“Graças aos pobres somos amados por Deus” 1 . Imagino os primórdios da criação. O orbe, no princípio, jazia na escuridão das trevas. A solidão do nada habitava o universo. A terra disforme e vaga dava a idéia de uma pobreza absoluta. A ausência de tudo tocou a bondade do criador. E eis que se fez Deus. Ele se compadeceu de tamanha necessidade. E houve luz, firmamento, água, árvores frutíferas, luzeiro do dia e o luzeiro da noite, estrelas, seres vivos de todas espécies. A inteligência divina viu que ainda não estava completo, faltava alguma coisa, faltava sua imagem impressa nas criaturas. Fez o homem. À sua semelhança. Vendo Deus o isolamento do primeiro humano e percebendo que não era bom que vivesse só 2 , tirou de seus ossos a mulher e lha deu por companheira. Deu-lhes também a liberdade para usar de tudo o que vissem. E como não estivessem satisfeitos gerou-se-lhes filhos. Pouco a pouco a terra foi-se enchendo e ficando cada vez mais necessitada. E quanto mais se preenchia os vácuos terrenos, mais o homem se empobrecia. Quanto mais se acumulava em posses, mais precária sua situação. E veio o dilúvio. Arrasou a terra. Para não extinguir totalmente o planeta reservou uma família, a de Noé. Em pouco tempo tudo se refez. A ganância, mãe de todos os erros, apoderou-se do coração dos homens e continuaram ainda mais vazios de Deus e cheios de si. Quando não pôde mais falar, diretamente, aos homens. Escolheu alguns profetas, lhes pôs na boca suas palavras para enriquecer os povos. A novidade foi se esgotando. A tentativa de Deus não foi suficientemente suprida. E “porque não cessará de haver pobres no meio da terra” 3 enviou-nos Jesus Cristo. Assumindo a nossa humana condição, embora sendo divino. Revelou-nos o seu rosto de Deus por meio da face humana. Enriqueceu a muitos. E sabendo que os seres humanos continuariam carentes, deixou-nos a Eucaristia, como sacramento da 1 São Vicente de Paulo Gênesis 2, 18 3 Deuteronômio 15, 11 2 saudade e da atualização. Outros, porém, preferiram continuar na indigência e mataram o autor da vida. Entretanto quis Deus continuar presente no meio de nós até a consumação dos séculos. E porque éramos pobres enviou-nos o seu Santo Espírito 4 , como presença contínua. E como graças aos pobres somos amados por Deus, perpetua entre nós o seu amor. A pobreza estará presente na terra. Ela se perpetuará no solo. Porque pobres sempre os tendes convosco 5 . Pois, é pela nossa inferioridade que somos, por Deus, lembrados. Enquanto um pobre clamar sobre o chão, o Senhor nos olhará dos altos céus. O homem cresceu, aperfeiçoou, multiplicou, dominou a terra. Alcançou estágios avançados de sua inteligência, superou a racionalidade. Maximizou e absolutizou sua astúcia de pensamento. Não há nada mais a ser inventado. E onde está Deus? Talvez, nos céus! Não, no meio de nós, entre nós. È Emanuel, Deus conosco, caminha ao nosso lado. Graças a nossa pequenez. 4 5 Santo Agostinho Marcos 14, 7