Exmº Senhor Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público;
Ilustres membros da mesa;
Caríssimos Colegas;
Minhas Senhoras e meus Senhores
Bem andou a Direcção do Sindicato dos Magistrados do Ministério
Público, em organizar este Forum Nacional do Ministério Público pelo que ele
significa de espaço aberto a uma sempre oportuna reflexão critica sobre o
que somos e deveríamos ser. Melhor andará o Sindicato se concretizar a
renovação deste encontro, periodicamente, discutindo em cada conjuntura a
defesa do Estatuto no que ele tem de irrenunciável, debatendo o modo como
poderemos ser protagonistas na defesa dos valores constitucionais, ou seja,
de cumprirmos o mandato que o diploma fundamental nos outorga.
É portanto com gosto que estou aqui.
Estou aqui menos por razões institucionais e sobretudo pela
oportunidade de convosco partilhar alguma reflexão que fui fazendo sobre a
nossa profissão. Era Delegado no Alto Minho quando aconteceu o 25 de
Abril, desde aí a minha actividade profissional foi sempre e só a de
magistrado do MºPº. Faz cinco anos que ocupo o cargo de Procurador-Geral
da República. Ninguém estranhará que muitas vezes me tenha questionado
sobre quem somos, nós, o MºPº português, como é que estamos organizados
e para que é que existimos. Ou seja, o que é que nos pedem que façamos.
Pego nestas três perspectivas e passarei a tocar alguns pontos que
relevam da organização judiciária em que o MºPº se insere, do estatuto
pessoal do magistrado, das atribuições e competências que lhe são próprias.
Sem cair no ridículo de só ter certezas, sem a insensatez de querer ser
exaustivo.
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1 – Duas questões prévias que creio serem oportunas.
Os indivíduos, os povos, as instituições que perdem a memória
perdem a face. Ou, pelo menos, aceitam envergar a máscara que lhes
quiserem põr. Por isso é que a apreensão crítica da realidade que somos
nunca dispensará a perspectiva histórica do porquê de termos chegado onde
chegamos.
Por outro lado, vivemos uma era de integração em espaços que
transcendem os limites do clássico Estado-Nação, e um tempo dominado
pela informação ao nível mais global. A comparação entre sistemas e o
conhecimento das soluções acolhidas no estrangeiro, será sempre de
enorme valia, porque a nossa identidade se constrói também com esses
contributos. Mas a importação acrítica de experiências alheias sectorizadas
pode ser um perigo. Em matéria de organização judiciária, de estatuto
profissional, de leis de processo, é uma tentação mudar um regime à
semelhança do que se fez algures com bons resultados. Não poderá é
esquecer-se que a árvore bonita que vimos lá fora terá que ser implantada
numa outra floresta que é a nossa. Há portanto toda uma teia de conexões e
dependências em matéria de sistemas sociais que reclamam especial
prudência na importação de soluções pontuais.
2 - Começar pelo princípio é ir à Constituição. Logo na versão de 1976
três artigos se referiram ao Ministério Público, integrados num título, então o
VI, epigrafado “Tribunais”. Daí a consolidação do tratamento do MºPº como
magistratura, afastando-o irremediavelmente da Administração, tratamento
em que aflorara logo a ideia de autogoverno, corolário da autonomia.
Ora, esta legitimação constitucional do MºPº e a configuração que se
lhe quis dar, podem e são naturalmente instrumentais em relação ao
desempenho de determinadas funções, que surgem, todas elas, com uma
matriz fundamentalmente comunitária. São instrumentais em relação a
competências que só podem ser justificadas pela prossecução de valores e
princípios, também ínsitos na Constituição.
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Dir-se-ia então que a Constituição lançou as bases de um
principio de congruência indispensável, entre as dimensões orgânicas e
estatutária da magistratura do MºPº, e a dimensão funcional desta
magistratura, ou seja, do desempenho daquilo que lhe é pedido pela
própria Constituição. A organização e o estatuto profissional do MºPº serão
reclamados pelas competências que lhe atribuírem enquanto poderesdeveres, e o exercício de tais competências não poderá deixar de ser
viabilizado pelos aludidos aspectos organizativos e estatutários.
Quando o artigo 2º da Constituição caracteriza Portugal como Estado
de Direito, Estado democrático e Estado social, terá que pensar-se no papel
que o MºPº deve ter em domínios como o da defesa da legalidade, quanto ao
primeiro aspecto, na área da acção penal ao serviço da segurança, a qual
funciona como garantia do exercício de todos os outros direitos e sem a qual
não vale a pena falar em Democracia. Pense-se no papel do MºPº em
sectores como o da tutela de interesses difusos, de representação pessoas
especialmente carecidas de protecção, e até como representante do Estado,
e facilmente se reconhece a relevância do contributo da nossa magistratura
na construção da vertente social daquele paradigma de Estado.
Mas poderá fazê-lo? E como?
3 – Recorde-se que a estruturação do Ministério Público, dos vários
Ministérios Públicos nascidos do modelo napoleónico, não se traduziu numa
uniformidade de organização, estatuto ou competências, nos vários países. O
grau de ligação a poderes que não o judicial, o tipo de organização a partir de
uma magistratura organicamente única, e portanto de aproximação à
magistratura judicial, a exclusividade ou não de competências confinadas à
área criminal, todas estas variedades traduzem uma certa relatividade, e para
alguns fungibilidade, das soluções que aqui e agora forem sendo adoptadas.
Se a tudo isto acrescentarmos os ventos que sopram do mundo anglosaxónico, tantas vezes apresentados como panaceia para se minorarem as
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nossas debilidades, percebe-se que em todos os figurinos haja a fragilidade
inerente a um sistema organizativo, onde só um núcleo muito restrito é aceite
por todos como indiscutível.
Por isso é que pensar o Ministério Público é necessariamente
pensar um certo Ministério Público, com o lastro de determinada
evolução histórica e com as condicionantes da sociedade em que se
insere. Por isso é que os aperfeiçoamentos que se imponha introduzir
se compatibilizarão sempre com uma identidade que deve ser própria.
Não me proponho retomar aqui todo um historial relativo ao caso
português do Ministério Público, em tempos de “ancien régime”, e discorro a
partir do nosso liberalismo de oitocentos. Sem dúvida que é com as reformas
de Mouzinho da Silveira de 1832 que se lançaram as bases do que veio a
transformar-se no nosso sistema.
Recolho quatro notas que me parecem as mais marcantes:
Ao Ministério Público foram atribuídas, desde o início, funções
importantes de consulta, designadamente ao serviço do Governo. A ponto de
a Procuradoria-Geral vir a desempenhar tarefas que na matriz francesa são
próprias do Conseil d’Etat e só transitoriamente estiveram, entre nós,
cometidas ao Supremo Tribunal Administrativo.
O Ministério Público deteve sempre um leque variado de
competências, não podendo ser caracterizado, como em muitos países, para
não dizer na maioria, como uma “magistratura criminal”.
O Ministério Público foi organizado hierarquicamente com um único
Procurador-Geral no topo. O qual personalizava a ligação ao Ministério da
Justiça e traduzia o papel de ponte entre o executivo e o judicial, papel que
era próprio de toda a magistratura que encabeçava. Esta característica foi
marcante nos Decretos nºs 24 e 27 de 16 e 19 de Maio de 1832,
respectivamente, onde a propósito do Procurador-Geral da Coroa se dizia,
por um lado, ser ele ”em tudo considerado como Membro do Supremo
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Tribunal”, mas por outro lado era apelidado de “Comissário do Governo
perante as Câmaras”, e que por isso teria lugar no banco dos Ministros!
Já em meados do século passado, concretamente através do DecretoLei nº 35 389, de 22 de Dezembro, e depois no Estatuto Judiciário de 1962, o
Ministério Público era visto como uma magistratura hierarquicamente
organizada na dependência do Ministro da Justiça e sob a chefia directa do
Procurador-Geral da República. Era perante o Ministro que o ProcuradorGeral tomava posse. Era o Ministro que nomeava, movimentava, promovia ou
exonerava os magistrados. Exercia sobre eles a acção disciplinar e
estabelecia as directrizes de ordem geral a que devia subordinar-se a
actuação do Ministério Público.
Outra nota impressiva do nosso sistema foi a de uma ligação estreita
do Ministério Público à magistratura judicial. A ponto de, rigorosamente, só se
poder falar então de magistratura única como carreira profissional.
Durante décadas e décadas o delegado foi considerado, sobretudo,
como alguém “que ainda não era juiz”. Alguém que tinha que fazer o tirocínio
para juiz. O escalão médio e superior do Ministério Público era preenchido
também por elementos recrutados na magistratura judicial.
4 – É sabido como estas duas últimas conotações foram,
profundamente alteradas com a Revolução de Abril, e como foi a restauração
da democracia que verdadeiramente se criou entre nós a magistratura do
Ministério Público. A partir de uma dupla emancipação: de um lado a
separação da magistratura judicial, do outro a autonomia em relação ao
Governo.
A primeira separação sempre seria uma decorrência da instauração de
um Estado de Direito democrático e social. Isto porque as exigências de
promoção de interesses comunitários, tal como passaram a ser entendidas,
reclamavam agentes não só em número suficiente mas com uma experiência
e um estatuto que não fosse menor, como sempre derivaria do carácter
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vestibular que o Ministério Público tinha tido, pelo menos no que respeita à
sua representação em primeira instância.
As consequências da separação entre magistraturas manifestar-se-iam
a níveis muito diversos. Para além das imprescindíveis reformas
organizativas, teve que colocar-se de modo radicalmente novo a questão da
formação dos juizes, não faltando, ainda hoje, quem continue a defender que
a passagem pelo Ministério Público é imprescindível à qualidade do exercício
da judicatura. Qualidade que só se atingiria com a formação técnica,
experiência profissional do foro e maturidade, adquiridas nos anos de
Delegado.
O paralelismo entre magistraturas, suas incidências ao nível do
estatuto remuneratório e progressão nas duas carreiras viriam a criar aqui e
ali tensões. Mas o decorrer dos anos acabaria por eliminar a fonte de parte
dessas tensões. Desde logo, o facto de a então criada magistratura do
Ministério Público ter tido que colocar elementos bastante novos, em postos
adiantados da carreira, e, hoje, ser a magistratura judicial que,
comparativamente com o Ministério Público, se apresenta na primeira
instância como magistratura geralmente mais jovem.
Passados quasi trinta anos sobre a separação entre
magistraturas, ultrapassada a natural necessidade de afirmação do
Ministério Público como corpo completamente distinto, parificadas as
faixas etárias de recrutamento, haverá que reequacionar, o actual
sistema de separação.
Creio que a nortear essa reavaliação só poderá estar uma melhoria
das condições de trabalho das duas magistraturas, e, sobretudo, a maior
qualidade do serviço prestado pelos tribunais. É preocupante a instalação,
ainda que pontual, de uma cultura de desconfiança ou de arrogância entre as
magistraturas. É pernicioso que o sistema não viabilize uma correcta
realização profissional, sempre que alguém conclua que a opção inicial
tomada por uma das magistraturas não foi para si a mais adequada.
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Concomitantemente, nada pode ser iludido e tudo o que for diferente
reclamará tratamento diferente. Recrutamento e formação conjunta no Centro
de Estudos Judiciários obviamente que sim. Formação só parcialmente
comum e especializações adequadas a cada magistratura, também.
E é assim que alguma permeabilidade entre magistraturas me parecer
de acolher. Permitindo uma transição entre ambas que se assumirá como
correcção, por uma vez, da opção inicial. Após alguns anos de exercício, e
sem prejuízo, em termos de antiguidade, para os elementos que integram a
magistratura para que se transita.
5 - Tal como está consagrada na lei, a questão da autonomia, não
deverá, no nosso ponto de vista, ser objecto de revisão.
Na verdade, também em matéria de ligações do Ministério Público com
os outros poderes do Estado a Constituição democrática produziu os seus
efeitos, dado o papel reforçado que se quis atribuir ao judicial. De tal modo
que a autonomia em causa terá sempre que ser avaliada, não como uma
prerrogativa ou um privilégio que acaba por ser concedido ao Ministério
Público, ultimando um processo reivindicativo de classe, mas como um
repensar do equilíbrio entre os próprios poderes do Estado. Um poder judicial
independente de pleno, como se quis que o judicial passasse a ser,
reclamava, na conjuntura histórica que era a nossa, a eliminação de todos os
condicionamentos protagonizados até então pelo Ministério Público. E estou,
obviamente, a ter em mente sobretudo a justiça penal.
Porque o papel da justiça criminal não pode, evidentemente, reduzir-se
ao papel do juiz penal. Mesmo que este decida de forma célere,
independente e imparcial o que lhe é pedido que decida, ficará sempre
por apurar se a sua intervenção é desencadeada em todas as situações
de cometimento de crime. Por outras palavras, não haverá justiça penal
sem juizes independentes, mas a função social repressiva do sistema
só se aproximará dos seus objectivos, se houver quem leve aos juizes
com objectividade, respeitando rigorosamente a lei e sem interferências
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imprevistas, tudo aquilo que eles devem julgar. A autonomia do
Ministério Público está ao serviço deste desiderato.
Em nome de imperativos constitucionais de justiça e igualdade
perante a lei, o principio democrático ínsito na Constituição levou a que, aos
julgadores, não pudesse ser subtraído o que não convinha que eles vissem,
ou o que se repercutisse negativamente nos outros poderes do Estado. Não
fora assim, estar-se-ia a criar um contra-peso do poder da judicatura que se
tornaria demasiado pesado para os cidadãos, em democracia.
Creio que esta exigência democrática de autonomia do Ministério
Público é hoje aceite maioritariamente, juntamente com corolários que dela
derivam.
Em consonância com a ideia de autonomia, o Ministério Público
continuou, como sempre fora, uma magistratura, e não um corpo especial de
funcionários administrativos. Coerentemente, o estatuto profissional dos
magistrados do Ministério Público continuou muito próximo do dos juizes.
Coerentemente, também o estatuto processual penal do Ministério
Público o afastou da condição de parte, pelo menos em sentido material.
Coerentemente, ao Ministério Público foi atribuído um sistema de auto
governo centrado, no essencial, no seu Conselho Superior.
Importa então repetir algo que já mencionámos antes: o figurino
português do Ministério Público justifica-se á luz de um processo histórico
que é o nosso, criado para funcionar numa sociedade que é a nossa. Sem
que isso impeça que, num jogo de equilíbrios de poder diferente, dirigindo-se
a cidadãos diferentes, se adopte um modelo de Ministério Público também
diferente, e ainda assim compatível com os ditames do moderno Estado-deDireito.
Não por em causa a ideia de autonomia não significa abdicar de
aperfeiçoar o próprio sistema autonómico. E este é melhorável, a meu ver em
duas direcções diferentes. Por um lado, recusando-se as limitações ou
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dependências que de facto, e no terreno, acabam por impedir indirectamente
o funcionamento da autonomia. Por outro lado aperfeiçoando-se os
mecanismos de controle já existentes.
Creio que a lei nos fornece as indicações suficientes para se lograr o
aperfeiçoamento do sistema a esse nível. Continuando a reportarmo-nos à
área penal, porque é para aí que as atenções mais confluem, dispomos da
figura do assistente, com as virtualidades de acompanhamento da actividade
do Ministério Público por parte dos ofendidos. Dispõem os arguidos do
controle judicial necessário, das opções mais gravosas do Ministério Público,
e do controle facultativo da instrução.
Noutro registo diferente, o poder político dispõe de meios de
intervenção, quer ao nível da composição do Conselho Superior, quer através
dos pedidos que, a tal Conselho, o Ministro da Justiça pode formular.
6 – O complexo de direitos e deveres estatutários dos magistrados do
Ministério Público tem, já o referimos, importantes semelhanças com o da
judicatura. Em certos aspectos, porém, afasta-se dele, e é também por aí
que a nossa magistratura se distingue, através da identidade que lhe é
própria.
À maior passividade do juiz contrapõe-se a iniciativa, própria de uma
magistratura, como a do Ministério Público, que é de promoção. Daqui um
primeiro dever, de conotações deontológicas até, que é o dever de agir.
Mas o carácter “pro-activo” da nossa magistratura contraposto ao
carácter “receptivo” da judicial, significa tão só que não devemos recuar,
perante as dificuldades de intervenção que certo caso apresente, se essa
intervenção nos for ditada pela lei. A consabida perversão de tal dever de agir
manifesta-se, por outro lado, em voluntarismos insensatos, estéreis do ponto
de vista da justiça, negativos de outros pontos de vista.
Ao agir, o Ministério Público obedecerá
em todas as suas
intervenções a critérios de objectividade e legalidade estritas. No domínio
penal colaborará “com o tribunal na descoberta da verdade e na realização
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do direito, obedecendo em todas as intervenções processuais a critérios de
estrita objectividade”. Objectividade e legalidade são, para o Ministério
Público, o correspectivo da imparcialidade dos juizes. E se a imparcialidade
deve ir de par com a independência no que toca a estes, a objectividade e
legalidade da actuação do Ministério Público dão corpo à sua autonomia, ao
mesmo tempo que viabilizam uma condição de magistrado. Na prática, a
objectividade e o respeito pela legalidade colocam exigências de
compromisso e equilíbrio às vezes difíceis de preencher, porque têm que se
compaginar com o papel do Ministério Público, de promotor. Daí a questão da
conciliação do distanciamento, sem o qual não há objectividade lúcida, com o
empenho, sem o qual os interesses não serão bem defendidos. Daí que,
também por isto, a nossa tarefa se não apresente fácil. Este é no entanto um
ponto em que não deveremos facilitar.
O Ministério Público português tem pontos de contacto com a
judicatura pela sua forma de recrutamento e formação, pelo estatuto
deontológico semelhante, pelo menos. Afasta-se claramente deles, juízes,
porque está organizado hierárquicamente.
E, no entanto, tal hierarquia não arrasta hoje uma tutela governamental
com ligação forte ao Ministro da Justiça, como acontece por exemplo em
França, ao mesmo tempo que deve ter lugar nos parâmetros da legalidade
penal.
A meu ver, é a segurança dos cidadãos, que se atinge com uma
relativa uniformidade de procedimentos, por parte do Ministério Público,
em todo o país, que justifica, hoje, um Ministério Público organizado
hierarquicamente e não pulverizado. A hierarquia facilitou, como é bom de
ver, a tutela governamental da actividade do Ministério Público, durante
décadas. O que não significa que a hierarquia não deva persistir, ainda que
num registo de autonomia. O trabalho de uma magistratura basicamente de
promoção como é característica do Ministério Público coaduna-se bem com
um modo integrado e não solitário de actuação. Por isso é que, se a
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hierarquia se pode socorrer, se necessário, de um exercício da
autoridade, tem como notas principais o estudo plural das situações e
uma responsabilização externa conjunta.
7 – Na abertura do ano judicial faço referência amiúde ao valor dos
interesses patrimoniais que o Ministério Público defende em juízo, em
representação do Estado. Trata-se de verbas avultadíssimas, que implicariam
despesas acrescidas se a regra fosse o recurso sistemático às profissões
liberais, no patrocínio que as causas reclamam. Um argumento de contornos
económicos levaria pois, sem mais, a que a competência do Ministério
Público para representar o Estado em juízo não fosse questionada. Haverá
no entanto outros interesses
a atender, o primeiro dos quais é o da
competência técnica dos magistrados que se encarregam da dita
representação. Acontece que este aspecto não tem sido questionado em
termos sérios, e a prestação que é pedida aos magistrados melhoraria, até,
se houvesse vontade de instalação, dos chamados “departamentos de
contencioso do Estado” que a lei prevê. Recentemente, parece que o
caminho seguido pelo poder político foi só o de criar maiores flexibilidades,
não cortando com a competência do Ministério Público no sector, até porque
será um dos atributos seus de mais longa tradição. Também não se optou
pela organização inovadora de uma advocacia de Estado, como carreira
separada. Houve sim uma abertura do Estatuto da Ordem dos Advogados à
instalação de gabinetes de profissionais liberais que poderiam passar a
exercer sob tutela governamental.
Os tempos que correm aconselham vivamente, até por razões
financeiras, a manutenção da advocacia de Estado no Ministério Público, em
alternativa à contratação de profissionais liberais. E, assim sendo, razões de
eficácia tornam necessária a instalação, em pleno, dos referidos
departamentos do contencioso de Estado. Conseguir-se-ia uma maior e mais
fácil especialização dos magistrados, concentrar-se-iam meios e facilitar-se-ia
a comunicação entre os magistrados e os serviços da Administração que a
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eles recorrem. De notar que, prevendo-se no Estatuto que os departamentos
se ocupem da defesa dos interesses do Estado, tanto no foro cível como
administrativo, estar-se-ia a atender por aí, também, a problemas colocados
ao Ministério Público na sequência de alterações de competência operadas
pela recente reforma do contencioso administrativo.
Vejamos agora o que de mais notório se passa no campo das
competências penais do Ministério Público. Os últimos anos acentuaram uma
evolução que já vinha a desenhar-se e que justifica uma reflexão acrescida.
O mundo da justiça penal mostrou-se abalado por fenómenos como o
do crime organizado e transnacional, a reclamar, para além do mais, uma
cooperação judiciária internacional frequente. Acresce a necessidade de não
excluir internamente, a política, do controle judicial. O que pode conduzir à
obrigação de investigar, acusar e julgar titulares de cargos políticos, obstando
do mesmo passo à perversão de se politizar a justiça. Também a inflacção da
criminalidade “white collar” criou novos problemas, porque sendo ela
protagonizada por gente de estatuto social elevado, portanto com poder, e
tratando-se em regra de uma delinquência económico-financeira, fica claro
que os meios investigatórios tradicionais se revelam insuficientes, cada vez
mais.
A isto acresce uma maior visibilidade, decorrente do interesse da
comunicação social por tudo o que é crime e crime protagonizado por gente
conhecida.
Esta conjuntura reclama meios técnicos específicos e uma maior
especialização.
Evidencia a necessidade de melhor articulação entre os órgãos de
polícia criminal e o Ministério Público.
Orientará por certo a definição de prioridades de política criminal,
em cuja execução o Ministério Público é chamado a participar.
Abordemos então estes pontos.
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No primeiro aspecto entronca a problemática dos DIAP,
designadamente dos DIAP comarcãos. Como é sabido, esta estrutura foi
pensada como sucedâneo dos TIC, organismos onde estava sediada a antiga
instrução, fase investigatória da criminalidade mais grave. Com a titularidade
do inquérito pelo Ministério Público revelou-se lógica a criação dos DIAP, pelo
menos nas sedes de distrito. As resistências à cobertura jurídica destes
serviços é conhecida, de tal modo que em cerca de 10 anos os DIAP existiam
pouco mais que de facto.
De notar que, a partir do momento em que a investigação passe a
caber, por delegação genérica, quási inteiramente aos órgãos de polícia
criminal (O.P.C.), e quanto mais incipiente e frágil for a estrutura onde se
concentram magistrados, cuja única função é dirigir o inquérito, mais
liberdade de movimentos sobeja para os ditos O.P.C.
Hoje, tenho por certa a vantagem no fortalecimento dos DIAP distritais,
e por absolutamente necessária a criação de DIAP em várias comarcas. O
limiar dos 5.000 inquéritos entrados, como condição da instalação dos DIAP
comarcãos, de acordo com o nosso Estatuto, está largamente ultrapassado
em muitos locais, e a sua instalação tem sido, repetidamente, pedida pelo
Conselho Superior do Ministério Público ao Ministério da Justiça.
Com os DIAP há vantagens de especialização dos magistrados, de
maior proximidade da hierarquia, na organização de turnos e no
relacionamento com os serviços de medicina legal, sobretudo, de melhor
articulação com os O.P.C. Este um ponto de enorme importância, num
sistema, como o nosso, em que a direcção do inquérito e da investigação
cabe ao Ministério Público.
Por outro lado, parece-me evidente que, se for preciso, o magistrado
que lavrou a acusação deverá acompanhar ou assegurar a representação do
Ministério Público no julgamento relativo ao mesmo caso.
Os contornos da nova criminalidade obrigaram à criação do DCIAP
com funções de coordenação ou de investigação em certo tipo de
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criminalidade. Razões parecidas tinham dado origem às Direcções Nacionais
na Policia Judiciária.
Está mais que demostrada a necessidade do DCIAP por razões que se
prendem com a trandistritalidade, a prevenção, e mais uma vez, a
especialização dos magistrados, devidamente articulados com os O.P.C.
Um olhar além fronteiras mostra-nos que a criação de departamentos
especializados para a prevenção e investigação da criminalidade económica,
ou mais sofisticada, em geral, é hoje uma necessidade comum. E assim
deparamos com organismos que vão desde as várias “fiscalías”
especializadas espanholas, passando pelo “Central Prosecution Investigation
Office” da Hungria, ao “Department of Internal Investigations” sediado em
Hamburgo, por exemplo.
O DCIAP já coexiste com o Tribunal Central de Instrução Criminal,
falta dar o passo seguinte que é criar o Tribunal Central de Julgamento. De
qualquer modo, o trabalho desenvolvido pelo DCIAP, face à importância de
que se reveste, não pode continuar a ser prejudicado pelos constrangimentos
e limitações que infelizmente têm tido lugar. E uma vez por todas o poder
político tem que dizer se quer ou não quer que o DCIAP funcione. E quem diz
o DCIAP diz o Núcleo de Assessoria Técnica também ele dependente do
Procurador-Geral.
9 – Nunca, como hoje, interessou tanto chamar à atenção, para o tipo
de relacionamento entre o Ministério Público e os O.P.C. que o Código de
Processo Penal de 87 propôs. Face ao aumento de números de processos,
face à crescente complexidade de certo tipo de delinquência, face ao sempre
eterno défice no número de magistrados.
A grande tentação a que o Ministério Público tem que resistir é a de se
alhear da investigação, sob pena de perder qualquer margem de manobra e
ficar totalmente condicionado pelas polícias.
Creio que o sentido de equilíbrio reclamado pelas decisões
concretas que se tomam no processo, deverá ser sempre iluminado por
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um objectivo último, que é a justiça do caso, mas em julgamento. O
Ministério Público deve ter pois uma visão prospectiva do processado,
bem para além do horizonte próximo dos resultados do inquérito. Não
pode ainda permitir que se vejam defraudadas as expectativas, que a
comunidade em si deposita, de garante da legalidade, também no
inquérito.
A delegação genérica de tarefas investigatórias, ainda por cima
por despacho genérico, deveria ser uma opção e não, como hoje, uma
fatalidade. Ainda assim, a qualidade de director do inquérito e da
investigação deverá, em qualquer situação, estar sempre presente, sob
pena de se deitar pela borda fora um imperativo legal de incidência
constitucional, importante para a identidade da nossa magistratura e
importante como garantia dos cidadãos.
Uma nota final sobre a competência do MºPº cifrada na participação
na execução da policia criminal. Como já tivemos oportunidade de referir, não
é crível que o legislador constitucional de 1997, com aquela competência,
estivesse a pensar só em política criminal, tal como definida no exercício de
atribuições legislativas. Terá querido pois reportar-se ao estabelecimento de
regras de actuação no terreno, para combater a criminalidade, tal como se
apresentarem prioritárias geográfica e temporalmente.
Daqui, a meu ver, três consequências importantes
Será à partida ao Governo que compete definir, ou pelo menos propor,
a política criminal, porque é ele o “órgão de condução da política geral do
país” (artº.182 da Constituição), e porque é ele que tem por tarefa “praticar
todos os actos e tomar todas as providências necessárias(.....) à satisfação
das necessidades colectivas” (alínea g) do artº. 99º da Constituição). A
política criminal é uma área de actuação política como outra qualquer, e a
segurança, portanto o combate ao crime, é uma necessidade colectiva.
Depois, a política criminal terá uma vertente tanto preventiva
como repressiva. Pode e deve dirigir-se à sociedade civil (incentivos a
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actuações individuais preventivas, política urbanística ou de migração
por exemplo), tanto como às policias. Claro que também ao Ministério
Público, como órgão ligado ao poder judicial e enquanto titular da acção
penal. Aqui, no entanto, as orientações veiculadas terão que se
compatibilizar sempre com a margem especifica de manobra de que o
Ministério Público dispõe, ou não dispõe, por força do respeito que deve
ao principio da legalidade.
Finalmente, a participação na execução da política criminal não poderá
iludir ou subverter uma saudável separação de poderes colaborantes. Não se
estará portanto perante uma qualquer transmissão de ordens ou instruções
no seio da Administração, Administração essa, sim, em relação à qual o
Governo é o órgão superior (artº 182º da Constituição).
É com natural expectativa que se aguarda a definição dos contornos
da participação do MºPº na execução da política criminal. Desconhece-se se
vai ter, e que tipo de intervenção virá a ter a Assembleia da República em
todo o processo, qual o peso especifico atribuído ao Ministério Público ao
lado dos outros responsáveis pela execução da política criminal, que
prevalência terão as medidas processuais a par das prioridades previstas
para a área substantiva, etc, etc. Aguardemos pois.
Caros colegas, o tempo vai longo e a vossa paciência tem limites.
Vou pois terminar, e já, retomando duas ideias já abordadas noutro
condicionalismo.
Temos séculos de existência e, ao longo deles, vários têm sido os
períodos conturbados que soubemos ultrapassar. Os tempos que se
aproximam são tempos de muitas dúvidas, mas duas certezas gostaria de
partilhar.
O Ministério Público encarará o passado recente só como mais um
ciclo, de que se poderão tirar, também, efeitos positivos.
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O Ministério Público participará sempre de boa fé, no trabalho das
reformas que se queiram implementar, e para o qual seja chamado.
Temos uma força que nos é muito própria. É que os nossos interesses
são só os interesses cuja defesa nos está confiada pela lei e pela
Constituição.
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