O Centenário do Serviço de Transportes
O CENTENÁRIO DO SERVIÇO DE TRANSPORTES
SAj AdMil Alves dos Santos
A Primeira Guerra Mundial mudou o mundo e, consequentemente, Portugal. Quando o conflito eclodiu, o
País ainda se encontrava num estado de consolidação das instituições republicanas, enfrentando graves carências
financeiras com profundo impacto na estabilidade política e social. O Exército Português encontrava-se num
processo de reestruturação, apresentando um profundo atraso em termos de organização, armamento e treino, que
nos colocavam numa situação de total impossibilidade de enfrentar uma guerra moderna.
Confrontado com a necessidade de defender extensos territórios coloniais e, eventualmente, apoiar os
aliados britânicos na Europa, as nossas Forças Armadas tentam recuperar algum do atraso, adquirindo armamento e
material de transportes. Fruto deste esforço, o General Norton de Matos, Ministro da Guerra, através de Portaria nº
536-A, de 16 de Dezembro de 1915, viria a constituir, junto do Estado-Maior do Exército, uma Comissão de
Automobilismo Militar, que seria o embrião do atual Serviço de Transportes, o que nos leva a considerar esta data
como o momento chave no historial deste Serviço. Faz pois todo o sentido, 100 anos depois, evocar esta data
recordando alguns factos que foram construindo a herança histórica do Serviço de Transportes, cuja formação hoje
se encontra sedeada na Escola Prática dos Serviços.
O primeiro automóvel a entrar em Portugal foi um veículo da marca Panhard & Levassor, importado de Paris
pelo IV Conde de Avilez, e que chegou no dia 11 de Outubro de 1895. Esta viatura tinha uma cilindrada de 1290 cc,
potência de 4cv de 750 rotações por minuto, atingindo uma impressionante velocidade máxima de 20 km por hora.
Logo no início do século XX, o País começa a despertar para este meio de locomoção, surgindo vários
empresários interessados em implementar linhas de transportes públicos, servidas por automóveis, conforme se
realça deste texto publicado em 1901:
“É Portugal um dos países da Europa mais atrasados em viação acelerada. Para isso concorrem,
principalmente, as nossas dificuldades financeiras e as condições orográficas do país. Para exemplo frisante temos a
nossa província de Trás-os-Montes, onde a locomoção acelerada é quase desconhecida. O que é a locomoção nesta
província vê-se bem nos seguintes factos. A estrada da Régua a Chaves mede 90 km de extensão e para ser
percorrida em carruagem são precisas 12 horas, e em diligência 16 a 17 horas. (…) A estrada de Mirandela a
Bragança mede 65 km; para a percorrer em diligência gastam-se 11 horas de tormentosa viagem.
Escola Prática dos Serviços, Boletim nº 2 de 19 de dezembro de 2014
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Comparemos rapidamente estas demoradas viagens com o que se pode conseguir com o emprego de
automóveis. Não pensamos em falar nas velocidades vertiginosas que hoje se obtêm com estes veículos. Estas
velocidades não são comerciais. Contentar-nos-emos com as velocidades práticas de um máximo de 30 km/h e
comerciais de 18 a 20 km/h. (…) Em automóveis, com as velocidades não perigosas que indicamos, a viagem de
Régua a Chaves reduzir-se-ia a 5 horas (…) e de Mirandela a Bragança a 4 horas.”1
Terá sido neste período que o infante D. Afonso, amante de carros e de velocidade (corria pelas ruas de
Lisboa no seu automóvel aos gritos «Arreda, Arreda!» para que as pessoas saíssem da frente, o que lhe valeu o
cognome de «O Arreda»), promoveu a organização das primeiras corridas de carros em Portugal, patrocinando assim
a divulgação do automobilismo.
Neste contexto, o então ministro da guerra, o general Pimentel Pinto, decide encomendar à FIAT uma
viatura de quatro lugares, para se deslocar nos percursos mais longos. A viatura chegou acompanhada por um
“chauffeur” italiano e por um representante da marca, que pretendia aproveitar a publicidade da compra para
angariar clientes. Como não existiam em Portugal “chauffeurs”, foram nomeados dois tenentes do Ministério da
Guerra que “arranhavam” a língua italiana para receberem a formação do “chauffeur” italiano e que deveria,
posteriormente, ser replicada a soldados portugueses, formando assim os primeiros condutores militares.
1. As viaturas do infante Afonso e a do Ministro da Guerra. In Ilustração Portuguesa, número 43, 29 de Agosto de 1904, p. 676.
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Júlio César de Vasconcelos Correia, Memória sobre Viação Pública em Portugal por meio de Automóveis (Lisboa: Edição do Autor, 1901).
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As aulas iniciavam-se diariamente com uma sessão teórica em garagem, complementada posteriormente
por uma aula prática cujo trajeto foi sendo alongado até locais como Loures, Sintra e Sacavém. Terminada a
formação destes dois oficiais, tornou-se necessário selecionar o primeiro aluno dos novos instrutores. A escolha
recaiu sobre um primeiro sargento que prestava serviço na “secção de transportes” da Direção da Administração
Militar, no Ministério da Guerra, que, por sua vez, tornar-se-ia no instrutor de condução das praças da Manutenção
Militar, primeira unidade do Exército a adquirir viaturas automóveis para o transporte de produtos.
Este primeiro sargento continuou a ser o condutor da viatura do Ministro da Guerra, salvo quando se
verificava ser necessário mais um lugar, altura em que um dos oficiais atrás referidos voltava a assumir o volante.
Das peripécias vivenciadas por estes condutores chegou-nos o testemunho do coronel de engenharia João de
Oliveira, um dos dois tenentes atrás referidos, e que nos relata as manobras da 3ª Divisão Militar, realizadas em
Viana do Castelo, em 1904, que contaram com a presença do rei D. Carlos. Num dos deslocamentos, a charrete do
rei, que era conduzida pelo infante D. Afonso (o tal “Arreda!” a que fizemos referência anteriormente), iniciou a
descida da serra de Santa Luzia a alta velocidade, sendo seguida pelo automóvel do Ministro da Guerra, conduzido,
por sua vez, pelo então tenente Oliveira que conclui:
“A descida, que a tal um dia nos vimos forçados, do Alto de Santa Luzia, para a cidade, ainda hoje a
recordamos, como das circunstâncias mais arriscadas, em que nos encontramos”2.
Em campanha, o primeiro exército a utilizar em larga escala as viaturas automóveis foi o italiano, em 1911.
Na sua campanha de Trípoli contra os Otomanos, os italianos utilizaram cerca de 120 camiões, a sua maioria da
marca FIAT, que garantiram o abastecimento das tropas e o reboque de artilharia. Nas análises feitas às operações
concluiu-se que cada camião de 3 toneladas havia substituído cerca de 15 a 20 muares e que, caso se tivessem
utilizados os transportes tradicionais, teriam sido necessários mais de 15.000 solípedes.
Começou pois a crescer o interesse pelo veículo movido a motor de explosão e, o desenvolvimento das suas
capacidades, em conjugação com o transporte ferroviário, acabou por ditar a sua adoção intensiva por parte dos
exércitos beligerantes. O general alemão Von Lettow-Vorbeck, contra quem os portugueses se bateram na África
Oriental, definiu assim as qualidades destas viaturas:
“Não sendo a estrada boa, os camions de três toneladas faziam um percurso de ida e volta, com bom tempo,
em um dia. Como os carregadores levavam pelo menos quatro dias a fazer a mesma viagem, cada camion substituia
2
In REVISTA DE ENGENHARIA MILITAR: NÚMERO COMEMORATIVO DO III CENTENÁRIO DA ENGENHARIA MILITAR, Tip. Liga dos Combatentes
da Grande Guerra, Lisboa, 1947, p. 177.
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o trabalho de seiscentos carregadores, abstraindo da alimentação destes. O princípio, mantido mais tarde pelos
inglêses, de substituir os carregadores e animais de carga pelos transportes mecânicos, tornava-se ainda mais
vantajôso se atendêrmos a que os homens e os animais sofrem severamente com as doenças tropicais, ao passo que
os mosquitos são impotentes contra os automóveis”3.
Ao preparar as expedições para Angola e Moçambique, os chefes das expedições anteciparam a importância
da utilização destas novas viaturas, cujo atraso na sua chegada foi motivo de grandes percalços, mas cujo emprego
veio contrariar muitas das reticências que se colocavam ao seu emprego generalizado. O então tenente Santos
Correia, que exerceu funções de Chefe de Estado-maior de Etapas da Expedição a Angola, sob comando do general
Pereira d’Eça, refere mesmo:
“Pode, com segurança, dizer-se que, dada a situação criada em meados de 1915, sem o camião não teria sido
possível realizar nesse ano a ocupação do Cuanhama”4 .
2. Camiões ao serviço das tropas em Chibia-Angola. In Ilustração Portuguesa, número 480, 3 de Maio de 1915, p. 575.
Como resultado destas ilações, o então Ministro da Guerra, o General Norton de Matos, através da já
referida Portaria nº 536-A, de 16 de Dezembro de 1915, criou junto do Estado-Maior do Exército uma Comissão de
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VON LETTOW-VORBECK, General. As minhas memórias da África Oriental, trad. de Abílio Pais de Ramos, Évora, 1923, p. 60.
CORREIA, J. Santos. Ngiva: campanha do sul de Angola em 1915: seus antecedentes – Naulila, Lisboa, 1943, p. 108.
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Automobilismo Militar, com a finalidade de proceder a estudos e trabalhos que servissem de base à organização do
Serviço Automóvel Militar, com a seguinte fundamentação:
“São da mais palpitante actualidade os serviços que as viaturas automóveis prestam aos Exércitos em
operações, e verificada está a necessidade impreterível de as utilizar, já para levarem até junto das tropas os víveres,
as munições e o material de toda a ordem transportado pelas vias férreas, já para evacuarem rapidamente, para as
estações de caminho de ferro, os feridos e doentes, já finalmente para prestarem outros serviços de guerra ou de paz.
Urgente se torna, portanto, dotar o Exército Português com um serviço automóvel, tanto mais que raros são os
Exércitos estrangeiros onde a necessidade impreterível de tal não está ainda montado”5 .
Foi estabelecido, sob proposta da Comissão, o funcionamento provisório em Lisboa e Coimbra, de dois
Centros de Instrução de Automobilistas, para habilitar Oficiais, Sargentos e Praças do Exército nos serviços de
condução, reparação e conservação das viaturas automóveis e prover pessoal devidamente habilitado para as
conduzir e reparar. É desta forma que, em pleno auge do primeiro conflito mundial (1914-1918), Portugal
acompanha a evolução verificada nos exércitos beligerantes, tendo inclusivamente um comboio automóvel, formado
por três grupos, partido do Entroncamento para França, com o objetivo de levar viaturas e material ao Corpo
Expedicionário Português que se encontrava a combater naquelas paragens.
Refira-se ainda que, apesar de existir um Serviço Militar Automóvel, as unidades automóveis encontravamse dependentes do Serviço de Administração Militar, conforme descreve um decreto de 1919, que reorganiza as
unidades de Administração Militar:
"Considerando que o decreto-lei de 25 de Maio de 1911, que reorganizou o exército, reuniu as companhias de
tropas de administração militar em três grupos, unicamente por conveniência de administração e com intuitos de
economia, visto não haver na ocasião aquartelamentos adequados;
(…) Considerando que a 1ª parte do regulamento de mobilização do exército de campanha, nas suas
disposições gerais, sob a rubrica "Vaguemestres e condutores de viaturas", determina que os vaguemestres e
condutores de viaturas dos quartéis generais, e os condutores das formações sanitárias e administrativas são praças
das tropas de administração militar, doutrina esta que é confirmada pelo § 3º do artigo 4º do decreto-lei de 25 de
Maio de 1911, que reorganizou o exército, e pelo artigo 61º do regulamento para a instrução do exército
metropolitano;
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Ordem do Exército nº19, 1ª Série, 31 de Dezembro de 1915, p. 616.
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(…) Considerando que no Corpo Expedicionário Português a parte técnica dos serviços automóveis esteve
sempre a cargo da arma de engenharia e a execução do serviço de transportes entregue à administração militar,
como aliás sucedia no exército britânico, com magníficos resultados para a conservação do material, rendimento das
viaturas e satisfação das exigências militares: (…)"6.
3. Viaturas de Transportes do CEP. Foto AHM.
Neste contexto, o Governo decreta que a constituição dos Grupos de Administração Militar passe a
contemplar três companhias, sendo uma de equipagens, uma de subsistências e uma de automóveis. Refere ainda
que os quadros das companhias automóveis devem ser preenchidos por oficiais de Administração Militar. Por outro
lado, junto a cada Grupo de Companhias é estabelecido um Parque Automóvel, para guarda e manutenção das
viaturas divisionárias que não estejam distribuídas às Unidades, sendo neste caso a direção atribuída à Arma de
Engenharia. Este estabelecimento tinha ainda como missão mobilizar as formações automóveis de engenharia e
artilharia da respetiva Divisão.
A partir daqui este serviço continuou a evoluir, servindo o País e o Exército com as limitações próprias da
nossa dimensão, mas dignificando e honrando os pergaminhos conquistados nos conturbados anos da sua génese.
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Decreto nº 5787-JJJ de 10 de Maio de 1919. Diário da Republica nº 98, I Série, 10 de Maio de 1919.
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