Aspectos Elementares da Geometria de um Espaço Normado: A definição de “ângulo” entre dois vetores José Carlos CIFUENTES∗ Josué Ervin MUSIAL† Chamemos de E um espaço vetorial real onde está definida uma distância d. Por simplicidade consideraremos E = R2 . Uma distância vetorial em E será uma função d : E × E −→ R (a, b) 7−→ d(a, b), onde d(a, b) é interpretada como a distância de a até b, satisfazendo: i) d(a, b) ≥ 0; ii) d(a, b) = 0 ⇔ a = b; iii) d(a, b) = d(b, a); iv) desigualdade triangular: d(a, b) ≤ d(a, c) + d(c, b); v) invariância por translações: d(a + c, b + c) = d(a, b); vi) homotetia: d(ta, tb) = |t|d(a, b), para t ∈ R. Essas propriedades caracterizam uma norma em E através da fórmula ||x|| = d(x, 0). Na verdade, prova-se que a noção de “norma” e a noção de “distância vetorial” são equivalentes. De fato, dada uma norma || . ||, a distância vetorial correspondente é dada por d(x, y) = ||x − y||. Exemplos em R2 são as p-normas: Seja p ∈ R, p ≥ 1, então, para x = (x1 , x2 ), define-se 1 kxkp = (|x1 |p + |x2 |p ) p . Para p = 2 temos a norma Euclidiana, e para p = 1 temos a norma soma. Por outro lado, todo produto interno determina uma norma e, portanto, uma distância vetorial. Com efeito, q ® ® dado o produto interno . , . , definimos a norma mediante kxk = x, x , como no caso Euclidiano. Em contrapartida, nem sempre uma norma provém de um produto interno. Por exemplo, prova-se que para p 6= 2, a p-norma não ® provém de um produto interno. A fórmula x, y = a(x1 y1 ) + b(x1 y2 + x2 y1 ) + c(x2 y2 ), para x = (x1 , x2 ) e y = (y1 , y2 ) e a > 0, c > 0 e b2 ≤ ac, determina a forma geral de um produto interno em R2 . Então, podemos definir a norma correspondente da seguinte maneira: q ´ 12 ® ³ kxk = x, x = ax21 + 2bx1 x2 + cx22 . Assim, podemos generalizar o conceito de “circunferência”. Fixemos uma norma k.k qualquer em R2 (ela pode ou não provir de um produto interno). Nesse caso, a circunferência com centro na origem e raio r > 0 é definida por Cr = {x ∈ R2 ; kxk = r}. Podemos escolher como centro a origem, pois a distância vetorial que essa norma determina, é invariante por translações. Somos assim motivados a olhar para a noção de ângulo Euclidiano que “pode” ser definido a partir da noção de distância Euclidiana. É o conceito de radiano que estabelece a relação ı́ntima entre ângulo e distância. Por exemplo, na geometria grega o quociente entre o comprimento de arco s e o raio r da circunferência é constante. Esse quociente define o valor do ângulo em radianos. Se chamamos de θ aquele ângulo, podemos definir medida de θ = rs radianos. Figura 1: O quociente entre o comprimento da circunferência Euclidiana c e seu diâmetro d ou o quociente entre o comprimento da semicircunferência e o raio, é a constante π(≈ 3, 1415962...). ∗ Professor do Departamento de Matemática da Universidade Federal do Paraná - UFPR. E-mail: [email protected]. do Grupo PET/Matemática (Programa de Educação Tutorial) do Curso de Matemática da E-mail: [email protected]. † Bolsista UFPR. O comprimento de um arco s de circunferência pode ser calculado através de uma integral, onde ainda a noção de base é a distância entre dois pontos. Se z(t) = (x(t), y(t)) com a ≤ t ≤ b, então, o comprimento l é dado por: Z b Z b Z bp l= kz 0 (t)kdt = k(x0 (t), y 0 (t))kdt = x0 (t)2 + y 0 (t)2 dt, a a a onde k.k é a norma Euclidiana. Pergunta: Pode ser definido “ângulo” desse mesmo modo substituindo o distância Euclidiana por uma outra distância vetorial qualquer? Para responder a pergunta anterior, formularemos o nosso problema central em sua forma mais geral. Vimos que no caso Euclidiano a definição de ângulo (em radianos) depende de serem satisfeitas duas condições: i) A possibilidade de medir o comprimento de um arco de “circunferência”, e ii) A constatação de que o quociente de um arco qualquer de circunferência ao raio (ou ao diâmetro) correspondente é constante. cr Nesse caso, se d é uma distância vetorial, o valor π(d) será definido pelo quociente π(d) = 2r , onde cr é o c1 comprimento da circunferência toda. Em particular, π(d) = 2 (tomando r = 1). O “comprimento” cr (para as diversas distâncias vetoriais) deve ser calculado através da integral dada acima usando a norma correspondente. Caso de uma Norma que Provém de um Produto Interno p Vimos que a forma geral é dada por k(x, y)k = ax2 + 2bxy + cy 2 . Nesse caso, a circunferência de centro O e raio r é dada por: Cr = {(x, y) ∈ R2 ; ax2 + 2bxy + cy 2 = r2 }, cujo gráfico é uma elipse centrada em O. Figura 2: Por simplicidade suporemos b = 0 (se b 6= 0 a elipse é rotada). Observa-se que a elipse ax2 + cy 2 = r2 é simétrica a respeito dos eixos x e y. Portanto, o comprimento cr da elipse toda, ou seja, da “circunferência” na norma dada, é 4s onde s é o comprimento do arco correspondente ao primeiro quadrante. Esse arco pode ser expresso através da seguinte parametrização: z(t) = ( √ra cost, √rc sent), t ∈ [0, π2 ], donde, Z π 2 s= 0 Z kz 0 (t)kdt = 0 π 2 r r rπ r a(− √ sent)2 + c( √ cost)2 dt = . 2 a c cr Daı́ cr = 4s = 2πr, donde π(d) = 2r = π o qual é o mesmo valor Euclidiano. O resultado anterior significa que esta forma de medir ângulo a partir da norma coincide com a forma dada pelo produto interno! Caso em que a Norma não Provém de um Produto Interno 1 Aqui analisaremos somente o caso das p-normas k.kp (p ≥ 1) onde k(x, y)kp = (|x|p + |y|p ) p . A “circunferência” de centro na origem e raio r é dada por: Cr = {(x, y) ∈ R2 ; |x|p + |y|p = rp }. Figura 3: (p = 1) Observa-se que essa “circunferência” também é simétrica a respeito dos eixos x e y. Nesse caso, o arco correspondente ao primeiro quadrante é dado através da função: 1 y = (rp − xp ) p , x ∈ [0, r]. Portanto, 1 z(t) = (t, (rp − tp ) p ), t ∈ [0, r], daı́, Z r s(r) = Z r kz 0 (t)kp dt = " µ 1+ 0 0 tp r p − tp ¶p−1 # p1 dt. Prova-se que I(r) = s(r) r = s(1) = I(1). Nestes termos, o valor π(d) correspondente, que denotaremos por πp é: 4s(1) c1 = =2 πp = 2 2 Z 1 " µ 1+ 0 tp 1 − tp ¶p−1 # p1 dt. Uma das grandes dificuldades encontradas foi o cálculo do valor de πp , fixado um p ≥ 1, analiticamente. Uma aproximação numérica para este valor foi dada através de um algoritmo que nos possibilitasse fazer este cálculo computacionalmente. Se p aumenta indefinidamente o valor de πp converge para 2, ressaltando ainda que para p = 1 temos π1 = 4 e para p = 2 temos π2 = π, neste último caso o mesmo valor que no caso Euclidiano. Figura 4: Um outro resultado importante, e que nos levou a uma surpresa, é o seguinte. Definindo “reta” como no caso Euclidiano, isto é, como o lugar geométrico dos pontos que satisfazem uma equação do 1◦ grau ax + by + c = 0, e considerando três pontos não colineares em R2 e três retas que passam por estes pontos, temos que estas retas delimitam um triângulo. Daı́ resulta o seguinte: A soma dos “ângulos internos” de um triângulo qualquer é igual ao valor de π(d) correspondente à norma dada, o que pode ser visualizado pela figura abaixo: Figura 5: Na figura anterior, os ângulos α, β e γ do triângulo dado, são transladadas à origem usando a invariança por translação da norma, e, no caso do ângulo β, usa-se a propriedade de ângulos opostos pelo vértice serem iguais, decorrente da propriedade || − x|| = ||x|| da norma, para obtermos que α + β + γ = π(d), o valor de dois ângulos retos na norma correspondente. O teorema Euclidiano da soma dos ângulos internos de um triângulo ser igual a dois ângulos retos é satisfeito, mesmo que a norma não seja a Euclidiana!