DIREITO DE RETENÇÃO E TIPICIDADE DOS DIREITOS REAIS
Ana Taveira da Fonseca
1. Introdução:
Poucos dias depois de termos entregado a nossa dissertação de
doutoramento, foi proferido um acórdão pelo Tribunal da Relação do Porto1 em
que se discutia se o direito de retenção - previsto nos arts. 754.º e 755.º - poderia
ser aplicado por analogia a situações em que o legislador não atribuiu ao
devedor a possibilidade de reter a coisa até que o seu credor pagasse o
contracrédito de que, por sua vez, é devedor.
Em causa estava uma situação em que os autores da acção entregaram
ao réu, que foi subsequentemente declarado insolvente, 382.000,00 € para este
último os aplicar na abertura de uma carteira de títulos cotada em bolsa sob o
seu controlo. Aquele a quem o dinheiro tinha sido confiado confessou-se
devedor perante os autores da acção e para extinção de tal dívida entregou-lhes
um imóvel que, mais tarde, estes vieram a descobrir estar previamente
hipotecado a um terceiro. Ficou igualmente provado que os autores da acção
eram “pessoas de avançada idade, de baixa instrução e trabalhadores agrícolas,
que juntaram ao longo da vida o suficiente para uma velhice descansada”. Na
sequência da declaração de insolvência do réu, os autores da acção, num
processo de verificação ulterior de créditos (arts. 146.º a 148.º do CIRE), em que
o seu crédito foi reconhecido nos termos do art. 136.º do CIRE, peticionaram
que este fosse graduado como um crédito da insolvência garantido por direito
de retenção. Por esta via, pretendiam que a sua garantia prevalecesse sobre a
hipoteca anteriormente constituída. Sabendo que não estavam perante uma das
Ac. TrRelPt de 7 de Outubro de 2013, Processo n.º 1900/11.8TBPVZ-F.P1, in
www.dgsi.pt
1
1
hipóteses em que a lei atribui um direito de retenção para garantia do crédito,
defenderam que existiria uma lacuna que deveria ser colmatada através do
recurso a uma analogia legis, dada a similitude entre a situação em apreço e
aquelas que, nos termos do art. 754.º e 755.º, n.º1, conferem ao credor/devedor
um direito de preferência pelo valor da coisa retida.
Entendeu que o Tribunal que o crédito dos autores da acção não gozava
de direito de retenção, porque este é “um direito excecional, ou melhor dito, as
que
o
consagram
analogicamente)
são
(e
que
normas
os
recorrentes
excecionais
pretendem
(…).
E,
ver
como
se
aplicadas
afirmou
anteriormente, e decorre expressamente do artigo 11.º do CC, as normas
excecionais não comportam aplicação analógica”.
A este fundamento para recusar a analogia legis acrescentou que “mesmo
que a impossibilidade de aplicação da norma por analogia, decorrente da sua
excecionalidade, não se revelasse argumentativamente decisiva, nunca poderia
esquecer-se que essa impossibilidade decorre diretamente do princípio da
taxatividade dos direitos reais, consagrado no artigo 1306.º, n.º1 do CC”.
A leitura do referido aresto serve de mote à revisitação de dois dos
problemas com que nos confrontamos ao longo da nossa investigação: saber em
que medida é que, fora das hipóteses em que o devedor pode lançar mão da
excepção de não cumprimento ou do direito de retenção, o facto de o direito de
retenção constituir um direito real de garantia impedirá o devedor de recusar a
realização de uma prestação até que o seu credor satisfaça o crédito de que, por
sua vez, é devedor e, em caso afirmativo, qual oponibilidade relativamente a
terceiros de que gozará este direito de recusa do cumprimento de uma
obrigação para tutela de um direito de crédito
2. O direito de retenção e o princípio da taxatividade dos direitos reais no Código
de Seabra e no Anteprojecto de Vaz Serra:
À luz do Código de Seabra, ao possuidor de boa fé era reconhecido o
2
direito de reter a coisa enquanto não fosse ressarcido das benfeitorias
necessárias (art. 498.º e § 2, do Código de Seabra) ou úteis feitas naquela (art.
499.º, §2.º, do Código de Seabra). Da mesma forma, era atribuído um direito de
retenção ao mandatário sobre o objecto do mandato, até que este estivesse
“embolsado do que, em rasão deste, se lhe deva” (art. 1349.º do Código de Seabra), ao
empreiteiro de obra mobiliária, enquanto não lhe fosse pago o preço (art. 1407.º
do Código de Seabra), e ao recoveiro e ao barqueiro sobre os objectos
transportados até que o transporte fosse pago (art. 1414.º do Código de Seabra).
O depositário podia reter a coisa depositada enquanto não fosse reembolsado
das despesas que tivesse realizado com a conservação da coisa ou por causa
dela (art. 1450.º do Código de Seabra), assim como ao arrendatário era
concedido um direito de retenção do locado até ser restituído o valor das
benfeitorias expressamente consentidas pelo locador ou autorizadas por lei (art.
1614.º do Código de Seabra) e ao usufrutuário e seus herdeiros, findo o
usufruto, “por desembolsos de que devam ser pagos” (art. 2251.º do Código de
Seabra).
Em face da dispersão de normas que atribuíam ao devedor um direito de
retenção e de a lei, expressamente, determinar que o comodatário não gozava
de direito de retenção até que lhe fossem pagas as despesas extraordinárias e
inevitáveis que tivessem sido feitas por causa da coisa emprestada (art. 1521.º
§1, do Código de Seabra), não é de estranhar a divisão existente na doutrina
sobre a taxatividade das hipóteses de direito de retenção. A este propósito,
referia M. HELENA GARCIA DA FONSECA que seria “já secular o problema que gira
à volta de saber se o Direito de Retenção é um instituto de carácter geral, ou
antes um instituto de carácter excepcional por só ter lugar no caso de existir
texto de lei atribuindo-o”2.
M. HELENA GARCIA DA FONSECA, “Existência no Direito Português de Direito de
Retenção como Instituto de Carácter Geral”, ROA, ano 10, 1950, I e II, p. 372.
3
2
Para a maioria da doutrina, o direito de retenção só podia ser
reconhecido ao devedor nos casos expressamente previstos na lei. Esta solução
baseava-se no facto de o direito de retenção ser oponível a terceiros, ainda que
não existisse um consenso quanto aos efeitos que, em concreto, relativamente
àqueles o referido direito produziria.
CARNEIRO PACHECO considerava que as hipóteses de direito de retenção
previstas na lei não podiam ser aplicadas por analogia a outras situações nela
não contempladas, porque produziriam, relativamente a terceiros, efeitos
superiores aos de um direito de preferência3.
Apesar da forte influência exercida pela pandectística germânica no
pensamento de GUILHERME MOREIRA, o autor entendia que o direito de retenção
não tinha um carácter geral, porquanto, atribuindo ao seu titular um direito a
ser pago com preferência, constituía uma excepção ao princípio da igualdade
dos credores. Para o autor, no direito de retenção, os créditos, ainda que
conexos e recíprocos, eram independentes, pois cada um deles “não é causa
jurídica do outro”. O direito de retenção “não resulta da própria natureza da
obrigação” e, por isso, constitui somente uma garantia concedida por lei4.
Da mesma forma, defendia PAULO CUNHA que as hipóteses em que a lei
concedia ao devedor um direito de retenção deviam ser entendidas como
excepções ao “princípio de que não deve haver preferências no pagamento dos
credores pelos bens do devedor”5, estando, por conseguinte, excluída a
possibilidade de aplicação analógica do direito de retenção a outras situações.
Apesar de a teoria da taxatividade das hipóteses de direito de retenção
imperar na vigência do Código de Seabra, esta concepção acaba por ser
3
CARNEIRO PACHECO, Do Direito de Retenção na Legislação Portuguêsa, Coimbra, 1911, pp.
117 e ss.
GUILHERME MOREIRA, Instituições do Direito Civil Português, II, Das Obrigações, 2.ª ed.,
Coimbra, 1925, p. 118. Em sentido idêntico, v. MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral das Obrigações,
(com a colaboração de Rui de Alarcão), 3.ª ed., Coimbra, 1966, pp. 331 e 332.
5 PAULO CUNHA, Da Garantia nas Obrigações, t.II, apontamentos coligidos por Eudoro
Pamplona Côrte-Real, 1938-1939, pp. 155 e 156.
4
4
contestada por alguma doutrina no primeiro quartel do séc. XX.
Assim, com base no art. 1521.º, que recusava o direito de retenção ao
comodatário, JOSÉ TAVARES defendia a aplicação do direito de retenção desde
que existisse uma relação de reciprocidade entre crédito e débito, mesmo que
não houvesse uma “relação de conexidade entre o crédito e a cousa retida. São
todos os casos em que é admitido o direito de reconvenção, nos termos dos arts.
331.º e 333.º do código do processo. Simplesmente êste direito de retenção, não
tendo o seu fundamento na relação de dependência entre o crédito e a cousa, só
tem efeitos entre as próprias partes e os seus representantes”6.
CUNHA GONÇALVES7, por sua vez, apoiando-se também no art. 1521.º,
n.º1, considerava que “embora o direito de retenção seja uma garantia e importe
uma preferência, isto não implica que êle só seja de admitir nos casos expressos
na lei, pois que, realizando-se em determinadas condições, que dos textos legais
resultam, o direito de retenção não deixa de ser uma excepção por ser extensivo
aos casos não previstos”. Não deixa, contudo, de salientar que não é pelo
simples facto de existir a detenção de uma coisa e de os créditos serem
recíprocos que essa aplicação extensiva é defensável. O direito de retenção
seria, assim, reconhecido ao devedor em dois grandes grupos de casos: quando
existisse uma conexão objectiva entre o crédito e a coisa retida e nas obrigações
emergentes de um contrato sinalagmático8, o que permite perceber que, para
CUNHA GONÇALVES, a excepção de não cumprimento constituía uma hipótese
ou exemplo de direito de retenção.
Por último, M. HELENA GARCIA
DA
FONSECA admitia que o devedor
gozaria de direito de retenção sempre que existisse uma relação de conexão
objectiva entre o crédito e a coisa retida, “deixando à “exceptio non adimpleti
JOSÉ TAVARES, Princípios Fundamentais do Direito Civil, I, Coimbra, 1922, pp. 565 e 566.
CUNHA GONÇALVES, Tratado de Direito Civil, IV, Coimbra, 1931, pp. 522 e 523.
8 CUNHA GONÇALVES, Tratado de Direito Civil, IV, cit., pp. 523 e 524.
6
7
5
contractus” os casos de conexidade subjectiva”9.
No anteprojecto do Código Civil, VAZ SERRA tinha previsto que, ao lado
do direito real de retenção fundado na conexão material entre a coisa retida e o
crédito, existisse um direito de retenção obrigacional sempre que houvesse uma
conexão jurídica entre os créditos resultante de a obrigação de entrega da coisa
e o crédito do retentor derivarem da mesma relação jurídica. De acordo com a
referida proposta, considerava-se que os créditos tinham origem na mesma
relação sempre que “se [fundassem] em várias relações jurídicas, uma vez que
estas se [apresentassem] economicamente como uma só, já em consequência do
fim tido em vista pelas partes, já em virtude da opinião corrente na vida dos
negócios, não excluídas por elas”10. Previa-se igualmente que, nestes casos, o
direito de retenção não constituiria um direito real de garantia, mas atribuiria
somente ao retentor o direito a não cumprir a sua obrigação enquanto a
contraparte não realizasse aquela que estava adstrita a cumprir.
Este direito obrigacional de retenção não se confunde com a exceptio non
adimpleti contractus, ainda que o alargamento do âmbito de aplicação do direito
de retenção possa, em abstracto, determinar uma sobreposição dos institutos. A
excepção de não cumprimento sempre estaria reservada aos contratos
sinalagmáticos e existiria em virtude da interdependência das prestações,
enquanto o direito de retenção, não sendo uma consequência natural do
contrato, deveria ser qualificado como uma garantia atribuída por lei ao credor
por razões de equidade11. Se se excluísse, conforme proposto no anteprojecto, a
possibilidade de o direito obrigacional de retenção ser exercido, sempre que os
créditos, para além de conexos, estivessem unidos por um vínculo de
sinalagmaticidade, o agente não poderia sequer prevalecer-se, em simultâneo,
M. HELENA GARCIA DA FONSECA, “Existência no Direito Português de Direito de
Retenção como Instituto de Carácter Geral”, cit., pp. 389 e ss.
10 VAZ SERRA, “Direito de Retenção”, BMJ, n.º 65, 1957, p. 247.
11 Cfr. VAZ SERRA, “Direito de Retenção”, cit., pp. 162 e ss. e 204 e 205.
6
9
destes dois instrumentos de tutela do crédito. A solução apresentada tinha a
vantagem de tornar o direito de retenção aplicável aos contratos bilaterais
quando entre as prestações não intercedesse uma relação de sinalagmaticidade.
É verdade que esta forma de direito de retenção pode prestar-se a
invocações abusivas para evitar o cumprimento de uma obrigação devida. Por
isso, previa VAZ SERRA a fixação de limites ao seu exercício. Assim, “o direito de
retenção [deveria ser excluído] quando [fosse] incompatível com instruções
dadas pelo devedor antes ou na data da entrega da coisa, com uma obrigação
contraída pelo credor, ou, de uma maneira geral, com a finalidade da obrigação
ou a vontade das partes” e, por fim, “quando [contrariasse] a boa fé”12.
O que individualizava os diversos direitos de retenção previstos no
anteprojecto era a existência de uma conexão, fosse ela material ou jurídica,
entre a coisa e o crédito. Por esse motivo, no ordenamento jurídico português,
não se encontra prevista qualquer hipótese de direito de retenção de uma coisa
sem que exista uma qualquer conexão entre esta e o crédito. Contrariamente, no
direito espanhol (art. 1866.º, 2 do CCes.) e no direito italiano (art. 2794 do CCit.),
o credor reter a coisa findo o penhor, se o devedor tiver contraído um novo
crédito junto do primeiro após a constituição do penhor que não se encontre
garantido por este13. A solução deriva do pignus gordianum romano. A retenção
não se funda, neste caso, na conexão existente entre créditos14, mas na
circunstância de se presumir que o credor concedeu ao devedor novo crédito
tendo em conta o penhor constituído por este para garantia de uma dívida
anterior.
Posição diferente foi a do legislador civil alemão que, tendo em conta os
VAZ SERRA, “Direito de Retenção”, cit., p. 161.
No direito francês, a mesma possibilidade era atribuída ao credor pignoratício no art.
2082, 2, do CCfr. que foi, recentemente, revogado.
14 O facto de, nestas hipóteses, não existir uma conexão entre créditos conduz BIGLIAZZI
GERI, Profili Sistematici dell’Autotutela Privata, II, Milano, 1974, p. 165, a concluir que estamos
perante “uno strumento di tutela che della ritenzione ha soltanto il nome”.
7
12
13
trabalhos preparatórios do direito das coisas da autoria de Reinhold Johow,
rejeitou a figura do pignus gordianum devido à inexistência, nestas situações, de
uma relação de conexão15. A solução germânica foi, neste caso, a consagrada no
direito português.
Embora na versão definitiva do Código Civil se tenha contemplado um
direito de retenção com carácter geral quando existe uma conexão material
entre a coisa retida e o crédito, não se foi tão longe quanto no BGB e no Código
Civil dos Países Baixos, pois não se consagrou a possibilidade de também haver
direito de retenção sempre que os créditos provenham da mesma fonte, ou seja,
tenham uma origem comum.
A justificação para a não consagração da proposta de VAZ SERRA é
apresentada por PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA no seu Código Civil Anotado16.
O legislador terá considerado que se estaria, desta forma, a admitir uma terceira
figura de contornos mal definidos entre o direito de retenção e a excepção de
não cumprimento do contrato, que poderia criar problemas de interpretação,
pelo que recusou a proposta constante do anteprojecto. Circunscreveu-se o
direito de retenção, com carácter geral, às situações em que existe uma conexão
material entre os créditos. Quando os créditos provêm da mesma relação
jurídica, só é possível recorrer ao direito de retenção nas situações
especialmente previstas na lei, mas este constitui sempre um direito real de
garantia.
Cfr. PETER GRÖSCHLER, Historisch-kritischer Kommentar zum BGB, II, Schuldrecht:
Allgemeiner Teil, §§241-432, Tübingen, 2007, p. 841.
16 Segundo PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, I, cit., p. 775, Ter-se-á
considerado que a generalização “do direito de retenção acarretava grandes e muitas dúvidas,
quando, parece, não devem aceitar-se outros casos além dos que o novo Código prevê. Por
outro lado, o regime especial sugerido por VAZ SERRA conduzia à admissão de uma terceira
figura, intermédia entre o direito de retenção e a excepção de não cumprimento do contrato, de
contornos mal definidos e susceptível de criar embaraços de interpretação. Parece, por tudo,
melhor a solução deste art. 755.º. Não há direito de retenção, baseado na simples comunhão de
fonte, senão nos casos nele previstos. E esse direito de retenção é, sem limitações, um direito
real de garantia”.
8
15
O poder de se reter uma prestação sempre que a outra parte não tivesse
realizado a prestação, proveniente da mesma relação jurídica, que sobre esta
recaía, agravada pela circunstância de a mesma solução se dever aplicar, ainda
que os créditos se fundassem em relações jurídicas distintas, desde que
economicamente se apresentassem como uma só, tinha a aparente desvantagem
de, em certas situações, o mesmo contraente poder recusar a realização da sua
prestação, invocando quer a excepção de não cumprimento, quer o direito
obrigacional de retenção. Nesse caso, o anteprojecto previa que não seria
possível recorrer ao direito de retenção mas somente à excepção de não
cumprimento17, o que corresponderia aos interesses do obrigado à restituição da
prestação retida, porquanto o direito de retenção, ao contrário do que acontece
com a exceptio, podia ser excluído, caso a outra parte prestasse caução.
A solução adoptada no Código Civil tem o mérito de evitar a
sobreposição dos dois institutos, embora a questão estivesse devidamente
acautelada no anteprojecto, mas o inconveniente de deixar em aberto a
regulação das situações em que dois créditos emergem da mesma relação
jurídica ou da mesma relação da vida e uma parte exige o cumprimento de uma
obrigação, não tendo cumprido aquela a que estava adstrita.
A consagração de um direito obrigacional de retenção evitaria que um
devedor fosse obrigado a cumprir sem receber a prestação de que é, por sua
vez, credor. Todavia, o direito de retenção deixaria de ter, exclusivamente, por
objecto a retenção de uma coisa, para poder compreender a recusa de
cumprimento de qualquer prestação desde que conexa com aquela cujo
cumprimento é exigido.
Cfr. VAZ SERRA, “Direito de Retenção”, cit., p. 255. Esta é a solução defendida pela
doutrina germânica. A este propósito, v. STAUDINGER/ CLAUDIA BITTNER, Kommentar zum
Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen, 2, Recht der Schuldverhältnisse, §§
255-304, Berlin, 2009, §273, n.º 2, p. 205 e KRÜGER, Münchener Kommentar zum Bürgerlichen
Gesetzbuch, 2, Schuldrecht Allgemeiner Teil, §§ 241-432, 6.ª ed., München, 2012, § 273, n.º 37, pp.
683 e 684.
9
17
Por outro lado, esta sobreposição do âmbito de aplicação da excepção de
não cumprimento e do direito de retenção é mais aparente do que real. É
verdade que os efeitos processuais e extraprocessuais do exercício do direito de
retenção e da excepção de não cumprimento se aproximariam, mas o seu
âmbito de aplicação sempre poderia ser distinguido. A excepção de não
cumprimento aplicar-se-ia às obrigações unidas por um vínculo de
sinalagmaticidade, enquanto o direito de retenção seria reconhecido ao agente
sempre que estivesse em causa o cumprimento de obrigações conexas que não
fossem correspectivas ou interdependentes.
Pensamos, assim, poder concluir que, mais do que evitar a sobreposição
de institutos, o que se pretendeu na versão definitiva do Código Civil de 1966
foi limitar as excepções ao princípio da par conditio creditorum. De facto, é
possível atribuir ao direito de retenção um âmbito de aplicação mais amplo do
que aquele que se encontra contemplado na nossa lei civil e evitar a existência
de uma situação de concurso, no sentido de uma sobreposição do âmbito de
aplicação dos dois institutos. A proposta apresentada por VAZ SERRA
contemplava, como vimos, expressamente essa solução. Esta proposta de uma
aplicação distributiva do direito de retenção e da excepção de não cumprimento
é, usualmente, defendida no ordenamento jurídico germânico. A este propósito
pode, a título meramente ilustrativo, ver-se a posição defendida por
GERNHUBER18. De acordo com o autor, tendo uma das partes a possibilidade de
invocar a excepção de não cumprimento, o direito de retenção deixa de poder
ser invocado. Tal não impedirá, todavia, uma aplicação combinada dos dois
institutos. Imagine-se a hipótese de o dono da obra se recusar a pagar o preço
até que os vícios desta sejam expurgados, invocando a excepção de não
cumprimento, e o empreiteiro recusar-se a entregar a obra até que o pagamento
do preço seja feito, invocando um direito de retenção. Neste caso, podemos ter
18
GERNHUBER, Das Schuldverhältnis, Tübingen, 1989, §14,V, 5b), p. 334.
10
uma dupla sentença Zug um Zug sem que esta implique, contudo, uma
sobreposição dos institutos.
O nosso legislador optou, assim, por um modelo de direito de retenção
que ficou a meio termo entre a solução germânica e a constante do Código Civil
francês que, por sua vez, terá influenciado os Códigos Civis italiano e espanhol.
3. O princípio da taxatividade dos direitos reais e o princípio da par conditio
creditorum enquanto limites à analogia legis – O resumo que fizemos do Acórdão
do Tribunal da Relação do Porto permite por si só concluir que a existência de
uma conexão entre créditos não se encontra limitada às situações previstas no
nosso Código Civil e em legislação avulsa.
Podíamos aqui referir, contudo, mais exemplos. O mais impressivo
talvez se encontre nas situações em que ao devedor da entrega de uma coisa é
atribuído um direito de retenção até que a contraparte cumpra uma obrigação
conexa, mas a esta última não é reconhecida faculdade idêntica. Em causa estão,
por conseguinte, situações simétricas às previstas no art. 755.º. Por exemplo, se
o depositário tem direito de reter a coisa depositada até ser pago pelo
depositante
pelas
despesas
de
conservação
da
coisa,
a
este
devia
correspondentemente ser reconhecido o direito de recusar o pagamento dessas
despesas até que a coisa depositada seja entregue. Todavia, este não pode
invocar nem a excepção de não cumprimento por não existir de uma relação de
correspectividade ou interdependência entre as obrigações, nem o direito de
retenção por este não se encontrar previsto na lei. Por sua vez, a compensação
será excluída por inexistir in casu uma homogeneidade dos créditos.
Se A vende a B uma coisa, B paga o preço, mas A lhe entrega uma coisa
diferente da devida (aliud), poderá B recusar-se a restituir a coisa, até que lhe
seja entregue aquela a que tem direito?
Na hipótese enunciada, não será possível a B recusar-se a restituir a coisa
11
com base na exceptio non adimpleti contractus, por não existir um vínculo de
sinalagmaticidade entre as obrigações de restituição. Por outro lado, encontrase, igualmente, excluída a possibilidade de B invocar a compensação dos
créditos, porque estes não têm como objecto coisas fungíveis, da mesma espécie
ou qualidade. Por fim, ainda que exista uma clara conexão jurídica entre a
restituição da coisa indevidamente prestada e a entrega da coisa devida, não
nos encontramos perante uma das hipóteses em que, à luz do direito português,
ao devedor é reconhecido um direito de retenção.
A existência de situações em que há uma conexão entre créditos, mas em
que o devedor não pode recusar-se a cumprir até que o credor realize, por sua
vez, a prestação a que está adstrito, convoca-nos a equacionar a aplicação a
estes casos, por analogia, das regras que disciplinam o direito de retenção.
Esta possibilidade de extensão analógica do regime aplicável ao direito
de retenção a outras situações de conexão jurídica entre créditos depende,
contudo, da resposta a uma das questões formuladas no Acórdão do Tribunal
da Relação do Porto que serviu de mote à presente exposição: saber em que
medida é que essa analogia se encontra precludida por este direito constituir
um direito real de garantia, e, como tal, se encontrar limitado pelo princípio da
taxatividade ou do numerus clausus dos direitos reais (art. 1306.º, n.º1).
A este propósito, não nos afastamos daquele que é o entendimento
dominante na doutrina e jurisprudência pátrias, segundo o qual, constituindo o
direito de retenção um direito real de garantia de origem legal, a
impossibilidade de aplicar, por analogia, o direito de retenção a outras situações
de conexão jurídica resulta, não tanto da proibição de criação de direitos reais
não tipificados na lei e da impossibilidade de aplicação analógica das normas
que fixam o regime dos direitos reais a situações jurídicas não reais (art. 1306.º),
mas sobretudo da existência de uma tipicidade-taxativa dos factos constitutivos
12
deste mesmo direito19. É que, apesar de o princípio da taxatividade dos direitos
reais não abranger em princípio os factos constitutivos, modificativos ou
extintivos desses mesmos direitos20, essa regra só pode logicamente valer para
os direitos reais com fonte convencional e não para aqueles que, como sucede
com o direito de retenção, têm uma origem somente legal. Neste caso, os factos
constitutivos são só e apenas aqueles que se encontram previstos na lei21 e essa
taxatividade encontra o seu fundamento na necessidade de protecção de
terceiros que, de outra forma, veriam um direito real seu arredado ou
prejudicado pela existência de um direito real de garantia com o qual não
podiam logicamente contar.
De facto, por força exclusiva da lei, o retentor torna-se titular de uma
garantia real que lhe concede o direito a ser pago com preferência pelo valor de
uma determinada coisa, o que pode limitar os direitos reais de terceiro sobre a
mesma coisa e a garantia dos credores comuns, sem necessidade sequer de se
proceder ao registo dessa mesma aquisição, para que esta limitação seja
oponível a terceiros.
E isto permite-nos, desde já, assinalar que o direito de retenção não se
pode aplicar por analogia a outras situações de conexão jurídica também por
constituir uma limitação ao princípio da par conditio creditorum (art. 604.º, n.º2)
A nosso ver, a verdadeira justificação para excluir a aplicação, por
analogia, do regime do direito de retenção a outras situações de conexão
jurídica encontra-se nesta necessidade de protecção de terceiros. Protecção tão
Cfr. OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil: Reais, 5.ª ed., Coimbra, 2000, p. 287, CARVALHO
FERNANDES, Lições de Direitos Reais, cit., p. 84, BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao
Discurso Legitimador, 10.ª reimpr. Coimbra, 1997, p. 201 e ELSA SEQUEIRA SANTOS, “Analogia e
Tipicidade em Direitos Reais”, Estudos em homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles,
IV, Coimbra, 2003, pp. 488 e ss.
20 Cfr. ELSA SEQUEIRA SANTOS, “Analogia e Tipicidade em Direitos Reais”, cit., pp. 484 e
ss.
21 Cfr. OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil: Reais, cit., p. 553 e CARVALHO FERNANDES, Lições
de Direitos Reais, 6.ª ed., Lisboa, 2009, p. 237.
13
19
mais indispensável quanto o direito de retenção sobre imóveis prevalece sobre
as hipotecas anteriormente constituídas (art. 759.º). Dito de outra forma, é por
estarmos perante uma possível limitação/restrição a outros direitos reais que
tenham por objecto a coisa retida e à garantia geral das obrigações, o que
contende com os direitos dos credores comuns, estranhos à relação que se
estabelece entre credor e devedor recíprocos, que não será possível a
constituição deste direito fora das hipóteses expressamente previstas na lei22.
É certo que, apesar de não estar sujeito a registo, a publicidade em
relação a terceiros do direito de retenção é assegurada pela detenção efectiva
exigida ao retentor, o que não sucede com outras garantias reais de fonte legal
como os privilégios creditórios. Ela não é, contudo, suficiente para alicerçar um
direito de preferência oponível a terceiros fora das hipóteses expressamente
contempladas na lei.
Assim, ainda que, na esteira do que defende CALVÃO
DA
SILVA a
propósito da impossibilidade da extensão analógica do regime do direito de
retenção23, se deva entender que as normas que estabelecem uma excepção a um
regime-regra devem ser aplicadas dentro dos limites do pensamento
fundamental subjacente a esse preceito (excepcional), tal não é suficiente para
abarcar todas as situações de conexão jurídica. A regra permite tão somente
aplicar, na plenitude da sua razão de ser, as várias disposições legais que
consagram um direito de retenção a favor do devedor-credor.
Assim, de acordo com o art. 755.º, n.º1, é titular de direito de retenção “o
albergueiro, sobre as coisas que as pessoas albergadas hajam trazido para a
pousada ou acessórios dela, pelo crédito da hospedagem”. Dever-se-á entender
No mesmo sentido, à luz do ordenamento jurídico italiano e espanhol, v. D’AVANZO,
“Ritenzione (Diritto di)”, Novíssimo Digesto italiano, XVI, Torino, 1969, p. 176, ANGELO SATURNO,
“Diritto di ritenzione legale e convenzionale: natura ed estensibilità”, Rassegna di Diritto Civile,
1991, I, pp. 89 e 90 e TERESA ECHEVARRÍA DE RADA, ”En torno al derecho de retención”, Estudios
Jurídicos en Homenaje al Profesor Luis Díez-Picazo, II, Madrid, 2003, p. 1772
23 CALVÃO DA SILVA, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 4.ª ed., Coimbra, 2002,
p. 340.
14
22
que gozam de igual direito o proprietário mas igualmente aquele a quem foi
cedida a exploração de um hotel sobre as coisas trazidas pelos hóspedes até ser
pago não só do valor da estadia, como também todos os outros serviços que
uma unidade hoteleira usualmente presta. Todavia, já não caberá no
pensamento fundamental subjacente a este preceito, a possibilidade de, depois
de restituído o locado, o locador reter os bens do locatário que ainda se
encontrem no imóvel até serem pagas as rendas em atraso.
Pelas razões apontadas, concordamos com a solução perfilhada pelo
Tribunal da Relação de Lisboa em que se considerou existir uma conexão entre
a obrigação de restituição de um veículo e o crédito resultante não só da
reparação do automóvel, como também do diagnóstico da avaria. A decisão
recusou, porém, a possibilidade de o direito de retenção garantir o pagamento
devido pela viatura de substituição que foi contratada pelo cliente que era
credor da restituição do automóvel24.
Mais questionável é, à luz do direito constituído, a decisão proferida pelo
mesmo Tribunal da Relação de Lisboa em que se reconheceu existir direito de
retenção, em caso de incumprimento de um contrato-promessa de permuta de
imóveis, em que as partes não procederam ao pagamento de qualquer quantia a
título de sinal25. No caso, uma delas tinha transmitido a propriedade do imóvel,
enquanto a outra se tinha limitado a entregar os imóveis que tinha prometido
vender. Apesar de o art. 755.º, n.º1, al.f), restringir o direito de retenção às
hipóteses em que o retentor é titular de um crédito resultante do não
cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 442.º, entendeu o
Tribunal que o facto de os promitentes fiéis terem uma detenção legítima dos
imóveis lhes permitia retê-los até que se realizasse o contrato definitivo. A
decisão alicerçou-se no argumento de “tendo-se operado a tradição destes
24
25
Ac. TrRelLx de 15 de Dezembro de 2011, CJ, t. 5, pp. 132 e ss.
Ac. TrRelLx de 29 de Setembro de 1998, CJ, t. 4, pp. 111 e ss.
15
imóveis a favor dos Autores, parece que estes devem gozar de direito de
retenção para garantia do seu crédito derivado da sua prestação anteriormente
efectuada a favor da Ré. Este crédito equivale ao sinal a que lei se refere a
propósito do contrato-promessa de compra e venda. Tratando-se de um
contrato promessa de troca não se pode falar de sinal, mas não seria justo que
não fosse concedido ao titular do referido crédito idêntico direito”26. Ainda que
à luz da ideia de justiça a decisão seja inquestionável, conferir ao promitenteadquirente este direito de retenção consubstancia a aplicação, por analogia, do
disposto no art. 755.º, n.º1, al.f) a um contrato-promessa cujo incumprimento,
sendo imputável à contraparte, não gera qualquer crédito nos termos do art.
442.º.
Pela mesma ordem de razões, é discutível que o direito de retenção
atribuído ao agente comercial sobre os objectos e valores que detém em virtude
do contrato de agência pelos créditos resultantes da sua actividade (art. 35.º do
DL 178/86, de 3 de Julho) possa ser reconhecido ao franquiado e ao
concessionário.
Todavia, se a tutela das expectativas de terceiros, titulares de outros
direitos reais de garantia sobre a coisa retida ou dos credores comuns do
mesmo devedor, impede a aplicação, por analogia, do direito (real) de retenção
a outras situações de conexão jurídica não significa que não exista uma lacuna
que, por outra via, careça de ser colmatada. A afirmação da existência de uma
lacuna postula que se comece por determinar se a questão não deve ser deixada
ao “espaço livre do Direito” ou se, pelo contrário, se trata de uma
“incompletude contrária ao plano do Direito vigente”27.
Da mesma forma, não pode impedir as partes de criarem direitos de
Ac. TrRelLx de 29 de Setembro de 1998, cit., p. 113.
Cfr. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, cit., p. 194 e
ENGISCH, Introdução ao Pensamento Jurídico, 9.ª ed., Lisboa, 2004 (tradução de Baptista Machado
de Einführung in das juristische Denken, 8.ª ed., Stuttgart, 1983), p. 281.
16
26
27
retenção por acordo desde que estes não ponham em causa os direitos de
terceiros estranhos a esse acordo.
4. Direito de retenção convencional – O facto de a protecção das expectativas
de terceiro - operada através dos princípios da taxatividade dos direitos reais e
da par conditio creditorum – excluir a aplicação por analogia do direito de
retenção não impede as partes de convencionarem que, em caso de não
cumprimento de uma obrigação, a outra poder-se-á recusar a cumprir uma
prestação recíproca, mesmo que essa hipótese não se encontre contemplada na
lei
Com isto não se pretende sustentar que as partes podem, por acordo,
afastar todos os pressupostos e prevalecer-se de todos os efeitos do direito de
retenção, tal como este se encontra previsto nos arts. 754.º e ss. Há, por essa
razão, necessidade de identificar certas disposições imperativas que, para a
salvaguarda de interesses públicos ou de terceiros, introduzem limites à
autonomia privada.
Em primeiro lugar, para que o acordo possa ser considerado válido é
necessário que exista, antes da invocação da excepção de retenção, uma
detenção lícita da coisa a reter porque, de outra forma, estar-se-ia a recorrer à
força própria, fora dos casos previstos na lei, para obter a detenção da coisa, o
que seria contrário ao disposto no art. 1.º do CPC.
Conforme já fomos aflorando ao longo da nossa exposição, os
mecanismos de autotutela passiva não se encontram sujeitos às mesmas
restrições aplicáveis às demais formas de autotutela que implicam que o titular
do direito recorra à força própria para se defender de uma ameaça ilícita ou
para realizar o seu direito. De facto, a necessidade de protecção da paz e ordem
públicas faz-se sentir com maior acuidade relativamente aos instrumentos de
autotutela activa. Para que o direito de retenção convencional constitua uma
17
forma de autotutela passiva, não se pode prescindir da existência de uma
detenção prévia e lícita da coisa a reter, porque de outra forma estar-se-ia a
admitir que o credor recorresse à força própria para garantir o seu direito. Por
este motivo também, devem ser consideradas nulas todas as cláusulas que
convencionam a possibilidade de o locador recorrer à força própria para
readquirir a detenção do locado, com o objectivo de, posteriormente, reter a
coisa até que o locatário proceda ao pagamento das rendas ou ao cumprimento
de qualquer outra obrigação em falta.
Estará, igualmente, vedada às partes a atribuição de uma oponibilidade
erga omnes a este direito de recusa de cumprimento, através da qual fosse
possível ao seu titular ser pago com preferência pelo valor da coisa retida. A
necessidade de protecção das legítimas expectativas de terceiros de não verem
os seus direitos reais arredados ou onerados com limitações com as quais não
podem legitimamente contar exige que só possam existir limitações ao princípio
da taxatividade dos direitos reais (art. 1306.º) e da par conditio creditorum nos
casos especialmente previstos na lei (art. 604.º, n.º2)28. Da mesma forma, o
direito de retenção convencional não será oponível ao adquirente da coisa
retida, ainda que essa aquisição só tenha ocorrido depois de o direito se ter
constituído29. Se as partes tiverem, expressa ou tacitamente, convencionado a
atribuição de um efeito real ao direito de retenção, o negócio terá de ser
considerado nulo. Sempre se deverá equacionar a possibilidade de conversão
deste direito num direito obrigacional de retenção (art. 1306.º) 30. Aliás, estando
Cfr. BIGLIAZZI GERI, Profili Sistematici dell’Autotutela Privata, II, Milano, 1974, p. 139(3),
ANGELO SATURNO, L’Autotutela Privata, I modelli della ritenzione e dell’eccezione di inadempimento in
comparazione col sistema tedesco, Napoli, 1995, p. 190 e BIANCA, Diritto Civile, VII, cit., p. 310.
29 Ainda que seja esta a solução decorrente do princípio da relatividade dos contratos,
encontramos quem, em Itália, defenda que este princípio não impede que o direito de retenção
seja oponível àqueles que adquirem o bem retido, por tal solução se encontrar consagrada para
o contrato de locação (emptio non tolit locatum). Cfr. ENRICO AL MUREDEN, “Ritenzione legale e
ritenzione convencionale”, Contratto e Impresa, ano 13, n.º1, 1997, pp. 210 e 211.
30 Cfr. LEBRE DE FREITAS, “Sobre a prevalência, no apenso de reclamação de créditos, do
direito de retenção reconhecido por sentença”, Estudos sobre Direito Civil e Processo Civil, I, 2.ª
18
28
em causa uma conversão legal, esta será admitida ainda que o fim prosseguido
pelas partes não permita supor que elas o teriam querido, se tivessem previsto a
nulidade (art. 293.º)31/32.
Por outro lado, como o direito de retenção convencional não atribui ao
seu titular qualquer direito de preferência sobre a coisa retida, mas somente o
poder de não a restituir em caso de incumprimento, não se poderá considerar o
negócio nulo por violação da proibição de celebração de um pacto comissório 33.
Relativamente à conexão que deve existir entre o crédito e a coisa,
entendemos que essa conexão tanto pode ser material como jurídica 34. Pode
ainda equacionar-se a possibilidade de as partes convencionarem a existência
de um direito de retenção prescindindo do requisito da conexão entre créditos.
Assim, na hipótese de existir uma hipoteca voluntária ou um penhor inválidos e
tendo a coisa sido entregue, pode questionar-se se o negócio não poderá ser
convertido num contrato constitutivo de um direito de retenção convencional
ed., Coimbra, 2009, pp. 348 e ss. Admitindo esta possibilidade relativamente aos privilégios
creditórios, v. ROMANO MARTINEZ, “Privilégios creditórios”, Estudos em Homenagem ao Prof.
Doutor Manuel Henrique Mesquita, II, 2009, Coimbra, p. 115.
31 A respeito da autonomia dogmática da conversão legal relativamente à conversão
comum, v. CARVALHO FERNANDES, A Conversão dos Negócios Jurídicos Civis, Lisboa, 1993, pp. 657
e ss., especialmente pp. 671 e ss.
32 Admitindo a figura da conversão legal, em face do disposto no art. 1306.º, mas
considerando não existir justificação bastante para o seu reconhecimento, v. OLIVEIRA
ASCENSÃO, A Tipicidade dos Direitos Reais, Lisboa, 1968, pp. 96 e 97. Segundo OLIVEIRA ASCENSÃO,
Direito Civil: Reais, cit., p. 160, “não há nada que justifique que se recuse às partes, em negócio
constitutivo de direito real inominado, o benefício da demonstração de que não teriam querido
ficar com um mero direito de crédito se tivessem previsto que o negócio celebrado não poderia
valer como constitutivo de direito real”. Defendendo que a conversão legal prevista no art.
1306.º não contraria o disposto no art. 293.º sobre conversão dos negócios jurídicos, contendo
uma presunção legal de que as partes pretendiam criar um vínculo obrigacional em substituição
do real, o que, nas palavras dos autores, constitui somente “um ligeiro desvio à regra do art.
293.º, que não tem na sua base nenhuma presunção legal”, v. PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA,
Código Civil Anotado, III, 2.ª ed., Coimbra, 1987, p. 99.
33 Cfr. ANGELO SATURNO, “Diritto di ritenzione legale e convenzionale: natura ed
estensibilità”, cit., p. 92.
34 Cfr. ANGELO SATURNO, “Diritto di ritenzione legale e convenzionale: natura ed
estensibilità”, cit., p. 92.
19
válido (art. 293.º)35.
5. A recusa de cumprimento da obrigação para tutela do direito de crédito:
Quando não existir um direito de retenção convencional, o facto de
estarmos em presença de dois créditos recíprocos não legitima por si só que
cada um dos devedores se possa recusar a cumprir até que o outro devedor
cumpra a obrigação a que está adstrito. No caso da excepção de não
cumprimento é necessário que haja uma relação de interdependência ou
correspectividade entre as obrigações, no caso do direito de retenção exige-se a
existência de uma relação de conexão entre os créditos. Quando as obrigações
se encontram unidas por um vínculo de sinalagmaticidade existe uma
interdependência entre as obrigações recíprocas que permite concluir que cada
uma delas é correspectivamente a causa da outra. Para que as obrigações se
encontrem unidas por um vínculo de conexão, basta que exista uma ligação
material ou jurídica entre os créditos recíprocos.
Sempre que existe uma relação de sinalagmaticidade entre as obrigações,
os créditos não deixam de ser conexos, porque o conceito de conexão jurídica é
mais abrangente do que o conceito de sinalagma. Não é de estranhar, por isso,
que alguma doutrina germânica conceba a excepção de não cumprimento como
uma forma especial de direito de retenção em que existe um vínculo mais forte
entre as obrigações. O facto de a ligação de sinalagmaticidade ser mais estreita
do que aquela que decorre de uma mera conexão entre créditos reflecte-se no
regime jurídico aplicável aos institutos. Desde logo, a excepção de não
cumprimento, ao contrário do direito de retenção, não pode ser afastada
mediante a prestação de uma garantia (arts. 428.º, n.º2 e 756, al.d)). Embora a
oponibilidade a terceiros do direito de retenção seja mais intensa do que aquela
Cfr. SOERGEL/ WOLF, Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch, 2, Schuldrecht I, §§ 241432, 12.ª ed., Stuttgart, Berlin, Köln, 1990, § 273, n.º 73, p. 561 e KRÜGER, Münchener Kommentar...,
cit., § 273, n.º 103, p. 697.
20
35
que se encontra expressamente prevista para a excepção de não cumprimento
(art. 431.º), em virtude de a retentio, ao contrário da exceptio, constituir um
direito real de garantia, isso não significa que a relação de sinalagmaticidade
possa ser confundida com uma situação de conexão entre créditos. Pelo
contrário, a diferença de regime convoca-nos a questionar se, de iure condendo,
terá sentido que, pelo menos nas situações de conexão jurídica, o crédito do
retentor beneficie do regime das garantias reais36.
Apesar de terem um âmbito de aplicação distinto e, consequentemente,
não existir, à luz do direito civil português, de acordo com a posição que
defendemos, a possibilidade de sobreposição destes institutos, como ambos
permitem ao devedor recusar o cumprimento de uma obrigação para tutela de
um crédito recíproco, a sua proximidade é assinalável37. Em ambos os casos,
através desta rejeição lícita do cumprimento, o devedor visa, simultaneamente,
compelir a contraparte a cumprir e garantir que, caso ela não o faça, também
não receberá a prestação a que tem direito. O credor serve-se da sua posição de
devedor para tutela do seu direito e, tendo em conta que esta recusa tanto pode
ser actuada judicial como extrajudicialmente, conclui-se que a exceptio e a
retentio constituem mecanismos de auto e heterotutela do direito de crédito.
Em face do exposto, subsiste a interrogação: ao devedor que recusa o
cumprimento deve ser reconhecida a existência de uma causa justificativa,
ainda que a lei, expressamente, não a preveja? Essa causa justificativa deve ser
reconhecida ao devedor sempre que este seja credor do seu credor ou é a
necessária existência de uma especial ligação entre as obrigações recíprocas
derivada de estas terem uma origem comum? O mesmo é questionar se estas
situações merecem o amparo do Direito e, consequentemente, se se deve
Cfr. Parte III, n.º 6.5 da nossa dissertação de doutoramento (no prelo).
Sobre a inexistência de uma sobreposição do âmbito de aplicação do direito de
retenção e da excepção de não cumprimento à luz do ordenamento jurídico português, v. Parte
III, n.º 4.1.3 da nossa dissertação de doutoramento (no prelo)
21
36
37
considerar lícito o não cumprimento de uma obrigação sempre que o devedor
pretenda, por esta via, compelir e/ou garantir o cumprimento de uma obrigação
devida pelo credor (reciprocidade) e conexa com a primeira (conexão).
Para isso, é necessário perceber se existe uma lacuna e, por esse motivo,
se estes casos merecem uma regulamentação especial relativamente ao regime
regra segundo o qual o devedor entra em mora se não cumprir uma obrigação
vencida. Pretender-se-á apurar em que medida, nas hipóteses supra
identificadas, se deve aplicar o regime da mora do devedor ou existe uma
imperfeição do sistema por a lei não prever uma causa justificativa para estas
situações.
À primeira vista, dir-se-ia que, não existindo uma norma a excluir a
ilicitude do comportamento do devedor, a contrario sensu, se teria de aplicar o
regime da mora.
É, porém, duvidoso que as causas justificativas do incumprimento de
uma obrigação constituam disposições excepcionais. E mesmo que assim fosse,
é hoje reconhecida pela generalidade do pensamento jurídico a debilidade do
argumento a contrario e a consequente impossibilidade de proibir, em termos
gerais, a aplicação analógica de normas excepcionais38.
O que poderá estar aqui em causa é uma lacuna que se revela pelo
reconhecimento da falta de um preceito com conteúdo oposto ao regime regra,
Partindo do princípio que o recurso à analogia ou ao argumento a contrario constitui o
“resultado necessário de uma interpretação de direito positivo mediante valorações teleológiconormativas”, defende CASTANHEIRA NEVES, Metodologia Jurídica, Problemas fundamentais,
Coimbra, 1993, pp. 265 e 273 e ss., na sequência daquele que é o ponto de vista da generalidade
do pensamento jurídico actual, a impossibilidade de, em termos absolutos, proibir a aplicação
analógica de normas excepcionais. O “decisivo é ponderar que se não pode excluir a
possibilidade do reconhecimento de eadem ratio do regime da excepcionalidade prescrita
perante casos não directamente previstos na norma excepcional, casos de aplicações analógicas
que então a própria ratio iuris da excepção justificará (…)”. Poder-se-á questionar se a solução
preconizada não será vedada pelo art. 11.º. Partindo “do valor muito relativo das disposições
legais que se propõem impor soluções a problemas que competem verdadeiramente à
autonomia crítica do pensamento jurídico e não ao legislador”, conclui CASTANHEIRA NEVES
pela possibilidade de aplicação analógica de normas excepcionais.
22
38
aplicável à constituição em mora do devedor. Se concluirmos que é essa a
situação, então, segundo CASTANHEIRA NEVES, “o caso oferece-se em
circunstâncias particulares que obrigam a fazer apelo a pontos de vista
axiológico-jurídicos, em coerência normativa com essas circunstâncias, e que
refluindo sobre o caso concreto lhe incutem um sentido jurídico pelo qual o
preceito regra, ainda que formalmente aplicável, se torna para ele
normativamente inadequado. Pertencem aqui todos os casos em que
circunstâncias particulares são o fundamento para distinções normativas que a
lei não faz, ou para fazer intervir em concorrência com os pressupostos da
hipótese legal outros pressupostos a que a lei não atenda – em qualquer dos
casos a lei se vem a considerar como não aplicável -, ou para fazer funcionar
causas justificativas que a lei não prescreve”39.
O direito de retenção é, por natureza, o instituto vocacionado para
regular as situações identificadas. Todavia, constituindo um direito real de
garantia à luz do nosso ordenamento jurídico, encontra-se sujeito a um
princípio da taxatividade, pelo que não será de admitir o recurso a uma
extensão analógica40. Se se aceitasse a extensão analógica, estar-se-ia também a
limitar, por esta via, a garantia dos credores comuns, terceiros relativamente à
relação estabelecida entre credor e devedor recíprocos, pelo que não será
aceitável a constituição deste direito fora das hipóteses expressamente previstas
na lei. Por este motivo, o princípio de impossibilidade de aplicação analógica de
normas excepcionais não pode in casu sofrer qualquer desvio.
Esta impossibilidade de recorrer à analogia justificará as tentativas de
alargamento do âmbito de aplicação da excepção de não cumprimento a
situações em que não existe uma relação de sinalagmaticidade entre as
prestações. Parece-nos não exitir, neste caso, qualquer impedimento a que,
39
40
CASTANHEIRA NEVES, Metodologia Jurídica, cit., p. 219.
Cfr. supra, Parte III, n.º 4.3.1.
23
existindo uma lacuna, esta possa ser colmatada por recurso a uma extensão
analógica do regime da exceptio non adimpleti contractus. Como esta excepção
não confere ao seu titular um direito real de garantia, os direitos de terceiros
não serão postergados. Isso não autoriza, contudo, a conclusão de que todas as
situações em que o devedor é credor do seu credor se encontram abrangidas
pelo escopo da exceptio. A existência de uma relação de sinalagmaticidade é o
pressuposto distintivo deste instituto, pelo que, quando se verifica não existir
essa relação entre as obrigações, não se poderá recorrer a esta forma específica
de tutela do direito de crédito. O regime jurídico da exceptio, nomeadamente a
impossibilidade de esta ser afastada mediante a prestação de uma garantia, é
inadequado para regular situações em que existe uma mera conexão entre
créditos, pelo que, nestes casos, não se poderá recorrer à analogia para defender
a possibilidade de o devedor recusar o cumprimento da sua obrigação para
tutela do seu direito de crédito.
Por último, através do instituto da compensação, são tuteladas as
hipóteses em que ao credor, simultaneamente devedor do seu devedor, se
atribui a possibilidade de extinguir a sua dívida e, desta forma, tutelar o seu
crédito. Todavia, a extinção recíproca das dívidas pressupõe necessariamente a
fungibilidade das prestações, o que significa que a homogeneidade constitui o
pressuposto distintivo deste instituto. Isto mesmo impede a aplicação analógica
do regime da compensação quando as prestações não forem homogéneas.
O facto de não existir a possibilidade de colmatar a lacuna através de
uma analogia legis não significa que a situação não careça da tutela do Direito.
É comum referir-se que seria contrário à equidade, entendida como
justiça do caso concreto, não permitir que, nestas hipóteses, o devedor pudesse
licitamente recusar o cumprimento da obrigação.
Entendemos, contudo, que tal solução não pode ser acolhida. Em
primeiro lugar, o recurso à equidade não fornece ao intérprete-aplicador um
24
critério que lhe possibilite destrinçar as hipóteses em que, em geral e abstracto,
o credor poderá recusar a sua prestação. Desde logo, não permite determinar se
o devedor pode recusar o cumprimento da obrigação sempre que for credor do
seu credor ou se é também necessária a existência de uma especial ligação entre
as obrigações. Repare-se que, de acordo com o art. 10.º, n.º3, na ausência de caso
análogo, a situação deve ser “resolvida segundo a norma que o próprio
intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema”. Como
bem assinala BAPTISTA MACHADO, “o legislador não remete o intérprete para
juízos de equidade, para a justiça do caso concreto, antes, bem ao contrário, o
incumbe de elaborar e formular uma norma, isto é, uma regra geral e abstracta
que contemple o tipo de casos em que se integra o caso omisso” 41.
Em segundo lugar, não constituindo a equidade, enquanto justiça do
caso concreto, o fundamento da excepção de não cumprimento, do direito de
retenção, nem da compensação não se pode, por maioria de razão, nela alicerçar
a solução para o problema.
Diferente será se entendermos a equidade como referência à ideia de
Justiça. Ainda que ela não permita estabelecer em que hipóteses pode o credor
recusar-se a cumprir, poderá constituir o fundamento último desta causa de
justificação não prevista na lei.
A referência à equidade nestas hipóteses justificar-se-ia, assim, pelo facto
de ser tido como injusto e contrário à boa fé que alguém seja obrigado a
cumprir sem que o credor cumpra, por sua vez, a prestação a que se encontra
adstrito e não como forma de resolução meramente casuística de um conjunto
de hipóteses concretas em que seria contrário à justiça material não reconhecer
como lícita a recusa de cumprimento de uma obrigação para tutela de um
direito de crédito.
Não se esgotando o direito positivo “nos seus comandos e valores
41
BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, cit., p. 203.
25
avulsos, informadores das rationes legis e da teleologia das diferentes normas”42,
antes assentando a ordem jurídica num conjunto de princípios que a legitimam
e num conjunto de valores fundamentais que dão unidade e coerência ao todo,
as lacunas não se poderiam esgotar ao nível da teleologia das disposições legais
emanadas pelos órgãos competentes. Pelo contrário, sempre que os referidos
princípios e valores jurídicos gerais não tiverem uma expressão suficiente na lei,
ter-se-á de questionar se não existirá uma lacuna43. Lacuna essa que terá de ser
preenchida por recurso a uma analogia iuris, isto é, por recurso a um princípio
que, embora obtido através de uma indução de disposições legais vigentes,
constitui um desenvolvimento do Direito que ultrapassa o quadro legal.
Independentemente de tal não ser necessário, esta possibilidade pode ser
retirada do art. 10.º, n.º3 da nossa lei civil44 que atribui ao intérprete o poder de
criar uma norma dentro do espírito do sistema45. Isto significa que, mesmo na
perspectiva do legislador, à doutrina e à jurisprudência é acometida a tarefa de
criação do Direito.
Quando essa norma ou princípio mais geral decorre das normas “postas”
pelo legislador, poder-se-á questionar, com CANARIS, se a analogia iuris não
constitui somente, em termos metodológicos, uma indução. Inclinamo-nos, na
sequência da posição assumida a este propósito por LARENZ, para considerar
que, ainda que essa norma se forme por indução, sempre se terá de lançar mão
42
43
BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, cit., p. 197.
Cfr. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, cit., pp. 197 e
ss.
Defendendo que a norma hipotética, tal qual como se encontra prevista no art. 10.º,
n.º3 deveria ser procurada “ao mesmo tempo em que se faria a aplicação das normas legais e,
não apenas, subsidiariamente, se não se encontrasse por interpretação ou analogia, uma solução
legalmente definida”, v. ANTÓNIO CORTÊS, Jurisprudência dos Princípios, Lisboa, 2010, p. 68.
Salienta o autor, ob. cit., p. 232, que “os princípios não são apenas parâmetros subsidiários que
actuem praeter legem em caso de lacuna legal, mas parâmetros de validade ético-jurídica que
podem inclusivamente prevalecer sobre soluções legais expressas”.
45 Sobre a necessidade de o juiz solucionar estes casos omissos “dentro da lógica das
valorações legais; numa linha de subordinação, aliás inteligente e criadora, ao sentido éticojurídico dessas valorações”, v. MANUEL DE ANDRADE, Sentido e Valor da Jurisprudência, (Oração de
sapiência lida em 30 de Outubro de 1953), Coimbra, 1973, p. 32.
26
44
da analogia para se proceder à comparação entre o caso e a ratio do princípio
aplicável46.
Em suma, sabendo que o Direito não se circunscreve aos comandos
emanados pelo poder legislativo, resta determinar em que medida existirá um
princípio mais geral do qual resulte a possibilidade de o devedor recusar
licitamente o cumprimento até que o credor satisfaça a obrigação a que se
encontra adstrito para com o primeiro, em situações diversas daquelas que se
encontram expressamente previstas na lei.
Da exposição decorre que a excepção de não cumprimento e o direito de
retenção são causas de justificação previstas na nossa lei, através das quais se
atribui ao devedor a possibilidade de recusar o cumprimento da obrigação sem
entrar em mora. Em ambos os casos, as partes são reciprocamente credora e
devedora uma da outra e podem, quer judicial quer extrajudicialmente, recusar
o cumprimento da obrigação. Não basta que o credor não cumpra a obrigação a
que, por sua vez, está adstrito perante o devedor, é necessário que entre as
obrigações exista uma especial ligação. No caso da excepção de não
cumprimento uma relação de sinalagmaticidade e no caso do direito de
retenção uma relação de conexão. Por outro lado, se todas as situações em que
existe uma relação de sinalagmaticidade permitem a invocação da exceptio,
desde que os demais pressupostos se encontrem reunidos, nem todas as
situações em que se verifica existir uma conexão entre créditos possibilitam ao
devedor recusar o cumprimento da sua obrigação. Neste contexto, não pode
deixar de se fazer igualmente referência à compensação, porquanto, ao
extinguir a sua obrigação, na prática, o devedor recusa-se definitivamente a
LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, 3.ª ed., Lisboa, 1997, (tradução portuguesa
de José Lamego de Methodenlehre der Rechtswissenschaft, 6.ª ed., Berlin, Heidelberg, 1991), pp. 545
e 546. Pelo contrário, CASTANHEIRA NEVES, Metodologia Jurídica, cit., pp. 263 e 264, considera que
não há analogia iuris, na medida em que a analogia existe entre casos e não entre o caso e um
princípio obtido por indução, o que lhe permite concluir que “decisivo é reconhecer que a
chamada analogia iuris se reconduz a um argumento judicativo a partir ou com fundamento em
princípios jurídicos e não a uma analogia em sentido próprio”.
27
46
cumpri-la.
É possível, desde já, concluir que, através destes três institutos, se cria
um quadro de protecção do devedor, simultaneamente credor do seu credor.
Importa, por conseguinte, perceber se o poder reconhecido ao devedor de
recusar o cumprimento de uma obrigação para tutela do seu direito de crédito
se encontra circunscrito às disposições legais em análise ou se estas não são
mais do que a concretização ou manifestações de um princípio ou ideia mais
ampla à qual se chega através de um raciocínio indutivo.
Tivemos a oportunidade de explicitar que, noutros ordenamentos
jurídicos47, seja através da excepção de não cumprimento, seja através do direito
de retenção há uma tendência ora do legislador, ora da doutrina e da
jurisprudência para admitir a possibilidade de o devedor poder recusar o
cumprimento de uma obrigação para tutela do direito de crédito de que, por
sua vez, este é titular, sempre que entre estes exista uma relação de conexão.
Pelo facto de a versão definitiva do Código Civil Português de 1966 não
ter acolhido a proposta constante dos trabalhos preparatórios, poderíamos ser
levados a concluir que estamos na presença de um “silêncio eloquente” da lei
que só poderá ser superado através de uma intervenção legislativa 48. Se a
inexistência da regulamentação é intencional, mesmo que o intérprete-aplicador
discorde da opção do legislador não se pode sobrepor a este, concluindo que
existe uma lacuna que deve ser colmatada.
A importância da história do direito e do direito vigente noutros ordenamentos
jurídicos para a formação de princípios por indução ressalta da definição de princípios gerais de
direito apresentada por METZGER, Extra legem, intra ius: Allgemeine Rechtsgrundsätze im
Europäischen Privatrecht, Tübingen, 2009, pp. 26 e 29 e s. Segundo o autor, um princípio geral de
direito (Rechtsgrundsatz) é uma norma jurídica (Rechtsnorm) que, não sendo ou não sendo
totalmente reconhecida pelo direito legislado, pode ser formada por indução a partir das regras
jurídicas vigentes ou pretéritas não só nesse ordenamento jurídico como noutros (“welche von
internen, «externen» (insbesondere ausländischen) und/oder historischen Rechtsregeln im Wege der
Induktion abgeleitet wird”).
48 Sobre o “silêncio eloquente” da lei, v. ENGISCH, Introdução ao Pensamento Jurídico, cit.,
pp. 281 e 282, LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, cit., p. 525 e BAPTISTA MACHADO,
Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, p. 201.
28
47
Em primeiro lugar, temos dúvidas se em causa está um silêncio
eloquente do legislador ou se, em face das dúvidas que se colocavam
relativamente à oportunidade de alargar o âmbito de aplicação da retentio, se
preferiu deixar a questão em aberto e remeter para o intérprete-aplicador a
solução. A proposta de VAZ SERRA terá sido rejeitada, porque o legislador terá
considerado que se estaria, desta forma, a admitir uma terceira figura de
contornos mal definidos entre o direito de retenção e a excepção de não
cumprimento do contrato que podia criar “embaraços de interpretação”. Em
face da insuficiente reflexão feita em torno do problema, o que se pretendeu foi
não incluir expressamente a proposta na nova lei civil e não tanto proibir ou
excluir a solução. Estamos, nas palavras de MANUEL
DE
ANDRADE49, perante
uma situação “que o legislador conheceu ou entreviu, mas propositadamente
deixou em claro”, por não estar suficientemente radicada ou amadurecida para
poder “constituir objecto de um tratamento legal apropriado”.
As dúvidas que a consagração deste instituto podia gerar, prender-seiam sobretudo com as hipóteses em que o direito de retenção poderia ser
abusivamente invocado. Não nos parece que tal receio constitua um
impedimento à admissão desta causa de justificação, porquanto os Tribunais
sempre poderão controlar a verificação dos pressupostos indispensáveis para
que a recusa de cumprimento seja considerada lícita.
Por outro lado, mesmo que a intenção do legislador tivesse sido a de
afastar esta causa de exclusão da ilicitude, tal não impediria que, no futuro, se
não viesse a concluir pela existência de uma lacuna a exigir um
desenvolvimento praeter legem do Direito. É que se uma lacuna não deve ser
identificada com uma incompletude contrária ao plano do legislador, muito
menos este último poderá ser identificado com o legislador histórico. A lacuna
será, quando muito, uma incompletude contrária ao plano do Direito.
49
MANUEL DE ANDRADE, Sentido e Valor da Jurisprudência, cit., p. 29.
29
De facto, a opção do legislador histórico, que excluiu a proposta
constante dos trabalhos preparatórios, não permite concluir obrigatoriamente
pela inexistência de uma lacuna, quando o conjunto das normas jurídicas
produzidas pelo mesmo legislador aponta para a existência de um princípio
mais geral com contornos idênticos ao do preceito constante do anteprojecto
que foi rejeitado. Se é verdade que o elemento histórico de interpretação
compreende os trabalhos preparatórios e, por conseguinte, se deve ter em conta
as propostas que foram rejeitadas, não nos podemos esquecer que este não é o
único elemento de interpretação que deve ser tido em conta.
Como refere FERRARA, “[e]specialmente à medida que a lei se vai
afastando da sua origem, a importância da intenção do legislador vai
afrouxando até se dissolver: o intérprete tardio acha-se imbuído de mudadas
concepções jurídicas, e com isto a lei recebe um significado e um alcance
diverso do que originariamente foi querido pelo legislador”50.
Somos da opinião que resulta das normas postas que o facto de o credor
exigir o cumprimento de uma obrigação sem se dispor a cumprir a obrigação
exigível a que está adstrito para com o devedor altera a relação de confiança
existente entre os dois sujeitos e legitima a reacção deste último, traduzida na
recusa temporária do cumprimento da sua própria obrigação. Essas normas são,
em primeiro lugar, o direito de retenção e a excepção de não cumprimento,
porque, tanto num caso como noutro, é reconhecida ao devedor a faculdade de
rejeição do cumprimento. Todavia, a esta possibilidade não é também alheia a
compensação. Ainda que, neste caso, ao devedor assista a faculdade de
extinguir a sua obrigação e não somente a de recusar o seu cumprimento.
Para além da origem dos referidos institutos ser comum, são muitos os
seus pontos de confluência.
FRANCESCO FERRARA, Interpretação e Aplicação das Leis, (traduzido por Manuel A.
Domingues de Andrade), 3.ª ed., Coimbra, 1978, p. 135.
30
50
Em primeiro lugar, subjacente a todos eles está a ideia de que àquele que
não cumpre não é devido o cumprimento (“inadimplenti non est adimplendum”).
Por esse motivo se reconhece ao devedor o poder de recusar, temporária ou
definitivamente, consoante os casos, o cumprimento da obrigação a que está
adstrito. Através desta recusa, o devedor visa tutelar o seu direito de crédito.
Ao contrário do que sucede com a excepção de não cumprimento e o direito de
retenção, a compensação não visa compelir a contraparte a quem esta é oposta a
cumprir, pois o seu exercício conduz à extinção da obrigação. Todavia,
qualquer dos mencionados institutos cumpre, ainda que de forma diversa, uma
importante função de garantia do direito de crédito.
Se para a compensação a reciprocidade é tida como suficiente para
permitir ao devedor extinguir a sua obrigação, para a excepção de não
cumprimento e para o direito de retenção é necessário que exista entre os
créditos uma relação, no primeiro caso de sinalagmaticidade, no segundo de
conexão material ou jurídica. Por outro lado, a existência dessa relação entre
créditos não é, na nossa perspectiva, indiferente para o regime da compensação.
O próprio regime jurídico aplicável a estas três figuras apresenta muitos
pontos de contacto.
É necessário, em regra, que o devedor seja credor do seu credor, o que
significa que os créditos têm de ser recíprocos.
Em todos os casos, o crédito de que o devedor é titular pode ser ilíquido,
mas tem, em princípio, de ser exigível. O retentor goza também de direito de
retenção quando se verifique alguma das circunstâncias que determinem a
perda do benefício do prazo (art. 757.º, n.º1). No caso de existir uma relação de
sinalagmaticidade entre os créditos, admite-se a invocação de uma excepção de
insegurança quando exista uma verdadeira deterioração ou modificação in peius
da situação patrimonial da contraparte ou se verifique que a sua capacidade de
cumprimento se encontra por outro motivo afectada a ponto de pôr em perigo a
31
efectivação do direito à contraprestação.
Todos os institutos desempenham, em maior ou menor medida, uma
função de garantia. Embora a exceptio e a retentio tenham uma função
meramente dilatória e a compensatio determine a extinção dos créditos, as três
figuras constituem excepções de direito material invocáveis judicial e
extrajudicialmente.
O facto de, através da sua invocação, o devedor poder extrajudicialmente
recusar, temporária ou definitivamente, o cumprimento de uma obrigação para
tutela do seu direito de crédito determina que qualquer destes institutos seja
considerado um mecanismo de autotutela. A circunstância de qualquer dos
institutos constituir um instrumento de autotutela ajudará a explicar a
relutância com que é encarada a possibilidade de alargamento destas situações
de recusa lícita do cumprimento para tutela de um direito de crédito. Essa
resistência é, na nossa opinião, injustificada, pois não se trata de uma hipótese
em que o credor tenha de recorrer à força para realizar o seu direito, como
sucede com a acção directa (art. 336.º). Sempre os Tribunais poderão aferir da
licitude da sua recusa, pelo que a paz e ordem públicas se encontram por esta
via asseguradas.
Tanto na exceptio como na retentio, a recusa de cumprimento determina a
exclusão da mora do devedor. Na prática, efeito idêntico é assegurado pelos
efeitos retroactivos da declaração de compensação (art. 854.º), pois se os
créditos recíprocos se consideram extintos a partir do momento em que se
tornaram compensáveis, não existe mora do devedor desde aí.
Por outro lado, se o crédito de que o devedor é, por sua vez, titular
prescrever depois de qualquer destes institutos poder ser invocado, este
continuará a poder recusar, temporária ou definitivamente consoante os casos,
o cumprimento da obrigação, embora não possa exigir judicialmente o crédito
de que é titular.
32
Pelo exposto, a excepção de não cumprimento, o direito de retenção e a
compensação não constituem figuras isoladas, antes serão concretizações de um
“princípio” mais amplo, que desonera o devedor de prestar ao credor que não
se dispõe a cumprir perante ele uma obrigação exigível. Esse princípio pode ser
encontrado na máxima ou adágio51 de que àquele que não cumpre não é devido
o cumprimento (inadimplenti non est adimplendum). O mesmo é dizer, ainda que
o credor tenha o direito a exigir o cumprimento sem se dispor a contraprestar, o
devedor pode recusar-se a fazê-lo.
É verdade que no direito vigente nos deparamos com diferenças
assinaláveis no regime jurídico de cada uma das figuras estudadas. As referidas
diferenças justificam-se essencialmente por, no caso da compensação, os
créditos serem homogéneos e, no caso da excepção de não cumprimento, pelo
vínculo de interdependência ou correspectividade existente em virtude do
sinalagma. Todavia, essas diferenças não são suficientes para apagar a
existência de um fundo comum ou princípio mais geral sobre o qual assentam
todas elas. Mais, esse fundo comum explica que certas hipóteses enquadradas
pelo nosso legislador no direito de retenção permitam, noutros ordenamentos
jurídicos, a invocação da excepção de não cumprimento.
Por outro lado, o facto de esse princípio se encontrar concretizado em
diversos institutos demonstra que a solução delineada não é contrária ao
sistema que, na formulação de CANARIS, pode ser definido como “conjunto de
todos os valores fundamentais constitutivos para uma ordem jurídica” 52.
Como explica ANTÓNIO CORTÊS, Jurisprudência dos Princípios, cit., pp. 30 e 31, nem
todos os princípios são princípios fundamentais do Direito. “São princípios do Direito neste
segundo sentido as proposições sintéticas que a doutrina e a jurisprudência formulam e que
possam valer como Direito. Essas proposições assumem a forma de máximas ou adágios que
podem provir da tradição jurídica ou não.(…)
Todos os princípios podem, em conjugação, com o sistema de fontes de direito vigente,
dar origem a novas soluções que se podem exprimir e consolidar sob a forma de “regras” que a
jurisprudência irá testar ”.
52 CANARIS, Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito (tradução de
MENEZES CORDEIRO de Systemdenken und Systembegriff in der Jurisprudenz) 2.ª ed, Lisboa, 1989,
33
51
Quanto a nós, a solução está ínsita no próprio sistema. Uma resolução diferente
do problema é que ocasionaria uma quebra da unidade do sistema.
Não se pode negar que, apelando-se à existência de um princípio mais
amplo de que diversas figuras legais constituem uma concretização, não
conseguimos daí retirar quais as situações em que, em concreto, deve ser
reconhecido ao devedor este poder de recusa de realização de uma prestação
para tutela de um direito de crédito. Trata-se, contudo, de uma vicissitude
própria do facto de se reclamar a existência de um princípio ao qual
corresponde uma máxima que devido ao seu carácter geral não é, de per si,
dotada da operacionalidade necessária para ser directamente aplicável a um
caso concreto. Como explica ANTÓNIO CORTÊS, “dizer que estamos perante um
“princípio” é, no fundo, dizer que estamos perante um parâmetro ético-jurídico
cuja aplicação exige a ampla intervenção de mediações dogmáticas e
jurisprudenciais, mas que possui também uma força irradiante que permite a
sua aplicação em âmbitos diversos a que não está expressamente referido. (…)
Os princípios não tipificam os pressupostos e as consequências da sua aplicação
e possuem uma força irradiante que resulta do facto de terem uma ampla
justificação racional, ética ou axiológica”53.
Embora seja possível, através de uma indução ou generalização, chegar
ao referido princípio de que àquele que não cumpre não é devido o
cumprimento, isso é insuficiente não só para determinar quando é que, em
concreto, a faculdade de recusar o cumprimento deve ser reconhecida, mas
também para legitimar a sua existência.
Como refere o mesmo autor, “cada novo princípio é geralmente o
resultado de uma dupla fundamentação ou dupla justificação. Por um lado,
temos os dados positivos, como sejam os preceitos legais, a natureza das coisas,
pp. 190 e ss.
53 ANTÓNIO CORTÊS, Jurisprudência dos Princípios, cit., p. 132. Em sentido idêntico, v.
MENEZES CORDEIRO, “Princípios Gerais de Direito,” Polis, vol. 4, 2.ª ed., Lisboa, 2004, p. 1551.
34
a tradição consolidada de diversos Estados ou a ratio de precedentes judiciais;
por outro lado, a justiça, a ideia de Direito”54.
O caminho até agora percorrido permite-nos concluir não só que em
diversos preceitos legais encontramos reflectido este princípio, como este se
encontra expressamente previsto ou admitido ora na legislação, ora na doutrina
e na jurisprudência de outras ordens jurídicas pertencentes à família romanogermânica.
Reconhecer ao devedor um poder de recusar a prestação corresponde
também a uma necessidade do tráfico jurídico, pelo que igualmente aí se
encontra um fundamento forte para a admissão da figura. De facto, é mais
vantajoso permitir que o devedor não cumpra para, desta forma, compelir o
credor a realizar a prestação a que está adstrito do que exigir que o faça,
correndo o risco de o credor não vir a realizar a prestação a que está obrigado e
ter o devedor de recorrer aos meios jurisdicionais para receber a prestação a que
tem direito. Tanto mais que, em última análise, os tribunais sempre poderão
aferir da existência de fundamento para a recusa da prestação, suportando o
devedor o risco de se concluir pela inexistência de qualquer causa de exclusão
da ilicitude.
Por outro lado, corresponde à natureza das coisas que um sujeito não
seja obrigado a realizar uma prestação a favor de outrem que não se dispõe a
cumprir uma obrigação exigível de que é, por sua vez, devedor para com o
primeiro, bem assim que não tenha de realizar uma prestação quando é credor
do seu credor e as duas obrigações têm por objecto coisas fungíveis da mesma
espécie e qualidade.
Resta apurar se tal princípio se pode considerar conforme à ideia de
Direito.
ANTÓNIO CORTÊS, Jurisprudência dos Princípios, cit., p. 248. “Em suma, os princípios
jurídicos, por muito apoio que possam ter em dados positivos, encontram sempre um
fundamento decisivo em considerações éticas ou axiológicas superiores”.
35
54
Conforme tivemos oportunidade de explicitar, é igualmente comum
encontrar-se a referência a que o fundamento da excepção de não cumprimento,
do direito de retenção e da compensação reside na equidade. Todavia, essa
referência não deve ser entendida como uma remissão para a fórmula
aristotélica de justiça do caso concreto. Através da aludida referência, o que se
pretenderá significar é que, em termos gerais, é contrário à boa fé e à ideia de
Justiça obrigar o devedor a cumprir pontualmente as suas obrigações quando
ele é credor do seu credor.
A origem histórica da compensação, do direito de retenção e, em certa
medida, da excepção de não cumprimento encontrar-se-á precisamente nos
bonae fidei iudicia e na exceptio doli generalis. Se nas acções de ius strictum era, em
regra, necessária a inserção formal de uma excepção de dolo para que o iudex
pudesse considerar que uma determinada pretensão ofendia a boa fé em
sentido objectivo, nos bonae fidei iudicia, o iudex podia ter em conta o crédito do
devedor, para efeito de compensação ou de retenção, como simples decorrência
do poder que lhe era reconhecido de decidir oportet ex fide bona.
MENEZES CORDEIRO não deixa, contudo, de defender a possibilidade de
recorrer ao tu quoque para alargar o âmbito de aplicação da excepção de não
cumprimento para lá dos contratos bilaterais ou sinalagmáticos.
Por sua vez, LURDES PEREIRA e PEDRO MÚRIAS defendem que o
fundamento daquilo que denominam de direito de retenção obrigacional se
encontra, em determinadas hipóteses, num desenvolvimento da lei por
identidade ou maioria de razão, noutras no princípio da boa fé, em especial, no
abuso do direito55, mais concretamente, na proibição de um exercício
desequilibrado de uma posição jurídica.
Estas formas de abuso do direito não serão, efectivamente, estranhas ao
MARIA DE LURDES PEREIRA e PEDRO MÚRIAS, “Os direitos de retenção e o sentido da
excepção de não cumprimento”, RDES, Ano XLIX (XXII da 2.ª Série), Janeiro-Dezembro 2008, p.
198.
36
55
reconhecimento deste poder de recusa do cumprimento para tutela de um
direito de crédito, porquanto, na forma de “tu quoque”56, deve ser considerado
abusivo o comportamento daquele que exige a outrem o acatamento de uma
norma jurídica, maxime o cumprimento pontual de uma obrigação, quando ele
próprio não se dispõe a cumprir uma obrigação que sobre si recai. Nas palavras
de MENEZES CORDEIRO57, “[a] ordem jurídica postula uma articulação de valores
materiais, cuja prossecução pretende ver assegurados. Nesse sentido, ele não se
satisfaz
com
arranjos
formais,
antes
procurando
a
efectivação
da
substancialidade. Pois bem: a pessoa que viole uma situação jurídica perturba o
equilíbrio material subjacente. Nessas condições, exigir à contraparte um
procedimento idêntico ao que se seguiria se nada tivesse acontecido equivaleria
ao predomínio do formal: substancialmente, a situação está alterada, pelo que a
conduta requerida já não poderá ser a mesma”.
Por outro lado, um dos corolários do referido exercício desequilibrado de
uma posição jurídica reside exactamente em pedir aquilo que se tem de
devolver (dolo agit qui petit quod statim redditurus est ), o que se adequará mais a
institutos como a compensação58.
Não nos parece que qualquer dos institutos analisados encontre o seu
fundamento numa das formas de abuso do direito. Mesmo no âmbito das
relações sinalagmáticas, o credor pode exigir o cumprimento da obrigação sem
se dispor a contraprestar. Essa exigência não pode ser considerada ilícita nem
abusiva, pois o credor que pretende exercer o seu direito de crédito não está
obrigado a contraprestar, mas tem somente o encargo de o fazer, se não quiser
que o devedor recuse o cumprimento. Por maioria de razão, não existe esse
dever quando entre os créditos não intercede uma relação de interdependência
Sobre o conceito de tu quoque, v. MENEZES CORDEIRO, Da Boa Fé no Direito Civil, II,
Coimbra, 1985, p. 837.
57 MENEZES CORDEIRO, “Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas”,
Revista da Ordem dos Advogados, ano 65, 2005, II, p. 360.
58 Cfr. MENEZES CORDEIRO, Da Boa Fé no Direito Civil, II, cit., pp. 852 e ss.
37
56
ou correspectividade. Assim, a função da exceptio, tal como da retentio, é a de
facultar ao devedor a possibilidade de licitamente se recusar a prestar e não
tornar ilícita ou abusiva a exigência de cumprimento sem que o credor se
disponha a contraprestar em simultâneo. Por esse motivo, se o devedor decidir
cumprir voluntariamente a obrigação, desconhecendo que poderia invocar
qualquer das excepções que lhe permitem recusar o cumprimento, não pode
pedir de volta aquilo que prestou.
Se não há abuso do direito por parte do credor que exige o cumprimento
de uma obrigação, quando a contraparte pode invocar a excepção de não
cumprimento, de retenção ou de compensação, para se recusar a cumprir, por
maioria de razão, não poderá este legitimar directamente o princípio cuja
juridicidade pretendemos fundamentar.
O credor que exige o cumprimento sem, por sua vez, cumprir a
obrigação a que está adstrito perante o seu devedor não está a exigir
abusivamente o seu direito de crédito, no sentido de que o seu direito à
prestação não depende do cumprimento da obrigação a que está vinculado
perante o devedor. Do art. 762.º, n.º2 decorre que tanto devedor como credor 59
devem no cumprimento da obrigação e no exercício do direito correspondente
proceder de boa fé, o que significa que cada uma das partes tem de comportarse de forma honesta e leal para com a outra. Por este motivo, poder-se-á
considerar um corolário da boa fé em sentido objectivo que, embora o credor
possa exigir o cumprimento sem se dispor a contraprestar, tal comportamento
do credor deve facultar ao devedor a possibilidade de recusar o cumprimento
para tutela do seu direito. Se, de acordo com o ius strictum, o devedor está
obrigado a cumprir pontualmente as suas obrigações (art. 406.º), o princípio da
boa fé exige que lhe seja reconhecido, em termos gerais, uma excepção de
Salientando o carácter bilateral do princípio da boa fé, v. BRANDÃO PROENÇA, Lições de
Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, Coimbra, 2011, p. 56.
38
59
direito material que lhe permita recusar esse cumprimento quando o credor não
cumpra a obrigação a que está adstrito. O credor tem, assim, o encargo de
realizar a prestação por si devida, porque, caso contrário, o devedor pode
licitamente recusar a realização da prestação a que o primeiro tem direito.
A referência à equidade enquanto fundamento desta faculdade de recusa
do cumprimento para tutela de um direito de crédito deve ser entendida como
uma remissão para a ideia de Justiça. Ainda que nenhuma norma de direito
deva, em última análise, ser contrária à ideia de Justiça, há institutos, como
acontece com a compensação, o direito de retenção e a excepção de não
cumprimento, cujo princípio primeiro sobre o qual repousam é directamente a
ideia de Justiça. Os referidos institutos não cobrem, contudo, todas as situações
em que ao devedor deverá ser reconhecida a faculdade de recusa da prestação
para tutela de um direito de crédito. Daí a necessidade de um desenvolvimento
praeter legem do Direito cuja legitimidade deverá ser encontrada na ideia de
Justiça.
Todavia, uma coisa é a boa fé e a ideia de Justiça constituírem o
fundamento último ou a legitimação metodológica do desenvolvimento praeter
legem do direito, outra bem diferente é tentar recorrer a estas para traçar o
recorte da figura. Isto significa que não é possível valer-se delas para
determinar em concreto quais as hipóteses em que um devedor pode
licitamente recusar-se a cumprir, sem recorrer aos tribunais, até receber a
prestação que, por sua vez, o seu credor lhe deve.
Por último, para concluirmos pela existência de um princípio, é
necessário perceber se este não terá sido excluído pela ordem jurídica vigente60.
A proibição de recurso à força própria para realização de um direito (art.
1.º do CPC) não é aplicável às formas de autotutela que não requerem o uso da
Sobre a admissibilidade de soluções contra legem com base em princípios jurídicos, v.
ANTÓNIO CORTÊS, Jurisprudência dos Princípios, cit., pp. 306 e ss.
39
60
força para serem actuadas, pois estas não põem em causa, da mesma maneira, a
paz e ordem públicas.
No espaço jurídico alemão, a questão da proibição da autotutela foi
largamente debatida nos trabalhos preparatórios do BGB. Grande foi a
discussão em torno da exclusão, no futuro Código Civil, de uma norma que
proibisse o recurso à autotutela. Segundo os autores dos trabalhos preparatórios
do BGB, a proibição de autotutela apresentar-se-ia desnecessária, porquanto os
actos de justiça privada seriam, em regra, ilícitos e a ordem jurídica previa
sanções adequadas sempre que uma conduta, independentemente do seu fim,
pusesse em causa a paz pública. Pelo contrário, a intenção de agir conforme ao
direito não pode ser considerada ilícita, nem põe em causa a paz pública 61. Esta
solução deve ser enquadrada no contexto de uma codificação que consagrou o
princípio da autonomia privada de forma particularmente ampla e abdicou da
intervenção dos tribunais, como por exemplo na resolução 62, excepto quando tal
se mostrasse estritamente necessário.
Deve também entender-se que não existe na nossa ordem jurídica uma
proibição genérica de recurso à autotutela, mas somente de recurso à força
própria para realizar um direito (art. 1.º do CPC), contrabalançada por a cada
direito corresponder uma acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo (art. 2.º,
“Die Absicht, den Zustand herbeizuführen, der dem Rechte entspricht, ist nich widerrechtlich.
Ebensowenig wird durch eine solche auf dem Boden des Rechtes sich bewegende Handlung der
Rechtsfriede gestört”. Cfr. MUGDAN, Motive…, I, p. 546. No Protokolle, rejeitou-se somente a
possibilidade de haver uma norma que determinasse que o fim de justiça privada não tornava o
acto lícito ilícito e vice-versa. Não se tratou, contudo, de uma alteração da concepção defendida
no primeiro projecto. Considerou-se que a norma deveria ser excluída por ter uma natureza
doutrinária. Cfr. MUGDAN, Protokolle…, I, pp. 806 e 807. Subsequentemente, no Denkschrift
reitera-se que o importante é determinar se o acto é, em si mesmo, ilícito ou lícito. Como o fim
de autotutela (Selbstshilfezweck) não torna, de per si, o acto ilícito, a lei só deveria regular as
excepções. Cfr. MUGDAN, Denkschrift …, I, pp. 843 e 844.
62 A mesma ordem de razões esteve na origem da solução acolhida pelo nosso legislador
civil em 1966. Nos trabalhos preparatórios, escrevia VAZ SERRA, “Resolução do Contrato”, BMJ,
n.º 68, 1957, p. 227, ser preferível permitir a cessação extrajudicial de um contrato, “pois não há
necessidade de obrigar o titular do direito de resolução a pedir em juízo que esta seja decretada,
isto é, obrigar quem tem esse direito aos incómodos e delongas de uma acção judicial. Mais
simples é que ele declare directamente à outra parte que resolve o contrato”.
40
61
n.º2, do CPC).
Embora o direito a uma decisão judicial em prazo razoável esteja
constitucionalmente consagrado (art. 20.º, n.º4, da CRP) e inscrito na Convenção
Europeia dos Direitos do Homem (art. 6.º), a obtenção de uma decisão judicial,
que não ponha em causa as garantias processuais que sempre terão de ser
asseguradas às partes, é inevitavelmente morosa. E nem a “fuga para o
privado” a que se tem assistido nas diversas reformas da acção executiva tem
conseguido alterar a situação63.
Assim, a opção de deixar aos particulares a possibilidade de procederem
à tutela dos seus direitos ou atribuir ao Estado a exclusividade da sua protecção
passa, quanto a nós, por uma ponderação de interesses. Ora, parece-nos que a
não admissão desta causa de exclusão da ilicitude criaria um dano superior
àquele que resulta da sua aceitação. Se o devedor estiver obrigado a cumprir, o
credor deixa de se sentir compelido a realizar a sua prestação para receber
aquela a que tem direito, tendo o devedor, em última análise, de recorrer aos
meios jurisdicionais para receber aquilo que lhe é devido. Por outro lado, se o
devedor recusar o cumprimento e se vier a concluir que essa rejeição é ilícita,
sempre existirá um incumprimento (definitivo ou temporário) da obrigação
com todas as consequências que lhe estão associadas.
Por fim, se o legislador admite, com grande amplitude, certas formas de
autotutela que desempenham uma função executiva, como vimos suceder com
a compensação, por maioria de razão, deve aceitar-se a licitude dos
instrumentos de autotutela com um carácter meramente defensivo ou passivo 64.
Todavia, como bem reconhece ANGELO SATURNO, L’Autotutela Privata, cit., p. 205, “a
“fuga nel privato” não é indolor. Ela não produz só vantagens, mas em geral também - e salta aos
olhos de todos - desigualdades e injustiças (...). Estas tensões reflectem-se tal e qual na
autotutela, cujo emprego, quanto mais geral, tanto mais se arrisca a redundar em abuso”.
64 As formas de autotutela activa distinguem-se dos instrumentos de autotutela passiva
ou meramente defensiva por, nos segundos, o titular do direito se limitar a resistir à pretensão
de outrem através de uma omissão ou de um comportamento passivo que visa manter o status
quo. Cfr. BETTI, “Autotutela”, Enciclopedia del Diritto, IV, Milano, 1959, p. 529 e GIROLAMO
41
63
O carácter meramente defensivo e temporário desta forma de autotutela
permite concluir que a paz e ordem públicas não são, por esta via, postas em
causa65. Trata-se de uma mera recusa do cumprimento, pelo que o credor se
limita a omitir um comportamento devido para tutela do seu direito e não
recorre à força própria para cobrar o seu crédito.
Em síntese, a autotutela não pode ser perspectivada como uma forma de
justiça oposta à justiça pública, mas como complementar desta que deve ser
permitida sempre que não ponha em causa a paz pública e simultaneamente
favoreça a realização do direito do credor em relação às possibilidades que este
tinha de obter o cumprimento através do recurso à tutela jurisdicional.
Outro problema que se pode colocar é se tal solução não põe em causa o
princípio do cumprimento pontual das obrigações. A recusa de cumprimento
de uma obrigação constituirá, em regra, um comportamento ilícito do devedor,
mas que, na excepção de não cumprimento e no direito de retenção, o legislador
torna legítimo, em virtude do não cumprimento simultâneo pela contraparte da
obrigação que sobre esta recai, precisamente para tutela do respectivo direito de
crédito. Assim, a razão pela qual o legislador excepcionou as hipóteses que
permitem ao devedor invocar a excepção de não cumprimento ou o direito de
retenção, também se verificará noutras situações não abrangidas por estes
institutos.
Como
tivemos
oportunidade
de
aflorar,
encontra-se
hoje
ultrapassado, pela generalidade da comunidade jurídica, o entendimento
segundo o qual a analogia de disposições excepcionais se encontra em todos os
BONGIORNO, L’Autotutela Esecutiva, Milano, 1984, pp. 29 e 30.
65 No ordenamento jurídico francês em que a excepção de não cumprimento não se
encontra prevista, em termos gerais, no Código Civil, a doutrina e a jurisprudência têm-se
pronunciado no sentido do alargamento do âmbito de aplicação da excepção por se tratar de
uma medida defensiva e temporária que não põe em causa a paz e ordens públicas. Cfr.
CATHERINE POPINEAU-DEHAULLON, Les Remèdes de Justice Privée à l’Inexécution du Contrat, Étude
Comparative, Paris, 2008, pp. 99 e 100. Referindo-se especificamente à compatibilidade da
excepção de não cumprimento com a tutela da ordem pública, v. VALLIMARESCO, La Justice
Privée en Droit Moderne, Paris, 1926, p. 407.
42
casos excluída. A esta concepção restrita, reflectida no art. 11.º, tem-se vindo a
sobrepor aquela que manda atender à “razão pela qual o legislador
excepcionou este casos”66. Justifica-se, por conseguinte, plenamente que seja
reconhecida a licitude do comportamento do devedor que se recusa a cumprir
para tutelar o direito de crédito de que é titular.
A solução passa também pela formulação de um juízo de oportunidade.
Tudo está em saber se, sendo possível ao credor tutelar de forma económica e
célere o seu direito sem recurso à força própria, não será de admitir esta causa
de exclusão da ilicitude, apesar de a mesma não se encontrar prevista na lei. Por
outro lado, sempre existirá a garantia de que os tribunais poderão intervir para
ajuizar se a recusa é abusiva e, como tal, contrária ao direito vigente.
De acordo com a formulação ampla do adágio “inadimplenti non est
adimplendum”, qualquer situação em que se verifique existir uma reciprocidade
de créditos permitiria, à primeira vista, ao devedor recusar o cumprimento da
sua obrigação, se o credor não se dispusesse a cumprir, em simultâneo, aquela a
que está adstrito. Diríamos, todavia, que não existe um consenso no que
concerne à admissão de uma forma tão ampla de exclusão da ilicitude do
comportamento daquele que não cumpre pontualmente uma obrigação.
Tanto a excepção de não cumprimento, como o direito de retenção
pressupõem a existência de uma especial ligação entre créditos. Por outro lado,
apesar de o regime jurídico da compensação não distinguir, em regra, as
hipóteses em que os créditos, para além de recíprocos, provêm da mesma
relação jurídica, entendida para o efeito como mesma relação de vida, a verdade
é que fomos capazes de identificar um conjunto de situações em que o regime
jurídico deve ser distinto do geral.
66
Cfr. LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, cit., p. 503.
43
A conclusão a que chegámos a nossa dissertação de doutoramento67 é a
de que, ao contrário do que vimos suceder com o direito de retenção
convencional, é necessária a existência de uma conexão entre créditos para que
o devedor possa recusar o cumprimento da sua obrigação até receber do credor
a prestação a que tem direito. Isto significa que não basta que créditos sejam
recíprocos é necessário que estes tenham uma origem comum. Essa conexão
entre créditos existe quando estes provêm da mesma relação jurídica. O
conceito abrange também as situações em que os direitos têm fonte na mesma
relação da vida.
6. Oponibilidade a terceiros:
Outras das questões suscitadas no Acórdão do Tribunal da Relação do
Porto com que iniciámos a presente exposição era a de saber se o direito de
retenção, que os Autores da acção advogavam ser titulares, prevaleceria sobre
uma hipoteca anteriormente constituída sobre o bem retido.
Estando os direitos reais de garantia sujeitos ao princípio da
taxatividade, mesmo que a obrigação recusada tenha por objecto uma coisa
determinada, aquele que legitimamente se recusa a realizar a prestação não
goza de qualquer direito a ser pago com preferência pelo valor do bem retido.
Aliás, foi por esse motivo que excluímos a possibilidade de o direito de retenção
ser aplicado por analogia a outras situações em que se verifica a existência de
uma conexão entre créditos.
Problema diferente está em saber se a excepção de recusa de
cumprimento para tutela de um direito de crédito que temos sustentado existir,
nos termos anteriormente delineados, apesar de não atribuir ao seu titular
qualquer direito de preferência pelo valor da coisa retida, não permitirá recusar
a terceiros a entrega da coisa. De outra forma, o credor poderá alienar a coisa
67
Cfr. Parte VI, n.º 4.2.3.
44
retida a um terceiro que a poderá reivindicar, defraudando, assim, os interesses
do beneficiário da excepção que legitimamente pretendia recusar a entrega da
coisa até receber a prestação a que tem direito. Se defendemos, a propósito da
oponibilidade a terceiros da excepção de não cumprimento, a impossibilidade
de esta, à luz do ordenamento jurídico português, ser oponível aos terceiros
adquirentes da coisa, por maioria de razão, temos de entender que esta
excepção não pode ser oposta a estes últimos. A recusa da entrega da coisa não
é, assim, oponível, em regra, a terceiros adquirentes.
A este propósito, pode suscitar-se, ainda, a seguinte interrogação: será a
referida recusa oponível aos credores do credor da entrega da coisa em sede de
acção executiva singular e de processo de insolvência?
No que diz respeito ao processo de insolvência, o beneficiário da
excepção não pode deixar de ser considerado um credor comum, não gozando
de qualquer direito a ser pago com preferência68, nem da protecção conferida no
art. 102.º do CIRE às prestações unidas por um vínculo de sinalagmaticidade 69.
Assim, estará obrigado a cumprir integralmente a sua obrigação e receberá
aquilo a que tem direito de acordo com o princípio da par conditio creditorum. Se
Relativamente à impossibilidade de invocação do direito de retenção previsto no
§273,1 do BGB, em processo de insolvência por se tratar de um direito que não produz efeitos
relativamente a terceiros, v. KRÜGER, Münchener Kommentar..., cit., § 273, n.os 56 e 94, pp. 687 e
695.
69 Sobre a impossibilidade de o disposto no art. 102.º do CIRE ser aplicado a contratos
não sinalagmáticos, v. PESTANA DE VASCONCELOS, “O novo regime insolvencial da compra e
venda”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, ano 3, 2006, pp. 536 e 537,
MENEZES LEITÃO, Direito da Insolvência, 4.ª ed., Coimbra, 2012, p. 179(235) e ROSÁRIO EPIFÂNIO,
Manual de Direito da Insolvência, 5.ª ed., Coimbra, 2013, p. 177. Esta posição não é, contudo,
acolhida por OLIVEIRA ASCENSÃO, “Insolvência: Efeitos sobre os negócios em curso”, ROA, ano
65, II, 2005, pp. 288 e ss. que propõe a aplicação analógica do art. 102 do CIRE aos contratos e
negócios unilaterais. A analogia não nos parece sustentável, porquanto nas hipóteses em que o
administrador opta pelo cumprimento, os contradireitos do credor tornam-se dívidas da massa,
o que implica uma restrição ao princípio da par conditio creditorum. A doutrina germânica tende
a circunscrever a aplicabilidade do §103 da InsO aos contratos bilaterais. Admitindo a
possibilidade de o §103 da InsO se aplicar a obrigações emergentes de um contrato bilateral
ainda que estas não se encontrem unidas por uma relação de sinalagmaticidade, mas recusando
a sua extensibilidade aos contratos bilaterais imperfeitos, v. KATHARINA BLAUM,
Zurückbehaltungsrechte in der Insolvenz, Baden-Baden, 2008, pp. 146 e ss. e pp. 250 e 251.
45
68
outra fosse a solução, teríamos de concluir que esta faculdade de recusa gozaria,
afinal, de maior protecção do que aquela que é conferida ao titular de um
direito real de garantia, especialmente quando o valor da coisa retida fosse
superior ao do crédito, pois, nesse caso, os demais credores poderiam estar
dispostos a proceder ao pagamento para que a coisa retida fosse entregue à
massa70.
Relativamente à acção executiva para pagamento de quantia certa,
procedendo-se à penhora de um bem do executado que se encontre “retido” e
não gozando o devedor que arguiu a excepção de nenhuma preferência sobre
aquele, não poderá reclamar o seu crédito ao abrigo do art. 778.º do CPC.
Poder-se-á, todavia, equacionar a possibilidade de este deduzir embargos
de terceiro, advogando que a penhora lesa a sua posse ou um direito com esta
incompatível. Para além de ser duvidoso que o “retentor” possa ser
considerado possuidor, a verdade é que o seu direito não é oponível a terceiros,
pelo que entendemos que a resposta não poderá deixar de ser negativa, o que
demonstra a fragilidade da garantia associada a este poder de recusa que tem
eficácia somente entre as partes.
Diferente será se se proceder à penhora de um direito de crédito cujo
cumprimento possa ser licitamente recusado pelo seu devedor, nos termos
supra mencionados. Aí já é defensável que este direito de recusa do
cumprimento da obrigação para tutela do direito de crédito goze de uma certa
oponibilidade a terceiros, porquanto no art. 776.º do CPC se estabelece que no
caso de o devedor - notificado da penhora do direito de crédito – declarar que a
exigibilidade da obrigação depende de prestação a efectuar pelo executado e de
este confirmar a declaração, o executado é notificado para satisfazer a prestação
no prazo de 15 dias. Se o executado não o fizer, a prestação pode ser exigida na
Cfr. MARIA DE LURDES PEREIRA e PEDRO MÚRIAS, “Os direitos de retenção e o sentido
da excepção de não cumprimento”, cit., pp. 214 e 216 a 217.
46
70
mesma execução, servindo de título executivo a sua declaração de
reconhecimento de dívida. Se o executado impugnar a declaração do devedor e
a penhora se mantiver, o crédito considera-se litigioso e como tal será
adjudicado ou transmitido.
Assim, no que concerne à oponibilidade a terceiros, a regra é a de que
não se encontrando esta prevista na lei, o direito a suspender o cumprimento da
obrigação para tutela de um direito de crédito só será oponível entre as partes.
47
Download

paper - Faculdade de Direito da Universidade Católica