Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicopatologia e Subjetividade IPUB/UFRJ PSICOPATOLOGIA E ESPIRITUALIDADE Iraneide Castro de Oliveira “as dimensões religiosas e espirituais da cultura estão entre os mais importantes fatores que estruturam as crenças, os valores, os comportamentos e os padrões de adoecimento humanos, ou seja, a experiência humana.” Psicopatologia e Espiritualidade “apesar disso, a psiquiatria em seus sistemas diagnósticos bem como em sua teoria, pesquisa e prática, tende a ignorar ou a considerar patológicas as dimensões religiosas e espirituais da vida.” (Lukoff D; Lu F; Turner R. – Toward a more culturally sensitive DSM-IV.: Psychoreligious and psychospiritual problems. J Nerv Ment Dis.180 (11): 673-82, 1992). Psicopatologia e Espiritualidade A American Psychiatric Association (APA) reconheceu em 1999 que os psiquiatras necessitam de um conhecimento básico de assuntos religiosos e espirituais e mudou sua conduta de abordagem e tratamento, entendendo a importância do assunto. Seguindo a mesma linha, promoveu-se uma reforma curricular nas residências médicas nos Estados Unidos. Um terço das faculdades de medicina americanas oferecem cursos sobre religião e espiritualidade. Psicopatologia e Espiritualidade “A religião é, seguramente, um objeto de investigação dos mais complexos, posto que, como fenômeno humano, é, a um só tempo, experiencial, psicológico, sociológico, antropológico, histórico, político, teológico e filosófico ... implica abordagens e dimensões várias e de distintas espécies da vida coletiva e individual. Ela é, não se pode negar, fenômeno humano de decisiva centralidade e de complexidade incontornável.” (Dalgalarrondo, P. 2008) Psicopatologia e Espiritualidade “A distinção entre os estados religiosos e estados psicóticos vem recebendo uma atenção notável na literatura científica atual. Publicações recentes propõem que esta distinção deve levar em conta a avaliação subjetiva das próprias experiências pelo sujeito, e os resultados de suas ações. Outras, levam em conta o contexto para o processo de avaliação das experiências religiosas. Psicopatologia e Espiritualidade Há, no mundo contemporâneo, mais de 2000 religiões “mundiais” diferentes e mais de 10000 seitas locais (Centro Apologético Cristão de Pesquisa, 2003) Psicopatologia e Espiritualidade Haveria algo comum ou universal em toda a experiência religiosa? Psicopatologia e Espiritualidade Para Rudolf Otto (O sagrado, 1917, 1992), o caráter específico do fenômeno religioso seria a contraposição de duas dimensões da vida: a sagrada e a profana. A essência da experiência religiosa seria “numinosa”. Psicopatologia e Espiritualidade Religião: “um sistema solidário de crenças e práticas que unem em uma mesma comunidade moral chamada igreja, a todos que aderem a ela” Durkhein (As formas elementares da vida religiosa,1912, 1978), Psicopatologia e Espiritualidade Religiosidade – Espiritualidade O uso desses conceitos vem ganhando espaço na literatura científica em geral e nos estudos em saúde de modo específico. Religiosidade e espiritualidade seriam dimensões mais amplas e mais independentes de denominações e formas institucionalizadas específicas de religião. Para alguns autores, embora constituam campos semânticos sobrepostos, podem ser usados de forma diferenciada. A religiosidade inclui crenças pessoais, tais com um Deus ou poder superior, assim como crenças e práticas institucionais como a freqüência a cultos e o compromisso com um sistema doutrinário de uma igreja ou religião organizada. A espiritualidade tem sido mais utilizada como um constructo com dimensão mais pessoal e existencial, tais como a crença (ou uma relação com) Deus ou um poder superior. Psicopatologia e Espiritualidade O indivíduo e a religião: Sigmund Freud (1856-1939): A religião é vista como uma ilusão infantil, um sistema de defesa socialmente construído que permite ao homem lidar com sua condição fundamental de desamparo e com seus intensos sentimentos ambivalentes direcionados à figura paterna. Freud é colocado no campo dos autores que vêem a religião como uma forma de ilusão a ser superada. A religião em Freud é a expressão do modo como os homens lidam com o pai, com a imago paterna, seu desamparo constitutivo e sua profunda ambivalência em relação a essa figura. O pai poderoso, dominante, protetor, onipotente, punitivo, odiado, vítima do ódio dos filhos, redentor. Psicopatologia e Espiritualidade Carl Gustav Jung (1875 – 1961) A noção de religiosidade como elemento natural do psiquismo humano é considerada uma característica fundamental de sua concepção sobre religião. Ela é vista como parte constitutiva e essencial da natureza própria do homem, sendo um aspecto dos mais antigos e universais do psiquismo. A função religiosa é tão poderosa, como o instinto do sexo e da agressão. Para Jung, é no inconsciente coletivo que a experiência, os sofrimentos e os aprendizados de milhares de gerações estão de alguma forma armazenados, compactados e potencialmente disponíveis no psiquismo de cada indivíduo. É nesse inconsciente coletivo que se encontram os arquétipos, conjuntos de categorias universais, originárias e peculiares da alma humana. Psicopatologia e Espiritualidade Donald Winnicott – (1896 -1961) Formulou conceitos como fenômenos, objetos transicionais e espaço potencial que se relacionam a algumas dimensões essenciais da vida tais como o brincar, a criatividade, a cultura em geral e, em particular, a experiência religiosa. Há uma transição gradual da imersão total do bebê a partir de um primeiro momento de unidade mãe-bebê, passando por estágios de progressiva independência, até o ponto final de aquisição do senso de que há uma realidade exterior, separada do sujeito. A religião, situada no campo transicional, irá lidar com objetos religiosos que não são nem totalmente objetivos nem puramente subjetivos. Esse campo, vinculado a experiências que provêm da primeira infância, permanece vital para a vida adulta. Psicopatologia e Espiritualidade William James (1842 – 1910) Seu estudo sobre religião não esta focado em considerações teóricas, filosóficas ou conceituais, mas, sobretudo, na experiência concreta. Concentrou-se nos “estados mentais” que a religião incita em pessoas. É a experiência vivida do indivíduo perante a dimensão religiosa e suas variedades que se tornará o tema de seu estudo. Para ele, há uma distinção fundamental entre religião institucional e religião pessoal, ou seja, entre teologia, ritual e organização eclesiástica, e aquela experiência de homens que se envolvem na arte de obter o favor dos deuses. Seu foco será as disposições internas dos homens, sua consciência, sua impotência perante a vida, seu sentimento de incompletude. Define religião como “os sentimentos, os atos e as experiências dos indivíduos na solidão de sua alma, na medida que se relacionam com qualquer coisa que possa considerar-se como divina” Psicopatologia e Espiritualidade Para W. James a experiência mística e a insanidade surgem do mesmo “nível mental” onde “ serafins e serpentes convivem lado a lado”. Haveriam características comuns para ambos os estados tais como “um senso de importância inefável” em eventos como vozes, visões, o controle por poderes externos. Nos primeiros as emoções dominantes são positivas, benevolentes e nos últimos as emoções são negativas e os significados e poderes malévolos. A estratégia empregada para dar suporte a esta noção foi a de considerar os ‘frutos da experiência religiosa”. Os frutos positivos são um indicador de sua origem divina e servem para separá-las das experiências associadas ao que ele denominou “insanidade” Psicopatologia e Espiritualidade Phillipe Pinel (1745-1826): No seu Traités médico-philosophique sur l’alenations mentale ou La manie em 1801, aponta os excessos religiosos como fatores relevantes na gênese da alienação mental. Segundo ele, para tratar os acometidos da loucura religiosa, é necessário retirar de suas vidas todos os elementos religiosos, os objetos relativos a cultos, toda pintura e todos os livros que lhes lembrem religião. Esquirol (1838): no seu Maladies Mentales afirma que os monomaníacos religiosos (théomanie, delire sacré) são aqueles delirantes que crêem que têm uma missão celeste, acreditam-se profetas, estão em comunicação com Deus, com o céu, com os anjos. A monomania religiosa seria uma exacerbação patológica de determinados traços presentes na maior parte das pessoas, que as conduzem a uma peculiar organização patológica que os afasta de uma vida razoável e saudável. Psicopatologia e Espiritualidade Emil Kraepelin (1856 – 1926): no seu tratado Lehrbuch der Psychiatrie, nos capítulos relativos à demência precoce, à parafrenia e à loucura maníaco-depressiva, há inúmeras descrições de pacientes cujos sintomas principais eram marcados pelos conteúdos religiosos. De Sanctis (1862 - 1935): Sua obra de 1927 La conversione religiosa: studio bio-psicológico apresenta um capítulo onde compara as visões, as vozes e as revelações nos místicos e nos loucos. Para ele, os visionários da história não são alienados. Numa religião por excelência de revelações e visões como o cristianismo, as visões dos religiosos são marcadas por um ”estado de fé”. Fantasia e fé são a substância da maior parte das visões e das audições místicas, o que difere bastante das alucinações dos psicóticos, que são preenchidas por conteúdos religiosos. Crença e fé são estados de consciência normais. Psicopatologia e Espiritualidade Kurt Schneider (1887 – 1967) – publicou um livro inteiramente dedicado as suas pesquisas sobre psicopatologia e religião (Schneider, 1928). Nessa obra ele descreve, detalhadamente, as principais entidades nosológicas divisadas pela psicopatologia européia da época, como os domínios da vida religiosa e da doença mental se entrelaçam. Karl Jaspers (1883 – 1969): no seu livro Algemeine Psychopathologie (Psicopatologia Geral) instruiu a pesquisa psicopatológica no rigor do pensamento filosófico e demarcou o território da psicopatologia como ciência da patologia mental. Para Jaspers, assim como para Kraepelin e Schneider, os diferentes tipos nosológicos apresentam formas diferenciadas de experiência religiosa. Segundo ele, existem conexões entre o religioso e o psicopatológico. Personalidades importantes na história das religiões revelam aspectos de anormalidade psicopatológicas. Psicopatologia e Espiritualidade A Distinção entre fenômenos religiosos e psicopatológicos Segundo Andrew Sims (1995), psicopatologista inglês, os delírios religiosos, muito freqüente no séc. XIX, continuam a ser observados na prática clínica atual. Destaca que, embora muitas crenças religiosas possam parecer extremamente bizarras e diferir muito das concepções do senso comum ou dos profissionais de saúde, nem por isso devem ser consideradas patológicas ou delirantes. Para diferenciar crenças e experiências religiosas incomuns e delírio religioso, ele propõe: Psicopatologia e Espiritualidade 1.Tanto a experiência subjetiva do indivíduo como seu comportamento observável devem ser mais compatíveis com conhecidos sintomas psiquiátricos de doenças mentais reconhecíveis; isto é, o quadro todo condiz mais com doença mental do que com experiência religiosa. Há outros elementos e sintomas reconhecíveis de transtorno mental também presentes, em outras áreas da vida do sujeito, além do delírio; por exemplo, constatam-se alucinações, humor alterado, alterações do pensamento, etc. 2. 3. O estilo de vida, o comportamento e a direção dos objetivos do indivíduo são , de forma mais consistente, voltados para uma história de transtorno mental do que para experiências culturais pessoalmente enriquecedoras de conteúdo religioso. Psicopatologia e Espiritualidade “As experiências espirituais se bem vindas ou não, se psicóticas ou não na forma, não têm nada haver (diretamente) com a medicina. Seria muito equivocado “tratar” as experiências psicóticas espirituais com drogas neurolépticas, da mesma forma que tratar dissidentes políticos como doentes ...” Jackson e Fulford (1997) Psicopatologia e Espiritualidade Diferenciação entre experiências espirituais e sintomas psicopatológicos Características Experiências espirituais Sintomas psicopatológicos Conteúdo das vivências Os conteúdos seguem uma doutrina religiosa: são aceitáveis pelo subgrupo cultural. O conteúdo é bizarro; reivindica um status divino ou a posse de poderes especiais. Características das experiências sensoriais (ilusões, alucinações, visões, vozes) Os elementos sensoriais são mais “intelectuais”; são sentidos como “conteúdos mentais”. Os elementos sensoriais são percebidos como “corpóreos”, dão a sensação de serem percepções reais. Modalidade sensorial das vivências Predominantemente alucinações e ilusões visuais. Predominantemente alucinações auditivas. Grau de certeza das vivências As crenças se formam com a possibilidade da dúvida. As crenças são “incorrigíveis”. Geralmente há certeza absoluta. Insight As vezes insight presente, às vezes ausente. Freqüentemente insight ausente. Duração da vivência Duração breve. Duração longa. Psicopatologia e Espiritualidade cont. Características Experiências espirituais Sintomas psicopatológicos Controle volitivo Há, por parte do sujeito, um grau de controle e direcionamento sobre as vivências. São experiências vivenciadas sem qualquer controle por parte do sujeito. Orientação em relação a outras pessoas Vivências são orientadas em direção a outras pessoas. Vivências são quase sempre orientadas para si. Significado para a vida do sujeito Sentido de “auto-realização”, experiências que “alargam” a vida, produzem “frutos” espirituais. Experiências geralmente desintegrativas, que produzem a deteriorização do funcionamento vital do sujeito. Positividade/negatividade As vivências têm, de modo geral, sentido “positivo” para a vida do sujeito. As vivências têm, de modo geral, sentido “negativo” para a vida do sujeito. Implicação na “ação” do sujeito São experiências nas quais o sujeito se percebe como “agindo”, produzindo a sua vida. São experiências nas quais o sujeito se percebe “sendo agido”, vive passivamente a experiência. Psicopatologia e Espiritualidade cont. Características Experiências espirituais Sintomas psicopatológicos Relação com outros Sintomas psicopatológicos em outras esferas da vida São experiências “isoladas”, que não se articulam com outros sintomas de transtornos mentais. Geralmente não são vivências isoladas. Ao lado do delírio ou da alucinação mística, há outros sintomas psicóticos. Estilo de vida e de personalidade do sujeito Tanto o estilo de vida como a personalidade do sujeito revelam religiosidade presente e antecedendo a vivência. O estilo de vida e a personalidade indicam alterações e deterioração associadas a transtornos mentais. Comunicação da experiência com outras pessoas Sujeito busca relatar sua experiência para outras pessoas, sobretudo de seu grupo cultural. Sujeito é, geralmente, reticente em relatar e discutir essas experiências. Fonte: Baseado e modificado a partir de Jackson e Fulford (1997) e Sims (1997). Psicopatologia e Espiritualidade “Não se pode fazer uma distinção entre a experiência espiritual e fenômeno patológico (psicose boa ou ruim) apenas pela forma ou conteúdo da experiência. Torna-se necessário considerar o campo do agente da ação. Bom ou mau está relacionado a forma na qual o fenômeno está enraizado na estrutura de valores e crenças pelas quais as ações do sujeito são definidas.” Jackson e Fulford (1997) Psicopatologia e Espiritualidade Elementos presentes no processo: 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. o fenômeno o sujeito o contexto o processo de comunicação a família/parentes/amigos a autoridade religiosa a psiquiatria o resultado das ações. Psicopatologia e Espiritualidade De modo a diminuir o conflito entre que as partes envolvidas é necessário conduzir um processo aberto de comunicação com o objetivo de se alcançar um grau de ressonância lingüística entre as partes envolvidas. Isso é um pré-requisito essencial para uma intervenção respeitosa e não coercitiva. Rashed M. A. (2010) Psicopatologia e Espiritualidade “Nos dias 7 a 10 de janeiro de 1980 vivi momentos interessantes e fantásticos, pois vinha a minha mente revelações para mim sobre a minha pessoa e minha vida. Enquanto não escrevia a idéia num bloco de papel, não conseguia acalmar e trabalhar. Era o início das minhas experiências místicas ou mediúnicas, assunto este sobre o qual nada conhecia. Foi também o início do meu autoconhecimento como um “ser cósmico” ou um “Eu Sou”. Foi o meu nascimento do alto (Jo 3,7).” Psicopatologia e Espiritualidade Religião como sistema de constituição de sentido e ressignificação do sofrimento “não é a felicidade que a teodicéia proporciona antes de tudo, mas significado. E é provável que, nas situações de intenso sofrimento, a necessidade de significado é tão forte quanto a necessidade de felicidade, ou talvez maior. Não resta dúvida de que o indivíduo que padece, digamos, de uma moléstia que o atormenta, ou de opressão e exploração nas mãos de seus semelhantes, deseja alívio desses infortúnios. Mas deseja igualmente saber por que lhe sobrevieram esses sofrimentos em primeiro lugar.” (Berger, 1985) Psicopatologia e Espiritualidade “apesar da ênfase na discussão que a religião se dirige fundamentalmente para a construção de um significado plausível e para o apaziguamento da dor e do sofrimento, sejam eles relacionados à doença, à morte ou à miséria, mesmo sendo tais dimensões fundamentais, a religião não se restringe a essas dimensões e sim para algo mais. Ela visa mais do que fornecer significado e aplacar a dor. Ela responde a um desejo por transcender a vida cotidiana, a uma avidez por mistério, por acolher e ao mesmo tempo ir ao encontro do absurdo de nossa condição.” Dalgalarrondo, P. 2008 Psicopatologia e Espiritualidade Principais fontes consultadas: Dalgalarrondo, P. – Religião, psicopatologia e saúde mental. Porto Alegre: Artmed, 2008 Cavalcanti, M. T. – Fenômeno Religioso e Psiquiatria – aula para o 5º ano da Faculdade de medicina da UFRJ. Rashed M. A. – Religious Experience and Psychiatry: Analysis of the Conflict and Proposal a Way Forward. Philosophy, Psychiatry, & Psychology, vol.17, 3, September 2010, pp. 185-204. Psicopatologia e Espiritualidade