De Porto
Em dez anos, debates e
mobilizações espalhadas
por todos os continentes
mostram que o Fórum
Social Mundial está
mundializado e
continua ampliando
sua conexão pluralista
e diversa com agendas
e temáticas formuladas
para a construção de
outro mundo possível
Fotos: Paulino Menezes
Rita Freire
De Porto Alegre a Nairóbi, passando
pelas Américas, Ásia e Europa: ações
altermundistas construíram uma agenda
política indispensável para enfrentar
os impasses e crises do mundo
Teoria e Debate 85 H novembro/dezembro 2009
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FSM 10 anos
Alegre a Dacar
A
vontade brasileira de demarcar, em Porto Alegre, a
passagem dos dez anos do
Fórum Social Mundial em
2010, quando se completam dez janeiros anti-Davos, ajudou a
inspirar o formato que o processo terá
a partir desse ano. Começará na capital gaúcha, com um balanço político
do FSM na virada de década e seguirá
por uma trilha de Fóruns, de evento
em evento, rumo à África.
Contados de outra forma, os dez
anos de vida do FSM, nascido em 2001,
levam a festa de aniversário para janeiro de 2011 na cidade Dacar, onde
está programada a próxima edição
mundial. Ela concretizará no Senegal
a vontade africana de organizar novamente um FSM no continente.
Entre um evento e outro, o FSM
terá a jornada mais longa de sua história. A diversidade de encontros já
agendados pelo mundo nesse intervalo
não foi pensada para celebrar, mas
para participar de uma edição histórica do Fórum em movimento, acrescentando contribuições de processos e
culturas distintos para um futuro que
comporte saídas para as várias crises
que agora se sobrepõem, financeira,
ambiental, energética, alimentar, de
modelos de sociedade, ou mesmo uma
só crise civilizatória.
A agenda capaz de conectar em
um ano atividades por toda a América
com eventos no Oriente Médio, intercalados a outros na Europa, na Ásia ou
na África, demonstra que o Fórum se
“mundializou” de fato nesses dez anos
e continua se alargando. Desde que
saiu de Porto Alegre para realizar-se em
Mumbai, em 2004, já teve edições em
Caracas, Bamako e Karachi (na edição
policêntrica de 2006), além de Nairóbi,
em 2007. Experimentou um dia de Ação
Global em 2008 e uma edição mundial
em Belém, na Amazônia, em 2009.
Se os eventos mundiais demarcam
a continuidade do processo FSM, são
especialmente os continentais, nacionais e locais que antecipam sua
ampliação e diversidade. Antes de
Mumbai, a Ásia realizou seu primeiro
Fórum continental em Hyderabad. Antes de Nairóbi houve Bamako e Fóruns
Sociais regionais na África. Antes de
Belém 2009, os Fóruns Sociais PanAmazônicos.
Para integrantes do Grupo Brasileiro de Reflexão e Apoio ao processo
FSM, formado por ativistas do evento
desde sua formação, o Fórum foi incorporando, por onde passou, novas
temáticas e reflexões, sem perder seu
pluralismo, e conseguiu construir de
forma colaborativa uma agenda política “vigorosa, inovadora e indispensável para enfrentar os dilemas de civilização do mundo em que vivemos”.
Mundializado e diverso
Quando o FSM nasceu, advogando
por um Outro Mundo Possível, atraía
ideias mobilizadoras contra o que foi
chamado de pensamento único. Surgiu reunindo vozes contra as patentes,
enquanto a África era flagelada pela
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Aids. Seus participantes encampavam as lutas pela terra e pelo acesso
aos bens comuns da humanidade, e
o mundo se armava na disputa por
negócios com água e petróleo. Exibia experiências singelas de economia solidária em tempos dominados
pela ditadura das finanças globais.
Defendia o ir e vir de pessoas barradas por fronteiras que, no entanto, se
escancaravam para o livre transitar
de mercadorias.
O pensamento único que o FSM
ajudou a quebrar se reproduzia em todas as estruturas hegemônicas de dominação, mas particularmente aquelas
armadas para promover e comandar
a globalização neoliberal: o Fórum
Econômico de Davos, as reuniões da
OMC, os encontros do G-8. Sintetizava
a cultura branca, patriarcal, imperialista, machista, racista, homofóbica
e belicista que orientava e orienta as
relações de poder predominantes.
O FSM foi, em contraste, uma
convocatória inédita à diversidade
humana – cultural, geográfica, étnica, de gênero –, a debater seu futuro
conjuntamente, sob uma perspectiva
de sociedade civil mundial horizontalmente mobilizada, ampla o bastante
para abranger povos e comunidades,
movimentos sociais e populares, organizações e redes. Outro Mundo Possível já seria esse, diverso e mobilizado
pela tarefa de se recriar.
O que estaria em discussão nos
anos seguintes, e não deixou de sê-lo
até hoje, foi o próprio papel do Fórum
Teoria e Debate 85 H novembro/dezembro 2009
nessa recriação, se deveria ou não ser
algo mais do que o espaço de encontro
e de articulações entre experiências
e propostas para um mundo melhor.
O FSM se manteve como tal. Mas
nunca sua afirmação utópica de que
um outro mundo é possível e está em
processo foi posta em dúvida, em que
pesem as turbulências que cercaram o
Fórum nesses dez anos de existência.
O mundo mais cruel
A última década foi perversa contra as chances de derrubar em curto
prazo, com ideias e pactos coletivos de
resistência, os totens da globalização
em vigor, principal aposta do nascente
movimento altermundista que conseguira fazer estremecer a OMC em
Seattle, em 1999. O terror antecipouse aos sonhos de mudança criativa.
Menos de um ano após o nascimento
do FSM, ruíam as torres gêmeas por
ações terroristas, e o 11 de Setembro
deu novo verniz aos argumentos para
o controle do mundo pelas armas, a
supremacia ocidental e o poder econômico das empresas transnacionais.
Guerras sem sentido e xenofobias
de todo tipo foram apoiadas na propagação do medo e fizeram do FSM um
espelho da resistência aos terrorismos
de Estado usados contra o terror. Um
chamado feito no Fórum pela Assembleia dos Movimentos sociais levou
milhões às ruas contra a invasão do
Iraque, em março de 2003. O universo FSM prosseguiu firme desafiando Davos, OMC, G-8. Mas o inimigo,
desconhecendo limites, estava ainda
mais feroz.
O FSM também foi uma caixa de
ressonância à constatação de que os recursos naturais do planeta minguavam
na mesma velocidade de um aquecimento global já em curso. Tsunamis,
furacões, polos derretidos, oceanos
Teoria e Debate 85 H novembro/dezembro 2009
acidificados. Todo esse assombro em Presidência do Brasil e sua reeleição,
doses catastróficas concorreu com com a recondução de Hugo Chávez
as esperanças de jovens ativistas que ao governo da Venezuela, depois do
saíam às ruas e se reuniam nos Fóruns golpe, e a vitória do cocaleiro Evo Mopara mudar o mundo. Herdaram mis- rales para o governo do Bolívia. Aos
sões quase impossíveis: frear o consu- poucos a região foi sentindo mudar
mismo que se transformou em “modo sua correlação de forças e seus goverde vida” no Ocidente, mudar a matriz nos, a ponto de não mais reconhecer
energética sobre a qual toda a globali- lideranças golpistas, como no recente
zação se move, alterar a relação entre caso de Honduras.
seres humanos e o planeta, o cotidiano
Ainda que governos não sejam parte
e o conceito de viver bem. Foi um dos do FSM, preservada sua autonomia de
motivos para aprovar a realização do espaço da sociedade civil, todos esses
FSM, em 2009, na Amazônia, em Belém acontecimentos mobilizaram seus intedo Pará, para um contato direto de seus grantes nas ruas e campanhas e reperintegrantes com as vozes dos povos da cutiram nas edições do Fórum no Brasil.
floresta, que esbanjaram lições sobre o Foram também vitórias das novas forBom Viver, mas pouco podem sozinhos mas de comunicação encampadas pelos
contra a devastação de seu habitat.
seus ativistas, mídias e movimentos
Esse conjunto de crises, somado à contra a hegemonia dos grandes meios
explosão da crise financeira mundial, de comunicação, que estiveram ativos
que escancarou os limites do mode- em todos esses momentos, defendenlo econômico,
do interesses do
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poder político e
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e
contribuído, com
propostas, mobilizações e redes de resistência, para a
mudança da vida política na região.
Sua história testemunhou relevantes
vitórias da sociedade contra as opções
de governo impostas pelo poder econômico e pelas elites no continente.
Foi assim com a chegada de Lula à
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coletiva e compartilhada de atividades
midiáticas, práticas que são caras ao
FSM desde a sua primeira edição.
Se no mundo a comunicação entre
pessoas foi facilitada na última década pelo acesso às novas tecnologias,
no Fórum Social, e em particular na
América Latina, as possibilidades
colaborativas se transformaram em
ferramentas deliberadamente compartilhadas como exercícios de resistência política e social.
Uma agenda para 2010
Aperfeiçoar o FSM como espaço
aberto ao encontro e articulação de
alternativas, nos seus territórios planetários, geográficos ou virtuais, pode
ser a tarefa da década que virá. Por isso
alguns fóruns serão focados em determinados aspectos das crises mundiais
e precisarão conectar-se, com práticas
de comunicação compartilhada, com
outros fóruns, outros temas, outras
reflexões.
Como exemplo, em Detroit, um
II Fórum Social dos Estados Unidos
debaterá saídas não capitalistas para
a crise econômica, do ponto de vista de quem nunca foi incluído nas
riquezas acumuladas pelo império,
mesmo vivendo nele. Esse Fórum regional teve início em Atlanta em 2008,
após os desastres do furacão Katrina
e o abandono dos flagelados quase à
própria sorte, vítimas de um modelo
de país que não se ocupa em socorrer
igualmente a todos os seus.
Na Palestina, outro exemplo, o Fórum Mundial de Educação debaterá
a formação das gerações que nasceram cercadas por guerras e muros e
têm nas mãos a tarefa de concretizar
um mundo livre de invasões e ocupações. Será um acontecimento novo,
especialmente porque pretende levar
o espaço livre, rebelde e aberto do FSM
para dentro das cercas erguidas e controladas por Israel. A ousadia de hoje
é produto de esforços anteriores pela
expansão do fórum pelo mundo árabe.
Só no Brasil haverá pelo menos
três fóruns em 2010, com vocações
distintas: em Porto Alegre e cidades
do entorno, o evento se guiará especialmente pelo debate da história
e perspectivas de seu processo. Em
Salvador, na Bahia, a mais negra das
cidades brasileiras, participantes querem debater o processo rumo a Dacar
a partir de sua identidade como parte
da África na diáspora. E em Santarém,
no Pará, organizações, comunidades
e movimentos do Equador, Colômbia,
Peru, Bolívia, Venezuela, Suriname,
Guiana, Guiana Francesa e Brasil vão
se debruçar em propostas para proteger recursos da natureza, territórios
e culturas tradicionais durante seu V
Fórum Social Pan-Amazônico.
Ampliando processos regionais,
haverá fóruns se deslocando pelos
continentes onde as edições anuais
já se tornaram tradição: o Europeu,
que passou por Itália, França, Londres,
Grécia e Suécia, vai para a Turquia, o
das Américas, que já percorreu Equador, Venezuela e Guatemala, segue
agora para o Paraguai.
A agenda rumo à África continua
aberta, incluindo propostas ousadas
como a de um Fórum sobre a Crise de
Civilização e outras de delicada construção, como a de indianos e paquistaneses, que querem fazer um fórum
no Nepal. ✪
Rita Freire é jornalista e representa a Ciranda
Internacional de Informação Independente na
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