Eduardo Pereira Nunes • 47 Comentários sobre o texto de Rodolfo Hofmann Eduardo Pereira Nunes* O autor faz uma profunda análise da conceituação de renda adotada pelo IBGE em suas pesquisas domiciliares e nas Contas Nacionais. Tece, com razão, algumas críticas à forma como esse Instituto agrega informações que refletem conceitos econômicos distintos. Todavia, em algumas ocasiões, pretende que as informações divulgadas pelas pesquisas do IBGE atendam às suas próprias necessidades de dados empíricos para construir categorias econômicas teóricas que são, ao mesmo tempo, complexas e conceitualmente incompatíveis. Portanto, neste segundo caso, embora os anseios do autor por dados estatísticos apropriados às suas construções teóricas se justifiquem, a ausência dessas informações nas pesquisas do IBGE não pode ser entendida como uma falha conceitual do Instituto. De fato, essas discrepâncias representam o desafio que os pesquisadores devem enfrentar para compatibilizar as metodologias e conceitos adotados nas pesquisas do IBGE com as categorias teóricas pertencentes às diversas linhas de pensamento econômico. Nesse sentido, o trabalho de Rodolfo Hofmann presta um enorme serviço à comunidade científica, ao revelar as lacunas e potencialidades analíticas das pesquisas do IBGE sobre a renda da população brasileira. A seguir, comentar-se-á os critérios de formulação do conceito de renda nas pesquisas do IBGE, com o intuito de esclarecer algumas dúvidas de Rodolfo Hofmann. 1. Referência metodológica: Nações Unidas Os conceitos de renda adotados nas pesquisas domiciliares do IBGE seguem as recomendações da Organização Internacional do Trabalho * Presidente do IBGE. Econômica, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 47-52, junho 2008 48 • Comentários sobre o texto de Rodolfo Hoffmann (OIT).1 Esse mesmo conceito adotado nas Contas Nacionais obedece às recomendações estabelecidas pela Organização das Nações Unidas, pelo Banco Mundial, pela Comissão das Comunidades Européias,2 pelo Fundo Monetário Internacional e pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), reunidas no manual da ONU, denominado System of National Accounts, de 1993. Convém ressaltar que as próprias recomendações dos organismos internacionais revelam as dificuldades inerentes à coleta da informação sobre renda. Um documento editado em 2008 pela ONU, Principles and Recommendations for Population and Housing Censuses, Revision 2 faz as seguintes observações: Collection of reliable data on income, especially income from self-employment and property income is extremely difficult in general field inquiries, particularly population censuses. The inclusion of non-cash income further compounds the difficulties. Collection of income data in a population census, even when confined to cash income, presents special problems in terms of burden of work, response errors, and so forth. Therefore, this topic is generally considered more suitable in a sample survey of households. Depending on the national requirements, countries may nonetheless wish to obtain limited information on cash income. As thus defined, the information collected can provide some input into statistics that have many important uses” (Principles and Recommendations for Population and Housing Censuses, Revision 2, United Nations, 2008). No caso brasileiro, o IBGE investiga a renda nos Censos, apesar de conhecer as limitações apontadas pela ONU, e mesmo considerando que as informações terão apenas um valor aproximado. Entretanto, como a própria ONU reconhece, os resultados são extremamente úteis: para o IBGE desenhar as suas amostras, para a sociedade conhecer o nível e a distribuição da nossa renda, para os usuários realizarem seus estudos acadêmicos e empresariais sobre nível de renda e o tamanho do mercado. Econômica, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 47-52, junho 2008 Eduardo Pereira Nunes • 49 O Manual da ONU também enfatiza que a investigação sobre renda é mais adequada em pesquisas por amostra de domicílios. 2. Pesquisas por Amostra de Domicílios no Brasil 2.1 Pesquisas de Orçamentos Familiares (POF) Desde 1974, o IBGE realiza Pesquisas de Orçamentos Familiares.3 Estas pesquisas podem estimar com mais precisão a variável “renda”, pois são realizadas ao longo de 12 meses. Este tempo de coleta de informações torna possível a verificação das rendas afetadas por fatores sazonais. E, como permanecem 9 dias em cada domicílio da amostra, os pesquisadores também captam rendas eventuais. Dessa forma, a metodologia adotada nestas pesquisas permite reduzir a subdeclaração da renda familiar, ao confrontá-la, perante o próprio informante, com os respectivos gastos. Esta característica da pesquisa de orçamento familiar permite que o próprio informante se lembre de rendas auferidas e eventualmente omitidas, e também oferece condições propícias para estimar a renda não-monetária. Conseqüentemente, as Pesquisas de Orçamentos Familiares fornecem informações sobre o total da renda (monetária e não-monetária) auferida pelas famílias brasileiras. 2.2 Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios é realizada pelo IBGE, desde 1967. Embora a PNAD seja uma pesquisa de múltiplos propósitos, seu principal objeto de investigação é o mercado de trabalho. Além de investigar a renda de todos os empregados, a PNAD também considera como renda do trabalho o ganho dos empregadores (retirada do proprietário) e dos trabalhadores por conta própria (rendimento bruto menos despesas efetuadas com empreendimento, como pagamento de empregados, matéria-prima, energia elétrica, telefone etc.). Ao analisar o conceito de renda na PNAD, Hofmann comenta: “No caso de um empregador, certamente os economistas clássicos e Marx Econômica, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 47-52, junho 2008 50 • Comentários sobre o texto de Rodolfo Hoffmann chamariam isso de lucro, e não de rendimento de trabalho”. Por outro lado, como o lucro distribuído sob a forma de dividendo encontra-se registrado como “rendimento de outras fontes”, não se tem uma noção coerente do conceito de lucro. De fato, é muito difícil obter informações precisas sobre as rendas do capital consideradas em separado da renda do trabalho. Ademais, para um grande contingente de empregadores, esta distinção não existe na realidade. Para os empregadores de “unidades de produção familiares”, segundo a denominação das Contas Nacionais, ou do “setor informal”, segundo a OIT, não há como distinguir o que é renda do capital (lucro) e o que é renda do trabalho, quando os empreendimentos têm com o principal objetivo gerar emprego e rendimento para as pessoas envolvidas. Em geral, essas unidades produtivas caracterizam-se pela produção em pequena escala, pelo baixo nível de organização empresarial e pela quase inexistência de separação entre capital e trabalho, compreendidos como fatores de produção. Para demonstrar a dificuldade de conciliação entre o dado empírico e o conceito teórico, podemos citar pelo menos dois exemplos: a) Transportador autônomo de carga rodoviária. Neste caso, o caminhoneiro é, ao mesmo tempo, proprietário do meio de produção (capital) e fornecedor da força de trabalho. É praticamente impossível separar em renda (marxista) do capital e renda do trabalho o valor do frete recebido pelo transporte de uma carga. No Brasil, há muitas atividades econômicas organizadas de forma semelhante à do transportador autônomo de carga rodoviária, como, por exemplo, o comércio ambulante de mercadorias, o transporte de passageiros por táxis e vans, a construção civil, o serviço de reparação de automóveis, o serviço de alimentação etc. b) Produção agrícola familiar. Neste caso, o produtor pode ser proprietário da terra, dos demais meios de produção (capital) e somente utilizar a força de trabalho dos membros da própria família. Conseqüentemente, a renda resultante da atividade é produto da utilização combinada dos 3 fatores (neoclássicos) de produção: terra, capital e trabalho. Também neste caso, é impossível distinguir renda da terra, renda do capital e renda do trabalho. Econômica, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 47-52, junho 2008 Eduardo Pereira Nunes • 51 É importante observar que esta dificuldade teórica e metodológica não é encontrada apenas nas estatísticas brasileiras. Os comentários anteriores revelam também a dificuldade empírica para a construção das categorias econômicas necessárias ao estudo da distribuição funcional da renda. Neste caso, a fonte básica de informação deve ser o Sistema de Contas Nacionais. Nesse Sistema, os rendimentos recebidos pelos titulares de unidades econômicas familiares (isto é, empreendimentos não-organizados sob forma de sociedades com personalidade jurídica), com ou sem empregados remunerados,4 são denominados de rendimento misto, devido à natureza do ganho do trabalhador, que não pode ser classificada exclusivamente como rendimento do trabalho ou renda do capital. 3. Conclusões As observações feitas por Hofmann são fundamentais para que o usuário das estatísticas relativas à renda compreenda as virtudes e as limitações do segmento do sistema estatístico nacional dedicado à produção de informações sobre o nível e a distribuição da renda nacional. Espero que os comentários aqui efetuados sirvam para esclarecer as dúvidas apontadas por Hofmann e sirvam também para demonstrar a coerência conceitual das estatísticas sobre renda produzidas pelo IBGE. Para confirmar a consistência destas informações, cito os coeficientes de Gini, calculados com base nos dados da PNAD e da POF, referentes aos anos de 2002 e 2003, quando foi publicada a última POF pelo IBGE. Segundo a PNAD, em 2002, o Índice de Gini foi de 0,573 e, em 2003, o coeficiente foi de 0,566. Já a POF do período 2002-2003 chegou ao índice de 0,558. Observa-se portanto que, independentemente das eventuais diferenças do conceito de renda nestas duas pesquisas domiciliares do IBGE, os coeficientes encontrados permitem extrair duas conclusões importantes: 1ª Os coeficientes são muito próximos, revelando a convergência do conceito de renda entre as duas pesquisas; e, Econômica, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 47-52, junho 2008 52 • Comentários sobre o texto de Rodolfo Hoffmann 2ª Estes coeficientes revelam, entretanto, a enorme desigualdade da distribuição da renda no Brasil, independentemente da fonte utilizada para calcular a renda e para verificar o padrão existente para a sua repartição entre os cidadãos. Espero que o texto de Hofmann e os comentários aqui efetuados ajudem a sociedade brasileira a encontrar os mecanismos necessários para resolver o grave problema da repartição da renda no Brasil. E espero que as informações estatísticas do IBGE contribuam para alcançar o inadiável objetivo de redução da desigualdade social no Brasil. Notas 1 Current International Recommendations on Labour Statistics (Geneva, 2000). 2 Statistical Office of the European Communities – Eurostat. 3 Estudo Nacional de Despesas Familiares (1974-1975) e Pesquisas de Orçamentos Familiares (1985-1986, 1995-1996, 2002-2003 e 2008-2009). 4 United Nations. System of national accounts, 1993 (7.31). Econômica, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 47-52, junho 2008