Técnicas de Expressão
Sara Mendonça
Mais vale quem Deus ajuda, do que quem muito madruga.
Um provérbio: inúmeros sentidos e discussões
Parece pairar no subconsciente do mais comum dos mortais a ideia de que um
provérbio tem uma estrutura intrinsecamente moralista, dotada de uma dupla eficácia
preventiva e recriminadora, invariavelmente usada em certo sentido (é o designado
“lugar comum”).
Talvez por esse motivo a maioria dos trabalhos criativos dos alunos se incline
instintivamente para um sentido de justiça, em que as atitudes honrosas e os valores
morais são premiados por Deus, que lhes concede a sua ajuda divina.
Cumulativamente, a estruturação dos seus textos caracteriza-se pela criação de
uma história capaz de ilustrar o provérbio e não propriamente pela discussão da ideia
implícita que este encerra.
Nos antípodas destes textos surge o conto recolhido por Adolfo Coelho, uma
argumentação própria sobre a ideia que subjaz ao provérbio, em que a frase feita é
destruída para dar lugar a uma discussão quase filosófica sobre a conduta humana e
os múltiplos significados da ajuda divina.
Com um início característico de conto infantil, a controvérsia de dois almocreves
sobre “Qual vale mais, quem Deus ajuda ou quem muito madruga?” alcança
proporções de verdadeiro debate existencial, conduzindo o leitor e os próprios
compadres da trama numa verdadeira jornada de descobertas.
A referida controvérsia com que o conto se inicia pretende marcar o desenrolar
de um pensamento próprio que se forma em busca do sentido do provérbio, provérbio
este que aqui declinou.
Por conseguinte, é a vida que se encarrega de criar uma situação que permite
contestar o provérbio, acabando por responder, ainda que tacitamente, à pergunta dos
almocreves.
No entanto, é estranhamente a figura do Diabo que, num primeiro momento,
fornece a resposta ao enigma que intrigava as personagens (nomeadamente a
constatação de conflitualidade entre dois adágios populares) e posteriormente presta,
embora não intencionalmente, valiosas dicas para a resolução do imbróglio que
consumia o almocreve que perdera a aposta em virtude da resposta do Diabo a cavalo
e que presencia agora um diálogo entre diabos, onde colhe preciosas informações que,
Técnicas de Expressão
Sara Mendonça
devidamente aproveitadas, lhe renderão fortuna e sucesso. A interpelação do Diabo
surge, pois, como um meio de obter uma verdade.
Por outro lado, saber até que ponto a história narrada resolve a controvérsia
originária é uma questão mais complexa e algo dúbia, passível de várias
interpretações.
Atente-se nos seguintes raciocínios.
Partindo do pressuposto que a ajuda de Deus pode ter muitos significados e
tomar muitas formas, podemos considerar que Deus ouviu as preces do almocreve que
ficara sem nada, colocando no seu caminho as oportunidades para este enriquecer.
Assim sendo, esta intervenção divina viria corroborar o provérbio e dar razão àquele
que dizia mais valer quem Deus ajuda.
Não obstante, como se explicaria então o facto de o outro almocreve
ter
repetido as mesmas “instruções divinas” e ter tido um desfecho trágico?
Inversamente, e incidindo especialmente neste final da história, poderiamos
constatar que a ideia de Deus não subsiste, sendo por sua vez suplantada pela
improbabilidade da sorte ou do acaso. É precisamente neste aspecto que o conto
popular se assemelha a alguns dos textos criados pelos alunos, em que prevalece a
ideia de que é o mero acaso a determinar, ou pelo menos condicionar, a vida de cada
pessoa.
Embora na mesma linha lógica, iria quiçá um pouco mais longe ao acreditar que
existe neste contexto uma orientação superior, independente de actos ou palavras.
Quer-se com isto dizer que, de duas uma: ou se é portador de uma inteligência,
inspiração, talento ou dom inatos que determinarão o rumo das nossas vidas, ou existe
um destino pré-definido ao qual será impossível escapar.
Num género interpretativo mais pessoal, inclinar-me-ia a concluir pela
existência de um destino (ou arcaicamente, um fado) que carregamos connosco,
independentemente da nossa vontade, e que nos traçará o caminho a percorrer numa
determinada direcção. Por mais que contra ele lutemos, nunca seremos capazes de o
vencer. Por mais que dele fujamos, ele reencontrar-nos-á sempre.
Em suma, da argumentação aqui construída parece resultar uma ideia que
abandona a dicotomia Bem/Mal, o sentido de justiça ou o trabalho como fundamentos
justificativos de uma vida bem sucedida ou merecedores de uma recompensa divina,
colocando ao invés o acento tónico num destino (ou para os mais cépticos, numa
sorte) intrínseco, imutável, intransponível e próprio de cada ser humano. Cada Homem
Técnicas de Expressão
Sara Mendonça
será assim detentor exclusivo do seu destino, válido apenas para si e diferente de
qualquer outro.
Mas não será isto novidade, pois já Camões nos alertava “Os bons vi sempre
passar no Mundo grandes tormentos; e pera mais me espantar,os maus vi sempre
nadar em mar de contentamentos. Cuidando alcançar assim o bem tão mal ordenado,
fui mau, mas fui castigado: assim que, só pera mim, anda o Mundo concertado”.
Download

Mais vale quem Deus ajuda, do que quem muito madruga. Um