A PASTORAL NA VIDA DA IGREJA Repensando a ação evangelizadora em tempos de mudança 1 Não há como negar: vivemos um tempo de profundas transformações. Um tempo de crise: ● ● ● ● ● de paradigmas e das utopias, das ciências e da razão, dos metarrelatos e das instituições, crise de identidade, das religiões, de valores, crise de sentido. 2 É um tempo incômodo, ingente à criatividade, à criar o novo e não para agarrar-se a velhas seguranças de um passado sem retorno. Crise é encruzilhada, tanto para a morte como para um novo nascimento, dependendo de como a enfrentamos. 3 A crise atual deve-se à crise da modernidade, responsável pelas maiores conquistas da humanidade e as maiores frustrações da história. Nela, há valores, mas, deixou sem respostas as questões ligadas à realização pessoal, à finalidade da aventura tecnológica, ao sentido da vida. 4 Daí a irrupção de novas realidades, frente às quais o projeto civilizacional tornou-se mais curto do que falso. Assim sendo, a saída da crise não está em ser anti-moderno, pré-moderno, pósmoderno ou em aferrar-se à modernidade, mas, em dar um passo adiante. 5 Numa sociedade em crise, também a experiência religiosa e a Igreja passam por profundas mudanças. E tal como na sociedade atual em relação à modernidade, também na Igreja há diferentes maneiras de situar-se diante da modernidade eclesial, o Vaticano II. 6 Estaria, entretanto, a saída da crise eclesial e pastoral, em ser anti-Vaticano II, pré-Vaticano II, pós-Vaticano II? Ou em aferrar-se à letra do Concílio, fechando-se a uma nova recepção do mesmo no novo contexto? As diversas hermenêuticas configuram diferentes modelos de pastoral, inconsequentes com as mudanças atuais. 7 1. Modelos de pastoral inconsequentes com as mudanças atuais 8 Hoje, podemos identificar, pelo menos, quatro modelos de pastoral, inconseqüentes com o momento atual: ● ● ● ● a pastoral de conservação a pastoral apologista a pastoral secularista a pastoral liberacionista 9 Desconhecendo as mudanças: a pastoral de conservação (de cristandade) Apesar de superado pelo Concílio Vaticano II, ela continua vigente na Igreja e existe há mais de mil anos. Funciona centralizado no padre e na paróquia. Para a maioria dos católicos, é o único espaço de contato com a Igreja. 10 Em sua configuração pré-tridentina, a prática da fé é de cunho devocional, centrada no culto aos santos, novenas, procissões, romarias e promessas. Já em sua configuração tridentina, a vivência cristã gira em torno do padre, baseada na recepção dos sacramentos e na observância dos mandamentos da Igreja. 11 Pressupõe-se cristãos evangelizados, mas são católicos não convertidos, sem iniciação à vida cristã. A recepção dos sacramentos salva por si só, concebidos como “remédio” ou “vacina espiritual”. Em lugar da Bíblia, coloca-se na mão do povo o catecismo da Igreja; em lugar de teologia enquadra-se os fiéis na doutrina. 12 No seio de uma paróquia territorial: ● ● ● ● ● ● ● ● em lugar de fiéis, há clientes; o administrativo predomina sobre o pastoral; a sacramentalização sobre a evangelização; o pároco sobre o bispo; o padre sobre o leigo; o rural sobre o urbano; o pré-moderno sobre o moderno; a massa sobre a comunidade. 13 Temendo as mudanças: a pastoral apologista (de neocristandade) A pastoral apologista assume a defesa da instituição católica, frente a uma sociedade dita anti-clerical, bem como a guarda das verdades da fé, frente uma razão considerada secularizante. 14 Ao desconstrucionismo dos metarrelatos, que gera vazio, contrapõe o “porto de certezas” da tradição religiosa e um elenco de verdades apoiadas numa racionalidade metafísica. Se a pastoral de conservação é prémoderna, a pastoral apologista é antimoderna. 15 Em lugar do Vaticano II, que teria se rendido à modernidade, apregoa-se a “volta ao fundamento”, à tradição antimoderna dos papas “Pios”. Apóia-se numa “missão centrípeta”, a ser levada a cabo pelos “soldados de Cristo”, a “legião” de leigos “mandatada” pelo clero: sair para fora da Igreja, para trazer de volta as “ovelhas desgarradas” para dentro dela. 16 Numa atitude hostil frente ao mundo, cria uma “sub-cultura eclesiástica”, no seio da qual, se sentirá a necessidade de vestir-se diferente e de evitar os diferentes. Como se está em estado de guerra, qualquer crítica é intolerada, pois enfraquece a resistência. Diante da dúvida, a certeza da tradição e a obediência à autoridade monárquica. 17 Padecendo as mudanças: a pastoral secularista (de pós-modernidade) A pastoral secularista propõe-se responder às necessidades individuais imediatas no contexto atual, de pessoas em sua grande maioria, órfãs de sociedade e de Igreja. 18 É integrada por pessoas machucadas, desesperançadas, em busca de autoajuda e habitadas por um sentimento de impotência, tanto no campo material como no plano físico e afetivo. Apostam em saídas providencialistas e imediatas. Há um deslocamento da militância para a mística na esfera da subjetividade individual, do profético ao terapêutico e do ético ao estético. 19 Dado que o passado perdeu relevância e o futuro é incerto, o corpo é a referência da realidade presente, deixando-se levar pelas sensações. Na medida em que Deus quer a salvação a partir do corpo, esta religiosidade pode ser porta de entrada, mas, geralmente, é porta de saída da religião (secularização do religioso). 20 Vem na esteira de uma religiosidade eclética e difusa, que confunde salvação com prosperidade material, saúde física e realização afetiva. É a religião a la carte: Deus como objeto de desejos pessoais, no seio do atual próspero e rentável mercado do religioso. 21 Há uma internalização das decisões na esfera da subjetividade individual, esvaziando as instituições, inclusive a instituição eclesial (cristãos em Igreja). Neste contexto, a mídia contribui para a banalização da religião, reduzindo-a à esfera privada e a um espetáculo para entreter o público. 22 Trata-se de uma “estetização presentista”, propiciadora de sensações “in-transcendentes”, espelho das imagens da imanência. Também a religião passa a ser consumista, centrada no indivíduo e na degustação do sagrado, entre a magia e o esoterismo. 23 Negando as mudanças: a pastoral liberacionista (de encantamento com a modernidade) Se reivindica da renovação do Concílio Vaticano II e da profética tradição latinoamericana, a resposta mais avalizada à crítica da religião como alienação ou ópio do povo. 24 Não quer perder de vista a indissociável conversão pessoal e das estruturas, que exige a militância dos cristãos também na esfera política, a partir da opção preferencial pelos pobres. Não quer deixar a parceria com os movimentos sociais, que permitiu avanços nas políticas públicas de inclusão de amplos segmentos da população. 25 Com a crise das utopias, a fragmentação do tecido social, dos ideais comunitários e o surgimento de novos rostos da pobreza, a pastoral liberacionista, sem as suas mediações históricas, sofreu um grande revés. Em meio à perplexidade do presente, em lugar de tirar lições e buscar novas mediações, tende-se a minimizar ou mesmo a negar as mudanças atuais. 26 Continua priorizando, quando não com exclusividade, a promoção de mudanças estruturais e a atuação no âmbito político e social. Qualquer mudança é retrocesso. Questões mais ligadas à esfera da pessoa, à realização pessoal, autonomia, à dimensão sabática da existência, à experiência pessoal do sagrado, são tidas como preocupações burguesas. 27 2. Balizas de um novo paradigma pastoral em tempos de mudanças 28 Por mais duras e desconcertantes que possam ser as mudanças, não estamos condenados ao pragmatismo do cotidiano, nem a repetir o passado. De nada servem saídas pastorais providencialistas ou modelos nostálgicos restauradores de um passado sem retorno. 29 Em meio à ambigüidade dos acontecimentos, é preciso ficar atentos às interpelações do Espírito. Sobretudo, não satanizar as práticas proféticas que “minorias abraâmicas” vão cravando como cunhas, nas brechas de modelos sociais e eclesiais obsoletos. 30 Algumas balizas de um novo paradigma pastoral em tempos de mudança: Uma pastoral que se desvencilhe do modelo de cristandade Há meio século da renovação do Vaticano II, a Igreja ainda não conseguiu se desvencilhar da cristandade; passar da cultura rural à cultura urbana. 31 Em tempos de turbulências, que geram insegurança e medo, voltar à cristandade ou à neocristandade, é enclausurar a Igreja em um castelo, à margem do mundo de hoje. Um novo paradigma pastoral para um tempo de mudanças, capaz de interagir com o mundo de hoje, acena para passagem: 32 ● da união entre trono e altar ao respeito pela autonomia do temporal, superando todo tipo de integrismo (implantação de uma cultura cristã); ● dos dualismos corpo-alma, materialespiritual, sagrado-profano a uma antropologia unitária, que une evangelização e promoção humana; 33 ● da missão como implantação da Igreja à encarnação do Evangelho (evangelização inculturada); ● da mera recepção dos sacramentos a processos de iniciação à vida cristã de estilo catecumenal; ● do ritualismo mágico a uma catequese mistagógica; 34 ● da Igreja-massa a uma Igreja de pequenas comunidades acolhedoras e aconchegantes; ● da centralização na matriz a uma Igreja rede de comunidade de comunidades; ● do aumento do tamanho dos templos à multiplicação das pequenas comunidades; 35 ● de comunidades territoriais a comunidades por eleição e afeto; ● o monopólio clerical ao protagonismo dos leigos (das mulheres); ● do catecismo à Bíblia (centralidade da Palavra); ● da doutrinação à formação teológicopastoral permanente, etc. 36 Uma pastoral de “volta às fontes” e não de “volta ao fundamento” Os alinhados à neocristandade propugnam não pela “volta às fontes” (bíblicas e patrísticas), mas pela “volta ao fundamento”: ● ao agostinismo/tomismo (metafísica); ● à tradição tridentina; ● aos manuais e catecismos apologéticos. 37 “Volta às fontes” é fidelidade à experiência originária, jamais esgotada por qualquer mediação histórica. “Volta ao fundamento” é agarrar-se a determinada configuração da tradição, absolutizando as mediações em relação aos fins e gerando fundamentalismos. 38 Um novo paradigma pastoral, de superação da neocristandade, acena para a passagem: ● do passado como refúgio ao passado como memória, que permite nos resituar no presente; ● de uma visão da pós-modernidade como relativista a uma relativização de toda verdade identificada; 39 ● de uma racionalidade pré-moderna, dedutiva e essencialista, a uma racionalidade histórico-existencial; ● de uma postura apologética, a uma Igreja em diálogo com o mundo; ● dos manuais e catecismos, à pesquisa teológica, em diálogo inter e transdisciplinar; 40 ● do exclusivismo católico, ao diálogo ecumênico e inter-religioso; ● do sagrado que separa do profano, à santificação de tudo e de todos; ● de um Deus todo poderoso, que esmaga os inimigos, a um Deus Amor, impotente diante da liberdade humana. 41 Uma pastoral liberta do passado, mas guardando uma preciosa herança Em tempos de mudanças, é preciso “virar a página”, não para trás (tradição tridentina), mas para frente. Vaticano II e tradição latino-americana, estão longe de ser “páginas viradas”. 42 Foram eventos, que levaram a Igreja passar da cristandade à modernidade. Em suas intuições básicas e eixos fundamentais, continuam relevantes para os dias de hoje. Em relação ao Vaticano II, um novo paradigma pastoral para estes tempos de mudanças, acena para se guardar: 43 ● o primado da Palavra na vida da Igreja; ● a distinção entre Igreja e Reino de Deus, em diálogo ecumênico e inter-religioso; ● a Igreja Local, porção e não parcela do Povo de Deus (Igreja: Igreja de Igrejas); ● a afirmação da base laical da Igreja; ● o mundo como constitutivo da Igreja, que existe para a salvação do mundo. ● a reforma litúrgica (supera sacrificialismo) 44 Da tradição latino-americana, um novo paradigma pastoral há de guardar: de Medellín (1968) ● ● ● ● ● a opção pelos pobres; uma evangelização libertadora; uma Igreja pobre e rede de CEBs; conversão pessoal e das estruturas; uma reflexão teológica articulada com as práticas proféticas. 45 de Puebla (1979) ● a prioridade da atenção aos jovens; ● a evangelização como inculturação do evangelho. de Santo Domingo (1992) ● a necessária conversão pastoral; ● o protagonismo dos leigos. 46 de Aparecida (2007) ● chegar às pessoas, através de processos de iniciação cristã; ● uma Igreja toda ela em estado de missão; ● a missão como irradiação do Evangelho e não proselitismo; ● a ratificação da opção pelos pobres (hoje: supérfluos e descartáveis); ● o protagonismo das mulheres na Igreja. 47 Uma pastoral que faça do ser humano o caminho da Igreja Nisto consiste a salvação em Jesus Cristo: “eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10). Consequentemente, o cristianismo não propõe a seus adeptos e à humanidade, nada mais do que ser verdadeiramente humanos, humanos em plenitude. 48 Isso implica a Igreja descentrar-se de suas questões internas e sintonizar-se com as grandes aspirações da humanidade. A Igreja precisa ser de todos, sobretudo dos que não são Igreja. Isso implica olhar para o ser humano não de modo abstrato, mas nas contradições de seu contexto sócio-cultural, assumindo os conflitos (Igreja advogada dos pobres). 49 Fazer do ser humano o caminho da Igreja, acena para uma Igreja: ● “casa dos pobres”: solidária, samaritana, companheira de caminho de toda a humanidade, em especial dos excluídos; ● que cuida, promove e defende vida plena para todos e o planeta como sua casa; ● profética, que denuncia os mecanismos de exclusão e toma a defesa das vítimas. 50 Uma pastoral pautada pela gratuidade e o respeito à alteridade Trata-se de contribuir com a superação da lógica de submissão, rejeição ou aniquilamento do outro ou do diferente. O outro não como imperativo ético, mas como dimensão sabática da existência. 51 O outro como horizonte de gratuidade, de cujo encontro, numa relação dialógica, ‘eu’ e ‘tu’ se enriquecem mutuamente. Em consequência, a Igreja não tem não destinatários, mas interlocutores. E como o “outro” são “outros”, diversos e diferentes em culturas e religiões, evangelizar implica diálogo inter-cultural (inculturação do Evangelho) e inter-religioso. 52 Uma pastoral que faça do tempo presente um tempo messiânico A Igreja está desafiada a tirar as conseqüências da crise das utopias, concebidas no seio da modernidade, como uma dilatação indeterminada do futuro. As pessoas querem ser felizes, hoje. 53 A crise da modernidade pôs em evidência o valor e a urgência do presente e do momentâneo, provocando um encolhimento da utopia no aqui e agora. É outra noção de tempo, não como chronos, mas como kairós: se os fins que se perseguem são verdadeiros, precisam ir se mostrando no caminho. 54 Isso implica propiciar experiências de plenitude, de eternidade, em meio à precariedade do presente. O “ainda não” da esperança cristã precisa tocar o “já”, da vida pessoal e social no cotidiano. Do contrário, não passa de uma esperança vazia, de escapismo da história de um horizonte sacrificial e enganador. 55 Uma pastoral centrada na Palavra e animada pela Bíblia No contexto da renovação conciliar antes de sacramentalizar, é preciso evangelizar: “desconhecer a Escritura é desconhecer a Cristo” (DV 25). Os cristãos, só serão discípulos de Jesus, se estiverem em condições de levar a proposta da Palavra aos seus irmãos. 56 E só estarão aptos para isso, quando conhecerem e acolherem a Palavra, fazendo-a vida em sua vida. Para isso, é necessário que a Palavra seja a seiva que nutre, por dentro, a globalidade da vida pessoal e eclesial: serviços, organismos, estruturas. Por isso, a “animação bíblica da pastoral” não pode ser apenas uma pastoral a mais, ao lado de outras. 57 Como lembra a Dei Verbum, a Palavra de Deus “precisa animar as três vertentes da vida e ação eclesial: a profecia, a liturgia e a diaconia” (DV 21). Cabe, pois, à animação bíblica da pastoral, tornar presente não apenas a Bíblia, mas a “dimensão bíblicocatequética” de toda e qualquer ação eclesial. 58 A animação bíblica da pastoral precisa estar presente já no início do itinerário da fé: na iniciação à vida cristã. Cabe a ela velar para que os cristãos sejam introduzidos no conhecimento e na vivência da Palavra, na vida fraterna em pequenas comunidades (CEBs). Vivência da Palavra na vida pessoal, eclesial e social, como comunidade missionária. 59 Esta maturidade missionária implica que a comunidade dos iniciados, por sua vez, se dê à tarefa de iniciar a outros. É aqui que a “animação bíblica da pastoral” precisa promover uma “pastoral bíblica”: a criação dos serviços e das estruturas necessárias para a animação bíblica de toda a vida eclesial. 60 Isso só será possível se a animação bíblica da pastoral: ● estiver inserida na pastoral orgânica e de conjunto; ● se esta for a promotora da responsabilidade de todos, em fazer da Palavra de Deus, a seiva que nutre, por dentro, todas as iniciativas pastorais. 61