não existem ‘soluções simples ou únicas’ (linha 34) e nem ‘receitas prontas’ (linha 34) que ‘garantam o sucesso’ (linha 35). O início da justificativa do autor-criador pela escolha deste trecho se dá por meio do verbo ‘é necessário’/‘necessita’ (linha 37) indicando que para ele não há outra possibilidade para o ensino de física ‘fazer sentido’ (linha 39) a não ser ‘abranger o cotidiano’ (linha 38) do aluno, pois, caso contrário, ‘continuaremos a falar grego’ (linha 39). Pela primeira vez em todo o enunciado, o professor explicitamente traz o termo ‘contextualizar’ (linha 39) – embora implicitamente a todo tempo a ele faça referência e o integra ao conceito de interdisciplinaridade – que em nenhum momento é citado explicitamente em todo o documento (LOPES, 2002c) - para proporcionar ao aluno ‘a construção do conhecimento’. A partir desta integração, o professor tem por intenção tornar o aluno ‘sujeito ativo’ (linha 41) do processo. Como sugestão para atingir tais objetivos, o professor sugere aliar ‘prática e teoria’ (linha 42), cuja união, segundo ele, já tem sido ‘discutida e rediscutida’ (linha 43) ao longo dos anos, sendo o atual momento o de deixar as discussões de lado para colocar as propostas em prática. Assim como o documento, o professor afirma que a tarefa ‘nunca é’ (linha 43) fácil e cuja possibilidade de dar ou não certo ele afirma que ‘somente tentando saberemos’ (linha 45). Também chama atenção na justificativa deste trecho, a ausência da apropriação, pelo professor, do conceito de cidadania. Fica a hipótese de que a melhor compreensão do mundo e a formação para a cidadania seriam a mesma coisa e que por meio da contextualização e da interdisciplinaridade seria possível alcançar essa ‘coisa’. A partir do que foi descrito e do todo estético do enunciado faço algumas considerações acerca da perspectiva do autor sobre o documento no contexto estudado. Destaco, primeiramente, o fato de, dentre as várias outras dimensões do ensino de Física presente nos PCNEM, o autor ter escolhido apenas os trechos que faziam menção à dimensão vivencial, ao ensino contextualizado. Entendo, com isso, que o autor se apropria dos PCNEM majoritariamente com a intenção de apoiar a concepção de ensino de Física contextualizado proposta no documento e, ainda, convencer os demais participantes do curso da importância e vantagens da contextualização através de um discurso persuasivo em que ele próprio se coloca enquanto ‘refém’ do ensino matematizado e distante do mundo vivencial do aluno. Seu enunciado pode ser entendido como uma espécie de chamamento dos outros professores a empreenderem este tipo de ensino. A contextualização aparece então na perspectiva do professor como a solução dos males do ensino de Física. Embora utilize os trechos dos PCNEM para apoiar sua concepção de ensino contextualizado, o professor não entende o documento como doador de respostas aos seus questionamentos sobre como empreender tal ensino. Esta perspectiva parece se alinhar com a crítica apontada na Revisão de Literatura do presente estudo em que, muito embora o documento tente se afastar do ensino propedêutico e se aproximar do mundo vivencial do aluno, ainda há fortes traços deste ensino propedêutico no texto do documento, não oferecendo subsídios aos professores sobre como tornar o ensino, de fato, significativo e próximo da realidade do aluno. A perspectiva do ensino de Física contextualizado seria, para o professor, requisito indispensável que, junto com a interdisciplinaridade, permitiria uma atuação mais efetiva dos alunos na construção do conhecimento. Assim como na pesquisa da área de Ensino de Ciências, se faz presente no discurso do professor a perspectiva do currículo como prescrição, na medida em que ele não traz nenhuma crítica aos modelos de relação entre currículo, poder e sociedade já estabelecidos (Goodson, 2007). Assim, nesta perspectiva, o “como” fazer do currículo se torna mais importante para o professor em questão do que o “por quê” e, assim como textos da área apontam, a falta de formação adequada acaba por torna-se o principal motivo para a não implementação das políticas curriculares. Permanece então, em seu enunciado, uma aceitação acrítica daquilo que o documento propõe, sem estabelecer diálogo com todo o conjunto de perspectivas trazidas nos capítulos iniciais deste estudo: as intenções neoliberais e mercantilistas presentes no documento; suas ambiguidades epistemológicas; a circunscrição do ensino às habilidades e competências que visariam, assim como a contextualização, ao eficientismo social,. Embora não tenha abordado explicitamente, ao que parece, a perspectiva do professor estaria de acordo também com a seleção de conteúdos que o documento prescreve a nível nacional, desde que o conjunto de conteúdos mínimos sejam ensinados de forma contextualizada e próximos à realidade dos alunos. 5.3 O enunciado do Professor Sudeste O enunciado do Professor Sudeste, tal qual ‘postado’ no fórum de discussão, em resposta à atividade 1 do curso, é apresentado abaixo. 1 Olá a todos 2 Demorei um pouco a responder, mas aí estão os trechos que escolhi: 3 4 1 - ...É necessário também que essa cultura em Física inclua a compreensão do 5 conjunto de equipamentos e procedimentos, técnicos ou tecnológicos, do cotidiano 6 doméstico, social e profissional. 7 8 De uma maneira geral, acho que as propostas do PCN são muito ambiciosas diante do 9 que temos hoje em termos de realidade na maioria das escolas. Esse trecho é um 10 pouco o exemplo disso. Concordo sim que deve-se incluir "a compreensão do 11 conjunto de equipamentos e procedimentos, técnicos ou tecnológicos, do cotidiano 12 doméstico, social e profissional", mas da forma como é colocado, me parece que há 13 uma obrigação de que esta e outras dezenas de coisas sejam feitas, mas só temos 2 14 ou 3 aulas por semana, e muitas vezes nenhum equipamento disponível. Como 15 cobrar do professor que isso seja feito? Acho importente sim que o parâmetro de 16 qualidade seja elevado, mas isso deve ser cobrado gradualmente, e de várias 17 instâncias, não só do professor. 18 19 2 - ...Enfatiza a utilização de fórmulas, em situações artificiais,desvinculando a 20 linguagem matemática que essas fórmulas representam de seu significado físico 21 efetivo. Insiste na solução de exercícios repetitivos, pretendendo que o aprendizado 22 ocorra pela automatização ou memorização e não pela construção do conhecimento 23 através das competências adquiridas. 24 25 Concordo que o ensino de física se utiliza de situações artificiais. Mas, teríamos 26 condições de ensinar a trabalhar situações "reais"? Com resistência do ar, fluxos 27 turbulentos, pêndulos físicos com atrito e tudo mais? Honestamente, não consigo 28 nem fazer com que os alunos entendam situações fisicamente mais simples, quanto 29 mais as mais complexas, com mais variáveis? Não acho que o uso de fórmulas 30 necessariamente desvincula o significado físico e privilegie a automatização e 31 memorização. Fórmulas existem como síntese de um processo de descoberta e 32 modelização visando a resolução de problemas mais simples, ou a simplificação de 33 algumas situações, que podem ser didaticamente trabalhadas. Como ensinar o que 34 (para mim...) é mais complexo, se não consigo nem fazer os alunos entender o que é 35 a princípio mais simples? 36 37 3 - ...Esse quadro não decorre unicamente do despreparo dos professores, nem de 38 limitações impostas pelas condições escolares deficientes. Expressa, ao contrário, 39 uma deformação estrutural, que veio sendo gradualmente introjetada pelos 40 participantes do sistema escolar e que passou a ser tomada como coisa natural. 41 42 Pouca gente dá atenção a isso. É muito fácil culpar o professor. Aliás, já vi 43 professores culparem outros professores pelo "fracasso" de suas aulas e outras 44 empreitadas, quando na verdade, deveriam ajudar-se e ter consciência de que 45 compartilham de um problema em comum. Acredito sim, de que seja um problema 46 estrutural, essencial, da natureza da origem do ensino, da forma como o ensino de 45 física foi concebido. 47 48 Em resumo, sei que é preciso mudar muita coisa, mas na prática, não sei o que fazer. 49 Leio e re-leio os PCNs, me parecem ótimas sugestões, concordo com a maioria, mas 50 acho que é preciso exemplos de como fazer. Atualmente, essa é a minha busca. 51 52 Um abraço a todos! 53 Professor Sudeste 5.3.1 A análise da apropriação discursiva dos PCNEM de Física pelo Professor Sudeste O autor-pessoa é um professor de 32 anos, residente na cidade de Cotia em São Paulo, onde leciona a disciplina de Física nos níveis fundamental e médio em instituições públicas de ensino. Sua formação em Licenciatura Plena em Física ocorreu em 2009 em uma instituição federal de ensino de São Paulo. O Estado de São Paulo ocupa hoje a 3ª posição dentre os 27 Estados, com 3,9 pontos no IDEB para o ensino médio de ensino. A Região Sudeste, a qual São Paulo pertence, ocupa, com 3,8 pontos, a segunda posição dentre as 5 regiões da federação, sendo ultrapassada apenas pela Região Sul (Fonte: INEP 2009). O autor-criador inicia seu enunciado reconhecendo que demorou para responder à atividades Sua intenção indica um pedido de desculpas e, consequentemente, de consideração e estima com os participantes do curso e tutores. O primeiro trecho destacado dos PCNEM refere-se a algo ‘necessário’ (linha 4) e, sendo assim, imprescindível ao ensino de Física: incluir na cultura em Física, a compreensão de aparatos e processos técnicos e tecnológicos do cotidiano do aluno – seja ele doméstico, social ou profissional. O uso da palavra ‘necessário’ retoma a ideia apresentada na ‘Revisão de Literatura’ de que, embora o documento afirme não ser uma ‘receita’ a ser seguida, algumas orientações são sim prescrições claras dirigidas ao professor. Esta prescrição refere-se a um ensino de Física contextualizado que possibilite ao aluno uma leitura científica dos instrumentos tecnológicos presentes no cotidiano. O professor inicia sua justificativa não se referindo, diretamente, à temática destacada em si. Na verdade sua intenção é dirigir uma crítica ao documento: a de que suas propostas são ‘muito ambiciosas’ (linha 8) para a ‘realidade na maioria das escolas’ (linha 9). Ao utilizar ‘as propostas do PCN’ (linha 8) – em detrimento de ‘essa proposta’ ou ‘a proposta acima’ - podemos entender que a crítica não se refere apenas ao trecho destacado mas a todo documento. Essa perspectiva fica ainda mais clara na oração seguinte, quando o professor afirma que o trecho é ‘um pouco o exemplo disso’ (linha 10 – grifo meu). Embora utilize o recurso gramatical da primeira pessoa do singular para afirmar que concorda com o trecho destacado, a perspectiva do professor é modulada com a expressão ‘na forma como é colocado’ (linha 12) para se reposicionar, afirmando que as orientações do documento aparentam ser ‘uma obrigação’ (linha 13) para que esta e outras ‘dezenas de coisas’ (linha 13) sejam feitas. Aqui parece claro que o professor não assume o texto do PCNEM como um discurso de autoridade, mas aponta que a própria maneira em que as orientações são colocadas no documento dá a entender um caráter de obrigatoriedade dessas orientações. Sua intenção com esse apontamento é o de trazer a impossibilidade do professor em cumpri-las pelo fato de ter ‘só 2 ou 3 aulas por semana’ (linha 14) e ‘nenhum equipamento disponível’ (linha 14). Ao fazer a pergunta ‘Como cobrar do professor que isso seja feito?” (linha 14) o professor parece estar indicando uma marca do seu destinatário suposto, ou seja, a quem sua pergunta se dirige: à academia, representada pelos tutores do curso, e aos outros participantes do curso. O professor destaca que acha importante existir um ‘parâmetro de qualidade elevado’ (linha 16) desde que seja implementado e ‘cobrado’ (linha 16) gradualmente e de todas as instâncias, ‘não só do professor’ (linha 17). Neste trecho, o professor identifica o documento com qualidade. A partir dessa identidade, sua perspectiva não é de posicionar contra os PCNEM, mas de apontar as dificuldades de implementá-lo – sendo inclusive desejável que fosse possível seguir suas orientações – em consonância com a tendência das pesquisas na área de ensino de Ciências. O segundo trecho destacado dos PCNEM tem por objetivo criticar o ensino de Física até então praticado, que ‘enfatiza a utilização de fórmulas’ (linha 19) em situações não reais – ‘artificiais’ (linha 19) – e que desvincula a linguagem matemática que essas fórmulas ‘representam’ (linha 20) do seu real ‘significado físico’ (linha 20). Também critica a solução de ‘exercícios repetitivos’ (linha 21) e a ‘automatização e memorização’ (linha 22) em detrimento da ‘construção do conhecimento’ (linha 22) a partir das ‘competências adquiridas’ (linha 23). Assim como ocorre em quase todo o documento, a composição e a estrutura gramatical do texto não deixam claro quem, de carne e osso, ‘enfatiza’ (linha 19) ou ‘insiste’ (linha 21) neste ensino tão criticado. O autor-criador, de um modo geral, utiliza-se do mesma linha de argumentação anterior: concorda com as orientações do documento, porém a elas dirige crítica quanto as possibilidades de implementá-las. A marca do locutor – aquele que diz “eu” no texto – assim como na primeira justificativa, também é muito forte nesta: o professor continua trazendo, a todo tempo, verbos conjugados na primeira pessoa do singular para se posicionar e participar como personagem do enunciado. Mais uma vez o professor traz uma pergunta aos seus interlocutores – destinatários supostos – ‘teríamos condições de ensinar a trabalhar situações reais?’ (linha 26). Seu posicionamento sobre o assunto, iniciado com um ‘honestamente’ (linha 27) – dando a entender de que é algo que ele próprio não gostaria de dizer, mas que é a realidade - é o de que sequer consegue ensinar aos alunos ‘situações fisicamente mais simples’ (linha 29) quanto mais ‘as mais complexas’ (linha 29). Assim, ensinar situações reais, na perspectiva do professor seria ensinar situações que envolvessem ‘resistência do ar, fluxos turbulentos, pêndulos físicos com atrito’ (linha 27). Nessa colocação, o professor elaborou uma identidade entre situação artificial e situação simples, atribuindo assim, à primeira, um sentido que não seria necessariamente o mesmo atribuído pelos autores do documento. O professor considera que o uso de fórmulas não privilegie apenas a ‘automatização e memorização’ (linha 31) e que não necessariamente seu uso desvincule o significado físico e sim que as fórmulas auxiliam na ‘modelização’ (linha 32) de ‘problemas mais simples’ (linha 33) ou ‘simplificação de algumas situações’ (linha 33) a serem trabalhadas didaticamente. Assumindo as situações simples como opostas às situações reais (que seriam, assim, mais complexas), o professor parece discordar dos PCNEM entendendo que o documento apontaria que as fórmulas – utilizadas no nível médio de ensino – dariam conta de representar situações reais. Mais uma vez utilizando como recurso para se posicionar uma pergunta dirigida aos tutores e colegas, ele demarca bem que tudo que foi dito é um posicionamento dele – utilizando para isso a expressão entre parênteses ‘para mim...’ (linha 34) . Julgo importante destacar que embora no trecho selecionado dos PCNEM seja feita referência à ‘construção do conhecimento’ (linha 22) e ‘competências adquiridas’ (linha 23) o professor se silencia a respeito destes termos e suas implicações. A perspectiva do professor é essencialmente construída a partir das dicotomias o que é proposto versus o que é possível e situação simples versus situação complexa.. O terceiro trecho selecionado tem por intenção não culpabilizar única e exclusivamente os professores, pois o quadro de dificuldades no ensino-aprendizagem de Física ‘não decorre unicamente do despreparo dos professores’ (linha 37 – grifo meu). A primeira coisa que cumpre-se destacar é o fato do documento assumir, tacitamente, que os professores estão despreparados para empreender tal ensino proposto pelo documento. A segunda, refere-se à citação, explícita, de ‘professores’ (linha 37). Assim como exposto na Revisão de Literatura, o estilo e estrutura composicional do documento se materializa com o apagamento do professor como sujeito das orações, como aquele que realiza as ações. Porém, no tocante a quem são os culpados, parece importante colocá-los, explicitamente, neste cenário. O documento também assume as próprias limitações ‘escolares deficientes’ (linha 38) como outro empecilho para melhoria do ensino de Física, mas não apenas. Para o documento existe uma ‘deformação estrutural’ (linha 39) introjetada ‘gradualmente’ (linha 39) no sistema escolar e que passou a ser tomada como ‘coisa natural’ (linha 40). Que tipo de deformação estrutural seria essa? O documento não explicita. A perspectiva do professor em relação ao assunto vai na direção apontada pelo documento: o professor não pode ser o único culpado pelos problemas do ensino de Física. Para ele ‘é muito fácil culpar o professor’ (linha 42) pelo ‘fracasso (linha 43) de suas aulas. O professor afirma ainda que muitos de seus colegas professores se culpabilizam mutuamente. Neste aspecto, o professor se posiciona afirmando que, na verdade, esses professores deveriam se ajudar e terem consciência de que ‘compartilham um problema em comum’ (linha 45). Ainda utilizando a primeira pessoa do singular ele se posiciona afirmando que o problema é sim ‘estrutural’ (linha 46) e tenta definir qual seria. Para ele, o problema estaria na ‘natureza da origem do ensino’ (linha 46) e na ‘forma como o ensino de física foi concebido’ (linha 47). O professor finaliza seu enunciado assumindo que é preciso ‘mudar muita coisa’ (linha 48), porém ele não sabe ‘o que fazer’ (linha 48). Isso indica que o professor assume o documento como orientador de sua prática, mas que o mesmo não se materializa. Assumindo uma concepção altamente prescritiva sobre o currículo, o professor afirma que precisa de ‘mais exemplos de como fazer’ (linha 50) e que atualmente esse ‘o que fazer’ (linha 28) configura a sua ‘busca’ (linha 50). Esse fato parece trazer uma certa ambiguidade no seu discurso, pois, em outro momento do enunciado, o professor critica o fato de os PCNEM se colocarem como uma obrigação a ser seguida. Com um ‘abraço a todos’ (linha 52) o professor se despede. Diante do que foi exposto podemos afirmar que a intenção principal do autorcriador é utilizar os trechos destacados dos PCNEM para chamar atenção para as impossibilidades de implementar as propostas nele contido. Assim, sua perspectiva é a de que documento por si só – embora eleito como um ‘parâmetro de qualidade’ (linha 15) – não basta para que o ensino de Física sofra melhorias significativas. Assim, sob a perspectiva desse professor, parece haver uma indicação de que a melhoria significativa ocorreria caso fosse possível implementar aquilo que os PCNEM propõem. Em nenhum momento o professor se opôs às orientações, indicando assim que elas são desejáveis porém distantes da realidade escolar atual. O professor, usa os trechos para expor a distância entre a qualidade, encontrada nas orientações do documento e a realidade das escolas, mantendo sua preocupação voltada para aspectos das dificuldades e (im)possibilidades de implementação do currículo. Parece bem clara sua tentativa de se impor no enunciado, registrando a sua voz, a sua perspectiva, a partir do seu posicionamento sempre na primeira pessoal do singular (eu). A partir daquilo que o professor disse concordar, podemos apontar que o professor valoriza um ensino contextualizado, que inclua a compreensão de equipamentos tecnológicos presentes no cotidiano do aluno. Ele entende também que o documento recomenda o estudo de situações reais, interpretadas por ele como situações físicas de maior complexidade. O professor não se manifesta em relação a outros conceitos estruturantes dos PCNEM tais como competências, habilidades, interdisciplinaridade, embora em um dos trechos selecionados apareça claramente o termo ‘competência’ (linha 23). De maneira geral, sua perspectiva está de acordo com a pesquisa em ensino de Ciências que, em sua grande maioria, aceita acriticamente as orientações do documento como padrão de qualidade e aponta para as dificuldades de implementá-lo. Ela também se alinha com a concepção do currículo como prescrição, embora, como já comentado, exista no seu discurso uma ambiguidade a esse respeito. Outros diálogos com as perspectivas apresentadas na ‘Revisão de Literatura’ não fizeram parte do enunciado do professor, como, por exemplo, as relações de poder estabelecidas através do currículo, a submissão dos PCNEM ao mundo produtivo, etc. 5.4 O enunciado do Professor Nordeste O enunciado do Professor Nordeste, tal qual ‘postado’ no fórum de discussão, em resposta à atividade proposta, é apresentado abaixo. 1 Bom dia a todos. Espero que todos estejam gostando do curso como estou. Já fiz 2 alguns amigos, mesmo que virtuais e espero conhecer mais pessoas. 3 Um grande abraço e aí vai a minha resposta. 4 5 1 - “...o aprendizado da Física promove a articulação de toda uma visão de mundo, 6 de uma compreensão dinâmica do universo, mais ampla do que nosso entorno 7 material imediato, capaz portanto de transcender nossos limites temporais e 8 espaciais. Assim, ao lado de um caráter mais prático, a Física revela também uma 9 dimensão filosófica, com uma beleza e importância que não devem ser subestimadas 10 no processo educativo.” 11 12 Nos tempos de hoje, com toda a produção tecnológica advinda de estudos da física 13 (nosso entorno material), com todas as questões postas na relação da sociedade com 14 estes bens de consumo e as inevitáveis transformações sociais que elas geram 15 (dimensão filosófica) e, ainda, com todas as possibilidades de descobertas, dentro e 16 fora do nosso âmbito de domínio – planeta Terra - que nos trazem questões 17 milenares, como a existência de vida em outros sistemas, por exemplo, (visão de 18 mundo e compreensão do universo), é praticamente impossível pensar na sociedade 19 atual sem os conhecimentos básicos desta ciência. 20 Teríamos, pois a incumbência de levar conhecimentos relativos a estes problemas 21 postos para toda a comunidade – alfabetização e letramento científicos – e, com a 22 ajuda dos outros segmentos das ciências traçarmos soluções para a melhoria do nível 23 da qualidade de vida de todos. 24 25 2 - “O ensino de Física tem-se realizado frequentemente mediante a apresentação 26 de conceitos, leis e fórmulas, de forma desarticulada, distanciados do mundo vivido 27 pelos alunos e professores e não só, mas também por isso, vazios de significado. 28 Privilegia a teoria e a abstração, desde o primeiro momento, em detrimento de um 29 desenvolvimento gradual da abstração que, pelo menos, parta da prática e de 30 exemplos concretos.” 31 32 Não é raro vermos os alunos privilegiando esta forma de ensino. Isso se dá por conta 33 de uma certa “valorização” de uma única forma (ou manifestação) da inteligência. 34 Sabe-se que para o professor é muito mais cômodo trabalhar da forma conteudista, 35 pois com ela transfere-se a responsabilidade do aprender única e exclusivamente ao 36 aluno. Daí, o aluno que se sai bem com esta abordagem torna-se “o sabichão”, “o Rei 37 da cocada preta”, “o Cara”, etc. Assim, este aluno que apresenta tais facilidades 38 propaga para os outros que a única forma de se saber é esta, e como tem o aval do 39 professor, esta ideia se propaga e os outros passam a se conformar com resultados de 40 avaliações medíocres e, sabedores que são, de que a escola dará todas as chances 41 possíveis e imagináveis para que ele progrida, mesmo sem o domínio da disciplina, 42 ele faz o famoso jogo do “Ele finge que ensina, eu finjo que aprendo e vamos nós”. 43 44 3 - “Investigar tem, contudo, um sentido mais amplo e requer ir mais longe, 45 delimitando os problemas a serem enfrentados, desenvolvendo habilidades para 46 medir e quantificar, seja com réguas, balanças, multímetros ou com instrumentos 47 próprios, aprendendo a identificar os parâmetros relevantes, reunindo e analisando 48 dados, propondo conclusões.” 49 50 Como visto no item anterior, a forma de trabalho que é cômoda não é eficaz. A 51 eficácia do ensino de física deve ser buscada através de pesquisas e trabalhos 52 voltados à realidade da vida de todos. 53 Temos tantos exemplos da física aplicada ao cotidiano e a escola simplesmente se 54 nega a perceber isto, como se fosse o avesso da escola aquilo que é da vida prática. 55 Mas, para trabalhar desta forma o professor tem de suar a camisa. Muitas vezes tem 56 de abandonar seu “recanto” para ir ao mundo mostrá-lo ao educando, mas isso requer 57 esforço. Embora seja o modo mais gratificante de se trabalhar. 58 Enquanto o professor não se aperceber de que o mundo nos dá todo o ferramental 59 para trabalhar estaremos “malhando em ferro frio”. Ou a física invade o mundo dos 60 ou eles não aceitam a física! 5.4.1 A análise da apropriação discursiva dos PCNEM de Física pelo Professor Nordeste O autor-pessoa é um professor de 28 anos, residente na cidade de Fortaleza no Estado do Ceará, onde leciona a disciplina de Física no nível Médio em instituições públicas de ensino. Sua formação em Física ocorreu em 2007 em uma instituição estadual de ensino do Ceará. O Estado do Ceará ocupa hoje a 10ª posição dentre os 27 Estados, com 3,6 pontos no IDEB para o ensino médio de ensino. A Região Nordeste, a qual Ceará pertence, ocupa, com 3,3 pontos, a última posição dentre 5 regiões da federação, juntamente com a Região Norte (Fonte: INEP 2009). O autor-criador inicia seu enunciado afirmando que está gostando do curso e que espera que seus colegas também estejam gostando. Considera alguns dos participantes do curso como amigos ‘mesmo que virtuais’ (linha 2) procurando estabelecer um certo grau de proximidade com alguns de seus destinatários supostos. O primeiro trecho escolhido pelo professor destaca a afirmação de que o ‘aprendizado de Física’ (linha 5) – colocado no texto como sujeito da frase – por si só é capaz de possibilitar ao aluno uma articulação de ‘toda uma visão de mundo’ (linha 6). Atente-se para o uso do pronome ‘toda’ que passa uma ideia de que o mundo, em toda sua dimensão, poderá ser compreendido a partir dos conhecimentos da Física, transcendendo assim os ‘limites temporais e espaciais’ (linha 8). E mais: o aprendizado de Física também promoveria uma ‘compreensão dinâmica do universo’ mais ampla que o ‘entorno material imediato’ (linha 7). Neste sentido, a Física teria um ‘caráter mais prático’ (linha 8) – ligado a um entorno imediato – e também uma ‘dimensão filosófica’ (linha 9) – transcendendo o espaço tempo. Pode-se depreender que o documento pretendia aludir aos conhecimentos relativos à astronomia e à cosmologia. O documento ainda destaca que a dimensão filosófica da Física – com sua ‘beleza e importância’ (linha 9) não ‘devem’ (linha 9) ser ‘subestimadas no processo educativo’ (linha 10). O uso de ‘devem’ indica uma intenção de obrigação de se considerar tal dimensão, podendo-se destacar, mais uma vez, a ambiguidade que existe nesta obrigação e o fato de o documento afirmar não ser uma receita a ser seguida. O professor inicia sua justificativa trazendo o leitor para o tempo presente – ‘nos tempos de hoje’ (linha 12) – fazendo-se entender que nem sempre essa foi uma realidade. Para compor esta parte do seu enunciado o professor utiliza verbos na primeira pessoa do plural – nós – indicando que inclui e chama para a sua ‘causa’ os demais professores. Na perspectiva do professor, possuir ‘conhecimentos básicos’ (linha 19) de Física mostra-se de extrema necessidade diante das ‘questões postas pela sociedade, (...) das possibilidades de descobertas (...) das questões milenares, como a existência de vida em outros planetas’ (linhas 13 a 18) sendo, inclusive, ‘praticamente impossível pensar na sociedade atual sem os conhecimentos desta ciência” (linhas 18 e 19). O professor, ao utilizar palavras do próprio documento entre parênteses, parece querer explicar o significado de cada um destes termos: ‘toda a produção tecnológica advinda de estudos de física’ (linha 12) seria, na sua perspectiva, ‘nosso entorno material’ (linha 13) e ‘as inevitáveis transformações sociais que elas geram’ (linha14) seria a ‘dimensão filosófica’ (linha 15) do ensino de Física. Tendo descrito o contexto no primeiro parágrafo, o professor chama os outros professores à responsabilidade – utilizando o verbo na primeira pessoa do plural – afirmando que todos os professores teriam a ‘incumbência’ (linha 20) de levar ‘conhecimentos relativos’ (linha..) a estes problemas ‘postos para toda a comunidade’ (linha..), alfabetizando e letrando cientificamente seus alunos e ‘com a ajuda de outros segmentos das ciências’ (linha 22) o que permitiria então traçar ‘soluções para a melhoria do nível de qualidade de vida de todos’ (linhas 22 e 23). O tempo verbal utilizado pelo professor – ‘teríamos’ – isto é, o futuro do pretérito, passa a ideia de hipótese, incerteza e irrealidade, pois seria algo que já deveria ter ocorrido no passado, mas que ainda não aconteceu no presente e espera-se que se realize no futuro. O professor, embora não enuncie explicitamente o termo ‘interdisciplinaridade’, aponta que para se atingir o objetivo maior – ‘qualidade de vida de todos – as outras ciências devem se aliar à Física, ou vice-versa. A apropriação que o professor faz do documento preenche o vazio deixado pelas expressões ‘visão de mundo’ e ’mundo vivido’ de uma forma muito mais ampla e abrangente que possivelmente os autores dos documentos quiseram significar – embora, assim como os documentos, também as relacione como sendo parte de um ensino contextualizado. Formulado no contexto atual, o enunciado do professor dialoga com uma realidade ambiental muito diferente daquela existente do final da década de 90, quando os PCNEM foram escritos. Ele vai muito além do documento, chamando a responsabilidade dos professores em resolver problemas sociais e conseguir melhorar a qualidade de vida das pessoas. O segundo trecho selecionado dos PCNEM (linha 25 a 26) dirige uma crítica ao ensino de Física, que apresenta conceitos e fórmulas desarticulados do mundo vivencial de alunos e professores e, por este motivo, esses conceitos e fórmulas acabam por se tornarem vazios de significados. Por analogia, embora o trecho não traga a palavra contextualização, podemos entender que o documento sugere que este ‘vazio’ pode ser preenchido mediante um ensino contextualizado. Em relação à composição/estrutura do trecho, é possível perceber a ocultação do agente da passiva – quem tem realizado o ensino de forma desarticulada? – fato também constatado no trecho destacado pelo Professor Sul. Mais uma vez, levando em consideração que o enunciado bakhtiniano é um cenário, temos um dos principais protagonistas – o professor – removido do contexto. O trecho do documento continua dirigindo críticas ao ensino que ‘privilegia a abstração’ (linha 28) e ‘desde o primeiro momento’ (linha 28) não engloba um desenvolvimento gradual dessas abstração que, ao menos, ‘parta da prática e de exemplos concretos’ (linha 30). Assim, o documento não se assume enquanto contrário à abstração no ensino de Física e sim na forma desarticulada dessa abstração com o mundo vivencial e casos concretos. A principal intenção do professor não parece, de antemão, criticar o ensino descontextualizado e sim a valorização do ensino conteudista como uma ‘única forma (ou manifestação) de inteligência’ (linha 33). Neste sentido, quando ele declara que para os professores ‘é muito mais cômodo trabalhar da forma conteudista’ (linha 34) pelo fato de que nesta forma de ensino ‘transfere-se a responsabilidade de aprender única e exclusivamente ao aluno’, fica claro que seu olhar para o ensino puramente abstrato e descontextualizado é de reprovação e que este tipo de ensino é prevalente apenas por ser o mais cômodo para o professor. Não fica claro em seu discurso se o aluno tem ou não uma parcela de responsabilidade no seu aprendizado ou se o professor torna-se inteiramente responsável pelo processo: o que fica claro é que não é apenas o aluno o culpado pelo seu não aprendizado. Sua crítica à aprendizagem excessivamente abstrata fica clara também pelos ‘apelidos’, que expressam um tom pejorativo, dados aos alunos que conseguem obter êxito, tais como ‘o sabichão’ (linha 36), ‘o rei da cocada preta’ (linha 37), ‘o cara’ (linha 37). O professor também afirma que esta realidade se propaga aos outros alunos menos favorecidos por este tipo de aprendizagem que também passam a considerá-la a ‘única forma de saber’ (linha 38) e, com o aval do professor, passam a se conformar com ‘resultados medíocres’ (linha 40) com a certeza de que a escola ‘dará todas as chances possíveis e imagináveis’ (linha 41) para que ‘ele progrida mesmo sem o domínio da disciplina’ (linha 41). O professor ainda aponta que este quadro faz parte do ‘famoso jogo’ (linha 42) ‘ele finge que ensina, eu finjo que aprendo’ (linha 42). Analisando esse trecho do enunciado mais profundamente podemos indicar uma ambiguidade no discurso do professor: se por um lado ele critica o ensino abstrato como única forma de saber, por outro ele critica o fato de que a escola dê chances de o aluno passar de ano sem ‘domínio da disciplina’, ficando implícita que este domínio da disciplina se relaciona com o ensino abstrato. No terceiro trecho destacado percebe-se uma sequência lógica e rígida de passos que começa pela observação – ‘investigar’ (linha 44) e culmina com a proposição de ‘conclusões’. Assim como abordado na ‘Revisão de literatura’, essa sequência remete ao empirismo e a um pretendo método científico, na medida em que apaga o papel da teoria no processo de construção do conhecimento científico. Esse apagamento da construção do conhecimento fica ainda mais evidente quando destaca-se o ‘desenvolvimento de habilidades’ (linha 46), que como vimos, juntamente com as competências, visam ao ‘saber fazer’. O professor inicia sua justificativa afirmando que a ‘forma de trabalho mais cômoda não é a mais eficaz’ (linha 50). Essa forma de trabalho refere-se à tratada no ‘item anterior’ (linha 50), ou seja, o ensino conteudista. Na perspectiva do professor ‘a eficácia do ensino de física’ deve ser buscada ‘através de pesquisas e trabalhos voltados à realidade da vida de todos’. Em parte, podemos interpretar esta perspectiva do autorcriador como uma marca de seus destinatários supostos – os tutores que são também pesquisadores - e o fato de ele buscar um curso de formação continuada numa instituição de ensino voltada para a pesquisa e ensino. Por outro lado, ao tornar como objeto dessa ‘pesquisa’ a realidade da vida de todos, ele chega, finalmente à contextualização, que parecia implícita nos outros trechos, como a solução para o problema do ensino de Física, apontado pelos PCNEM. O professor continua seu enunciado afirmando que ‘a escola’ (linha 53) se nega a perceber que existem ‘tantos exemplos de física aplicada ao cotidiano’ (linha 53). O motivo dessa omissão da escola não se mostra clara no enunciado do professor e ele coloca como hipótese a ideia de que o ‘avesso da escola’ (linha 54) seria ‘aquilo que é da vida prática’ (linha 54). O professor também aponta as dificuldades enfrentadas pelos próprios professores para empreenderem tal ensino, tendo que ‘suar a camisa’ (linha 55) e ‘abandonar seu recanto para ir ao mundo mostrá-lo ao educando’ (linhas 55 e 56). O professor conclui seu enunciado afirmando que ‘o mundo nos dá todo o ferramental’ (linha 58) para trabalhar e caso não percebamos isso estaremos ‘malhando em ferro frio’ (linha 60) e, fatalisticamente, afirma que ‘ou a física invade o mundo dos alunos ou eles não aceitam a física’ (linha 61) indicando que só há um caminho a ser seguido para que se logre êxito no ensino de Física junto aos alunos: o conhecimento contextualizado. Considerando o enunciado como um todo, para o professor, o ensino de Física que considere o mundo vivencial dos alunos seria requisito indispensável que, junto com a interdisciplinaridade – ‘outros segmentos das ciências’ – permitiria uma melhoria na qualidade de vida do alunos. A perspectiva do professor vai além de concordar com o documento, atribuindo a contextualização papéis muito mais abrangentes e relevantes, como a do letramento científico e à possiblidade de melhoria da qualidade de vida de todos. 5.5 O enunciado do Professor Centro-Oeste O enunciado do Professor Centro-Oeste, tal qual ‘postado’ no fórum de discussão, em resposta à atividade 1 do curso, é apresentado abaixo. 1 Olá a todos, os trechos escolhidos por mim são os abaixo descritos. 2 3 “Para isso, é imprescindível considerar o mundo vivencial dos alunos, sua realidade 4 próxima ou distante, os objetos e fenômenos com que efetivamente lidam, ou os 5 problemas e indagações que movem sua curiosidade” pg 3 6 7 Escolhi este trecho pois devemos levar em consideração os conhecimento que os 8 alunos tem, todos os alunos tem um certo conhecimento que trazem para a sala de 9 aula, então a partir dos conhecimentos que eles trazem, podemos elaborar uma 10 discussão e então encaminhá-los para o que se deseja, e com isso fica mais fácil 11 construir o conhecimento, pois são os alunos que dão inicio aos trabalhos, exemplo 12 real é o livro Na vida dez, na escola zero de Terezinha Carraher, e outros, onde na 13 feira o personagem fazia as contas e passava o troco e na escola não conseguia 14 efetuar tais contas. 15 16 “Forma e conteúdo são, portanto, profundamente interdependentes e condicionados 17 aos temas a serem trabalhados”pg 3 18 19 Como havia uma certa continuação nos trechos este segundo evidencia os 20 planejamentos que devemos fazer para que o mundo vivencial dos alunos sejam 21 privilegiados e incluídos, é bem possível que isso só ira se realizar com a prática, 22 pois o planejamento acontece antes do contato com os alunos, porém podemos ter 23 uma ideia das duvidas e dos conhecimentos que os alunos trazem. 24 25 “Como ponto de partida, trata-se de identificar questões e problemas a serem 26 resolvidos, estimular a observação, classificação e organização dos fatos e 27 fenômenos à nossa volta segundo os aspectos físicos e funcionais relevantes” pg 4 28 29 E, como há um encadeamento das ideias, tem que ter um desenvolvimento, este 30 trecho retrata bem como poderemos desenvolver as habilidades e incluir no nosso 31 planejamento por em pratica toda essa gama de conhecimentos, através das 32 orientações do trecho em questão. 33 34 Bons estudos a todos. Professor H 5.5.1 A análise da apropriação discursiva dos PCNEM de Física pelo Centro-Oeste O autor-pessoa é um professor de 40 anos, residente na cidade Valparaizo no Estado de Goiás, onde leciona a disciplina de Física no nível médio de ensino em uma instituição pública estadual de ensino. Sua formação em Licenciatura Plena em Física ocorreu em 2009 em uma instituição particular no Distrito Federal. O Estado e Goiás ocupa hoje no IDEB para o ensino médio de ensino a 12ª posição dentre os 27 Estados, com 3,4 pontos. A Região Centro-Oestes, a qual Goiás pertence, ocupa, com 3,5 pontos, a terceira posição dentre as 5 regiões da federação (Fonte: INEP 2009). O primeiro trecho destacado pelo autor-criador dos PCNEM (linhas 3 a 5) refere-se à necessidade de se considerar o mundo vivencial dos alunos e da importância da compreensão dos dispositivos com que estes lidam cotidianamente. A conjunção “ou” (l.17), apesar de alternativa por excelência, tem aqui um caráter aditivo, e inclui, nos conteúdos de Física a serem considerados, problemas e indagações que, ainda que não façam parte do dia-a-dia dos alunos, instigam sua curiosidade. A palavra “imprescindível” (linha 3) é responsável pelo tom altamente prescritivo empregado pelo documento. O autor-criador se apropria do trecho dos PCNEM para corroborar a sua concepção de ensino que leva em consideração ‘os conhecimentos que os alunos tem’ (linha 8). Podemos supor que esta consideração aproxima-se de uma noção cognitivista de ensino academicamente consideradas ‘concepções construtivistas sobre a aprendizagem’ - mais especificamente ‘concepções prévias’ 36 . Para ele, é de suma importância ‘elaborar discussão’ (linha 10) que se encaminhe para o que os alunos desejam, ficando assim, os alunos encarregados de dar ‘início aos trabalhos’ (linha 11). Assim, o professor aproxima o sentido do mundo vivencial, dos objetos e fenômenos do cotidiano ou dos problemas que movem a curiosidade do aluno, presentes no documento, de seus conhecimentos sobre pré-concepções dos alunos , trazendo inclusive a expressão ‘construir conhecimento’ - em detrimento de ‘adquirir’ cuja ideia perpassa a de o aluno apenas como um depósito de conhecimento - e a citação do livro “Na vida dez, na escola zero” (linha 12) no qual o aluno que trabalha numa feira ‘fazia contas e passava troco’ (linha 13) e na escola, onde este mundo vivencial do aluno não era considerado, esse aluno não conseguia realizar tais contas. Na composição do enunciado, o professor emprega a todo tempo sua própria voz utilizando-se para isso verbos na primeira pessoa do singular e também traz ao enunciado seus colegas quando emprega verbos na primeira pessoa do plural. O segundo trecho dos PCNEM destacado pelo professor trata da relação forma e conteúdo: afirma serem profundamente interdependentes e condicionados aos temas trabalhados. 36 Nesta concepção considera-se que alunos trazem para a sala de aula teorias e explicações sobre o seu o seu cotidiano oriundas de várias fontes, tais como conversas com amigos, familiares, mídia, contextos social e cultural, entre outras. Estas apresentam um caráter espontâneo, antes de intervenções na escola e referenciam explicações do mundo embasadas basicamente na experiência e nas percepções sensoriais. Portanto, são de nível conceitual menos complexo e estão relacionadas com o que se convencionou chamar de conhecimento cotidiano, um conhecimento experiencial e muito contextualizado (GARCIA, 1998, 199 apud KRUGER e GIL, 2005) O professor inicia sua justificativa afirmando que esta ideia é uma continuidade do trecho que ele destacou acima. Para ele este segundo trecho evidencia como devem ser realizados os planejamentos para se alcançar o mundo vivencial do aluno no ensino de Física, isto é, que este mundo vivencial seja ‘privilegiado e incluído’ (linha 21) em todos os planejamentos realizados. O professor afirma que apenas com ‘a prática’ (linha 21) é que ‘isso irá se realizar’ (linha 21) pois apenas após o ‘contato com os alunos’ (linha 22) é que se pode ter conhecimento das ‘dúvidas’ (linha 23) e dos ‘conhecimentos’ (linha 23) que estes alunos trazem. Mais uma vez parece clara que essa perspectiva do professor se alinha com a teoria sobre concepções prévias dos alunos. Podemos perceber que a relação estabelecida pelo professor com os PCNEM, especificamente, é de que ele não é um discurso completo, pois apenas a partir da própria prática é que o professor conseguirá atender melhor às necessidades dos seus alunos. A composição do texto ainda se dá na primeira e terceira pessoa do singular, já deixando bem delimitado que seu discurso pretende-se persuasivo: sua intenção é chamar os outros professores participantes do curso para corroborar suas perspectivas. O terceiro trecho destacado podemos considerar que as palavras usadas remetem ao pretenso método científico. Embora use ‘ponto de partida’ no singular, estes são vários: ‘identificar questões e problemas a serem resolvidos, estimular a observação, classificação e organização dos fatos e fenômenos à nossa volta segundo os aspectos físicos e funcionais relevantes’ (linhas 25 a 27). O documento não faz referência ao professor enquanto sujeito das ações de ‘identificar’, ‘estimular’, etc. Mais uma vez, assim como abordado nas análises anteriores, há o apagamento do professor enquanto personagem do cenário trazido pelos PCNEM de Física. Iniciando mais uma vez pela afirmação de que o trecho destacado faz parte de um encadeamento de ideias, o professor afirma que o mesmo ‘retrata bem’ (linha 30) como se pode ‘desenvolver as habilidades’ e, assim, incluir no ‘nosso planejamento’ (linha 31) – dele e de todos os professores – essa ‘gama de conhecimentos’ (linha 31) trazidas pelo documento. É interessante notar que o professor não dialoga com os termos trazidos pelo PCNEM, que remetem ao pretenso método científico e se apropria deste trecho incluindo o desenvolvimento de habilidades. Cabe destacar que em nenhum dos trechos houve o uso de tal termo. Embora não tenha explicitado, parece que ele está se referindo ao desenvolvimento das habilidades dos alunos, mas por outro lado, assume que os PCNEM também se voltam para orientar os professores, em como por em prática os conhecimentos trazidos pelo documento. Aqui, a perspectiva do professor é a de assumir o documento enquanto conhecimento e enquanto orientador de sua prática. De uma maneira geral, o professor tem por objetivo principal valorizar o ensino que se inicie a partir do conhecimento do aluno, que aproximou do mundo vivencial e do ensino contextualizado, enfatizado no documento. Seu público alvo são seus colegas professores a quem ele coloca a todo tempo no cenário do enunciado com o uso do verbo na primeira pessoa do plural. Percebe-se que ao se apropriar de ‘desenvolvimento de habilidades’, que complementa o ensino por competências, o professor parece priorizar o ‘aprender a fazer’ - já discutido na Revisão de Literatura do presente estudo. O professor assume explicitamente, no terceiro trecho, uma posição de aceitação das orientações dos PCNEM e desconsiderando as relações de poder que podem estar implicadas no currículo ao dar ao documento o status de ser uma ‘gama de conhecimento’ (linha 31) e toma o currículo como prescrição na medida em valorizar e aceita acriticamente suas orientações. 6. SÍNTESE DA ANÁLISE, DISCUSSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS O objetivo do presente estudo consistiu em identificar, a partir do conceito bakhtiniano de apropriação, perspectivas de professores de Física acerca dos PCNEM em enunciados redigidos por eles em resposta a uma atividade proposta no âmbito de um curso de extensão a distância. A partir da síntese das perspectivas de cada professor apresentadas na primeira seção deste capítulo e entendendo a perspectiva como a voz, o posicionamento do professor, retomo as questões da pesquisa, que irão balizar a discussão e as considerações finais, na seção seguinte: Como os professores, em seus enunciados, se posicionam diante das políticas curriculares, em especial, diante dos PCNEM de Física? Qual concepção de currículo e o posicionamento diante da implementação de um currículo nacional estão implícitos na perspectiva do professor? Quais as aproximações e afastamentos encontrados entre as perspectivas dos professores investigados? 6.1 Síntese da análise Os cinco enunciados analisados respondiam a uma atividade que solicitava que os professores escolhessem três trechos dos PCNEM de Física e justificassem suas escolhas. Sendo os PCNEM, o herói – aquilo sobre o que se fala – no cenário desenhado pelos enunciados, é importante observar que a escolha dos trechos do documento (Quadro 3) já é parte da apropriação que cada professor faz do documento. Quadro 3: Trechos do PCNEM escolhidos pelos professores Professor Trechos dos PCNEM Nordeste “O aprendizado da Física promove a articulação de toda uma visão de mundo, de uma compreensão dinâmica do universo, mais ampla do que nosso entorno material imediato, capaz portanto de transcender nossos limites temporais e espaciais. Assim, ao lado de um caráter mais prático, a Física revela também uma dimensão filosófica, com uma beleza e importância que não devem ser subestimadas no processo educativo” “O ensino de Física tem-se realizado frequentemente mediante a apresentação de conceitos, leis e fórmulas, de forma desarticulada, distanciados do mundo vivido pelos alunos e professores e não só, mas também por isso, vazios de significado. Privilegia a teoria e a abstração, desde o primeiro momento, em detrimento de um desenvolvimento gradual da abstração que, pelo menos, parta da prática e de exemplos concretos” Sudeste “Investigar tem, contudo, um sentido mais amplo e requer ir mais longe, delimitando os problemas a serem enfrentados, desenvolvendo habilidades para medir e quantificar, seja com réguas, balanças, multímetros ou com instrumentos próprios, aprendendo a identificar os parâmetros relevantes, reunindo e analisando dados, propondo conclusões.” “É necessário também que essa cultura em Física inclua a compreensão do conjunto de equipamentos e procedimentos, técnicos ou tecnológicos, do cotidiano doméstico, social e profissional.” “Enfatiza a utilização de fórmulas, em situações artificiais, desvinculando a linguagem matemática que essas fórmulas representam de seu significado físico efetivo. Insiste na solução de exercícios repetitivos, pretendendo que o aprendizado ocorra pela automatização ou memorização e não pela construção do conhecimento através das competências adquiridas.” Sul “Esse quadro não decorre unicamente do despreparo dos professores, nem de limitações impostas pelas condições escolares deficientes. Expressa, ao contrário uma deformação estrutural, que veio sendo gradualmente introjetada pelos participantes do sistema escolar e que passou a ser tomada como coisa natural.” “Insiste na solução de exercícios repetitivos, pretendendo que o aprendizado ocorra pela automatização ou memorização e não pela construção do conhecimento através das competências adquiridas” “O ensino de física tem-se realizado frequentemente mediante a apresentação de conceitos e fórmulas, de forma desarticulada, distanciados do mundo vivido pelos alunos e professores e não só, mas também por isso, vazios de significados.” Centro-Oeste “É preciso rediscutir qual física ensinar para possibilitar uma melhor compreensão do mundo e uma formação para a cidadania mais adequada. Sabemos todos que, para tanto, não existem soluções simples ou únicas, nem receitas prontas que garantam o sucesso.” “Para isso, é imprescindível considerar o mundo vivencial dos alunos, sua realidade próxima ou distante, os objetos e fenômenos com que efetivamente lidam, ou os problemas e indagações que movem sua curiosidade” “Forma e conteúdo são, portanto, profundamente interdependentes e condicionados aos temas a serem trabalhados” Norte “Como ponto de partida, trata-se de identificar questões e problemas a serem resolvidos, estimular a observação, classificação e organização dos fatos e fenômenos à nossa volta segundo os aspectos físicos e funcionais relevantes” “É essencial que o conhecimento físico seja explicitado como um processo histórico, objeto de contínua transformação e associado às outras formas de expressão e produção humana. É necessário também que essa cultura em Física inclua a compreensão do conjunto de equipamentos e procedimentos, técnicos ou tecnológicos, do cotidiano doméstico, social e profissional. “É imprescindível considerar o mundo vivencial dos alunos, sua realidade próxima ou distante, os objetos e fenômenos com que efetivamente lidam, ou os problemas e indagações que movem sua curiosidade” “Lidar com o arsenal de informação atualmente disponível depende de habilidades para obter, sistematizar, produzir e mesmo difundir informações, aprendendo a acompanhar o ritmo de transformação do mundo em que vivemos. Isso inclui ser um leitor crítico e atento das notícias científicas divulgadas de diferentes formas: vídeos, programas de televisão, sites da internet ou notícias de jornais.” Os trechos selecionados pelos cinco professores têm como tema o ensino contextualizado, sendo que três destacam ainda, trechos que criticam o ensino propedêutico baseado na memorização ou no uso de fórmulas sem significado para o aluno e distantes do seu mundo vivencial. Cumpre-se destacar que diante de um documento com nove páginas, alguns professores selecionaram o mesmo trecho, conforme destacado na tabela em cores iguais. O Quadro 3 permitiu-nos observar uma uniformidade entre os trechos selecionados pelos professores de Física investigados, apesar de atuarem nas diferentes regiões do país. Todos elegeram a crítica ao ensino tradicional (ainda que dois professores, apenas implicitamente) e a defesa do ensino contextualizado para dissertarem em suas justificativas. A partir do Quadro 3, não seria difícil prever que as perspectivas enunciadas estariam relacionadas ao ensino contextualizado. Além de se apropriarem de temas semelhantes, essas perspectivas silenciam-se em relação a outros aspectos mencionados nos trechos destacados, como por exemplo, cidadania, leitura crítica da mídia e a todos os outros aspectos que estão no restante do documento, não selecionados pelos professores, como por exemplo, a menção feita ao final do documento, à abordagem CTS. Porém, é na justificativa de determinada escolha, que se materializa a apropriação em si na medida em que o autor preenche de significado termos, conceitos e ideias não detalhados pelo documento, empregando assim à palavra do outro – o documento - seu próprio tom valorativo, sua própria intenção, seu próprio acento. Sua apropriação é feita por meio do diálogo com uma cadeia particular de enunciados, com o contexto extraverbal e com o seu contexto individual. Na medida em que o dispositivo utilizado permitiu descrever detalhadamente vários aspectos da apropriação dos PCNEM (Quadro 4) que estavam imbricados na construção de cada perspectiva, pudemos ver semelhanças e diferenças entre elas, no que diz respeito a vários aspectos que estão ligados às questões de pesquisa. Quadro 4: Síntese dos principais aspectos da apropriação dos PCNEM pelos professores Principais aspectos da apropriação Posicionamen to em relação ao documento Intenções Prof Sudeste Prof Sul Prof Nordeste Prof Norte Aceitação Prof CentroOeste Aceitação Aceitação Aceitação Criticar as propostas dos PCNEM na medida de suas impossibilidades de implementação, especialmente do ensino contextualizado – que é aceito e desejado pelo professor Criticar o ensino preparatório exclusivo para o vestibular e distanciado do mundo vivencial do aluno e a formação inicial deficiente, que treina os professores a fazer contas Chamar os professores à responsabilidade de formação em ensino de Física que considere o mundo vivencial de seus alunos e que esse aprendizado em Física seja capaz de traçar soluções para melhoria da Valorizar o ensino que propicie a construção de conhecimen to, que se inicia a partir dos conhecimen tos prévios dos alunos, que aproximou Apontar o ensino contextualiz ado como imprescindí vel ao ensino de Física Aceitação Concepção de currículo Posicionamen to em relação ao currículo nacional Prescritiva Prescritiva qualidade de vida desses alunos. Prescritiva Não há Não há Não há do mundo vivencial Prescritiva Prescritiva Não há Não há A partir das análises realizadas, é inegável que os enunciados dos professores investigados apresentam uma perspectiva favorável em relação aos PCNEM de Física. Todos os professores se manifestaram favoráveis aos PCNEM, se apropriando da crítica que o documento faz ao ensino propedêutico, como se estivessem ‘vestindo a carapuça’. Além de concordarem com a crítica, concordam com o principal caminho apontado pela legislação: o ensino contextualizado. Embora nem sempre explicitem a palavra contextualização, todos os professores aproximam a expressão mundo vivencial do ensino contextualizado, operando praticamente uma relação de identidade entre ambos, sentido aparentemente desejável do ponto de vista do documento. Ainda em consonância com este sentido, o Professor Centro-Oeste o esclarece aproximando-o dos conhecimentos prévios trazidos pelos alunos, etapa considerada por ele, imprescindível para a construção do conhecimento. Entretanto, o Professor Nordeste vai bem além dessa aproximação, entendendo a consideração do mundo vivencial como alternativa para auxiliar no desenvolvimento de soluções para a melhoria da qualidade de vida das pessoas. Ao demonstrarem uma posição de aceitação das orientações dos PCNEM, os professores investigados desconsideraram em seu discurso as perspectivas trazidas na Problemática e Revisão da Literatura do presente estudo, tais como as relações de poder implicadas no currículo; a relação entre o currículo e a submissão ao mundo produtivo; a contextualização enquanto ferramenta para se atingir ao eficientismo social, o questionamento sobre a seleção de conhecimentos que compõem um currículo nacional, as implicações da implementação de um currículo nacional, etc. As críticas levantadas pelos professores são de outra natureza, se relacionando principalmente às dificuldades de implementação das propostas oficiais pelos professores e não diretamente ao teor do documento. Na medida em que desconsideram as perspectivas críticas, o discurso desses professores acaba por legitimar o conteúdo dos PCNEM; a concepção do currículo como prescrição; o conteúdo mínimo nacional; e as relações de poder existentes no currículo, o que não os deixou que se assumissem enquanto intelectuais transformadores. Em relação à composição e ao estilo dos enunciados, observamos que, ao optarem pelo emprego dos pronomes pessoais da primeira pessoal do singular – eu – e da primeira pessoa do plural – nós –, mesmo considerando que os mesmos não coincidem com o autor-pessoa, estes professores não se omitiram ao expressar suas perspectivas sobre os PCNEM. As principais divergências encontradas dizem respeito às intenções de cada professor ao utilizar, principalmente, os conceitos de contextualização e mundo vivencial. O potencial do referencial discursivo bakhtiniano permitiu um escrutínio detalhado da perspectiva de cada professor e revelou deslocamentos importantes na apropriação do conceito de contextualização, da mesma forma em que outros referenciais discursivos utilizados recentemente por autores da área de currículo (como por exemplo, Basil Bernstein, Stephan Ball e Ernesto Laclau) têm possibilitado. O Professor Nordeste tem como principal intenção chamar os professores à responsabilidade de formação em ensino de Física que considere o mundo vivencial de seus alunos e que - conjuntamente com outras áreas das Ciências – esse aprendizado em Física seja capaz de melhorar a qualidade de vida desses alunos. Assim, o professor se apropria e preenche de forma muito mais ampla e abrangente o conceito de mundo vivencial que possivelmente os autores do documento quiseram significar: ele vai além do documento, chamando justamente a responsabilidade dos professores em resolver problemas sociais desse mundo vivencial e conseguir melhorar a qualidade de vida das pessoas. A perspectiva do professor vai além de apenas concordar com o documento – o que é feito em todo o enunciado - atribuindo a contextualização papéis muito mais abrangentes e relevantes, como a do letramento e alfabetização científica e a possibilidade de melhoria da qualidade de vida de todos. O Professor Centro-Oeste, de uma maneira geral, tem por objetivo principal valorizar o ensino que se inicie a partir do conhecimento do aluno, que aproximou do mundo vivencial, enfatizado no documento. Cabe destacar que a partir do seu enunciado, podemos supor que o professor preenche o sentido de mundo vivencial – contextualizado – a partir de uma consideração dos conhecimentos prévios trazidos pelos alunos: aproxima o mundo vivencial de uma noção cognitivista de ensino. O professor também mostra uma apropriação do termo desenvolvimento de habilidades embora em nenhum dos trechos selecionados houvesse menção a tal termo. O Professor Sul tem por intenção principal dirigir críticas ao ensino de Física excessivamente matemático e descontextualizado. Na perspectiva do professor não há outra saída para o ensino de Física a não ser a de abranger o cotidiano. O professor faz referência explícita ao termo contextualizar e o integra ao termo interdisciplinaridade – que não é citado em todo o documento – para possibilitar a construção do conhecimento. Embora utilize os trechos dos PCNEM para apoiar sua concepção de ensino contextualizado com o qual concorda, o professor não entende o documento como doador de respostas aos seus questionamentos sobre como empreender tal ensino. Esta perspectiva parece se alinhar com a crítica apontada na Revisão da Literatura do presente estudo em que, muito embora o documento tente se afastar do ensino propedêutico e apontar o mundo vivencial do aluno como alternativa, ainda há fortes traços deste ensino propedêutico no texto do documento, não oferecendo subsídios aos professores sobre como tornar o ensino, de fato, significativo e próximo da realidade do aluno. O Professor Sudeste concorda com as orientações do documento, porém a elas dirige crítica quanto às possibilidades de implementá-las – especialmente a implementação de um ensino de fato contextualizado que é aceito e desejado pelo professor. Assim, seu enunciado é marcado por afirmações que se alinham a uma perspectiva de que as propostas dos PCNEM são muito ambiciosas para a realidade na maioria das escolas. Também parece claro em seu enunciado que o professor não assume o texto do PCNEM como um discurso de autoridade, mas aponta que a própria maneira em que as orientações são colocadas no documento lhe confere um caráter de obrigatoriedade. O professor considera o documento como de qualidade elevada e, sendo assim, sua perspectiva não é de posicionar contra o conteúdo dos PCNEM, mas de apontar as dificuldades de implementá-lo, em consonância com a tendência das pesquisas na área de ensino de Ciências. Embora utilize trechos que fazem referência à construção do conhecimento e competências adquiridas, o professor não faz menção a elas em suas justificativas, corroborando ainda mais sua principal perspectiva construída, essencialmente, a partir das dicotomias entre que é proposto versus o que é possível. Assim, de uma maneira geral, permanece sua perspectiva de que documento por si só – embora eleito como um parâmetro de qualidade – não basta para que o ensino de Física sofra melhorias significativas. A perspectiva do professor Sudeste também opera um deslocamento de sentido em relação a uma expressão usada no documento. Na medida em que os PCNEM não explicitam o que vem a ser a deformação estrutural do ensino de Física, o professor preenche seu sentido como sendo relacionada à sua origem e à forma como o ensino de física foi concebido. O Professor Norte apropria-se dos PCNEM para dirigir suas críticas ao ensino que visa exclusivamente ao vestibular, que coloca em plano secundário a formação de jovens capazes de relacionar criticamente o ensino de Física ao seu mundo vivencial e a formação inicial deficiente, que treina os professores a fazer contas. Para o professor, o planejamento de ensino em consonância com a característica que destaca dos PCNEM a inclusão da contextualização, que embora o autor-criador não tenha citado diretamente se alinhe com os temas destacados - seria desejável e capaz de formar cidadãos críticos. Nessa perspectiva, o ensino de acordo com os PCNEM teria qualidade superior ao ensino que visa a preparar exclusivamente para ao vestibular. O professor também atribui fundamental importância à formação continuada, formal ou informal - através de livros e artigos publicados - onde se obtém subsídios de implementar estas políticas e, assim, suprir a deficiência da formação inicial. Neste sentido, seu enunciado se alinha com propostas direcionadas à formação do professor de Física comumente encontradas na produção da área de ensino de Ciências, levantadas na revisão da literatura. 6.2 Discussão e considerações finais Os professores autores-criadores dos enunciados analisados têm em comum o fato de terem participado de um mesmo curso a distância sobre os PCNEM de Física, considerado como contexto extraverbal. Por outro lado, se consideramos os contextos individuais, observamos que os professores têm idade, formação e tempo de magistério diferentes, além de atuarem em escolas públicas que pertencem a diferentes regiões da federação. Ainda que não haja uma relação de identidade entre os autores-criadores e autores-pessoa, não se pode negar a influência do autor-pessoa no ato da criação do enunciado, como já foi abordado no Quadro Teórico Metodológico. A partir da análise realizada, não foi possível identificar marcas explícitas dos contextos individuais dos professores – região do país e Estado a que pertencem, tempo de formação, tempo de magistério, idade, etc. – em seus enunciados, que pudessem nos remeter a alguma relação entre este contexto e a perspectiva do professor autor-criador. Assim, apesar das diferenças regionais – os IDEB das regiões do Brasil variam de 4,1 a 3,3 e os dos Estados variam entre de 3,9 a 3,4 – não foi possível identificar, por exemplo, o quanto estas diferenças impactaram as diferentes significações de termos presentes nos PCNEM assumidas por alguns professores autores-criadores, embora também não seja possível afirmar que esses diferentes contextos estão completamente apartados do enunciado. Também apesar das diferenças individuais entre os professores, foi observada a aceitação acrítica do documento em todas as perspectivas. Uma hipótese para explicar tal convergência poderia estar na forma como eles construíram a imagem do seu destinatário suposto: no momento em que os tutores pertencem a uma instituição federal pode parecer ao professor que o discurso oficial – os PCNEM – é considerado pelos tutores com válido e desejável. Levando-se também em consideração que esta foi, de fato, a primeira atividade formal do curso, é coerente pensar que os professores pudessem não sentir totalmente à vontade para dirigir críticas ao documento. Porém, esta é apenas uma suposição, pois outras imagens podem ter sido construídas por eles, como por exemplo, a de que um curso de extensão mediado por pesquisadores em educação em ciências poderia configurar um contexto favorável à discussão e à crítica. Mesmo lembrando que o destinatário suposto é considerado como co-autor do enunciado, é a imagem do destinatário real que está em jogo. A apropriação acrítica do ensino contextualizado também aponta para uma sintonia com as pesquisas realizadas no ensino de Ciências, já que muitos dos trabalhos fazem menção e enaltecem o ensino contextualizado e, assim, os aspectos metodológicos do ensino de Física como sinalizado em mapeamento recentemente realizado por Rezende et al, (2009). Não se trata de rejeitar por completo o ensino contextualizado, mas entender que este não deveria ser o único aspecto a ser valorizado e considerado redentor de todos os males do ensino de Física, como já salientado por Ferraz et al., (2010a). O silêncio em relação à formação do cidadão e sua inserção na sociedade, os objetivos do atual currículo e sua relação com o mercado de trabalho, a quem se pretende formar, ao papel do professor enquanto intelectual transformador e não apenas enquanto técnico que implanta propostas curriculares são apenas alguns exemplos que poderiam trazer a perspectiva do professor para um viés mais crítico, problematizando-as e relativizandoas a partir de outros fatores que não a mera consideração do mundo vivencial do aluno na sua prática pedagógica. Este silêncio molda igualmente a perspectiva dos professores autores-criadores e acentua a preocupação metodológica excessiva que visa meramente à transposição didática dos conteúdos exigidos pelo currículo, deixando de fora o questionamento sobre por que se tem este currículo e não outro. Buscando investigar as relações entre os contextos regionais e as perspectivas expressas pelos professores investigados, encontramos no trabalho de Carvalho, R. (2011), uma possibilidade de compreensão. A autora analisou a recontextualização dos PCNEM por professores das ciências naturais de duas escolas públicas, sendo uma com índice do ENEM alto e outra de índice de ENEM baixo e descobriu que na voz dos professores, a contextualização do conhecimento científico assume diferentes significados, condicionados pela realidade socioeconômica e educacional que enfrentam: os professores da escola de alto ENEM usavam a contextualização como um método de ensino, visando à preparação para os exames oficiais, enquanto os professores da escola de baixo ENEM usavam a contextualização para ensinar algo mais significativo para a vida do aluno, como uma espécie de prêmio de consolação. Assumindo que quatro dos professores investigados no presente estudo atribuíram ao conceito de contextualização o sentido de método de ensino, visando melhorar a aprendizagem de Física, seria possível afirmar que eles compartilham a perspectiva dos professores da escola de alto ENEM estudados por Carvalho (2011) e que apenas um professor, que assume um sentido mais amplo para o conceito de contextualização, relacionando a este conceito o caminho para a melhoria da qualidade de vida da população, assume perspectiva semelhante aos professores das escolas que enfrentam realidades educacionais adversas. Caberia aqui um futuro estudo, incluindo novos dados relevantes partindo desta hipótese. Estas e outras questões poderão ser investigadas dando-se continuidade à análise, ampliando o corpus com os enunciados dos demais professores que participaram do curso, e assim, aumentando a diversidade de contextos regionais e individuais. Juntando as perspectivas desses professores a respeito dos PCNEM de Física às já identificadas, teremos mais elementos para aprofundar a compreensão da homogeneidade aparente encontrada no presente estudo e dialeticamente virmos a compreender a possível heterogeneidade entre perspectivas docentes que possivelmente venha a caracterizar o conjunto mais amplo. REFERÊNCIAS ABREU, R. G.; GOMES, M. M.; LOPES A. C. (2005) Contextualização e tecnologias em livros didáticos de Biologia e Química. Investigações em Ensino de Ciências, v. 10, n. 3, p. 405-417 AMORIM, M. (2002) Vozes e silêncio no texto de pesquisa em Ciências Humanas. Cadernos de Pesquisa, 116, pp.7–19. APPLE, M. (1994) A política do conhecimento oficial: faz sentido a ideia de um currículo nacional? In: MOREIRA, Antonio Flavio e SILVA, Tomaz Tadeu (Orgs). Currículo, cultura e sociedade. São Paulo: Cortez, p. 59-92 APPLE, M. (1994b) Repensando Ideologia e Currículo In: MOREIRA, Antonio Flavio e SILVA, Tomaz Tadeu (Orgs). 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