Capítulo 1 Os TRÊS ESPIÕES O sol da tarde já adiantada banhava os telhados da pe‑ quena localidade de Kilmore Cove com uma luz dourada e quente. A poucos metros do pequeno porto na baía, a sombra adensava‑se entre o casario da velha vila e nas ruelas reinava uma calma quase absoluta. Em todas elas, menos numa. Os três primos Flint arfavam sem fôlego, encostados à parede de uma casa, com as caras vermelhas e as bocas abertas na tentativa de inspirarem a maior quantidade de ar possível. Ti‑ nham levado tão longe o esforço que os pulmões pare ciam queimar. 9 O primeiro a falar foi o Flint grande, que dos três pa‑ recia o mais cansado, atarantado e assustado. — Viram ‑na? — perguntou. O Flint pequeno, o cérebro do bando, fez‑lhe sinal com a mão para esperar um pouco (tentava ainda recuperar o fôlego) e apoiou‑se ao ombro do Flint do meio, dobrado em dois pelo cansaço. —Viram ‑na ou não? — insistiu o Flint grande, lançando olhares preocupados para a esquina donde tinham desembocado, como se tivesse medo de ver apa recer de um momento para o outro aquela «coisa» de que fugiram a sete pés. —Achas... que não a vimos? — conseguiu finalmente dizer, por entre arquejos, o Flint pequeno. —Sim. Achas? — ecoou o Flint do meio, que gostava de repetir tudo o que dizia o Flint pequeno. —É evidente que a vimos — observou um pouco depois o Flint pequeno. — De outro modo não teríamos fugido. Pelo menos, não o teríamos feito tão rapidamente. —Sim. Não tão rapidamente. O Flint grande deixou‑se cair para o chão, ou antes, escorregou com as costas apoiadas contra a parede e deixando nela uma faixa húmida de suor, como um gigantesco rasto de caracol. Depois segurou a cabeça entre as mãos e choramingou: — Mas pode saber‑se o que era aquilo? 10 Os TRÊS ESPIÕES —Não sei — admitiu o Flint pequeno. —Como podemos saber? — acrescentou o Flint do meio. — Fugimos sem olhar para trás! —Eu não fugi — explicitou o Flint pequeno. — Vocês fugiram e eu não quis deixá‑los sozinhos. O Flint grande levantou a cabeçorra. Tinha apertado com tanta força as pontas dos dedos na cara que a mar‑ cara com dezenas de pequenas manchas vermelhas e redondas. — O quê, o quê, o quê? Tu foste o primeiro a fugir! —Não é verdade! — Sim, é verdade! — insistiu o Flint grande. — Vi‑te... ou antes... ouvi‑te a partir como um foguete ao meu lado e não percebi nada, mas disse cá para mim: «Se ele foge, então também eu fujo!» Só sei que um se‑ gundo antes estávamos a seguir aquela rapariga... —Aquela rapariga tem nome, chama‑se Julia — cor rigiu‑o o Flint pequeno. — Julia Covenant. —Sim... E tu, no fundo, gostas dela, não é verda‑ de? — disse o Flint do meio com um sorriso malicioso. Surgiu um enrubescimento, que nada tinha que ver com o afogueamento da corrida, e espalhou‑se pela cara do encaracolado Flint pequeno. — E o que é que isso interessa? —Ouviste, primo? Não disse que não! —Ouvi! Não disse que não! 11 —O problema não é esse! — gritou o Flint pequeno, exasperado. — O importante é que íamos atrás da Julia Covenant... —Ouve só como ele diz: Julia Covenant... —Eh, eh, és nojento, primo! Não tardaram as patadas, os pontapés e os empur‑ rões e, num instante, os três pequenos bandidos rola‑ vam engalfinhados no pó do caminho. —Julia! —Ai! —Larga‑me! Estás‑me a aleijar no braço! De repente, o Flint pequeno agarrou nos cabelos dos outros dois como se fossem as bridas de uma carroça. — Acabem com isso, já! — rosnou. —Pronto, eu paro, eu paro! —Sim, sim, eu também, mas diz‑lhe para me largar já a orelha! Foram acordadas rapidamente umas tréguas. Senta‑ dos lado a lado, os três primos lançavam olhares de sus‑ peita uns aos outros. O Flint grande massajava o couro cabeludo. O Flint do meio verificava se ainda tinha as duas orelhas no lugar. O Flint pequeno olhava para os outros dois com os braços cruzados no peito, furioso. Uma gaivota passou pela nesga do céu por cima das suas cabeças, planando na direção das colinas com um grito estridente. 12 Os TRÊS ESPIÕES —Estávamos a dizer... — arquejou o Flint pequeno — que no momento crucial da nossa perseguição, quando estávamos quase a agarrar a Ju... a agarrá‑la... Nenhum dos outros abriu a boca. —... deparámos com aquela espécie de... monstro. —Sim. Surgiu assim do nada — concordou com convicção o Flint do meio. —Eu nem sequer o vi, esse monstro de que vocês falam — admitiu o Flint grande. — Tinha ficado um pouco para trás. —Com certeza: és um gordalhufo! — escarneceu o Flint do meio. —E tu és um magricela! —CALADOS! — berrou o Flint pequeno. — Cala‑ dinhos, caramba, não estou a perceber nada disto! —Quanto a isso, eu nunca percebi na... — começou a dizer o Flint grande, mas os olhares dos outros dois fizeram‑no engolir o resto da frase. O Flint pequeno olhou para o primo do meio. — Ao menos tu... viste‑o? O outro massajou o braço dorido, verificou o coto‑ velo esfolado e respondeu: — Sim, acho que sim. —E como era? —Era um monstro. —Exatamente — concordou o Flint pequeno. — Foi isso que eu também pensei. Mas lembras‑te como ele era exatamente? 13 —Não era muito alto. —Não, de facto não era. Diria que... era mais ou menos como nós. —Como tu ou como ele? —Bah, intermédio, acho eu... Mas o que ele tinha de verdadeiramente aterrador era a cara. —Sim, a cara. —Era... não sei... monstruosa. —«Monstruosa» como? — interveio o Flint grande, que até àquele momento tinha estado calado a ouvir as descrições dos outros dois. O Flint pequeno pôs uma mão diante do nariz e mi mou uma espécie de bico muito comprido. — Era como um corvo preto. Um homem gigantesco com a cabeça de um corvo preto. —Uau! — exclamou o Flint grande, sentindo um arrepio a correr‑lhe dos pés à cabeça. — E o que estava a fazer aqui? —Não sabemos: fugimos. —Sim, como havíamos de saber — secundou o Flint do meio. Ficaram em silêncio durante uns momentos. —Os nossos chefes disseram‑nos para vigiarmos os Covenant — disse de repente o Flint pequeno, pensa tivo. — E para descobrirmos o que é que eles andam a tramar. Talvez devêssemos investigar também esse «homem pássaro». 14 Os TRÊS ESPIÕES —Sim, talvez devêssemos investigá‑lo! — concor‑ dou o Flint do meio. —Então não deveríamos ter fugido — acrescentou o Flint grande. O Flint pequeno traçou umas linhas na areia. — De víamos voltar para trás, imediatamente. E ver o que se passa lá. —Mas a esta hora talvez o monstro tenha ido co mer... É que está quase na hora de jantar! — observou com satisfação o Flint grande. —Mas vocês não se podem calar, de uma vez por todas? — ralhou o Flint pequeno. Depois olhou para os primos com ar concentrado: — Recapitulemos. Primeiro: dois tipos num Aston Martin de morrer leva ram‑nos a dar uma volta no carro em troca de man‑ termos os Covenant sob controlo. Segundo: ontem, Banner saiu de casa à meia‑noite e não voltou. Terceiro: ainda ontem, Jason Covenant atirou‑nos esta moeda... — Tirou do bolso uma pequena rodela de metal dourado e voltou a enfiá‑la lá rapidamente — ... e também não voltou. Hoje, finalmente, chegou cá um monstro com cara de corvo que se encontrou com Julia Covenant. —Dois vão‑se embora, um chega — comentou o Flint do meio, com o ar de quem está a demonstrar um complexo teorema de matemática. —E depois? 15 —Nada. Era só uma observação. —E agora? — perguntou, impaciente, o Flint grande, que, de toda aquela história, ainda não tinha percebido nada e que só pensava em dar ao dente. —Agora voltamos para trás e tentamos perceber onde se meteu esse monstro. E o que aconteceu à Julia. —Sim, é verdade, a rapariga. Tu achas que...? —Não — cortou cerce o Flint pequeno. 16