:: Le Monde Diplomatique Brasil ::
1 de 5
http://www.diplomatique.org.br/print.php?tipo=ar&id=1181
Imprimir página
« Voltar
MEIO AMBIENTE
O transporte urbano no Brasil
Uma política diferente de mobilidade deveria reduzir os benefícios e subsídios ao transporte individual, garantir espaço nas vias
públicas para que as formas não motorizadas e o transporte público tenham qualidade, segurança e prioridade na circulação, e
incentivar novas formas de ocupação e desenvolvimento urbano
por Eduardo A. Vasconcellos
As maiores cidades brasileiras, assim como muitas grandes cidades de países em desenvolvimento, foram
adaptadas, nas últimas décadas, para o uso eficiente do automóvel, o que correspondeu a um projeto de privatização
da mobilidade, fortemente associada aos interesses das classes médias formadas no processo de acumulação
capitalista. Vários esquemas de financiamento e incentivo mercadológico promoveram grande ampliação da frota de
automóveis no Brasil e, mais recentemente, da frota de motocicletas, neste caso atendendo a um público mais jovem
e novos grupos em ascensão social e econômica.
Paralelamente, o sistema de transporte público foi crescentemente negligenciado, em uma pedagogia negativa para
afastar a sociedade do seu uso como principal forma de transporte motorizado. O transporte público, apesar de
alguns investimentos importantes em locais específicos, permaneceu insuficiente e de baixa qualidade e tem
experimentado crises financeiras cíclicas, ligadas principalmente à incompatibilidade entre custos, gratuidades,
tarifas e receitas, bem como às deficiências na gestão e na operação. Adicionalmente, ele experimentou um declínio
na sua importância, eficiência e confiabilidade junto ao público, passando a ser visto como um “mal necessário” para
aqueles que não podem dispor do automóvel ou da motocicleta.
A motorização privada da mobilidade trouxe consigo grandes impactos negativos, na forma de aumento dos custos
de operação dos ônibus, dos acidentes, da poluição e dos congestionamentos (ANTP, 2011). Como o uso do
automóvel requer o consumo de grande espaço físico nas vias, o congestionamento cresceu e rebaixou a velocidade
dos ônibus para 12 a 15 km/h, quando o desejável e possível com tratamento adequado é 20 a 25 km/h. Isso levou
ao aumento dos custos operacionais dos ônibus entre 15% e 25%, sendo o custo adicional repassado aos usuários
pagantes, na maioria com baixo nível de renda: embora o vale-transporte limite o gasto do trabalhador a 6% do seu
salário, mais da metade dos usuários não tem acesso a esse benefício. Apenas na cidade de São Paulo, o
congestionamento provocado pelo uso do automóvel é responsável por R$ 1,5 bilhão de custos extras repassados
por ano aos usuários de ônibus, valor suficiente para construir uma linha de metrô ou dez corredores de ônibus.
Às grandes diferenças de qualidade entre o transporte público e o individual devem ser acrescentadas as vantagens
do custo de usar automóveis ou motos: uma viagem de 7 quilômetros no pico da tarde em uma grande cidade,
usando transporte público, leva mais do que o dobro do tempo da viagem em automóvel ou motocicleta, além de
custar o triplo da viagem em moto e apenas 10% a menos que a viagem em auto. No campo ambiental, nas cidades
23-07-2012 10:29
:: Le Monde Diplomatique Brasil ::
2 de 5
http://www.diplomatique.org.br/print.php?tipo=ar&id=1181
com mais de 60 mil habitantes o transporte individual foi, em 2010, responsável por 87% das emissões de poluentes
locais (que afetam a saúde das pessoas) e por 64% das emissões de dióxido de carbono (CO2), principal poluente do
efeito estufa, que afeta a saúde da Terra. Na área da segurança do trânsito, morrem no Brasil 40 mil pessoas por
ano, a maioria relacionada ao uso de veículos privados, com índices por habitante entre 4 e 6 vezes superiores aos
dos países desenvolvidos. Desde 1996, e especialmente a partir dos anos 2000, o incentivo irresponsável à
universalização do uso da motocicleta, sem os devidos cuidados com a segurança dos seus usuários, levou à morte
72 mil pessoas, numa das maiores tragédias sociais da história do Brasil.
Um retrato muito claro das desvantagens do modelo atual está na figura 1: ela mostra que as motos poluem 15 vezes
mais e gastam 2 vezes mais energia por passageiro que os ônibus, ao passo que os automóveis poluem 11 vezes
mais e gastam 4,5 vezes mais energia. Quanto aos acidentes, as motocicletas têm um custo 19 vezes superior ao do
ônibus, enquanto o valor para os autos é de 2,7 vezes (ANTP, 2011). Ver gráfico 1.
O financiamento da mobilidade no Brasil
Na história do nosso sistema de transporte de passageiros, os mecanismos de financiamento foram dirigidos
principalmente ao incentivo do transporte individual. A partir da Constituição de 1934, quando se declarou pela
primeira vez que era necessária a construção de um sistema de rodovias, todos os esforços foram feitos para atingir
esse objetivo. Mais tarde, a introdução da indústria automobilística em 1956 foi um marco essencial nesse caminho,
tendo sido seguida por políticas de apoio permanente ao automóvel e, mais recentemente, à motocicleta. O único
período no qual o transporte coletivo teve lugar efetivo na agenda federal foi durante a crise do petróleo da década
de 1970, quando órgãos federais tiveram capacitação técnica e recursos para investir em sistemas de ônibus nas
grandes cidades brasileiras. Esse movimento esteve relacionado à crise de energia e ao receio do aumento
intolerável do custo de importação de petróleo, e não a motivações políticas ou sociais que questionassem o modelo
de privatização da mobilidade. Uma vez abrandada a crise, as intenções se voltaram à viabilização do processo de
motorização privada da sociedade.
Após a Constituição de 1988 e o afastamento do governo federal da questão do transporte público, os recursos
federais ficaram limitados às fontes do Orçamento Geral da União e do BNDES, sendo aplicados em alguns
corredores de ônibus e sistemas ferroviários e metroviários de grandes cidades. Mais recentemente o Código de
Trânsito de 1998 criou o Fundo Nacional de Segurança e Educação para o Trânsito (Funset) e o DPVAT (seguros
contra acidentes). Desde então, essas duas fontes acumularam cerca de R$ 3,1 bilhões, recursos que, em sua
maioria, estiveram contingenciados pelo Ministério da Fazenda. Adicionalmente, foi estabelecida a Contribuição de
Intervenção no Domínio Econômico (Cide), que, originária do consumo de combustíveis, tem parte da destinação
prevista para os transportes públicos. No entanto, a maior parte dos recursos da Cide (cerca de R$ 9 bilhões por ano)
também foi sendo contingenciada ao longo do tempo.
No tocante à operação dos sistemas de transporte de passageiros, os custos do transporte público são cobertos
pelas tarifas pagas pelos usuários e, em alguns casos (principalmente nas ferrovias), também por complementações
orçamentárias. A cobertura dos custos vem ficando cada vez mais difícil e iníqua, na medida em que a tarifa vem
aumentando acima da inflação, afetando muito os usuários que não recebem o vale-transporte. Além disso,
aumentou a concessão de gratuidades e descontos, que são pagos pelos demais usuários, a maioria de baixa renda:
há cidades nas quais as gratuidades beneficiam de 20% a 40% do total de passageiros. Outro problema estrutural é
a queda na demanda, que transfere os custos para um número cada vez menor de usuários.
23-07-2012 10:29
:: Le Monde Diplomatique Brasil ::
3 de 5
http://www.diplomatique.org.br/print.php?tipo=ar&id=1181
Subsídios dados ao transporte urbano
A compreensão de uma política de transporte de passageiros requer o conhecimento das fontes de recursos e de
sua aplicação na prática. No caso do Brasil, várias formas de subsídios têm sido utilizadas. A seguir estão descritos
valores aproximados por tipo de transporte:
a) Autos:além do enorme desperdício implícito na oferta de um sistema viário que, fora das áreas mais centrais,
permanece subutilizado na maior parte do tempo, os usuários de automóveis desfrutam dois subsídios diretos
concedidos pelos governos federal e local. O primeiro é o imposto reduzido (IPI federal) para a aquisição de veículos
de baixa cilindrada, a maioria do mercado nacional: a manutenção de IPI baixo em relação aos outros automóveis
resulta em uma renúncia fiscal de no mínimo R$ 4,2 bilhões por ano. O segundo tipo de subsídio refere-se ao
estacionamento gratuito nas vias públicas. Nas cidades com mais de 60 mil habitantes, são realizadas por dia 36
milhões de viagens dos automóveis. Assumindo que metade delas (18 milhões) requer lugar fora de casa para
estacionar e que 50% destes param nas ruas e evitam gastar R$ 3 pelo estacionamento, obtém-se um subsídio anual
de R$ 9 bilhões. Um aspecto relevante do apoio ao uso do automóvel é o preço do licenciamento e do IPVA,
definidos no âmbito estadual. O valor médio anual das duas cobranças no Brasil gira em torno de R$ 850, que
corresponde a R$ 2,3 por dia. Como apenas a metade desse valor vai para o governo municipal, cada proprietário de
automóvel está pagando apenas R$ 1,15 por dia para utilizar as vias urbanas de sua cidade.
b) Táxis:são veículos usados pela parcela mais rica da população, mas também recebem subsídios do governo
federal (isenção de IPI), estadual (isenção de ICMS) e local (estacionamento gratuito nas vias). A isenção de IPI e
ICMS representa cerca de R$ 400 milhões por ano de renúncia fiscal, ao passo que o estacionamento gratuito
representa R$ 350 milhões de subsídios nas cidades com mais de 100 mil habitantes.
c) Motocicleta: os subsídios a esses veículos estão concentrados em sua produção. A permissão federal para que a
nova indústria brasileira se instalasse na Zona Franca de Manaus lhe permite receber subsídios que reduzem os
preços de venda em até 20%; considerando o faturamento de R$ 12 bilhões em 2010, os subsídios correspondem a
R$ 2,4 bilhões por ano.
d) Transporte público:também recebe alguns subsídios, principalmente na aquisição de veículos (ônibus) e na
operação (ferrovias). Os ônibus têm isenção de IPI e redução do PIS e do Cofins quando comparados com
automóveis. Para uma venda anual de 25 mil unidades, tais subsídios somam cerca de R$ 625 milhões. Subsídios
operacionais diretos são raros no sistema de ônibus (a única exceção significativa é a cidade de São Paulo, com R$
1 bilhão por ano), mas no caso da operação de ferrovias urbanas eles são da ordem de R$ 600 milhões por ano.
Em resumo, o transporte individual recebe isenções e subsídios da ordem de R$ 16 bilhões por ano, enquanto o
transporte coletivo recebe R$ 2 bilhões (relação de 8 para 1).
23-07-2012 10:29
:: Le Monde Diplomatique Brasil ::
4 de 5
http://www.diplomatique.org.br/print.php?tipo=ar&id=1181
Conclusões
Os dados apresentados mostram a iniquidade e a insustentabilidade da política de mobilidade em vigor no Brasil.
Suas consequências podem ser ainda piores caso haja um crescimento descontrolado do uso do transporte
individual, o que é provável considerando as tendências hoje verificadas.
A questão, portanto, é saber quais podem ser as bases de uma política de mobilidade ambientalmente saudável,
equitativa e sustentável, por meio da qual o transporte urbano seja organizado de forma a garantir prioridade aos
deslocamentos não motorizados e por transporte público, para que sejam feitos com qualidade e eficiência. Assim, as
perguntas mais importantes para o nosso futuro são:
Que sistema de transporte urbano devemos organizar para acomodar, com qualidade e eficiência, os futuros
deslocamentos nas cidades brasileiras?
Qual deve ser o tratamento dispensado a cada modo de transporte e quais deles devem ter prioridade?
Uma política diferente de mobilidade precisaria romper com os procedimentos atuais em três áreas. Primeiro, deveria
reduzir os benefícios e subsídios ao transporte individual – principalmente o automóvel – e cobrar dos seus usuários
os altos custos de consumo de espaço, emissão de poluentes e insegurança no trânsito que são gerados para a
sociedade; os recursos deveriam ser usados na ampliação do transporte público e na garantia de acesso por parte
dos grupos sociais de baixa renda. Segundo, deveria garantir espaço nas vias públicas para que as formas não
motorizadas e o transporte público tenham qualidade, segurança e prioridade efetivas na circulação – o que requer a
reorganização do sistema de circulação, a redução da violência no trânsito e a diminuição do espaço disponível para
o uso inadequado pelo automóvel. Finalmente, deveria incentivar novas formas de ocupação e desenvolvimento
urbano, para reduzir a necessidade de transporte motorizado e reforçar as vantagens do uso do transporte público.
No entanto, conforme visto, o financiamento da mobilidade com equidade e sustentabilidade no Brasil tem enfrentado
muitos obstáculos. Por um lado, investimentos no sistema viário, que beneficiam na maior parte dos casos os
usuários de automóvel, são defendidos como de interesse público, enquanto investimentos em grandes sistemas de
transporte público passam a depender do mercado financeiro ou da rara disponibilidade de recursos públicos. Por
outro lado, os custos impostos à sociedade pelo uso do automóvel e da motocicleta não são contabilizados
apropriadamente, permitindo que investimentos socialmente regressivos sejam realizados.
Adicionalmente, no contexto político brasileiro atual não há nenhuma força política relevante que defenda a mudança
do modelo instalado. Os discursos oficiais jamais negam o apoio ao transporte público, mas são essencialmente
retóricos: na prática, o que ocorre é a manutenção das políticas aplicadas há décadas, acompanhada da celebração
do fato de que uma crescente parcela da população agora tem acesso ao automóvel e à motocicleta. A morte recente
de 72 mil usuários de motocicletas, dentro da ideologia da “libertação dos pobres”, é vista como um “custo do
progresso”, evidenciando a enorme iniquidade histórica das nossas políticas de mobilidade.
Para romper esse padrão insustentável, o desafio é convencer a sociedade de que é preciso mudar, e isso só será
possível se forças políticas autônomas, originadas nos movimentos sociais ligados à saúde pública, ao meio
ambiente e à equidade, se fortalecerem a ponto de forçar a mudança de posicionamento pelo sistema político.
Eduardo A. Vasconcellos
Diretor do Instituto Movimento de São Paulo e assessor da Associação Nacional dos Transportes Públicos (ANTP).
Referência bibliográfica
ANTP – Associação Nacional dos Transportes Públicos, “Sistema de Informação da Mobilidade”, 2011. Disponível em:
<www.antp.org.br>.
23-07-2012 10:29
:: Le Monde Diplomatique Brasil ::
5 de 5
http://www.diplomatique.org.br/print.php?tipo=ar&id=1181
Palavras chave: Meio ambiente, urbanismo, política pública, coletivo, qualidade de vida, cidades metropóle, automóveis, carros, coletivo,
mobilidade, transporte público, segurança, governo, ônibus
23-07-2012 10:29
Download

O transporte urbano no Brasil