DIREITO DE RETENÇÃO E TIPICIDADE DOS DIREITOS REAIS Ana Taveira da Fonseca 1. Introdução: Poucos dias depois de termos entregado a nossa dissertação de doutoramento, foi proferido um acórdão pelo Tribunal da Relação do Porto1 em que se discutia se o direito de retenção - previsto nos arts. 754.º e 755.º - poderia ser aplicado por analogia a situações em que o legislador não atribuiu ao devedor a possibilidade de reter a coisa até que o seu credor pagasse o contracrédito de que, por sua vez, é devedor. Em causa estava uma situação em que os autores da acção entregaram ao réu, que foi subsequentemente declarado insolvente, 382.000,00 € para este último os aplicar na abertura de uma carteira de títulos cotada em bolsa sob o seu controlo. Aquele a quem o dinheiro tinha sido confiado confessou-se devedor perante os autores da acção e para extinção de tal dívida entregou-lhes um imóvel que, mais tarde, estes vieram a descobrir estar previamente hipotecado a um terceiro. Ficou igualmente provado que os autores da acção eram “pessoas de avançada idade, de baixa instrução e trabalhadores agrícolas, que juntaram ao longo da vida o suficiente para uma velhice descansada”. Na sequência da declaração de insolvência do réu, os autores da acção, num processo de verificação ulterior de créditos (arts. 146.º a 148.º do CIRE), em que o seu crédito foi reconhecido nos termos do art. 136.º do CIRE, peticionaram que este fosse graduado como um crédito da insolvência garantido por direito de retenção. Por esta via, pretendiam que a sua garantia prevalecesse sobre a hipoteca anteriormente constituída. Sabendo que não estavam perante uma das Ac. TrRelPt de 7 de Outubro de 2013, Processo n.º 1900/11.8TBPVZ-F.P1, in www.dgsi.pt 1 1 hipóteses em que a lei atribui um direito de retenção para garantia do crédito, defenderam que existiria uma lacuna que deveria ser colmatada através do recurso a uma analogia legis, dada a similitude entre a situação em apreço e aquelas que, nos termos do art. 754.º e 755.º, n.º1, conferem ao credor/devedor um direito de preferência pelo valor da coisa retida. Entendeu que o Tribunal que o crédito dos autores da acção não gozava de direito de retenção, porque este é “um direito excecional, ou melhor dito, as que o consagram analogicamente) são (e que normas os recorrentes excecionais pretendem (…). E, ver como se aplicadas afirmou anteriormente, e decorre expressamente do artigo 11.º do CC, as normas excecionais não comportam aplicação analógica”. A este fundamento para recusar a analogia legis acrescentou que “mesmo que a impossibilidade de aplicação da norma por analogia, decorrente da sua excecionalidade, não se revelasse argumentativamente decisiva, nunca poderia esquecer-se que essa impossibilidade decorre diretamente do princípio da taxatividade dos direitos reais, consagrado no artigo 1306.º, n.º1 do CC”. A leitura do referido aresto serve de mote à revisitação de dois dos problemas com que nos confrontamos ao longo da nossa investigação: saber em que medida é que, fora das hipóteses em que o devedor pode lançar mão da excepção de não cumprimento ou do direito de retenção, o facto de o direito de retenção constituir um direito real de garantia impedirá o devedor de recusar a realização de uma prestação até que o seu credor satisfaça o crédito de que, por sua vez, é devedor e, em caso afirmativo, qual oponibilidade relativamente a terceiros de que gozará este direito de recusa do cumprimento de uma obrigação para tutela de um direito de crédito 2. O direito de retenção e o princípio da taxatividade dos direitos reais no Código de Seabra e no Anteprojecto de Vaz Serra: À luz do Código de Seabra, ao possuidor de boa fé era reconhecido o 2 direito de reter a coisa enquanto não fosse ressarcido das benfeitorias necessárias (art. 498.º e § 2, do Código de Seabra) ou úteis feitas naquela (art. 499.º, §2.º, do Código de Seabra). Da mesma forma, era atribuído um direito de retenção ao mandatário sobre o objecto do mandato, até que este estivesse “embolsado do que, em rasão deste, se lhe deva” (art. 1349.º do Código de Seabra), ao empreiteiro de obra mobiliária, enquanto não lhe fosse pago o preço (art. 1407.º do Código de Seabra), e ao recoveiro e ao barqueiro sobre os objectos transportados até que o transporte fosse pago (art. 1414.º do Código de Seabra). O depositário podia reter a coisa depositada enquanto não fosse reembolsado das despesas que tivesse realizado com a conservação da coisa ou por causa dela (art. 1450.º do Código de Seabra), assim como ao arrendatário era concedido um direito de retenção do locado até ser restituído o valor das benfeitorias expressamente consentidas pelo locador ou autorizadas por lei (art. 1614.º do Código de Seabra) e ao usufrutuário e seus herdeiros, findo o usufruto, “por desembolsos de que devam ser pagos” (art. 2251.º do Código de Seabra). Em face da dispersão de normas que atribuíam ao devedor um direito de retenção e de a lei, expressamente, determinar que o comodatário não gozava de direito de retenção até que lhe fossem pagas as despesas extraordinárias e inevitáveis que tivessem sido feitas por causa da coisa emprestada (art. 1521.º §1, do Código de Seabra), não é de estranhar a divisão existente na doutrina sobre a taxatividade das hipóteses de direito de retenção. A este propósito, referia M. HELENA GARCIA DA FONSECA que seria “já secular o problema que gira à volta de saber se o Direito de Retenção é um instituto de carácter geral, ou antes um instituto de carácter excepcional por só ter lugar no caso de existir texto de lei atribuindo-o”2. M. HELENA GARCIA DA FONSECA, “Existência no Direito Português de Direito de Retenção como Instituto de Carácter Geral”, ROA, ano 10, 1950, I e II, p. 372. 3 2 Para a maioria da doutrina, o direito de retenção só podia ser reconhecido ao devedor nos casos expressamente previstos na lei. Esta solução baseava-se no facto de o direito de retenção ser oponível a terceiros, ainda que não existisse um consenso quanto aos efeitos que, em concreto, relativamente àqueles o referido direito produziria. CARNEIRO PACHECO considerava que as hipóteses de direito de retenção previstas na lei não podiam ser aplicadas por analogia a outras situações nela não contempladas, porque produziriam, relativamente a terceiros, efeitos superiores aos de um direito de preferência3. Apesar da forte influência exercida pela pandectística germânica no pensamento de GUILHERME MOREIRA, o autor entendia que o direito de retenção não tinha um carácter geral, porquanto, atribuindo ao seu titular um direito a ser pago com preferência, constituía uma excepção ao princípio da igualdade dos credores. Para o autor, no direito de retenção, os créditos, ainda que conexos e recíprocos, eram independentes, pois cada um deles “não é causa jurídica do outro”. O direito de retenção “não resulta da própria natureza da obrigação” e, por isso, constitui somente uma garantia concedida por lei4. Da mesma forma, defendia PAULO CUNHA que as hipóteses em que a lei concedia ao devedor um direito de retenção deviam ser entendidas como excepções ao “princípio de que não deve haver preferências no pagamento dos credores pelos bens do devedor”5, estando, por conseguinte, excluída a possibilidade de aplicação analógica do direito de retenção a outras situações. Apesar de a teoria da taxatividade das hipóteses de direito de retenção imperar na vigência do Código de Seabra, esta concepção acaba por ser 3 CARNEIRO PACHECO, Do Direito de Retenção na Legislação Portuguêsa, Coimbra, 1911, pp. 117 e ss. GUILHERME MOREIRA, Instituições do Direito Civil Português, II, Das Obrigações, 2.ª ed., Coimbra, 1925, p. 118. Em sentido idêntico, v. MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral das Obrigações, (com a colaboração de Rui de Alarcão), 3.ª ed., Coimbra, 1966, pp. 331 e 332. 5 PAULO CUNHA, Da Garantia nas Obrigações, t.II, apontamentos coligidos por Eudoro Pamplona Côrte-Real, 1938-1939, pp. 155 e 156. 4 4 contestada por alguma doutrina no primeiro quartel do séc. XX. Assim, com base no art. 1521.º, que recusava o direito de retenção ao comodatário, JOSÉ TAVARES defendia a aplicação do direito de retenção desde que existisse uma relação de reciprocidade entre crédito e débito, mesmo que não houvesse uma “relação de conexidade entre o crédito e a cousa retida. São todos os casos em que é admitido o direito de reconvenção, nos termos dos arts. 331.º e 333.º do código do processo. Simplesmente êste direito de retenção, não tendo o seu fundamento na relação de dependência entre o crédito e a cousa, só tem efeitos entre as próprias partes e os seus representantes”6. CUNHA GONÇALVES7, por sua vez, apoiando-se também no art. 1521.º, n.º1, considerava que “embora o direito de retenção seja uma garantia e importe uma preferência, isto não implica que êle só seja de admitir nos casos expressos na lei, pois que, realizando-se em determinadas condições, que dos textos legais resultam, o direito de retenção não deixa de ser uma excepção por ser extensivo aos casos não previstos”. Não deixa, contudo, de salientar que não é pelo simples facto de existir a detenção de uma coisa e de os créditos serem recíprocos que essa aplicação extensiva é defensável. O direito de retenção seria, assim, reconhecido ao devedor em dois grandes grupos de casos: quando existisse uma conexão objectiva entre o crédito e a coisa retida e nas obrigações emergentes de um contrato sinalagmático8, o que permite perceber que, para CUNHA GONÇALVES, a excepção de não cumprimento constituía uma hipótese ou exemplo de direito de retenção. Por último, M. HELENA GARCIA DA FONSECA admitia que o devedor gozaria de direito de retenção sempre que existisse uma relação de conexão objectiva entre o crédito e a coisa retida, “deixando à “exceptio non adimpleti JOSÉ TAVARES, Princípios Fundamentais do Direito Civil, I, Coimbra, 1922, pp. 565 e 566. CUNHA GONÇALVES, Tratado de Direito Civil, IV, Coimbra, 1931, pp. 522 e 523. 8 CUNHA GONÇALVES, Tratado de Direito Civil, IV, cit., pp. 523 e 524. 6 7 5 contractus” os casos de conexidade subjectiva”9. No anteprojecto do Código Civil, VAZ SERRA tinha previsto que, ao lado do direito real de retenção fundado na conexão material entre a coisa retida e o crédito, existisse um direito de retenção obrigacional sempre que houvesse uma conexão jurídica entre os créditos resultante de a obrigação de entrega da coisa e o crédito do retentor derivarem da mesma relação jurídica. De acordo com a referida proposta, considerava-se que os créditos tinham origem na mesma relação sempre que “se [fundassem] em várias relações jurídicas, uma vez que estas se [apresentassem] economicamente como uma só, já em consequência do fim tido em vista pelas partes, já em virtude da opinião corrente na vida dos negócios, não excluídas por elas”10. Previa-se igualmente que, nestes casos, o direito de retenção não constituiria um direito real de garantia, mas atribuiria somente ao retentor o direito a não cumprir a sua obrigação enquanto a contraparte não realizasse aquela que estava adstrita a cumprir. Este direito obrigacional de retenção não se confunde com a exceptio non adimpleti contractus, ainda que o alargamento do âmbito de aplicação do direito de retenção possa, em abstracto, determinar uma sobreposição dos institutos. A excepção de não cumprimento sempre estaria reservada aos contratos sinalagmáticos e existiria em virtude da interdependência das prestações, enquanto o direito de retenção, não sendo uma consequência natural do contrato, deveria ser qualificado como uma garantia atribuída por lei ao credor por razões de equidade11. Se se excluísse, conforme proposto no anteprojecto, a possibilidade de o direito obrigacional de retenção ser exercido, sempre que os créditos, para além de conexos, estivessem unidos por um vínculo de sinalagmaticidade, o agente não poderia sequer prevalecer-se, em simultâneo, M. HELENA GARCIA DA FONSECA, “Existência no Direito Português de Direito de Retenção como Instituto de Carácter Geral”, cit., pp. 389 e ss. 10 VAZ SERRA, “Direito de Retenção”, BMJ, n.º 65, 1957, p. 247. 11 Cfr. VAZ SERRA, “Direito de Retenção”, cit., pp. 162 e ss. e 204 e 205. 6 9 destes dois instrumentos de tutela do crédito. A solução apresentada tinha a vantagem de tornar o direito de retenção aplicável aos contratos bilaterais quando entre as prestações não intercedesse uma relação de sinalagmaticidade. É verdade que esta forma de direito de retenção pode prestar-se a invocações abusivas para evitar o cumprimento de uma obrigação devida. Por isso, previa VAZ SERRA a fixação de limites ao seu exercício. Assim, “o direito de retenção [deveria ser excluído] quando [fosse] incompatível com instruções dadas pelo devedor antes ou na data da entrega da coisa, com uma obrigação contraída pelo credor, ou, de uma maneira geral, com a finalidade da obrigação ou a vontade das partes” e, por fim, “quando [contrariasse] a boa fé”12. O que individualizava os diversos direitos de retenção previstos no anteprojecto era a existência de uma conexão, fosse ela material ou jurídica, entre a coisa e o crédito. Por esse motivo, no ordenamento jurídico português, não se encontra prevista qualquer hipótese de direito de retenção de uma coisa sem que exista uma qualquer conexão entre esta e o crédito. Contrariamente, no direito espanhol (art. 1866.º, 2 do CCes.) e no direito italiano (art. 2794 do CCit.), o credor reter a coisa findo o penhor, se o devedor tiver contraído um novo crédito junto do primeiro após a constituição do penhor que não se encontre garantido por este13. A solução deriva do pignus gordianum romano. A retenção não se funda, neste caso, na conexão existente entre créditos14, mas na circunstância de se presumir que o credor concedeu ao devedor novo crédito tendo em conta o penhor constituído por este para garantia de uma dívida anterior. Posição diferente foi a do legislador civil alemão que, tendo em conta os VAZ SERRA, “Direito de Retenção”, cit., p. 161. No direito francês, a mesma possibilidade era atribuída ao credor pignoratício no art. 2082, 2, do CCfr. que foi, recentemente, revogado. 14 O facto de, nestas hipóteses, não existir uma conexão entre créditos conduz BIGLIAZZI GERI, Profili Sistematici dell’Autotutela Privata, II, Milano, 1974, p. 165, a concluir que estamos perante “uno strumento di tutela che della ritenzione ha soltanto il nome”. 7 12 13 trabalhos preparatórios do direito das coisas da autoria de Reinhold Johow, rejeitou a figura do pignus gordianum devido à inexistência, nestas situações, de uma relação de conexão15. A solução germânica foi, neste caso, a consagrada no direito português. Embora na versão definitiva do Código Civil se tenha contemplado um direito de retenção com carácter geral quando existe uma conexão material entre a coisa retida e o crédito, não se foi tão longe quanto no BGB e no Código Civil dos Países Baixos, pois não se consagrou a possibilidade de também haver direito de retenção sempre que os créditos provenham da mesma fonte, ou seja, tenham uma origem comum. A justificação para a não consagração da proposta de VAZ SERRA é apresentada por PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA no seu Código Civil Anotado16. O legislador terá considerado que se estaria, desta forma, a admitir uma terceira figura de contornos mal definidos entre o direito de retenção e a excepção de não cumprimento do contrato, que poderia criar problemas de interpretação, pelo que recusou a proposta constante do anteprojecto. Circunscreveu-se o direito de retenção, com carácter geral, às situações em que existe uma conexão material entre os créditos. Quando os créditos provêm da mesma relação jurídica, só é possível recorrer ao direito de retenção nas situações especialmente previstas na lei, mas este constitui sempre um direito real de garantia. Cfr. PETER GRÖSCHLER, Historisch-kritischer Kommentar zum BGB, II, Schuldrecht: Allgemeiner Teil, §§241-432, Tübingen, 2007, p. 841. 16 Segundo PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, I, cit., p. 775, Ter-se-á considerado que a generalização “do direito de retenção acarretava grandes e muitas dúvidas, quando, parece, não devem aceitar-se outros casos além dos que o novo Código prevê. Por outro lado, o regime especial sugerido por VAZ SERRA conduzia à admissão de uma terceira figura, intermédia entre o direito de retenção e a excepção de não cumprimento do contrato, de contornos mal definidos e susceptível de criar embaraços de interpretação. Parece, por tudo, melhor a solução deste art. 755.º. Não há direito de retenção, baseado na simples comunhão de fonte, senão nos casos nele previstos. E esse direito de retenção é, sem limitações, um direito real de garantia”. 8 15 O poder de se reter uma prestação sempre que a outra parte não tivesse realizado a prestação, proveniente da mesma relação jurídica, que sobre esta recaía, agravada pela circunstância de a mesma solução se dever aplicar, ainda que os créditos se fundassem em relações jurídicas distintas, desde que economicamente se apresentassem como uma só, tinha a aparente desvantagem de, em certas situações, o mesmo contraente poder recusar a realização da sua prestação, invocando quer a excepção de não cumprimento, quer o direito obrigacional de retenção. Nesse caso, o anteprojecto previa que não seria possível recorrer ao direito de retenção mas somente à excepção de não cumprimento17, o que corresponderia aos interesses do obrigado à restituição da prestação retida, porquanto o direito de retenção, ao contrário do que acontece com a exceptio, podia ser excluído, caso a outra parte prestasse caução. A solução adoptada no Código Civil tem o mérito de evitar a sobreposição dos dois institutos, embora a questão estivesse devidamente acautelada no anteprojecto, mas o inconveniente de deixar em aberto a regulação das situações em que dois créditos emergem da mesma relação jurídica ou da mesma relação da vida e uma parte exige o cumprimento de uma obrigação, não tendo cumprido aquela a que estava adstrita. A consagração de um direito obrigacional de retenção evitaria que um devedor fosse obrigado a cumprir sem receber a prestação de que é, por sua vez, credor. Todavia, o direito de retenção deixaria de ter, exclusivamente, por objecto a retenção de uma coisa, para poder compreender a recusa de cumprimento de qualquer prestação desde que conexa com aquela cujo cumprimento é exigido. Cfr. VAZ SERRA, “Direito de Retenção”, cit., p. 255. Esta é a solução defendida pela doutrina germânica. A este propósito, v. STAUDINGER/ CLAUDIA BITTNER, Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen, 2, Recht der Schuldverhältnisse, §§ 255-304, Berlin, 2009, §273, n.º 2, p. 205 e KRÜGER, Münchener Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch, 2, Schuldrecht Allgemeiner Teil, §§ 241-432, 6.ª ed., München, 2012, § 273, n.º 37, pp. 683 e 684. 9 17 Por outro lado, esta sobreposição do âmbito de aplicação da excepção de não cumprimento e do direito de retenção é mais aparente do que real. É verdade que os efeitos processuais e extraprocessuais do exercício do direito de retenção e da excepção de não cumprimento se aproximariam, mas o seu âmbito de aplicação sempre poderia ser distinguido. A excepção de não cumprimento aplicar-se-ia às obrigações unidas por um vínculo de sinalagmaticidade, enquanto o direito de retenção seria reconhecido ao agente sempre que estivesse em causa o cumprimento de obrigações conexas que não fossem correspectivas ou interdependentes. Pensamos, assim, poder concluir que, mais do que evitar a sobreposição de institutos, o que se pretendeu na versão definitiva do Código Civil de 1966 foi limitar as excepções ao princípio da par conditio creditorum. De facto, é possível atribuir ao direito de retenção um âmbito de aplicação mais amplo do que aquele que se encontra contemplado na nossa lei civil e evitar a existência de uma situação de concurso, no sentido de uma sobreposição do âmbito de aplicação dos dois institutos. A proposta apresentada por VAZ SERRA contemplava, como vimos, expressamente essa solução. Esta proposta de uma aplicação distributiva do direito de retenção e da excepção de não cumprimento é, usualmente, defendida no ordenamento jurídico germânico. A este propósito pode, a título meramente ilustrativo, ver-se a posição defendida por GERNHUBER18. De acordo com o autor, tendo uma das partes a possibilidade de invocar a excepção de não cumprimento, o direito de retenção deixa de poder ser invocado. Tal não impedirá, todavia, uma aplicação combinada dos dois institutos. Imagine-se a hipótese de o dono da obra se recusar a pagar o preço até que os vícios desta sejam expurgados, invocando a excepção de não cumprimento, e o empreiteiro recusar-se a entregar a obra até que o pagamento do preço seja feito, invocando um direito de retenção. Neste caso, podemos ter 18 GERNHUBER, Das Schuldverhältnis, Tübingen, 1989, §14,V, 5b), p. 334. 10 uma dupla sentença Zug um Zug sem que esta implique, contudo, uma sobreposição dos institutos. O nosso legislador optou, assim, por um modelo de direito de retenção que ficou a meio termo entre a solução germânica e a constante do Código Civil francês que, por sua vez, terá influenciado os Códigos Civis italiano e espanhol. 3. O princípio da taxatividade dos direitos reais e o princípio da par conditio creditorum enquanto limites à analogia legis – O resumo que fizemos do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto permite por si só concluir que a existência de uma conexão entre créditos não se encontra limitada às situações previstas no nosso Código Civil e em legislação avulsa. Podíamos aqui referir, contudo, mais exemplos. O mais impressivo talvez se encontre nas situações em que ao devedor da entrega de uma coisa é atribuído um direito de retenção até que a contraparte cumpra uma obrigação conexa, mas a esta última não é reconhecida faculdade idêntica. Em causa estão, por conseguinte, situações simétricas às previstas no art. 755.º. Por exemplo, se o depositário tem direito de reter a coisa depositada até ser pago pelo depositante pelas despesas de conservação da coisa, a este devia correspondentemente ser reconhecido o direito de recusar o pagamento dessas despesas até que a coisa depositada seja entregue. Todavia, este não pode invocar nem a excepção de não cumprimento por não existir de uma relação de correspectividade ou interdependência entre as obrigações, nem o direito de retenção por este não se encontrar previsto na lei. Por sua vez, a compensação será excluída por inexistir in casu uma homogeneidade dos créditos. Se A vende a B uma coisa, B paga o preço, mas A lhe entrega uma coisa diferente da devida (aliud), poderá B recusar-se a restituir a coisa, até que lhe seja entregue aquela a que tem direito? Na hipótese enunciada, não será possível a B recusar-se a restituir a coisa 11 com base na exceptio non adimpleti contractus, por não existir um vínculo de sinalagmaticidade entre as obrigações de restituição. Por outro lado, encontrase, igualmente, excluída a possibilidade de B invocar a compensação dos créditos, porque estes não têm como objecto coisas fungíveis, da mesma espécie ou qualidade. Por fim, ainda que exista uma clara conexão jurídica entre a restituição da coisa indevidamente prestada e a entrega da coisa devida, não nos encontramos perante uma das hipóteses em que, à luz do direito português, ao devedor é reconhecido um direito de retenção. A existência de situações em que há uma conexão entre créditos, mas em que o devedor não pode recusar-se a cumprir até que o credor realize, por sua vez, a prestação a que está adstrito, convoca-nos a equacionar a aplicação a estes casos, por analogia, das regras que disciplinam o direito de retenção. Esta possibilidade de extensão analógica do regime aplicável ao direito de retenção a outras situações de conexão jurídica entre créditos depende, contudo, da resposta a uma das questões formuladas no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto que serviu de mote à presente exposição: saber em que medida é que essa analogia se encontra precludida por este direito constituir um direito real de garantia, e, como tal, se encontrar limitado pelo princípio da taxatividade ou do numerus clausus dos direitos reais (art. 1306.º, n.º1). A este propósito, não nos afastamos daquele que é o entendimento dominante na doutrina e jurisprudência pátrias, segundo o qual, constituindo o direito de retenção um direito real de garantia de origem legal, a impossibilidade de aplicar, por analogia, o direito de retenção a outras situações de conexão jurídica resulta, não tanto da proibição de criação de direitos reais não tipificados na lei e da impossibilidade de aplicação analógica das normas que fixam o regime dos direitos reais a situações jurídicas não reais (art. 1306.º), mas sobretudo da existência de uma tipicidade-taxativa dos factos constitutivos 12 deste mesmo direito19. É que, apesar de o princípio da taxatividade dos direitos reais não abranger em princípio os factos constitutivos, modificativos ou extintivos desses mesmos direitos20, essa regra só pode logicamente valer para os direitos reais com fonte convencional e não para aqueles que, como sucede com o direito de retenção, têm uma origem somente legal. Neste caso, os factos constitutivos são só e apenas aqueles que se encontram previstos na lei21 e essa taxatividade encontra o seu fundamento na necessidade de protecção de terceiros que, de outra forma, veriam um direito real seu arredado ou prejudicado pela existência de um direito real de garantia com o qual não podiam logicamente contar. De facto, por força exclusiva da lei, o retentor torna-se titular de uma garantia real que lhe concede o direito a ser pago com preferência pelo valor de uma determinada coisa, o que pode limitar os direitos reais de terceiro sobre a mesma coisa e a garantia dos credores comuns, sem necessidade sequer de se proceder ao registo dessa mesma aquisição, para que esta limitação seja oponível a terceiros. E isto permite-nos, desde já, assinalar que o direito de retenção não se pode aplicar por analogia a outras situações de conexão jurídica também por constituir uma limitação ao princípio da par conditio creditorum (art. 604.º, n.º2) A nosso ver, a verdadeira justificação para excluir a aplicação, por analogia, do regime do direito de retenção a outras situações de conexão jurídica encontra-se nesta necessidade de protecção de terceiros. Protecção tão Cfr. OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil: Reais, 5.ª ed., Coimbra, 2000, p. 287, CARVALHO FERNANDES, Lições de Direitos Reais, cit., p. 84, BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 10.ª reimpr. Coimbra, 1997, p. 201 e ELSA SEQUEIRA SANTOS, “Analogia e Tipicidade em Direitos Reais”, Estudos em homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, IV, Coimbra, 2003, pp. 488 e ss. 20 Cfr. ELSA SEQUEIRA SANTOS, “Analogia e Tipicidade em Direitos Reais”, cit., pp. 484 e ss. 21 Cfr. OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil: Reais, cit., p. 553 e CARVALHO FERNANDES, Lições de Direitos Reais, 6.ª ed., Lisboa, 2009, p. 237. 13 19 mais indispensável quanto o direito de retenção sobre imóveis prevalece sobre as hipotecas anteriormente constituídas (art. 759.º). Dito de outra forma, é por estarmos perante uma possível limitação/restrição a outros direitos reais que tenham por objecto a coisa retida e à garantia geral das obrigações, o que contende com os direitos dos credores comuns, estranhos à relação que se estabelece entre credor e devedor recíprocos, que não será possível a constituição deste direito fora das hipóteses expressamente previstas na lei22. É certo que, apesar de não estar sujeito a registo, a publicidade em relação a terceiros do direito de retenção é assegurada pela detenção efectiva exigida ao retentor, o que não sucede com outras garantias reais de fonte legal como os privilégios creditórios. Ela não é, contudo, suficiente para alicerçar um direito de preferência oponível a terceiros fora das hipóteses expressamente contempladas na lei. Assim, ainda que, na esteira do que defende CALVÃO DA SILVA a propósito da impossibilidade da extensão analógica do regime do direito de retenção23, se deva entender que as normas que estabelecem uma excepção a um regime-regra devem ser aplicadas dentro dos limites do pensamento fundamental subjacente a esse preceito (excepcional), tal não é suficiente para abarcar todas as situações de conexão jurídica. A regra permite tão somente aplicar, na plenitude da sua razão de ser, as várias disposições legais que consagram um direito de retenção a favor do devedor-credor. Assim, de acordo com o art. 755.º, n.º1, é titular de direito de retenção “o albergueiro, sobre as coisas que as pessoas albergadas hajam trazido para a pousada ou acessórios dela, pelo crédito da hospedagem”. Dever-se-á entender No mesmo sentido, à luz do ordenamento jurídico italiano e espanhol, v. D’AVANZO, “Ritenzione (Diritto di)”, Novíssimo Digesto italiano, XVI, Torino, 1969, p. 176, ANGELO SATURNO, “Diritto di ritenzione legale e convenzionale: natura ed estensibilità”, Rassegna di Diritto Civile, 1991, I, pp. 89 e 90 e TERESA ECHEVARRÍA DE RADA, ”En torno al derecho de retención”, Estudios Jurídicos en Homenaje al Profesor Luis Díez-Picazo, II, Madrid, 2003, p. 1772 23 CALVÃO DA SILVA, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 4.ª ed., Coimbra, 2002, p. 340. 14 22 que gozam de igual direito o proprietário mas igualmente aquele a quem foi cedida a exploração de um hotel sobre as coisas trazidas pelos hóspedes até ser pago não só do valor da estadia, como também todos os outros serviços que uma unidade hoteleira usualmente presta. Todavia, já não caberá no pensamento fundamental subjacente a este preceito, a possibilidade de, depois de restituído o locado, o locador reter os bens do locatário que ainda se encontrem no imóvel até serem pagas as rendas em atraso. Pelas razões apontadas, concordamos com a solução perfilhada pelo Tribunal da Relação de Lisboa em que se considerou existir uma conexão entre a obrigação de restituição de um veículo e o crédito resultante não só da reparação do automóvel, como também do diagnóstico da avaria. A decisão recusou, porém, a possibilidade de o direito de retenção garantir o pagamento devido pela viatura de substituição que foi contratada pelo cliente que era credor da restituição do automóvel24. Mais questionável é, à luz do direito constituído, a decisão proferida pelo mesmo Tribunal da Relação de Lisboa em que se reconheceu existir direito de retenção, em caso de incumprimento de um contrato-promessa de permuta de imóveis, em que as partes não procederam ao pagamento de qualquer quantia a título de sinal25. No caso, uma delas tinha transmitido a propriedade do imóvel, enquanto a outra se tinha limitado a entregar os imóveis que tinha prometido vender. Apesar de o art. 755.º, n.º1, al.f), restringir o direito de retenção às hipóteses em que o retentor é titular de um crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 442.º, entendeu o Tribunal que o facto de os promitentes fiéis terem uma detenção legítima dos imóveis lhes permitia retê-los até que se realizasse o contrato definitivo. A decisão alicerçou-se no argumento de “tendo-se operado a tradição destes 24 25 Ac. TrRelLx de 15 de Dezembro de 2011, CJ, t. 5, pp. 132 e ss. Ac. TrRelLx de 29 de Setembro de 1998, CJ, t. 4, pp. 111 e ss. 15 imóveis a favor dos Autores, parece que estes devem gozar de direito de retenção para garantia do seu crédito derivado da sua prestação anteriormente efectuada a favor da Ré. Este crédito equivale ao sinal a que lei se refere a propósito do contrato-promessa de compra e venda. Tratando-se de um contrato promessa de troca não se pode falar de sinal, mas não seria justo que não fosse concedido ao titular do referido crédito idêntico direito”26. Ainda que à luz da ideia de justiça a decisão seja inquestionável, conferir ao promitenteadquirente este direito de retenção consubstancia a aplicação, por analogia, do disposto no art. 755.º, n.º1, al.f) a um contrato-promessa cujo incumprimento, sendo imputável à contraparte, não gera qualquer crédito nos termos do art. 442.º. Pela mesma ordem de razões, é discutível que o direito de retenção atribuído ao agente comercial sobre os objectos e valores que detém em virtude do contrato de agência pelos créditos resultantes da sua actividade (art. 35.º do DL 178/86, de 3 de Julho) possa ser reconhecido ao franquiado e ao concessionário. Todavia, se a tutela das expectativas de terceiros, titulares de outros direitos reais de garantia sobre a coisa retida ou dos credores comuns do mesmo devedor, impede a aplicação, por analogia, do direito (real) de retenção a outras situações de conexão jurídica não significa que não exista uma lacuna que, por outra via, careça de ser colmatada. A afirmação da existência de uma lacuna postula que se comece por determinar se a questão não deve ser deixada ao “espaço livre do Direito” ou se, pelo contrário, se trata de uma “incompletude contrária ao plano do Direito vigente”27. Da mesma forma, não pode impedir as partes de criarem direitos de Ac. TrRelLx de 29 de Setembro de 1998, cit., p. 113. Cfr. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, cit., p. 194 e ENGISCH, Introdução ao Pensamento Jurídico, 9.ª ed., Lisboa, 2004 (tradução de Baptista Machado de Einführung in das juristische Denken, 8.ª ed., Stuttgart, 1983), p. 281. 16 26 27 retenção por acordo desde que estes não ponham em causa os direitos de terceiros estranhos a esse acordo. 4. Direito de retenção convencional – O facto de a protecção das expectativas de terceiro - operada através dos princípios da taxatividade dos direitos reais e da par conditio creditorum – excluir a aplicação por analogia do direito de retenção não impede as partes de convencionarem que, em caso de não cumprimento de uma obrigação, a outra poder-se-á recusar a cumprir uma prestação recíproca, mesmo que essa hipótese não se encontre contemplada na lei Com isto não se pretende sustentar que as partes podem, por acordo, afastar todos os pressupostos e prevalecer-se de todos os efeitos do direito de retenção, tal como este se encontra previsto nos arts. 754.º e ss. Há, por essa razão, necessidade de identificar certas disposições imperativas que, para a salvaguarda de interesses públicos ou de terceiros, introduzem limites à autonomia privada. Em primeiro lugar, para que o acordo possa ser considerado válido é necessário que exista, antes da invocação da excepção de retenção, uma detenção lícita da coisa a reter porque, de outra forma, estar-se-ia a recorrer à força própria, fora dos casos previstos na lei, para obter a detenção da coisa, o que seria contrário ao disposto no art. 1.º do CPC. Conforme já fomos aflorando ao longo da nossa exposição, os mecanismos de autotutela passiva não se encontram sujeitos às mesmas restrições aplicáveis às demais formas de autotutela que implicam que o titular do direito recorra à força própria para se defender de uma ameaça ilícita ou para realizar o seu direito. De facto, a necessidade de protecção da paz e ordem públicas faz-se sentir com maior acuidade relativamente aos instrumentos de autotutela activa. Para que o direito de retenção convencional constitua uma 17 forma de autotutela passiva, não se pode prescindir da existência de uma detenção prévia e lícita da coisa a reter, porque de outra forma estar-se-ia a admitir que o credor recorresse à força própria para garantir o seu direito. Por este motivo também, devem ser consideradas nulas todas as cláusulas que convencionam a possibilidade de o locador recorrer à força própria para readquirir a detenção do locado, com o objectivo de, posteriormente, reter a coisa até que o locatário proceda ao pagamento das rendas ou ao cumprimento de qualquer outra obrigação em falta. Estará, igualmente, vedada às partes a atribuição de uma oponibilidade erga omnes a este direito de recusa de cumprimento, através da qual fosse possível ao seu titular ser pago com preferência pelo valor da coisa retida. A necessidade de protecção das legítimas expectativas de terceiros de não verem os seus direitos reais arredados ou onerados com limitações com as quais não podem legitimamente contar exige que só possam existir limitações ao princípio da taxatividade dos direitos reais (art. 1306.º) e da par conditio creditorum nos casos especialmente previstos na lei (art. 604.º, n.º2)28. Da mesma forma, o direito de retenção convencional não será oponível ao adquirente da coisa retida, ainda que essa aquisição só tenha ocorrido depois de o direito se ter constituído29. Se as partes tiverem, expressa ou tacitamente, convencionado a atribuição de um efeito real ao direito de retenção, o negócio terá de ser considerado nulo. Sempre se deverá equacionar a possibilidade de conversão deste direito num direito obrigacional de retenção (art. 1306.º) 30. Aliás, estando Cfr. BIGLIAZZI GERI, Profili Sistematici dell’Autotutela Privata, II, Milano, 1974, p. 139(3), ANGELO SATURNO, L’Autotutela Privata, I modelli della ritenzione e dell’eccezione di inadempimento in comparazione col sistema tedesco, Napoli, 1995, p. 190 e BIANCA, Diritto Civile, VII, cit., p. 310. 29 Ainda que seja esta a solução decorrente do princípio da relatividade dos contratos, encontramos quem, em Itália, defenda que este princípio não impede que o direito de retenção seja oponível àqueles que adquirem o bem retido, por tal solução se encontrar consagrada para o contrato de locação (emptio non tolit locatum). Cfr. ENRICO AL MUREDEN, “Ritenzione legale e ritenzione convencionale”, Contratto e Impresa, ano 13, n.º1, 1997, pp. 210 e 211. 30 Cfr. LEBRE DE FREITAS, “Sobre a prevalência, no apenso de reclamação de créditos, do direito de retenção reconhecido por sentença”, Estudos sobre Direito Civil e Processo Civil, I, 2.ª 18 28 em causa uma conversão legal, esta será admitida ainda que o fim prosseguido pelas partes não permita supor que elas o teriam querido, se tivessem previsto a nulidade (art. 293.º)31/32. Por outro lado, como o direito de retenção convencional não atribui ao seu titular qualquer direito de preferência sobre a coisa retida, mas somente o poder de não a restituir em caso de incumprimento, não se poderá considerar o negócio nulo por violação da proibição de celebração de um pacto comissório 33. Relativamente à conexão que deve existir entre o crédito e a coisa, entendemos que essa conexão tanto pode ser material como jurídica 34. Pode ainda equacionar-se a possibilidade de as partes convencionarem a existência de um direito de retenção prescindindo do requisito da conexão entre créditos. Assim, na hipótese de existir uma hipoteca voluntária ou um penhor inválidos e tendo a coisa sido entregue, pode questionar-se se o negócio não poderá ser convertido num contrato constitutivo de um direito de retenção convencional ed., Coimbra, 2009, pp. 348 e ss. Admitindo esta possibilidade relativamente aos privilégios creditórios, v. ROMANO MARTINEZ, “Privilégios creditórios”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel Henrique Mesquita, II, 2009, Coimbra, p. 115. 31 A respeito da autonomia dogmática da conversão legal relativamente à conversão comum, v. CARVALHO FERNANDES, A Conversão dos Negócios Jurídicos Civis, Lisboa, 1993, pp. 657 e ss., especialmente pp. 671 e ss. 32 Admitindo a figura da conversão legal, em face do disposto no art. 1306.º, mas considerando não existir justificação bastante para o seu reconhecimento, v. OLIVEIRA ASCENSÃO, A Tipicidade dos Direitos Reais, Lisboa, 1968, pp. 96 e 97. Segundo OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil: Reais, cit., p. 160, “não há nada que justifique que se recuse às partes, em negócio constitutivo de direito real inominado, o benefício da demonstração de que não teriam querido ficar com um mero direito de crédito se tivessem previsto que o negócio celebrado não poderia valer como constitutivo de direito real”. Defendendo que a conversão legal prevista no art. 1306.º não contraria o disposto no art. 293.º sobre conversão dos negócios jurídicos, contendo uma presunção legal de que as partes pretendiam criar um vínculo obrigacional em substituição do real, o que, nas palavras dos autores, constitui somente “um ligeiro desvio à regra do art. 293.º, que não tem na sua base nenhuma presunção legal”, v. PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, III, 2.ª ed., Coimbra, 1987, p. 99. 33 Cfr. ANGELO SATURNO, “Diritto di ritenzione legale e convenzionale: natura ed estensibilità”, cit., p. 92. 34 Cfr. ANGELO SATURNO, “Diritto di ritenzione legale e convenzionale: natura ed estensibilità”, cit., p. 92. 19 válido (art. 293.º)35. 5. A recusa de cumprimento da obrigação para tutela do direito de crédito: Quando não existir um direito de retenção convencional, o facto de estarmos em presença de dois créditos recíprocos não legitima por si só que cada um dos devedores se possa recusar a cumprir até que o outro devedor cumpra a obrigação a que está adstrito. No caso da excepção de não cumprimento é necessário que haja uma relação de interdependência ou correspectividade entre as obrigações, no caso do direito de retenção exige-se a existência de uma relação de conexão entre os créditos. Quando as obrigações se encontram unidas por um vínculo de sinalagmaticidade existe uma interdependência entre as obrigações recíprocas que permite concluir que cada uma delas é correspectivamente a causa da outra. Para que as obrigações se encontrem unidas por um vínculo de conexão, basta que exista uma ligação material ou jurídica entre os créditos recíprocos. Sempre que existe uma relação de sinalagmaticidade entre as obrigações, os créditos não deixam de ser conexos, porque o conceito de conexão jurídica é mais abrangente do que o conceito de sinalagma. Não é de estranhar, por isso, que alguma doutrina germânica conceba a excepção de não cumprimento como uma forma especial de direito de retenção em que existe um vínculo mais forte entre as obrigações. O facto de a ligação de sinalagmaticidade ser mais estreita do que aquela que decorre de uma mera conexão entre créditos reflecte-se no regime jurídico aplicável aos institutos. Desde logo, a excepção de não cumprimento, ao contrário do direito de retenção, não pode ser afastada mediante a prestação de uma garantia (arts. 428.º, n.º2 e 756, al.d)). Embora a oponibilidade a terceiros do direito de retenção seja mais intensa do que aquela Cfr. SOERGEL/ WOLF, Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch, 2, Schuldrecht I, §§ 241432, 12.ª ed., Stuttgart, Berlin, Köln, 1990, § 273, n.º 73, p. 561 e KRÜGER, Münchener Kommentar..., cit., § 273, n.º 103, p. 697. 20 35 que se encontra expressamente prevista para a excepção de não cumprimento (art. 431.º), em virtude de a retentio, ao contrário da exceptio, constituir um direito real de garantia, isso não significa que a relação de sinalagmaticidade possa ser confundida com uma situação de conexão entre créditos. Pelo contrário, a diferença de regime convoca-nos a questionar se, de iure condendo, terá sentido que, pelo menos nas situações de conexão jurídica, o crédito do retentor beneficie do regime das garantias reais36. Apesar de terem um âmbito de aplicação distinto e, consequentemente, não existir, à luz do direito civil português, de acordo com a posição que defendemos, a possibilidade de sobreposição destes institutos, como ambos permitem ao devedor recusar o cumprimento de uma obrigação para tutela de um crédito recíproco, a sua proximidade é assinalável37. Em ambos os casos, através desta rejeição lícita do cumprimento, o devedor visa, simultaneamente, compelir a contraparte a cumprir e garantir que, caso ela não o faça, também não receberá a prestação a que tem direito. O credor serve-se da sua posição de devedor para tutela do seu direito e, tendo em conta que esta recusa tanto pode ser actuada judicial como extrajudicialmente, conclui-se que a exceptio e a retentio constituem mecanismos de auto e heterotutela do direito de crédito. Em face do exposto, subsiste a interrogação: ao devedor que recusa o cumprimento deve ser reconhecida a existência de uma causa justificativa, ainda que a lei, expressamente, não a preveja? Essa causa justificativa deve ser reconhecida ao devedor sempre que este seja credor do seu credor ou é a necessária existência de uma especial ligação entre as obrigações recíprocas derivada de estas terem uma origem comum? O mesmo é questionar se estas situações merecem o amparo do Direito e, consequentemente, se se deve Cfr. Parte III, n.º 6.5 da nossa dissertação de doutoramento (no prelo). Sobre a inexistência de uma sobreposição do âmbito de aplicação do direito de retenção e da excepção de não cumprimento à luz do ordenamento jurídico português, v. Parte III, n.º 4.1.3 da nossa dissertação de doutoramento (no prelo) 21 36 37 considerar lícito o não cumprimento de uma obrigação sempre que o devedor pretenda, por esta via, compelir e/ou garantir o cumprimento de uma obrigação devida pelo credor (reciprocidade) e conexa com a primeira (conexão). Para isso, é necessário perceber se existe uma lacuna e, por esse motivo, se estes casos merecem uma regulamentação especial relativamente ao regime regra segundo o qual o devedor entra em mora se não cumprir uma obrigação vencida. Pretender-se-á apurar em que medida, nas hipóteses supra identificadas, se deve aplicar o regime da mora do devedor ou existe uma imperfeição do sistema por a lei não prever uma causa justificativa para estas situações. À primeira vista, dir-se-ia que, não existindo uma norma a excluir a ilicitude do comportamento do devedor, a contrario sensu, se teria de aplicar o regime da mora. É, porém, duvidoso que as causas justificativas do incumprimento de uma obrigação constituam disposições excepcionais. E mesmo que assim fosse, é hoje reconhecida pela generalidade do pensamento jurídico a debilidade do argumento a contrario e a consequente impossibilidade de proibir, em termos gerais, a aplicação analógica de normas excepcionais38. O que poderá estar aqui em causa é uma lacuna que se revela pelo reconhecimento da falta de um preceito com conteúdo oposto ao regime regra, Partindo do princípio que o recurso à analogia ou ao argumento a contrario constitui o “resultado necessário de uma interpretação de direito positivo mediante valorações teleológiconormativas”, defende CASTANHEIRA NEVES, Metodologia Jurídica, Problemas fundamentais, Coimbra, 1993, pp. 265 e 273 e ss., na sequência daquele que é o ponto de vista da generalidade do pensamento jurídico actual, a impossibilidade de, em termos absolutos, proibir a aplicação analógica de normas excepcionais. O “decisivo é ponderar que se não pode excluir a possibilidade do reconhecimento de eadem ratio do regime da excepcionalidade prescrita perante casos não directamente previstos na norma excepcional, casos de aplicações analógicas que então a própria ratio iuris da excepção justificará (…)”. Poder-se-á questionar se a solução preconizada não será vedada pelo art. 11.º. Partindo “do valor muito relativo das disposições legais que se propõem impor soluções a problemas que competem verdadeiramente à autonomia crítica do pensamento jurídico e não ao legislador”, conclui CASTANHEIRA NEVES pela possibilidade de aplicação analógica de normas excepcionais. 22 38 aplicável à constituição em mora do devedor. Se concluirmos que é essa a situação, então, segundo CASTANHEIRA NEVES, “o caso oferece-se em circunstâncias particulares que obrigam a fazer apelo a pontos de vista axiológico-jurídicos, em coerência normativa com essas circunstâncias, e que refluindo sobre o caso concreto lhe incutem um sentido jurídico pelo qual o preceito regra, ainda que formalmente aplicável, se torna para ele normativamente inadequado. Pertencem aqui todos os casos em que circunstâncias particulares são o fundamento para distinções normativas que a lei não faz, ou para fazer intervir em concorrência com os pressupostos da hipótese legal outros pressupostos a que a lei não atenda – em qualquer dos casos a lei se vem a considerar como não aplicável -, ou para fazer funcionar causas justificativas que a lei não prescreve”39. O direito de retenção é, por natureza, o instituto vocacionado para regular as situações identificadas. Todavia, constituindo um direito real de garantia à luz do nosso ordenamento jurídico, encontra-se sujeito a um princípio da taxatividade, pelo que não será de admitir o recurso a uma extensão analógica40. Se se aceitasse a extensão analógica, estar-se-ia também a limitar, por esta via, a garantia dos credores comuns, terceiros relativamente à relação estabelecida entre credor e devedor recíprocos, pelo que não será aceitável a constituição deste direito fora das hipóteses expressamente previstas na lei. Por este motivo, o princípio de impossibilidade de aplicação analógica de normas excepcionais não pode in casu sofrer qualquer desvio. Esta impossibilidade de recorrer à analogia justificará as tentativas de alargamento do âmbito de aplicação da excepção de não cumprimento a situações em que não existe uma relação de sinalagmaticidade entre as prestações. Parece-nos não exitir, neste caso, qualquer impedimento a que, 39 40 CASTANHEIRA NEVES, Metodologia Jurídica, cit., p. 219. Cfr. supra, Parte III, n.º 4.3.1. 23 existindo uma lacuna, esta possa ser colmatada por recurso a uma extensão analógica do regime da exceptio non adimpleti contractus. Como esta excepção não confere ao seu titular um direito real de garantia, os direitos de terceiros não serão postergados. Isso não autoriza, contudo, a conclusão de que todas as situações em que o devedor é credor do seu credor se encontram abrangidas pelo escopo da exceptio. A existência de uma relação de sinalagmaticidade é o pressuposto distintivo deste instituto, pelo que, quando se verifica não existir essa relação entre as obrigações, não se poderá recorrer a esta forma específica de tutela do direito de crédito. O regime jurídico da exceptio, nomeadamente a impossibilidade de esta ser afastada mediante a prestação de uma garantia, é inadequado para regular situações em que existe uma mera conexão entre créditos, pelo que, nestes casos, não se poderá recorrer à analogia para defender a possibilidade de o devedor recusar o cumprimento da sua obrigação para tutela do seu direito de crédito. Por último, através do instituto da compensação, são tuteladas as hipóteses em que ao credor, simultaneamente devedor do seu devedor, se atribui a possibilidade de extinguir a sua dívida e, desta forma, tutelar o seu crédito. Todavia, a extinção recíproca das dívidas pressupõe necessariamente a fungibilidade das prestações, o que significa que a homogeneidade constitui o pressuposto distintivo deste instituto. Isto mesmo impede a aplicação analógica do regime da compensação quando as prestações não forem homogéneas. O facto de não existir a possibilidade de colmatar a lacuna através de uma analogia legis não significa que a situação não careça da tutela do Direito. É comum referir-se que seria contrário à equidade, entendida como justiça do caso concreto, não permitir que, nestas hipóteses, o devedor pudesse licitamente recusar o cumprimento da obrigação. Entendemos, contudo, que tal solução não pode ser acolhida. Em primeiro lugar, o recurso à equidade não fornece ao intérprete-aplicador um 24 critério que lhe possibilite destrinçar as hipóteses em que, em geral e abstracto, o credor poderá recusar a sua prestação. Desde logo, não permite determinar se o devedor pode recusar o cumprimento da obrigação sempre que for credor do seu credor ou se é também necessária a existência de uma especial ligação entre as obrigações. Repare-se que, de acordo com o art. 10.º, n.º3, na ausência de caso análogo, a situação deve ser “resolvida segundo a norma que o próprio intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema”. Como bem assinala BAPTISTA MACHADO, “o legislador não remete o intérprete para juízos de equidade, para a justiça do caso concreto, antes, bem ao contrário, o incumbe de elaborar e formular uma norma, isto é, uma regra geral e abstracta que contemple o tipo de casos em que se integra o caso omisso” 41. Em segundo lugar, não constituindo a equidade, enquanto justiça do caso concreto, o fundamento da excepção de não cumprimento, do direito de retenção, nem da compensação não se pode, por maioria de razão, nela alicerçar a solução para o problema. Diferente será se entendermos a equidade como referência à ideia de Justiça. Ainda que ela não permita estabelecer em que hipóteses pode o credor recusar-se a cumprir, poderá constituir o fundamento último desta causa de justificação não prevista na lei. A referência à equidade nestas hipóteses justificar-se-ia, assim, pelo facto de ser tido como injusto e contrário à boa fé que alguém seja obrigado a cumprir sem que o credor cumpra, por sua vez, a prestação a que se encontra adstrito e não como forma de resolução meramente casuística de um conjunto de hipóteses concretas em que seria contrário à justiça material não reconhecer como lícita a recusa de cumprimento de uma obrigação para tutela de um direito de crédito. Não se esgotando o direito positivo “nos seus comandos e valores 41 BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, cit., p. 203. 25 avulsos, informadores das rationes legis e da teleologia das diferentes normas”42, antes assentando a ordem jurídica num conjunto de princípios que a legitimam e num conjunto de valores fundamentais que dão unidade e coerência ao todo, as lacunas não se poderiam esgotar ao nível da teleologia das disposições legais emanadas pelos órgãos competentes. Pelo contrário, sempre que os referidos princípios e valores jurídicos gerais não tiverem uma expressão suficiente na lei, ter-se-á de questionar se não existirá uma lacuna43. Lacuna essa que terá de ser preenchida por recurso a uma analogia iuris, isto é, por recurso a um princípio que, embora obtido através de uma indução de disposições legais vigentes, constitui um desenvolvimento do Direito que ultrapassa o quadro legal. Independentemente de tal não ser necessário, esta possibilidade pode ser retirada do art. 10.º, n.º3 da nossa lei civil44 que atribui ao intérprete o poder de criar uma norma dentro do espírito do sistema45. Isto significa que, mesmo na perspectiva do legislador, à doutrina e à jurisprudência é acometida a tarefa de criação do Direito. Quando essa norma ou princípio mais geral decorre das normas “postas” pelo legislador, poder-se-á questionar, com CANARIS, se a analogia iuris não constitui somente, em termos metodológicos, uma indução. Inclinamo-nos, na sequência da posição assumida a este propósito por LARENZ, para considerar que, ainda que essa norma se forme por indução, sempre se terá de lançar mão 42 43 BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, cit., p. 197. Cfr. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, cit., pp. 197 e ss. Defendendo que a norma hipotética, tal qual como se encontra prevista no art. 10.º, n.º3 deveria ser procurada “ao mesmo tempo em que se faria a aplicação das normas legais e, não apenas, subsidiariamente, se não se encontrasse por interpretação ou analogia, uma solução legalmente definida”, v. ANTÓNIO CORTÊS, Jurisprudência dos Princípios, Lisboa, 2010, p. 68. Salienta o autor, ob. cit., p. 232, que “os princípios não são apenas parâmetros subsidiários que actuem praeter legem em caso de lacuna legal, mas parâmetros de validade ético-jurídica que podem inclusivamente prevalecer sobre soluções legais expressas”. 45 Sobre a necessidade de o juiz solucionar estes casos omissos “dentro da lógica das valorações legais; numa linha de subordinação, aliás inteligente e criadora, ao sentido éticojurídico dessas valorações”, v. MANUEL DE ANDRADE, Sentido e Valor da Jurisprudência, (Oração de sapiência lida em 30 de Outubro de 1953), Coimbra, 1973, p. 32. 26 44 da analogia para se proceder à comparação entre o caso e a ratio do princípio aplicável46. Em suma, sabendo que o Direito não se circunscreve aos comandos emanados pelo poder legislativo, resta determinar em que medida existirá um princípio mais geral do qual resulte a possibilidade de o devedor recusar licitamente o cumprimento até que o credor satisfaça a obrigação a que se encontra adstrito para com o primeiro, em situações diversas daquelas que se encontram expressamente previstas na lei. Da exposição decorre que a excepção de não cumprimento e o direito de retenção são causas de justificação previstas na nossa lei, através das quais se atribui ao devedor a possibilidade de recusar o cumprimento da obrigação sem entrar em mora. Em ambos os casos, as partes são reciprocamente credora e devedora uma da outra e podem, quer judicial quer extrajudicialmente, recusar o cumprimento da obrigação. Não basta que o credor não cumpra a obrigação a que, por sua vez, está adstrito perante o devedor, é necessário que entre as obrigações exista uma especial ligação. No caso da excepção de não cumprimento uma relação de sinalagmaticidade e no caso do direito de retenção uma relação de conexão. Por outro lado, se todas as situações em que existe uma relação de sinalagmaticidade permitem a invocação da exceptio, desde que os demais pressupostos se encontrem reunidos, nem todas as situações em que se verifica existir uma conexão entre créditos possibilitam ao devedor recusar o cumprimento da sua obrigação. Neste contexto, não pode deixar de se fazer igualmente referência à compensação, porquanto, ao extinguir a sua obrigação, na prática, o devedor recusa-se definitivamente a LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, 3.ª ed., Lisboa, 1997, (tradução portuguesa de José Lamego de Methodenlehre der Rechtswissenschaft, 6.ª ed., Berlin, Heidelberg, 1991), pp. 545 e 546. Pelo contrário, CASTANHEIRA NEVES, Metodologia Jurídica, cit., pp. 263 e 264, considera que não há analogia iuris, na medida em que a analogia existe entre casos e não entre o caso e um princípio obtido por indução, o que lhe permite concluir que “decisivo é reconhecer que a chamada analogia iuris se reconduz a um argumento judicativo a partir ou com fundamento em princípios jurídicos e não a uma analogia em sentido próprio”. 27 46 cumpri-la. É possível, desde já, concluir que, através destes três institutos, se cria um quadro de protecção do devedor, simultaneamente credor do seu credor. Importa, por conseguinte, perceber se o poder reconhecido ao devedor de recusar o cumprimento de uma obrigação para tutela do seu direito de crédito se encontra circunscrito às disposições legais em análise ou se estas não são mais do que a concretização ou manifestações de um princípio ou ideia mais ampla à qual se chega através de um raciocínio indutivo. Tivemos a oportunidade de explicitar que, noutros ordenamentos jurídicos47, seja através da excepção de não cumprimento, seja através do direito de retenção há uma tendência ora do legislador, ora da doutrina e da jurisprudência para admitir a possibilidade de o devedor poder recusar o cumprimento de uma obrigação para tutela do direito de crédito de que, por sua vez, este é titular, sempre que entre estes exista uma relação de conexão. Pelo facto de a versão definitiva do Código Civil Português de 1966 não ter acolhido a proposta constante dos trabalhos preparatórios, poderíamos ser levados a concluir que estamos na presença de um “silêncio eloquente” da lei que só poderá ser superado através de uma intervenção legislativa 48. Se a inexistência da regulamentação é intencional, mesmo que o intérprete-aplicador discorde da opção do legislador não se pode sobrepor a este, concluindo que existe uma lacuna que deve ser colmatada. A importância da história do direito e do direito vigente noutros ordenamentos jurídicos para a formação de princípios por indução ressalta da definição de princípios gerais de direito apresentada por METZGER, Extra legem, intra ius: Allgemeine Rechtsgrundsätze im Europäischen Privatrecht, Tübingen, 2009, pp. 26 e 29 e s. Segundo o autor, um princípio geral de direito (Rechtsgrundsatz) é uma norma jurídica (Rechtsnorm) que, não sendo ou não sendo totalmente reconhecida pelo direito legislado, pode ser formada por indução a partir das regras jurídicas vigentes ou pretéritas não só nesse ordenamento jurídico como noutros (“welche von internen, «externen» (insbesondere ausländischen) und/oder historischen Rechtsregeln im Wege der Induktion abgeleitet wird”). 48 Sobre o “silêncio eloquente” da lei, v. ENGISCH, Introdução ao Pensamento Jurídico, cit., pp. 281 e 282, LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, cit., p. 525 e BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, p. 201. 28 47 Em primeiro lugar, temos dúvidas se em causa está um silêncio eloquente do legislador ou se, em face das dúvidas que se colocavam relativamente à oportunidade de alargar o âmbito de aplicação da retentio, se preferiu deixar a questão em aberto e remeter para o intérprete-aplicador a solução. A proposta de VAZ SERRA terá sido rejeitada, porque o legislador terá considerado que se estaria, desta forma, a admitir uma terceira figura de contornos mal definidos entre o direito de retenção e a excepção de não cumprimento do contrato que podia criar “embaraços de interpretação”. Em face da insuficiente reflexão feita em torno do problema, o que se pretendeu foi não incluir expressamente a proposta na nova lei civil e não tanto proibir ou excluir a solução. Estamos, nas palavras de MANUEL DE ANDRADE49, perante uma situação “que o legislador conheceu ou entreviu, mas propositadamente deixou em claro”, por não estar suficientemente radicada ou amadurecida para poder “constituir objecto de um tratamento legal apropriado”. As dúvidas que a consagração deste instituto podia gerar, prender-seiam sobretudo com as hipóteses em que o direito de retenção poderia ser abusivamente invocado. Não nos parece que tal receio constitua um impedimento à admissão desta causa de justificação, porquanto os Tribunais sempre poderão controlar a verificação dos pressupostos indispensáveis para que a recusa de cumprimento seja considerada lícita. Por outro lado, mesmo que a intenção do legislador tivesse sido a de afastar esta causa de exclusão da ilicitude, tal não impediria que, no futuro, se não viesse a concluir pela existência de uma lacuna a exigir um desenvolvimento praeter legem do Direito. É que se uma lacuna não deve ser identificada com uma incompletude contrária ao plano do legislador, muito menos este último poderá ser identificado com o legislador histórico. A lacuna será, quando muito, uma incompletude contrária ao plano do Direito. 49 MANUEL DE ANDRADE, Sentido e Valor da Jurisprudência, cit., p. 29. 29 De facto, a opção do legislador histórico, que excluiu a proposta constante dos trabalhos preparatórios, não permite concluir obrigatoriamente pela inexistência de uma lacuna, quando o conjunto das normas jurídicas produzidas pelo mesmo legislador aponta para a existência de um princípio mais geral com contornos idênticos ao do preceito constante do anteprojecto que foi rejeitado. Se é verdade que o elemento histórico de interpretação compreende os trabalhos preparatórios e, por conseguinte, se deve ter em conta as propostas que foram rejeitadas, não nos podemos esquecer que este não é o único elemento de interpretação que deve ser tido em conta. Como refere FERRARA, “[e]specialmente à medida que a lei se vai afastando da sua origem, a importância da intenção do legislador vai afrouxando até se dissolver: o intérprete tardio acha-se imbuído de mudadas concepções jurídicas, e com isto a lei recebe um significado e um alcance diverso do que originariamente foi querido pelo legislador”50. Somos da opinião que resulta das normas postas que o facto de o credor exigir o cumprimento de uma obrigação sem se dispor a cumprir a obrigação exigível a que está adstrito para com o devedor altera a relação de confiança existente entre os dois sujeitos e legitima a reacção deste último, traduzida na recusa temporária do cumprimento da sua própria obrigação. Essas normas são, em primeiro lugar, o direito de retenção e a excepção de não cumprimento, porque, tanto num caso como noutro, é reconhecida ao devedor a faculdade de rejeição do cumprimento. Todavia, a esta possibilidade não é também alheia a compensação. Ainda que, neste caso, ao devedor assista a faculdade de extinguir a sua obrigação e não somente a de recusar o seu cumprimento. Para além da origem dos referidos institutos ser comum, são muitos os seus pontos de confluência. FRANCESCO FERRARA, Interpretação e Aplicação das Leis, (traduzido por Manuel A. Domingues de Andrade), 3.ª ed., Coimbra, 1978, p. 135. 30 50 Em primeiro lugar, subjacente a todos eles está a ideia de que àquele que não cumpre não é devido o cumprimento (“inadimplenti non est adimplendum”). Por esse motivo se reconhece ao devedor o poder de recusar, temporária ou definitivamente, consoante os casos, o cumprimento da obrigação a que está adstrito. Através desta recusa, o devedor visa tutelar o seu direito de crédito. Ao contrário do que sucede com a excepção de não cumprimento e o direito de retenção, a compensação não visa compelir a contraparte a quem esta é oposta a cumprir, pois o seu exercício conduz à extinção da obrigação. Todavia, qualquer dos mencionados institutos cumpre, ainda que de forma diversa, uma importante função de garantia do direito de crédito. Se para a compensação a reciprocidade é tida como suficiente para permitir ao devedor extinguir a sua obrigação, para a excepção de não cumprimento e para o direito de retenção é necessário que exista entre os créditos uma relação, no primeiro caso de sinalagmaticidade, no segundo de conexão material ou jurídica. Por outro lado, a existência dessa relação entre créditos não é, na nossa perspectiva, indiferente para o regime da compensação. O próprio regime jurídico aplicável a estas três figuras apresenta muitos pontos de contacto. É necessário, em regra, que o devedor seja credor do seu credor, o que significa que os créditos têm de ser recíprocos. Em todos os casos, o crédito de que o devedor é titular pode ser ilíquido, mas tem, em princípio, de ser exigível. O retentor goza também de direito de retenção quando se verifique alguma das circunstâncias que determinem a perda do benefício do prazo (art. 757.º, n.º1). No caso de existir uma relação de sinalagmaticidade entre os créditos, admite-se a invocação de uma excepção de insegurança quando exista uma verdadeira deterioração ou modificação in peius da situação patrimonial da contraparte ou se verifique que a sua capacidade de cumprimento se encontra por outro motivo afectada a ponto de pôr em perigo a 31 efectivação do direito à contraprestação. Todos os institutos desempenham, em maior ou menor medida, uma função de garantia. Embora a exceptio e a retentio tenham uma função meramente dilatória e a compensatio determine a extinção dos créditos, as três figuras constituem excepções de direito material invocáveis judicial e extrajudicialmente. O facto de, através da sua invocação, o devedor poder extrajudicialmente recusar, temporária ou definitivamente, o cumprimento de uma obrigação para tutela do seu direito de crédito determina que qualquer destes institutos seja considerado um mecanismo de autotutela. A circunstância de qualquer dos institutos constituir um instrumento de autotutela ajudará a explicar a relutância com que é encarada a possibilidade de alargamento destas situações de recusa lícita do cumprimento para tutela de um direito de crédito. Essa resistência é, na nossa opinião, injustificada, pois não se trata de uma hipótese em que o credor tenha de recorrer à força para realizar o seu direito, como sucede com a acção directa (art. 336.º). Sempre os Tribunais poderão aferir da licitude da sua recusa, pelo que a paz e ordem públicas se encontram por esta via asseguradas. Tanto na exceptio como na retentio, a recusa de cumprimento determina a exclusão da mora do devedor. Na prática, efeito idêntico é assegurado pelos efeitos retroactivos da declaração de compensação (art. 854.º), pois se os créditos recíprocos se consideram extintos a partir do momento em que se tornaram compensáveis, não existe mora do devedor desde aí. Por outro lado, se o crédito de que o devedor é, por sua vez, titular prescrever depois de qualquer destes institutos poder ser invocado, este continuará a poder recusar, temporária ou definitivamente consoante os casos, o cumprimento da obrigação, embora não possa exigir judicialmente o crédito de que é titular. 32 Pelo exposto, a excepção de não cumprimento, o direito de retenção e a compensação não constituem figuras isoladas, antes serão concretizações de um “princípio” mais amplo, que desonera o devedor de prestar ao credor que não se dispõe a cumprir perante ele uma obrigação exigível. Esse princípio pode ser encontrado na máxima ou adágio51 de que àquele que não cumpre não é devido o cumprimento (inadimplenti non est adimplendum). O mesmo é dizer, ainda que o credor tenha o direito a exigir o cumprimento sem se dispor a contraprestar, o devedor pode recusar-se a fazê-lo. É verdade que no direito vigente nos deparamos com diferenças assinaláveis no regime jurídico de cada uma das figuras estudadas. As referidas diferenças justificam-se essencialmente por, no caso da compensação, os créditos serem homogéneos e, no caso da excepção de não cumprimento, pelo vínculo de interdependência ou correspectividade existente em virtude do sinalagma. Todavia, essas diferenças não são suficientes para apagar a existência de um fundo comum ou princípio mais geral sobre o qual assentam todas elas. Mais, esse fundo comum explica que certas hipóteses enquadradas pelo nosso legislador no direito de retenção permitam, noutros ordenamentos jurídicos, a invocação da excepção de não cumprimento. Por outro lado, o facto de esse princípio se encontrar concretizado em diversos institutos demonstra que a solução delineada não é contrária ao sistema que, na formulação de CANARIS, pode ser definido como “conjunto de todos os valores fundamentais constitutivos para uma ordem jurídica” 52. Como explica ANTÓNIO CORTÊS, Jurisprudência dos Princípios, cit., pp. 30 e 31, nem todos os princípios são princípios fundamentais do Direito. “São princípios do Direito neste segundo sentido as proposições sintéticas que a doutrina e a jurisprudência formulam e que possam valer como Direito. Essas proposições assumem a forma de máximas ou adágios que podem provir da tradição jurídica ou não.(…) Todos os princípios podem, em conjugação, com o sistema de fontes de direito vigente, dar origem a novas soluções que se podem exprimir e consolidar sob a forma de “regras” que a jurisprudência irá testar ”. 52 CANARIS, Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito (tradução de MENEZES CORDEIRO de Systemdenken und Systembegriff in der Jurisprudenz) 2.ª ed, Lisboa, 1989, 33 51 Quanto a nós, a solução está ínsita no próprio sistema. Uma resolução diferente do problema é que ocasionaria uma quebra da unidade do sistema. Não se pode negar que, apelando-se à existência de um princípio mais amplo de que diversas figuras legais constituem uma concretização, não conseguimos daí retirar quais as situações em que, em concreto, deve ser reconhecido ao devedor este poder de recusa de realização de uma prestação para tutela de um direito de crédito. Trata-se, contudo, de uma vicissitude própria do facto de se reclamar a existência de um princípio ao qual corresponde uma máxima que devido ao seu carácter geral não é, de per si, dotada da operacionalidade necessária para ser directamente aplicável a um caso concreto. Como explica ANTÓNIO CORTÊS, “dizer que estamos perante um “princípio” é, no fundo, dizer que estamos perante um parâmetro ético-jurídico cuja aplicação exige a ampla intervenção de mediações dogmáticas e jurisprudenciais, mas que possui também uma força irradiante que permite a sua aplicação em âmbitos diversos a que não está expressamente referido. (…) Os princípios não tipificam os pressupostos e as consequências da sua aplicação e possuem uma força irradiante que resulta do facto de terem uma ampla justificação racional, ética ou axiológica”53. Embora seja possível, através de uma indução ou generalização, chegar ao referido princípio de que àquele que não cumpre não é devido o cumprimento, isso é insuficiente não só para determinar quando é que, em concreto, a faculdade de recusar o cumprimento deve ser reconhecida, mas também para legitimar a sua existência. Como refere o mesmo autor, “cada novo princípio é geralmente o resultado de uma dupla fundamentação ou dupla justificação. Por um lado, temos os dados positivos, como sejam os preceitos legais, a natureza das coisas, pp. 190 e ss. 53 ANTÓNIO CORTÊS, Jurisprudência dos Princípios, cit., p. 132. Em sentido idêntico, v. MENEZES CORDEIRO, “Princípios Gerais de Direito,” Polis, vol. 4, 2.ª ed., Lisboa, 2004, p. 1551. 34 a tradição consolidada de diversos Estados ou a ratio de precedentes judiciais; por outro lado, a justiça, a ideia de Direito”54. O caminho até agora percorrido permite-nos concluir não só que em diversos preceitos legais encontramos reflectido este princípio, como este se encontra expressamente previsto ou admitido ora na legislação, ora na doutrina e na jurisprudência de outras ordens jurídicas pertencentes à família romanogermânica. Reconhecer ao devedor um poder de recusar a prestação corresponde também a uma necessidade do tráfico jurídico, pelo que igualmente aí se encontra um fundamento forte para a admissão da figura. De facto, é mais vantajoso permitir que o devedor não cumpra para, desta forma, compelir o credor a realizar a prestação a que está adstrito do que exigir que o faça, correndo o risco de o credor não vir a realizar a prestação a que está obrigado e ter o devedor de recorrer aos meios jurisdicionais para receber a prestação a que tem direito. Tanto mais que, em última análise, os tribunais sempre poderão aferir da existência de fundamento para a recusa da prestação, suportando o devedor o risco de se concluir pela inexistência de qualquer causa de exclusão da ilicitude. Por outro lado, corresponde à natureza das coisas que um sujeito não seja obrigado a realizar uma prestação a favor de outrem que não se dispõe a cumprir uma obrigação exigível de que é, por sua vez, devedor para com o primeiro, bem assim que não tenha de realizar uma prestação quando é credor do seu credor e as duas obrigações têm por objecto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade. Resta apurar se tal princípio se pode considerar conforme à ideia de Direito. ANTÓNIO CORTÊS, Jurisprudência dos Princípios, cit., p. 248. “Em suma, os princípios jurídicos, por muito apoio que possam ter em dados positivos, encontram sempre um fundamento decisivo em considerações éticas ou axiológicas superiores”. 35 54 Conforme tivemos oportunidade de explicitar, é igualmente comum encontrar-se a referência a que o fundamento da excepção de não cumprimento, do direito de retenção e da compensação reside na equidade. Todavia, essa referência não deve ser entendida como uma remissão para a fórmula aristotélica de justiça do caso concreto. Através da aludida referência, o que se pretenderá significar é que, em termos gerais, é contrário à boa fé e à ideia de Justiça obrigar o devedor a cumprir pontualmente as suas obrigações quando ele é credor do seu credor. A origem histórica da compensação, do direito de retenção e, em certa medida, da excepção de não cumprimento encontrar-se-á precisamente nos bonae fidei iudicia e na exceptio doli generalis. Se nas acções de ius strictum era, em regra, necessária a inserção formal de uma excepção de dolo para que o iudex pudesse considerar que uma determinada pretensão ofendia a boa fé em sentido objectivo, nos bonae fidei iudicia, o iudex podia ter em conta o crédito do devedor, para efeito de compensação ou de retenção, como simples decorrência do poder que lhe era reconhecido de decidir oportet ex fide bona. MENEZES CORDEIRO não deixa, contudo, de defender a possibilidade de recorrer ao tu quoque para alargar o âmbito de aplicação da excepção de não cumprimento para lá dos contratos bilaterais ou sinalagmáticos. Por sua vez, LURDES PEREIRA e PEDRO MÚRIAS defendem que o fundamento daquilo que denominam de direito de retenção obrigacional se encontra, em determinadas hipóteses, num desenvolvimento da lei por identidade ou maioria de razão, noutras no princípio da boa fé, em especial, no abuso do direito55, mais concretamente, na proibição de um exercício desequilibrado de uma posição jurídica. Estas formas de abuso do direito não serão, efectivamente, estranhas ao MARIA DE LURDES PEREIRA e PEDRO MÚRIAS, “Os direitos de retenção e o sentido da excepção de não cumprimento”, RDES, Ano XLIX (XXII da 2.ª Série), Janeiro-Dezembro 2008, p. 198. 36 55 reconhecimento deste poder de recusa do cumprimento para tutela de um direito de crédito, porquanto, na forma de “tu quoque”56, deve ser considerado abusivo o comportamento daquele que exige a outrem o acatamento de uma norma jurídica, maxime o cumprimento pontual de uma obrigação, quando ele próprio não se dispõe a cumprir uma obrigação que sobre si recai. Nas palavras de MENEZES CORDEIRO57, “[a] ordem jurídica postula uma articulação de valores materiais, cuja prossecução pretende ver assegurados. Nesse sentido, ele não se satisfaz com arranjos formais, antes procurando a efectivação da substancialidade. Pois bem: a pessoa que viole uma situação jurídica perturba o equilíbrio material subjacente. Nessas condições, exigir à contraparte um procedimento idêntico ao que se seguiria se nada tivesse acontecido equivaleria ao predomínio do formal: substancialmente, a situação está alterada, pelo que a conduta requerida já não poderá ser a mesma”. Por outro lado, um dos corolários do referido exercício desequilibrado de uma posição jurídica reside exactamente em pedir aquilo que se tem de devolver (dolo agit qui petit quod statim redditurus est ), o que se adequará mais a institutos como a compensação58. Não nos parece que qualquer dos institutos analisados encontre o seu fundamento numa das formas de abuso do direito. Mesmo no âmbito das relações sinalagmáticas, o credor pode exigir o cumprimento da obrigação sem se dispor a contraprestar. Essa exigência não pode ser considerada ilícita nem abusiva, pois o credor que pretende exercer o seu direito de crédito não está obrigado a contraprestar, mas tem somente o encargo de o fazer, se não quiser que o devedor recuse o cumprimento. Por maioria de razão, não existe esse dever quando entre os créditos não intercede uma relação de interdependência Sobre o conceito de tu quoque, v. MENEZES CORDEIRO, Da Boa Fé no Direito Civil, II, Coimbra, 1985, p. 837. 57 MENEZES CORDEIRO, “Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas”, Revista da Ordem dos Advogados, ano 65, 2005, II, p. 360. 58 Cfr. MENEZES CORDEIRO, Da Boa Fé no Direito Civil, II, cit., pp. 852 e ss. 37 56 ou correspectividade. Assim, a função da exceptio, tal como da retentio, é a de facultar ao devedor a possibilidade de licitamente se recusar a prestar e não tornar ilícita ou abusiva a exigência de cumprimento sem que o credor se disponha a contraprestar em simultâneo. Por esse motivo, se o devedor decidir cumprir voluntariamente a obrigação, desconhecendo que poderia invocar qualquer das excepções que lhe permitem recusar o cumprimento, não pode pedir de volta aquilo que prestou. Se não há abuso do direito por parte do credor que exige o cumprimento de uma obrigação, quando a contraparte pode invocar a excepção de não cumprimento, de retenção ou de compensação, para se recusar a cumprir, por maioria de razão, não poderá este legitimar directamente o princípio cuja juridicidade pretendemos fundamentar. O credor que exige o cumprimento sem, por sua vez, cumprir a obrigação a que está adstrito perante o seu devedor não está a exigir abusivamente o seu direito de crédito, no sentido de que o seu direito à prestação não depende do cumprimento da obrigação a que está vinculado perante o devedor. Do art. 762.º, n.º2 decorre que tanto devedor como credor 59 devem no cumprimento da obrigação e no exercício do direito correspondente proceder de boa fé, o que significa que cada uma das partes tem de comportarse de forma honesta e leal para com a outra. Por este motivo, poder-se-á considerar um corolário da boa fé em sentido objectivo que, embora o credor possa exigir o cumprimento sem se dispor a contraprestar, tal comportamento do credor deve facultar ao devedor a possibilidade de recusar o cumprimento para tutela do seu direito. Se, de acordo com o ius strictum, o devedor está obrigado a cumprir pontualmente as suas obrigações (art. 406.º), o princípio da boa fé exige que lhe seja reconhecido, em termos gerais, uma excepção de Salientando o carácter bilateral do princípio da boa fé, v. BRANDÃO PROENÇA, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, Coimbra, 2011, p. 56. 38 59 direito material que lhe permita recusar esse cumprimento quando o credor não cumpra a obrigação a que está adstrito. O credor tem, assim, o encargo de realizar a prestação por si devida, porque, caso contrário, o devedor pode licitamente recusar a realização da prestação a que o primeiro tem direito. A referência à equidade enquanto fundamento desta faculdade de recusa do cumprimento para tutela de um direito de crédito deve ser entendida como uma remissão para a ideia de Justiça. Ainda que nenhuma norma de direito deva, em última análise, ser contrária à ideia de Justiça, há institutos, como acontece com a compensação, o direito de retenção e a excepção de não cumprimento, cujo princípio primeiro sobre o qual repousam é directamente a ideia de Justiça. Os referidos institutos não cobrem, contudo, todas as situações em que ao devedor deverá ser reconhecida a faculdade de recusa da prestação para tutela de um direito de crédito. Daí a necessidade de um desenvolvimento praeter legem do Direito cuja legitimidade deverá ser encontrada na ideia de Justiça. Todavia, uma coisa é a boa fé e a ideia de Justiça constituírem o fundamento último ou a legitimação metodológica do desenvolvimento praeter legem do direito, outra bem diferente é tentar recorrer a estas para traçar o recorte da figura. Isto significa que não é possível valer-se delas para determinar em concreto quais as hipóteses em que um devedor pode licitamente recusar-se a cumprir, sem recorrer aos tribunais, até receber a prestação que, por sua vez, o seu credor lhe deve. Por último, para concluirmos pela existência de um princípio, é necessário perceber se este não terá sido excluído pela ordem jurídica vigente60. A proibição de recurso à força própria para realização de um direito (art. 1.º do CPC) não é aplicável às formas de autotutela que não requerem o uso da Sobre a admissibilidade de soluções contra legem com base em princípios jurídicos, v. ANTÓNIO CORTÊS, Jurisprudência dos Princípios, cit., pp. 306 e ss. 39 60 força para serem actuadas, pois estas não põem em causa, da mesma maneira, a paz e ordem públicas. No espaço jurídico alemão, a questão da proibição da autotutela foi largamente debatida nos trabalhos preparatórios do BGB. Grande foi a discussão em torno da exclusão, no futuro Código Civil, de uma norma que proibisse o recurso à autotutela. Segundo os autores dos trabalhos preparatórios do BGB, a proibição de autotutela apresentar-se-ia desnecessária, porquanto os actos de justiça privada seriam, em regra, ilícitos e a ordem jurídica previa sanções adequadas sempre que uma conduta, independentemente do seu fim, pusesse em causa a paz pública. Pelo contrário, a intenção de agir conforme ao direito não pode ser considerada ilícita, nem põe em causa a paz pública 61. Esta solução deve ser enquadrada no contexto de uma codificação que consagrou o princípio da autonomia privada de forma particularmente ampla e abdicou da intervenção dos tribunais, como por exemplo na resolução 62, excepto quando tal se mostrasse estritamente necessário. Deve também entender-se que não existe na nossa ordem jurídica uma proibição genérica de recurso à autotutela, mas somente de recurso à força própria para realizar um direito (art. 1.º do CPC), contrabalançada por a cada direito corresponder uma acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo (art. 2.º, “Die Absicht, den Zustand herbeizuführen, der dem Rechte entspricht, ist nich widerrechtlich. Ebensowenig wird durch eine solche auf dem Boden des Rechtes sich bewegende Handlung der Rechtsfriede gestört”. Cfr. MUGDAN, Motive…, I, p. 546. No Protokolle, rejeitou-se somente a possibilidade de haver uma norma que determinasse que o fim de justiça privada não tornava o acto lícito ilícito e vice-versa. Não se tratou, contudo, de uma alteração da concepção defendida no primeiro projecto. Considerou-se que a norma deveria ser excluída por ter uma natureza doutrinária. Cfr. MUGDAN, Protokolle…, I, pp. 806 e 807. Subsequentemente, no Denkschrift reitera-se que o importante é determinar se o acto é, em si mesmo, ilícito ou lícito. Como o fim de autotutela (Selbstshilfezweck) não torna, de per si, o acto ilícito, a lei só deveria regular as excepções. Cfr. MUGDAN, Denkschrift …, I, pp. 843 e 844. 62 A mesma ordem de razões esteve na origem da solução acolhida pelo nosso legislador civil em 1966. Nos trabalhos preparatórios, escrevia VAZ SERRA, “Resolução do Contrato”, BMJ, n.º 68, 1957, p. 227, ser preferível permitir a cessação extrajudicial de um contrato, “pois não há necessidade de obrigar o titular do direito de resolução a pedir em juízo que esta seja decretada, isto é, obrigar quem tem esse direito aos incómodos e delongas de uma acção judicial. Mais simples é que ele declare directamente à outra parte que resolve o contrato”. 40 61 n.º2, do CPC). Embora o direito a uma decisão judicial em prazo razoável esteja constitucionalmente consagrado (art. 20.º, n.º4, da CRP) e inscrito na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (art. 6.º), a obtenção de uma decisão judicial, que não ponha em causa as garantias processuais que sempre terão de ser asseguradas às partes, é inevitavelmente morosa. E nem a “fuga para o privado” a que se tem assistido nas diversas reformas da acção executiva tem conseguido alterar a situação63. Assim, a opção de deixar aos particulares a possibilidade de procederem à tutela dos seus direitos ou atribuir ao Estado a exclusividade da sua protecção passa, quanto a nós, por uma ponderação de interesses. Ora, parece-nos que a não admissão desta causa de exclusão da ilicitude criaria um dano superior àquele que resulta da sua aceitação. Se o devedor estiver obrigado a cumprir, o credor deixa de se sentir compelido a realizar a sua prestação para receber aquela a que tem direito, tendo o devedor, em última análise, de recorrer aos meios jurisdicionais para receber aquilo que lhe é devido. Por outro lado, se o devedor recusar o cumprimento e se vier a concluir que essa rejeição é ilícita, sempre existirá um incumprimento (definitivo ou temporário) da obrigação com todas as consequências que lhe estão associadas. Por fim, se o legislador admite, com grande amplitude, certas formas de autotutela que desempenham uma função executiva, como vimos suceder com a compensação, por maioria de razão, deve aceitar-se a licitude dos instrumentos de autotutela com um carácter meramente defensivo ou passivo 64. Todavia, como bem reconhece ANGELO SATURNO, L’Autotutela Privata, cit., p. 205, “a “fuga nel privato” não é indolor. Ela não produz só vantagens, mas em geral também - e salta aos olhos de todos - desigualdades e injustiças (...). Estas tensões reflectem-se tal e qual na autotutela, cujo emprego, quanto mais geral, tanto mais se arrisca a redundar em abuso”. 64 As formas de autotutela activa distinguem-se dos instrumentos de autotutela passiva ou meramente defensiva por, nos segundos, o titular do direito se limitar a resistir à pretensão de outrem através de uma omissão ou de um comportamento passivo que visa manter o status quo. Cfr. BETTI, “Autotutela”, Enciclopedia del Diritto, IV, Milano, 1959, p. 529 e GIROLAMO 41 63 O carácter meramente defensivo e temporário desta forma de autotutela permite concluir que a paz e ordem públicas não são, por esta via, postas em causa65. Trata-se de uma mera recusa do cumprimento, pelo que o credor se limita a omitir um comportamento devido para tutela do seu direito e não recorre à força própria para cobrar o seu crédito. Em síntese, a autotutela não pode ser perspectivada como uma forma de justiça oposta à justiça pública, mas como complementar desta que deve ser permitida sempre que não ponha em causa a paz pública e simultaneamente favoreça a realização do direito do credor em relação às possibilidades que este tinha de obter o cumprimento através do recurso à tutela jurisdicional. Outro problema que se pode colocar é se tal solução não põe em causa o princípio do cumprimento pontual das obrigações. A recusa de cumprimento de uma obrigação constituirá, em regra, um comportamento ilícito do devedor, mas que, na excepção de não cumprimento e no direito de retenção, o legislador torna legítimo, em virtude do não cumprimento simultâneo pela contraparte da obrigação que sobre esta recai, precisamente para tutela do respectivo direito de crédito. Assim, a razão pela qual o legislador excepcionou as hipóteses que permitem ao devedor invocar a excepção de não cumprimento ou o direito de retenção, também se verificará noutras situações não abrangidas por estes institutos. Como tivemos oportunidade de aflorar, encontra-se hoje ultrapassado, pela generalidade da comunidade jurídica, o entendimento segundo o qual a analogia de disposições excepcionais se encontra em todos os BONGIORNO, L’Autotutela Esecutiva, Milano, 1984, pp. 29 e 30. 65 No ordenamento jurídico francês em que a excepção de não cumprimento não se encontra prevista, em termos gerais, no Código Civil, a doutrina e a jurisprudência têm-se pronunciado no sentido do alargamento do âmbito de aplicação da excepção por se tratar de uma medida defensiva e temporária que não põe em causa a paz e ordens públicas. Cfr. CATHERINE POPINEAU-DEHAULLON, Les Remèdes de Justice Privée à l’Inexécution du Contrat, Étude Comparative, Paris, 2008, pp. 99 e 100. Referindo-se especificamente à compatibilidade da excepção de não cumprimento com a tutela da ordem pública, v. VALLIMARESCO, La Justice Privée en Droit Moderne, Paris, 1926, p. 407. 42 casos excluída. A esta concepção restrita, reflectida no art. 11.º, tem-se vindo a sobrepor aquela que manda atender à “razão pela qual o legislador excepcionou este casos”66. Justifica-se, por conseguinte, plenamente que seja reconhecida a licitude do comportamento do devedor que se recusa a cumprir para tutelar o direito de crédito de que é titular. A solução passa também pela formulação de um juízo de oportunidade. Tudo está em saber se, sendo possível ao credor tutelar de forma económica e célere o seu direito sem recurso à força própria, não será de admitir esta causa de exclusão da ilicitude, apesar de a mesma não se encontrar prevista na lei. Por outro lado, sempre existirá a garantia de que os tribunais poderão intervir para ajuizar se a recusa é abusiva e, como tal, contrária ao direito vigente. De acordo com a formulação ampla do adágio “inadimplenti non est adimplendum”, qualquer situação em que se verifique existir uma reciprocidade de créditos permitiria, à primeira vista, ao devedor recusar o cumprimento da sua obrigação, se o credor não se dispusesse a cumprir, em simultâneo, aquela a que está adstrito. Diríamos, todavia, que não existe um consenso no que concerne à admissão de uma forma tão ampla de exclusão da ilicitude do comportamento daquele que não cumpre pontualmente uma obrigação. Tanto a excepção de não cumprimento, como o direito de retenção pressupõem a existência de uma especial ligação entre créditos. Por outro lado, apesar de o regime jurídico da compensação não distinguir, em regra, as hipóteses em que os créditos, para além de recíprocos, provêm da mesma relação jurídica, entendida para o efeito como mesma relação de vida, a verdade é que fomos capazes de identificar um conjunto de situações em que o regime jurídico deve ser distinto do geral. 66 Cfr. LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, cit., p. 503. 43 A conclusão a que chegámos a nossa dissertação de doutoramento67 é a de que, ao contrário do que vimos suceder com o direito de retenção convencional, é necessária a existência de uma conexão entre créditos para que o devedor possa recusar o cumprimento da sua obrigação até receber do credor a prestação a que tem direito. Isto significa que não basta que créditos sejam recíprocos é necessário que estes tenham uma origem comum. Essa conexão entre créditos existe quando estes provêm da mesma relação jurídica. O conceito abrange também as situações em que os direitos têm fonte na mesma relação da vida. 6. Oponibilidade a terceiros: Outras das questões suscitadas no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto com que iniciámos a presente exposição era a de saber se o direito de retenção, que os Autores da acção advogavam ser titulares, prevaleceria sobre uma hipoteca anteriormente constituída sobre o bem retido. Estando os direitos reais de garantia sujeitos ao princípio da taxatividade, mesmo que a obrigação recusada tenha por objecto uma coisa determinada, aquele que legitimamente se recusa a realizar a prestação não goza de qualquer direito a ser pago com preferência pelo valor do bem retido. Aliás, foi por esse motivo que excluímos a possibilidade de o direito de retenção ser aplicado por analogia a outras situações em que se verifica a existência de uma conexão entre créditos. Problema diferente está em saber se a excepção de recusa de cumprimento para tutela de um direito de crédito que temos sustentado existir, nos termos anteriormente delineados, apesar de não atribuir ao seu titular qualquer direito de preferência pelo valor da coisa retida, não permitirá recusar a terceiros a entrega da coisa. De outra forma, o credor poderá alienar a coisa 67 Cfr. Parte VI, n.º 4.2.3. 44 retida a um terceiro que a poderá reivindicar, defraudando, assim, os interesses do beneficiário da excepção que legitimamente pretendia recusar a entrega da coisa até receber a prestação a que tem direito. Se defendemos, a propósito da oponibilidade a terceiros da excepção de não cumprimento, a impossibilidade de esta, à luz do ordenamento jurídico português, ser oponível aos terceiros adquirentes da coisa, por maioria de razão, temos de entender que esta excepção não pode ser oposta a estes últimos. A recusa da entrega da coisa não é, assim, oponível, em regra, a terceiros adquirentes. A este propósito, pode suscitar-se, ainda, a seguinte interrogação: será a referida recusa oponível aos credores do credor da entrega da coisa em sede de acção executiva singular e de processo de insolvência? No que diz respeito ao processo de insolvência, o beneficiário da excepção não pode deixar de ser considerado um credor comum, não gozando de qualquer direito a ser pago com preferência68, nem da protecção conferida no art. 102.º do CIRE às prestações unidas por um vínculo de sinalagmaticidade 69. Assim, estará obrigado a cumprir integralmente a sua obrigação e receberá aquilo a que tem direito de acordo com o princípio da par conditio creditorum. Se Relativamente à impossibilidade de invocação do direito de retenção previsto no §273,1 do BGB, em processo de insolvência por se tratar de um direito que não produz efeitos relativamente a terceiros, v. KRÜGER, Münchener Kommentar..., cit., § 273, n.os 56 e 94, pp. 687 e 695. 69 Sobre a impossibilidade de o disposto no art. 102.º do CIRE ser aplicado a contratos não sinalagmáticos, v. PESTANA DE VASCONCELOS, “O novo regime insolvencial da compra e venda”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, ano 3, 2006, pp. 536 e 537, MENEZES LEITÃO, Direito da Insolvência, 4.ª ed., Coimbra, 2012, p. 179(235) e ROSÁRIO EPIFÂNIO, Manual de Direito da Insolvência, 5.ª ed., Coimbra, 2013, p. 177. Esta posição não é, contudo, acolhida por OLIVEIRA ASCENSÃO, “Insolvência: Efeitos sobre os negócios em curso”, ROA, ano 65, II, 2005, pp. 288 e ss. que propõe a aplicação analógica do art. 102 do CIRE aos contratos e negócios unilaterais. A analogia não nos parece sustentável, porquanto nas hipóteses em que o administrador opta pelo cumprimento, os contradireitos do credor tornam-se dívidas da massa, o que implica uma restrição ao princípio da par conditio creditorum. A doutrina germânica tende a circunscrever a aplicabilidade do §103 da InsO aos contratos bilaterais. Admitindo a possibilidade de o §103 da InsO se aplicar a obrigações emergentes de um contrato bilateral ainda que estas não se encontrem unidas por uma relação de sinalagmaticidade, mas recusando a sua extensibilidade aos contratos bilaterais imperfeitos, v. KATHARINA BLAUM, Zurückbehaltungsrechte in der Insolvenz, Baden-Baden, 2008, pp. 146 e ss. e pp. 250 e 251. 45 68 outra fosse a solução, teríamos de concluir que esta faculdade de recusa gozaria, afinal, de maior protecção do que aquela que é conferida ao titular de um direito real de garantia, especialmente quando o valor da coisa retida fosse superior ao do crédito, pois, nesse caso, os demais credores poderiam estar dispostos a proceder ao pagamento para que a coisa retida fosse entregue à massa70. Relativamente à acção executiva para pagamento de quantia certa, procedendo-se à penhora de um bem do executado que se encontre “retido” e não gozando o devedor que arguiu a excepção de nenhuma preferência sobre aquele, não poderá reclamar o seu crédito ao abrigo do art. 778.º do CPC. Poder-se-á, todavia, equacionar a possibilidade de este deduzir embargos de terceiro, advogando que a penhora lesa a sua posse ou um direito com esta incompatível. Para além de ser duvidoso que o “retentor” possa ser considerado possuidor, a verdade é que o seu direito não é oponível a terceiros, pelo que entendemos que a resposta não poderá deixar de ser negativa, o que demonstra a fragilidade da garantia associada a este poder de recusa que tem eficácia somente entre as partes. Diferente será se se proceder à penhora de um direito de crédito cujo cumprimento possa ser licitamente recusado pelo seu devedor, nos termos supra mencionados. Aí já é defensável que este direito de recusa do cumprimento da obrigação para tutela do direito de crédito goze de uma certa oponibilidade a terceiros, porquanto no art. 776.º do CPC se estabelece que no caso de o devedor - notificado da penhora do direito de crédito – declarar que a exigibilidade da obrigação depende de prestação a efectuar pelo executado e de este confirmar a declaração, o executado é notificado para satisfazer a prestação no prazo de 15 dias. Se o executado não o fizer, a prestação pode ser exigida na Cfr. MARIA DE LURDES PEREIRA e PEDRO MÚRIAS, “Os direitos de retenção e o sentido da excepção de não cumprimento”, cit., pp. 214 e 216 a 217. 46 70 mesma execução, servindo de título executivo a sua declaração de reconhecimento de dívida. Se o executado impugnar a declaração do devedor e a penhora se mantiver, o crédito considera-se litigioso e como tal será adjudicado ou transmitido. Assim, no que concerne à oponibilidade a terceiros, a regra é a de que não se encontrando esta prevista na lei, o direito a suspender o cumprimento da obrigação para tutela de um direito de crédito só será oponível entre as partes. 47