A tarefa da tradução cultural nos manuscritos de trabalho de campo1
Profa. Dra. Maria de Lourdes Patrini-Charlon - UFRN
Resumo
Diante da obra manuscrita de Roger Bastide, um universo de papéis de formatos e espessuras,
tamanhos e cores se abre diante dos olhos do pesquisador. Diversidade mágica de notas numa
multiplicidade de suportes através de cores e traçados variados, entremeadas tantas vezes por
croquis, tabelas e desenhos, esboços que ilustram e registram a vida e os rituais de um povo que
esteve aqui (Brasil), mas que voltou para lá (Benin e Nigéria), a terra dos seus ancestrais. Por
outro lado, o antropólogo, vindo de terras distantes (França), observou-os aqui (Brasil), partiu
também em viagem para estar com eles lá, na África d’Oeste (objeto de estudo do antropólogo),
em 1958. Surpresas, descobertas, mas também dúvidas e inquietações acompanham os gestos
cautelosos do pesquisador que ao se indagar sobre as relações de pertencimento da tradução
cultural se vê frente a um confronto de posições, fronteiras e papéis: entre a tarefa do tradutor, a
tarefa do antropólogo e a do pesquisador. Quem traduz quem? No manuscrito do caderno de
campo tem-se o registro da tarefa do campo onde questões relativas aos sujeitos e aos objetos da
tradução cultural estão expostas na experiência da escritura. E, no resultado da leitura, análise e
interpretação do manuscrito? Nesse caso, o desafio do pesquisador vai além das correlações entre
a tarefa do antropólogo e a do tradutor, ele deve se mobilizar num sentido de mão dupla, onde
estão envolvidas práticas culturais e a tarefa de traduzir tradutor e tradutores.
Palavras-chave: arquivo, escritura de campo, tradução
Sabemos que até muito recentemente o arquivo não significava um objeto de estudo privilegiado
e, na Antropologia, o interesse por tal fonte de pesquisa está dando os seus primeiros passos. Para
o antropólogo o desejo de trabalhar junto aos arquivos é novo, embora a antropologia tem se
mostrado interessada em ter seus arquivos. Na confluência de pesquisas, novos eixos de reflexão
tais como a oralidade e a escrita, escrituras cotidianas, escrituras de si, as relações entre notas de
campo e o texto etnográfico têm chamado a atenção dos antropólogos. O interesse e o retorno aos
documentos e textos fontes 2, revelam talvez a intenção de dar legitimidade à disciplina nessa
área de estudos e, igualmente, de desenvolver novos campos de estudo3.
O material autográfico não é exclusivo dos antropólogos. Exploradores, administradores,
escritores, missionários coletaram dados de populações longínquas, dados de grande interesse. Os
sociólogos, os geógrafos, geólogos e arqueólogos também acumulam materiais de campo.
Entretanto, a antropologia vai com tempo deixar para traz a pesquisa de gabinete e construir sua
identidade enquanto ciência por meio de uma abordagem metodológica. Assim, o trabalho de
1
A tarefa da tradução cultural nos manuscritos de trabalho de campo: “Trabalho apresentado na 26ª. Reunião
Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de junho de 2008 em Porto Seguro, Bahia, Brasil”.
2
No final do século XX, congressos e publicações testemunham a importância dada aos arquivos dos pesquisadores
e o reconhecimento de seu valor patrimonial histórico e científico.
3
Ver trabalhos de: Jack Goody, Clifford Geertz, Daniel Fabre, Nicole Belmont, Paul Zumthor, entre outros.
1
observação do campo surge com mais intensidade e o antropólogo por sua vez passa a assumir
uma ação mais compartilhada, inaugura-se uma participação e uma convivência mais efetiva
entre os informantes nativos e os pesquisadores. Dessa experiência, o trabalho de campo ressurge
com mais intensidade e os diários e ou cadernos de campo, por sua vez, frutos dessa experiência
de observação, produtos escriturais torna-se matéria de interesse e de estudo.
Arquivo: fundos, documentos, suportes
Em se tratando do arquivo da obra autográfica de antropólogos, uma questão logo se impõe:
como nomear esse material? Devemos falar de arquivos antropológicos? De arquivos de
antropólogos? De arquivos de etnólogos? De arquivos de etnógrafos? Todas essas expressões
parecem não nos levar ao mesmo lugar. A pesquisadora Marie-Domenique Mouton, responde a
estas questões ressaltando que: as duas primeiras expressões se referem de forma mais abrangente
ao conjunto dos arquivos produzidos no seio da disciplina e, sobretudo, por pessoas morais
(instituições, laboratórios, associações). As outras duas nos leva de forma explícita, aos
documentos produzidos sobre o campo pelo etnólogo ou etnógrafo, pois “c’est um fait que les
“materiaux du terrain” constituent la part distintive des papiers des etnologues, ce que les
distinguent des papiers des “autres scientifiques”4.
Fazer do arquivo campo empírico e de interpretação é estar diante de uma fonte de informações
inesgotável. É, igualmente, compartilhar de uma experiência singular. A definição de Arlette
Farge, historiadora e renomada pesquisadora dos arquivos judiciários na França, leva-nos a
refletir de forma mais comprometida sobre o arquivo. A estudiosa faz uma alerta enfatizando que
« l’archive ne ressemble ni aux textes, ni aux documents imprimés, ni aux « relations » 5, ni aux
correspondances, ni aux journaux, ni même aux autobiographies. Elle est difficille dans sa
materialité.(p.10) [...] O arquivo, continua a historiadora, “est une brèche dans le tissu des jours,
l’aperçu tendu d’um événement inatendu [...] l’archive agit comme une mise à nu; ployés en
quelques lignes, apparaissent non seulement l’inacessible mais le vivant. [...] Il n’y a pas de
doute, la découverte de l’archive est un manne offerte justifiant pleinement son non : source.
(p.10-11). O arquivo se subdivide em fundos, explica a estudiosa, um conjunto de documentos
sejam eles homogêneos ou simplesmente um conjunto de materiais reunidos doados por um
4
MOUTON, Marie-Domenique. « Archiver la mémoire des ethnologues ». In: Gradiva, n° 30/31, 2001/2002. p.68 (
tradução nossa)
5
Arlette Farge explica em nota : « Les « relations »sont de feuilles volantes imprimées, coportées au XVIIIème siècle
et portant les récits de faites divers, des prodiges et de curiosites diverses. In : Le goût de l’archive. Paris, Seuil.
1989. p.149.
2
particular que detinha sua propriedade (p. 10)6. Os fundos do arquivo compõem-se de conjuntos
de documentos, de formas e suportes variados, eles podem ser públicos ou privados. Os primeiros
contatos com os “fonds d’archives” são sempre surpreendentes e ao mesmo tempo assustadores.
Um universo de papéis de formatos e espessuras, tamanhos e cores se abre diante dos olhos do
pesquisador. Variedade de suportes: folhas volantes, cadernos, carnês, fichas, envelopes, cartões
que abrigam uma diversidade de práticas de escritura. Surpresas, descobertas, mas também
dúvidas e inquietações acompanham os gestos cautelosos do pesquisador diante da variedade de
documentos que exige escolhas e tomadas de direção. Como nomear aquela quantidade ainda
inexplorada de papéis?
O “fonds Bastide” depositado no I.M.E.C. – L’institut des Mémoires de l’Édition
Contemporaine7 – encontra-se organizado em um inventário. Este documento é apresentado ao
pesquisador, desde a sua primeira visita à biblioteca do Instituto. O pesquisador tem diante de si
uma “cartografia” classificatória dos documentos depositados pela família Bastide, incluindo a
obra autográfica do autor.
Diante do inventário da obra manuscrita do “fonds Bastide” uma tarefa se impõe ao pesquisador:
encontrar os cadernos de campo do antropólogo fruto do seu trabalho de observação onde estão
registrados a vida e os rituais de um povo que esteve aqui (Brasil), mas que voltou para lá (Benin
e Nigéria), a terra dos seus ancestrais. Por outro lado, o antropólogo, vindo de terras distantes
(França), observou-os aqui (Brasil), partiu também em viagem para estar com eles lá, na África
d’Oeste (objeto de estudo do antropólogo), em 1958.
Diante do inventário da obra manuscrita do antropólogo, na rubrica NOTES, a categoria Notes
de voyages et de lectures parecia indicar a melhor direção a ser tomada. A palavra “viagens”
talvez nos levasse, senão para resultados, ao menos para algumas pistas... 8
Roger Bastide escrevia e fazia anotações sem levar muito em conta o suporte. Até onde pudemos
pesquisar, fora um ou outro caderno de notas variadas, os únicos cadernos com registros de
observação de campo existentes no “fonds Bastide” são os que se referem à sua viagem à África,
em 1958. Tais cadernos, Bastide os nomeia ora de cahier, ora de carnet, dando distinção apenas
aos dois cadernos/diários, os quais ele nomeia de Mon Journal. É sempre difícil irmos além das
6
FARGE, op. cit., p. 10. (tradução nossa).
Criado em 1988, acolhe documentos de escritores e de pesquisa, organiza colóquios, seminários e publicações com
o objetivo de divulgar esses materiais.
8
Ver os artigos: PATRINI, Maria de Lourdes. Les carnets de terrain de Roger Bastide. In : Cahiers du Brésil
Contemporain. Paris, Maison des Sciences de l’Homme, n°55/56, 2004. p.173-202.
PATRINI, Maria de Lourdes. Práticas da escritura de campo : os cadernos de Roger Bastide. In: Imaginário. Á
fricas. São Paulo, NIME-LABI/Universidade de São Paulo, n°10, 2005/2005. p.305-340.
7
3
descrições quando se trata das escolhas e usos dos suportes. Esta dificuldade persiste mesmo
quando vamos além dos objetos conservados, ou seja, das representações que os autores
possuem dos seus cadernos, carnês e ou diários que abrigam o registro de notas produzido pelo
pesquisador durante o seu trabalho de campo.
Em Témoignages sur le journal personnel,“Cher cahier...”, Phillipe Lejeune emprega a palavra
caderno como sinônimo de diário. Os depósitos de manuscritos das bibliotecas, os arquivos
públicos ou privados, as instituições destinadas à conservação das escrituras pessoais e
profissionais confirmam o emprego freqüente do termo diário e seus termos vizinhos: carnê e
caderno. Os diaristas designam seu diário pelo seu suporte. Os cadernos e os carnês são os
suportes mais comuns dos diários. Entretanto, o caderno e o carnê não são somente um
equivalente metonímico do diário íntimo (Lejeune, 2001, p.16). Ele pode ser também o
laboratório de uma obra futura, instrumento de trabalho e, neste caso, ele não se concentra sobre a
pessoa, mas sobre a gênese da obra9.
E os diários de campo? Eles também se diferem do diário íntimo por se constituírem antes de
tudo e essencialmente um instrumento de trabalho. Entretanto, “les plus belles définitions
constratives sont toujours subverties par l’écriture”, e entre a barreira que separa os diários dos
cadernos e carnês, “ des brèches apparaissent, trop nombreuses et trop grandes pour ne pas
provoquer quelque doute”10. Em ciências humanas, o diário pode ser um procedimento de
trabalho que acompanha a pesquisa, ele fornece base documentária e permite o controle da
implicação na observação e na construção da teoria11.
Quando estamos diante do inventário, mapeamento dos materiais ali depositados, imediatamente
percebemos que estamos frente a um cruzamento de projetos de pesquisa. Cada um deles com
suas hipóteses, objetivos e problemáticas, os quais estarão se confrontando a cada ato de
leitura/escritura, de interpretação/ tradução. Assim, ao se tentar dar visibilidade aos materiais,
olhares se cruzarão; interesses na relevância do objeto de estudo; interlocução dos dados, das
fontes e das vozes dos pesquisadores e dos pesquisados.
9
Ver: Carnets d’enquête, de Zola, Carnets de Travail, de Gustave Flaubert, Cahiers 1894-1914, de Paul Valéry,
Journa,l de Franz Kafka, entre outros.
10
HAY, Louis. L’amont de l’écriture. In : Carnets d’écrivains 1. Paris, Éditions du CNRS, 1990.p.12-13. Citado
igualmente por Françoise Simonet-Tenant. 2001, p.16.
11
Ver: Le jounal d’ethnographe (1914-1920), de B.Malinowski. 1967., Les mots, la mort, les sorts, 1977, Le Journal
d’un livre, 1981, entre outros.
4
Inventário: tradução, tradutores e traduzidos
Entre a obra manuscrita e o inventário há uma dinâmica que é absolutamente estabelecida no
momento da organização, da seleção e da classificação dos documentos. Isso requer do
pesquisador muita atenção, ele deve estar sempre pronto a usar sua experiência para perceber
exatamente onde se encontram os pontos nevrálgicos das relações entre os manuscritos: Quais os
critérios eleitos pelos técnicos que os manusearam? Quais ações foram priorizadas afim de darlhes coerência? Definir o lugar mais adequado para cada um dos documentos é, sem dúvida, o
primeiro desafio para quem vai realizar este trabalho. Chegar a um conjunto no qual cada peça
deve estar em relação estreita com as demais, respeitando o tempo, o espaço, o contexto, a
história dos documentos e a tradição terminológica, significa para o arquivista, tradutor dos
documentos, mais uma prova de bom senso, muita competência e dissernimento.
Logo nas primeiras páginas de Le goût de l’archive, Arlette Farge anuncia que “L’archive
suppose l’archiviste; une main que collectionne et classe [...] elle est en quelque sorte préparée
pour un usage éventuel ». (1989, p.9). O arquivo é um conjunto de documentos, manuscritos ou
não, de formatos e suportes variados cujo cruzamento se efetua “d’une manière organique,
automatique, dans l’exercicie des activités d’une personne physique ou morale privée ou
publique, et dont la conservation respecte cet acroisemment sans jamais le démembrer”,
complementa a historiadora, citando o artigo: “De la preuve à l’histoire, les archives em France”,
de J. André 12.
No inventário do “fond Bastide” não temos documentos classificados sob a categoria “cadernos
de campo” ou “cadernos de trabalho”
13
. Qual percurso deverá o pesquisador percorrer para
concluir que o caderno em que o antropólogo registrou suas notas de campo da cerimônia de
Ondo corresponde à estada de Bastide na África, em 1958? Se as notas encontradas são registros
de apenas um dia de observação, o dia 22 de julho, como encontrar o ano correspondente? A data
colocada na capa do caderno não traz o ano. Como precisar as datas com tais incertezas se o
pesquisador está com o caderno pela primeira vez nas mãos? Seriam aqueles registros
correspondentes ao trabalho de campo do antropólogo? O título da rubrica Notes de voyages et
de lectures era o primeiro entre mais de sessenta existentes na categoria Notes do inventário14.
12
Ver o artigo em: Traverses, n°36, janeiro, 1986, p.29.
PATRINI-CHARLON, Maria de Lourdes. Os cadernos de campo de Roger Bastide: entrecruzamentos múltiplos.
In: Revista Brasileira de Literatura Comparada. Rio Janeiro: UERJ, agosto/ 2008.
14
A categoria Notes, a rubrica Notes de lecture et de voyages, mostrava-me a cada dia que, se os cadernos de
campo realmente existissem, havia uma grande chance de eles estarem classificados naquela rubrica.
13
5
O pesquisador, por sua vez, prossegue em seu trabalho acompanhando o traçado de uma rota
estabelecida. Entretanto, enquanto a busca se realiza o pesquisador se convence que,
paralelamente, ao caminho tecnicamente construido, ele tem que construir suas próprias trilhas no
inventário, traduzindo e reinterpretando através de um jogo de provas obsessivo o caminho do
arquivista que traduziu e interpretou os documentos com a finalidade de elaborar o inventário.
Assim, o pesquisador vai traduzir os traçados do inventário e, ao ler os manuscritos classificados,
selecionados e organizados, reconhece o trajeto do arquivista, descobre desvios, às vezes
necessários, identifica suportes e se lança na tradução do trabalho do antropólogo materializado
em escritura. Desta forma, enquanto constrói a sua própria trilha lendo/interpretando as práticas
de escrituras ali contidas, o pesquisador se faz tradutor do tradutor/tradutores numa via de mão
dupla dos documentos autográficos de Roger Bastide.
Roger Bastide: África 1958
Hoje estamos distantes cinqüenta anos da pesquisa que Bastide fez na África d’Oeste, em 1958,
em companhia do também antropólogo francês Pierre Verger15. Em “Múltiplas atividades de
Roger Bastide na África (1958)”, o autor Pierre Verger nos conta que: “a estada de Bastide no
Daomé (atualmente República do Benin) e na Nigéria ocorreu, sejamos precisos, entre domingo,
13 de julho de 1958, às 10h30min, e a segunda feira, 22 de setembro, às 17h – dias e horas da
chegada e da partida dos aviões que o transportaram, ou seja, 72 dias, ao longo dos quais ele
cumpriu um programa dos mais intensos, muito representativo da multiplicidade das questões que
lhe atraíam a atenção.” 16.
Uma proposta de pesquisa a quatro mãos estava ali acordada. Vozes tradutoras e vozes traduzidas
estariam em ação em busca de compreensão/interpretação. Bastide e Verger são exemplos de
antropólogos que participaram de alguma forma de inserção no grupo em estudo. Em ambos os
casos, tivemos uma forma de participação religiosa no grupo, incluindo a iniciação (filhos de
Xangô).
A escritura autográfica de Bastide revela de forma mais ou menos explicita a imersão do
antropólogo no mundo dos rituais e manifestações do mundo dos africanos, escravos libertos e
15
Sobre esta parceria ver os artigos: PATRINI-CHARLON, Maria de Lourdes. “Na escritura de campo: uma voz
“em cachette”. In: Sigila:, Paris, , 2006.p.79-94. _______________. “Roger Bastide e a experiência compartilhada”.
In: Via Atlântica – Publicação da área de estudos comparados de Literaturas de Língua Portuguesa São Paulo,
F.F.L.C.H./USP, n°8, 2005. p.99-118.
16
Artigo publicado originalmente na Revista da USP, n°18, trad. Maria da Glória P.Kok, pp.30-9, conforme nota
explicativa em:Verger/Bastide . Dimensões de uma amizade, organização de Angela Lühning. 2002.
6
que retornaram ao seu país de origem. Em muitos momentos de seus registros, Bastide assume a
sua posição metodológica enquanto pesquisador, ele ressalta que o pesquisador deve viver como
sua a experiência social de seus pesquisados. Sobre a pesquisa que o antropólogo fez em 1958 –
“viagem às fontes” (Verger: 2002, p. 46) temos apenas alguns artigos publicados17. Sobre essa
missão pelo Institut français d’Afrique noire em Benin e Nigéria temos poucas referências,
alguns trabalhos científicos nem mesmo mencionam essa pesquisa realizada pelo antropólogo. O
inventário tão pouco dava destaque a essa viagem de trabalho de Roger Bastide cujo objetivo era
reencontrar as fontes das religiões do Brasil.
Em fevereiro de 2004, encontrei no I.M.E.C, Mon Journal, de Roger Bastide, o que me permitiu
dar significado aos dados até então encontrados. Até aquela data não se tinha nenhum
conhecimento que na obra autográfica do pesquisador pudesse existir cadernos de campo. Os
trabalhos que mencionam essa viagem de Bastide à África,em 1958, não mencionam, contudo, a
existência de cadernos de campo ou textos etnográficos referentes a essa pesquisa. Quanto aos
textos publicados em Verger/Bastide. Dimensões de uma amizade, os mesmos pertencem ao
arquivo da obra de Pierre Verger18.
A “escritura viva” da tradução e dos tradutores
Os materiais de campo dos etnólogos geram numerosas reflexões e apresentam muitas vezes
aspectos complexos, às vezes fascinantes e desafiadores. Dos documentos de pesquisa: notas
bibliográficas, textos, projetos de artigos, ou de obras e dos papéis administrativos (Mouton,
2001/2002, p.68-69). O material de campo é constituído de documentos muito variável. Sua
originalidade está no fato de que se trata de documentos que o antropólogo produz ou coleta
sobre a base de observações diretas para registrar, guardar informações sobre o seu objeto de
estudo, para em seguida classificar, arquivar à medida que ele as recolhe19. A variedade é o tom
desses documentos, variedade de informações, da natureza dos suportes (papéis e folhas volante,
cadernos e carnês, fotos, croquis, esboços, mapas, bandas magnéticas, filmes etc.) e com o
progresso da tecnologia a evolução desses suportes. De todos esses materiais evocados acima, as
17
Em Verger/Bastide. Dimensões de uma amizade, organização de Angela Lühning. 2002., temos três artigos de
autoria de Bastide sobre a pesquisa realizada em 1958, na África. Alguns desses artigos foram publicados em
periódicos.
18
Em 2004, a pedido da organozadora de Verger/Bastide.Dimensões de uma amizade, elaborei um roteiro da viagem
(Africa, 1958) a partir de Mon Journal, de Bastide. Este roteiro foi comparado ao já elaborado no livro acima citado.
19
Marie-Domenique Mouton, em seu artigo, já mencionado, cita o artigo de Nancy J. Parezo. The formation od
anthropological records. In: W. David Kingery, ed., Learning from things : Methods and theory of material culture
studies, Washington, London, Smithsoniam Institution Press, 1996: 145-172.
7
notas de campo, os textos manuscritos são sem dúvida os materiais que dão mais a pensar, porque
eles podem ser apreendidos de diversas maneiras.
O caderno de campo é um objeto de conhecimento de muitas faces e despertam interesses
múltiplos que se manifestam quer seja pelas,
•
informações coletadas;
•
modalidades e condições de coleta (tipologia);
•
escolha das informações recolhidas;
•
organização interna dos dados registrados;
•
motivação explícita e implícita que os mesmos suscitam; e, pelo
•
contexto no qual eles se inscrevem.
Se o antropólogo dá o devido valor aos materiais de campo – é muito difícil ele entregá-lo a
alguém. Ele se mostrará sempre reticente. As notas de campo: documentos sensíveis – sempre no
limite do privado e do público, explicitamente ou implicitamente, elas fazem parte de sua vida e
relatam em meio a outras vidas a vida do antropólogo. Dar a alguém para consultá-lo significa
entregar ao “outro” e renunciar a sua intimidade; é revelar, de certa forma, a trama de sua vida
cotidiana. Alguns antropólogos podem querer publicar esses escritos, mas esta atitude
forçosamente impudica que é mais de um escritor, esta ainda marginal entre os pesquisadores
(Mouton, 2001/2002, p.70 - tradução nossa).
Nesse sentido podemos observar que trabalhar com as escrituras autográficas de um antropólogo
exige que se leve em conta as reflexões sobre as correlações entre a antropologia e a tradução,
entre a tarefa do antropólogo e a sua tradução, entre a tarefa do tradutor e a trabalho do
antropólogo.
Bastide imprimiu em sua escritura de campo a sua postura metodológica, assim como as
condições de produção dessa escritura. Sem duvida, trata-se de uma escritura que abriga coautores: observadores e observados. Estes dialogam com Bastide constantemente quer seja no ato
de seus registros, na elaboração da escritura e ou na reflexão distanciada do campo de trabalho.
As notas de leitura e resumos de obras de autores consagrados, as quais entremeiam a escritura de
campo, são tecidas em meio aos registros de campo promovendo outros diálogos e criando uma
rede de fontes de dados. As dimensões do campo (ação e escritura) envolvem ainda outros
aspectos: formação, contexto histórico e político.
Estudar os registros de campo de Bastide – experiência única e irreproduzível corporificada em
escritura etnográfica pode parecer, num primeiro momento, mais confortante, mas o tema da ética
8
se impõe fortemente suscitando questões para o pesquisador, pois estamos diante do “outro”
materializado em escritura. Uma atitude investigativa frente ao fazer investigativo do “outro”,
exposto através das notas colhidas no campo. O “outro” constituído pelo antropólogo, assim
como seu objeto de estudo se materializara em escritura e tal escritura em campo de observação.
Entre o “eu” e o “outro” há a mediação da escritura, onde uma variedade de planos se
sobrepunha.
Neste trabalho, antes mesmo de tocar na escritura, apontamos ações onde se colocam as questões
relativas aos sujeitos e objetos da tradução cultural e indagamos, mesmo que sutilmente, sobre as
relações de pertencimento da tradução cultural: tradução de quem, tradução do que? Quem traduz
quem? No manuscrito do caderno de campo tem-se o registro da tarefa do campo onde questões
relativas aos sujeitos e aos objetos da tradução cultural estão expostas na experiência da escritura.
E, no resultado da leitura, análise e interpretação do manuscrito? Nesse caso, o desafio do
pesquisador vai além das correlações entre a tarefa do antropólogo e a do tradutor, ele deve se
mobilizar num sentido de mão dupla, onde estão envolvidas práticas culturais e a tarefa de
traduzir tradutor e tradutores..
A tradução qualifica como seus agentes tanto o antropólogo quanto o nativo. Geralmente é o
antropólogo quem se atribui o papel de tradutor, mesmo sabendo que em última instância o ato de
traduzir confronta ambos com a tarefa de traduzir o tradutor, os tradutores. Nesse sentido, quando
a tradução se mobiliza em sentido dialógico, envolve as práticas culturais do antropólogo, assim
como as do nativo e do pesquisador quando o objeto de pesquisa é a escritura/tradução fruto do
trabalho de campo do antropólogo tradutor.
Esse trabalho pretende ir além da mera duplicidade. A proposta se constitui em uma reflexão
sobre a ação do pesquisador/leitor interprete e tradutor da escritura do antropólogo e, nesse caso,
não podemos deixar de pressentir a interlocução de novos agentes nas ações de tradução, gerando
novos movimentos de tradução/interpretação.
Desta feita, estarão em confronto leituras e leitores, tradução e tradutores; vozes dos agentes
pesquisados pelo antropólogo e dos pesquisadores da obra do antropólogo, pois essas vozes e
leituras irrompem na escritura do antropólogo, elas são, tantas vezes, o único meio do
antropólogo traduzir o intraduzível; a única possibilidade de o pesquisador conseguir atar as
tessituras que os dados promovem na escritura de campo. Ler, interpretar os registros de campo
de Bastide é pensar a escritura e a leitura, essas práticas também se misturam, mas necessitamos
estabelecer critérios se quisermos privilegiar a compreensão da escritura concebida no ato da
9
observação. Seguramente, a intencionalidade de Bastide ao registrar suas notas de observação
não era a de torná-las públicas, ao menos sem antes trabalhá-las, podemos supor. “Autor caché”
de uma escritura compartilhada e um só leitor previsto: ele-mesmo, o antropólogo.
Na escritura: “eu” e o “outro”
Uma escritura que escapa a qualquer definição de gênero. Prevalece a subjetividade apesar de
tantas vezes compartilhada, provisória, variável e instável. Fragmentos, onde memória e
repertório dialogam.
Abrir um arquivo onde estão elaboradas hipóteses e análises significa que outros podem fazer uso
e julgar a validade das mesmas. Por isso, a inquietude. As notas de campo se apresentam por
escrito, mas tantas vezes são informações produzidas na oralidade ou através de performances.
São textos em ação, plenos de “non-dit”. Transferir o real sobre um suporte material assegura a
perenidade e a difusão e transforma o enunciado informativo de um momento em objeto de
reflexão sempre renovada. Reconhecemos, no entanto, o relativo empobrecimento que essa
transcrição, às vezes, pode causar.
Se os diários são produtos escriturais de realidade fugidia, fugaz e polimorfa, sua diversidade
quantitativa e qualitativa os afastam de qualquer tentativa de generalização20. Em Le journal
intime, Françoise Simonet-Tenant pergunta: qual seria a possibilidade de olharmos da mesma
maneira os diários de André Gide, Anne Frank e de um comandante de navio anônimo? (2001,
p.5) E o diário de campo de um antropólogo? Como abordar e reunir formas tão diferentes de
escritura? O diário é uma prática ordinária, profissional no caso dos antropólogos e escritores.
Trata-se de um gênero literário? De uma escrita privada? De uma atividade reconhecida? O diário
quer tenha ele objetivos profissionais ou não, será sempre íntimo – o seu lugar parece estar na
inapreensível fronteira entre a literariedade e a infra-literariedade, e seu caráter equívoco e
proteiforme é o fundamento de sua problemática (2001, p.6).
Observados tais aspectos não temos como mascarar suas especificidades formais, tais quais: a de
um enunciado fragmentado, que adota o dispositivo do calendário; constituído por uma sucessão
de “entradas”, cada uma designando um conjunto de linhas escritas sob uma mesma data,
observável também no diário de campo.
Vendredi 19 Septembre21
-Le matin V. est allé à Ouidah en chercher D’axe de Shangô demandé (...)
20
21
SIMONET-TENANT, Françoise. Le journal intime. Paris : Nathan, 2001. p.5.
Os textos citados do diário de campo e de outros manuscritos de Roger Bastide estarão sempre em itálico.
10
Samedi 20 Septembre
Matin= fini rapport sur les marchés pour Congrès des Affricains de L’Ouest.
Verger le completera et le deposera lui-même à Ibadan
No diário íntimo há um “eu” que se exprime mais frequentemente onipresente, e sobre o qual
reflete ações, observações, pensamentos e sentimentos. No diário de campo convivem ao mesmo
tempo um diário de etnógrafo (profissional) e também um diário pessoal. No processo da
pesquisa e registro dos dados obtidos no campo estão expostas também as implicações que
ocorrem no confronto o “outro” e “si mesmo”. O ritmo da escritura dos diaristas de diários
íntimos não é, necessariamente, regular22, o essencial é que as inscrições datadas criem um tipo
de cadeia no tempo23. No entanto, a presença da data é uma distinção essencial e indispensável da
escritura do diário íntimo e do diário de campo. O diário de campo exige um ritmo mais regular,
até porque o pesquisador tem que elaborar suas notas num tempo determinado.
Em alguns momentos, os registros de campo de Roger Bastide se constituem em uma escritura do
imediato e cumulativa que parece excluir toda elaboração antecipada, a aparente improvisação
pode significar um rascunho mental.
Dimanche 21 Septembre
Hier soir arrivée inopinée de Rouget
L’après-midi, comme il se doit, avant de partir, je suis allé au cimitière visiter les morts
brésiliens. Parmi les manguières (...) arbres qu’ils avaient apportés du Brésil.
Bcp de tombes effacées – je relève les noms suivants (- devant = tombe en terre. Les
autres= en/////, parfois ornées de status d’anges, de croix etc.).
Em outros, a escritura se aproxima de uma escritura com características de agenda, embora ela já
anuncie a prática participativa do trabalho de campo de Bastide. O Antropólogo e fotógrafo
Pierre Verger estará presente não somente como companheiro de viagem, mas como uma “voz”
que atua na construção da escritura e das reflexões teóricas de Roger Bastide. Ação de vozes
tradutoras na tarefa de traduzir
Samedi 21 de Septembre
Matin= fini rapport sur les Marchés pour Congrès des Affricains de l’Ouest.
Verger le completera et le deposera lui-même à Ibadan.
L’après-midi fait la caisse que j’apporterai Lundi à Cotonou.
Liste des effets personnels.
22
Quanto ao Mon Journal I, caderno de campo de Bastide referente aos 72 dias que ele passou na África d’Oeste, há
uma seqüência rigorosa de datas. Quando ele passa para o segundo caderno, onde ele anota continuação de Mon
Journal, notamos a falta de uma semana. Ele nos informa que está em outro carnê, mas este, eu não encontrei ainda
nos arquivos.
23
Isto Bastide faz com muita propriedade, seqüenciando não somente os registros de campo, mas estabelecendo uma
relação entre os dados seqüenciados e as fotos feitas por Pierre Verger; ordena, ainda, ao lado, uma seqüência na
sua correspondência profissional e pessoal.
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E, ainda, em outros deixa espaços para a participação efetiva do “outro”, para discussões e
reflexões bem pontuais.
Mon Journal I
Lundi 15 Septembre
Oublié d’indiquer hier qu’entrant par notre promenade nous avons croisé dans les rues de
Porto Novo 1 groupe de 5 ou 6 babas qui allaient de maison en maison.
Além do uso da primeira pessoa do plural que pode significar que Bastide não estava só em tal
passeio - na margem esquerda, ao lado dessa observação, o antropólogo escreve: Verger,
indicando que ele deverá falar com o amigo e pesquisador sobre o assunto.
Em 13 juillet, depois de ter assistido a apresentação da “Burrinha”, em 195:
Questions à resoudre:
- depuis quand il ne le faisait plus ?
- comment la tradition a pu se maintenir ?
- quelles réactions de ceux qui étaient comme autrefois ? Plus d’interêt des jeunes?
Em seguida, uma reflexão e uma associação:
E, novamente Verger: (em 52 V l’a vu sortie (sobre a Burrinha)
Experiências, narrativas: registros tradutores: Em Mon Journal I, 15 juillet, Bastide registra:
Les visiteurs appartennant à d’autres societés (...) (mais cependant dans la societé de
Shangô, au moins dans certaines cerémonies, il y a une fille d’obalala) Pourquoi ?
As condições da escritura diarista são as da narração simultânea ou mais frequentemente
intercalada entre os momentos de ação. Diferentemente da escritura do diário íntimo onde
observamos ao menos uma fraca retrospecção ou um mínimo de distanciamento, na do diário de
campo o discurso é construído muitas vezes no calor das observações, assim, a ato da escritura e
do narrado estão mais próximos, quase apagando um possível distanciamento. Um ziguezaguear
de experiências vividas e intercambiadas (antropólogos e pesquisados) revela e torna os dados
mais precisos, favorecendo com o ato da leitura o desvelamento das malhas da escritura que
abrigam as vozes construtoras da interpretação/tradução do pesquisador/leitor/tradutor.
13 juillet – Arrivée à Kotonou – Verger m’attend avec camionette IFAN.
14 juillet
Nous devons partir pour Ifan. Mais les événements vont se succèder si nombreux que,
difficille de donner description detaillée.
Dimanche 14 septmbre
Terminé la promenade par une visite du marché D’Ajaira (Adjara). Décidement, c’est bien le
plus beau marché que j’ai visité – en particulier le plus grand. On ne se fatigue pas de se
promener dedans. Dans un recoin, une petite hutte rectangulaire (...) coloriée, avec
scriptorium, (...) recommandant la sagesse aux marchands, et le (...) – Acheté un tambour
– Retour à 6 heures.
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Por outro lado, não podemos ignorar que, no caso do antropólogo, o tempo de pesquisa tem
limites, às vezes bem rígidos para permanecer no campo24 e o pesquisador é consciente do tempo
que terá para elaborar suas anotações. Enquanto que para o diarista do diário íntimo o tempo está
em aberto. A escritura do diário de campo se constrói frequentemente no calor dos
acontecimentos, ou seja, na coincidência do discurso e do vivido, onde a vida, de certa forma, é
absorvida pela escritura.
13 juillet
(...) même lenteur qu’au Brésil dans la préparation de la sortie.
La sortie et la descente en ville (sobre a Burrinha)
Vendredi, 10 juillet
Note complementaire – la police par les « messagers » des Rois.
J’ai noté 2 – un homme et une femme. De la caractéristique = cheveux rasés du col au
haut du crane, 1 espèce de chignon pointu. (em seguida, desenho representando o registro
acima).
Em meio a sua escritura concebida no calor das observações, ele abre espaço, às vezes para um
passado bem próximo, outras para um futuro também muito próximo sem, contudo, deixar
escapar o fio condutor de sua narrativa com o qual está sendo construída aqui e agora a sua
escritura. Nesse caso, a escritura de campo se aproxima da escritura dos diários íntimos.
Je note = pas de cabocles, rien que dieux africains ( Shangô, Yansan etc.)
Peu de cabanes (qqs une avec feuilles) mais//////de pot de terre pour une fille donc...
Nessa dinâmica é que, entre uma brecha e outra, temos a realização de uma prática
compartilhada, movimentos de vozes narrativas permitem a construção de uma escritura em
aberto. A escritura de campo não é só um produto de uma observação supostamente objetiva, ela
não acolhe simplesmente registros de dados. Trabalhando com a escritura dos cadernos de campo
de Roger Bastide, pudemos contatar que nós não captamos idéias nem tão pouco as descrevemos,
“nós as compreendemos intuitivamente e as interpretamos”
25
, pois, continua Dan Sperber: “La
description (...) est, em fait, ce que l’etnographe a retenu de ce qu’il a compris à partir de que ses
informations lui ont livrés de ce qu’eux-mêmes ont compris” 26.
Os materiais de campo de Roger Bastide não restituem somente certos traços de uma sociedade
particular, mas dizem também como, num momento dado de sua história pessoal, o antropólogo
buscou compreender tal ou tal aspecto dessa considerada sociedade..
A presença de Pierre Verger na escritura de campo de Bastide foi por mim abordada, em outros
artigos. Neles ressalto a tal presença através das marcas pronominais, da presença enunciada da
24
Roger Bastide permanceu 72 dias na África d’Oeste.
SPERBER, Dan. Le savoir des anthropologues. Paris, Klincsieck, 1982. Citado pela autora do artigo « Archiver la
mémoire des ethnologues ». In: Gradiva, n° 30/31, 2001/2002 p.70 e traduzido por nós.
26
SPERBER, op.cit., p.22. In: Gradiva, p.71.
25
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oralidade que permeia as conversas e as discussões, e esclarece conceitos e, igualmente, através
da menção discreta num canto de página, do material fotográfico produzido por Verger, enfim, da
presença materializada pela letra/grafia do “outro” entremeada nos registros de campo.
No presente artigo, minha intenção foi a de assinalar desdobramentos de outras formas de
presença do “outro”, desta vez, gerada também pela interlocução de vozes e de perfomances,
mas, da mesma forma, pelas interferências que permeiam o próprio fazer investigativo do
pesquisador, permanecendo a indagação: quem traduz quem?
Sem dúvida alguma, a descoberta e os primeiros contatos com o arquivo é uma experiência impar
para o pesquisador, mas logo os limites começam a ser impostos e a se apresentarem de forma
mais ou menos velada. O pesquisador se sente algumas vezes vulnerável. Questões éticas devem
ser levadas em conta, mas isso não é tudo. Juntamente com as surpreendentes descobertas, uma
hierarquia se apresenta para demarcar fronteiras e a instituir diferentes tipos de controle ao
pesquisador e por que não dizer ao objeto de estudo tais como: o acesso aos documentos, logo,
acesso ao segredo dos valores sublimes e do simbólico, as implicações existentes nos
entrelaçamentos do público e do privado, entre outros. Assim, entre a escritura e o seu
deciframento, em meio a tantas presenças mais ou menos disfarçadas, uma cumplicidade se
instala. Nesse sentido, é o pesquisador que vai compartilhar experiências com o sujeito
pesquisado.
A cada ato de escritura o pesquisador retoma o espaço e lugar do sujeito pesquisado e, através da
escritura do “outro”, ele realiza também através da escritura um trabalho que ele devolve ao
público, efetivando dessa vez a interlocução entre sujeito pesquisado e sujeito pesquisador. O
arquivo recopiado à mão pelo pesquisador sobre a página branca é um pedaço do tempo
aprisionado, vivido pelo antropólogo, no caso Roger Bastide, que nos reconta as experiências
vividas no campo e sobre as quais o pesquisador vai formular suas interpretações, traduzindo r
transformando a escritura de campo em experiência de discurso. Como ressalta Roger Chartier:
« Les documents ne sont plus consideré seulement pour les informations qu’ils fournissent, mais
sont aussi étudiés en eux-mêmes, dans leur organisation discursive et matérielle, leur conditions
de production, leurs utilisation stratégiques »27
27
CHARTIER, Roger. op., cit., p. 14. Citado também por MOUTON. op., cit., p.70.
14
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