A proposta de Guayaquil
Rodrigo Vieira de Ávila
Nos dias 9 a 12 de março de 2002, representantes da Campanha Jubileu de vários
países se reuniram em Guayaquil (Equador), para discutir uma alternativa à proposta
de renegociação das dívidas feita pelo FMI. A justificativa desse encontro é a que se
segue:
“(a) Os mecanismos definidos no passado pelos credores para
poder enfrentar o problema da dívida dos países do Sul se mostraram
totalmente inadequados. Não conseguiram os objetivos pelos quais se
implementaram, a não ser terem suscitado a constante necessidade de
melhoras do estágio de trabalho desde os Acordos de Toronto,
passando pelos Acordos de Nápoles, Lyon e Colônia, até, finalmente, a
Iniciativa HIPC. Cada uma delas tem sido apresentada como a solução
definitiva para o problema da dívida dos países do Sul.(...)
(b) Ainda que não esteja havendo transferências líquidas de
recursos do Sul para o Norte como no início dos anos noventa, a
situação financeira e macroeconômica de um grande número de países
do Sul, todavia, segue sofrendo o efeito de uma considerável evasão
de divisas. Esses, por sua vez, devem ser assumidos como resultado
de
financiamentos
provenientes
dos
fundos
de
ajuda
e
desenvolvimento –
,originalmente previstos para financiar desenvolvimento – por
meio de novos empréstimos, que dizer, novas dívidas, também com
instituições multilaterais.
Erlassjahr 2000 entende que esses dois defeitos fundamentais
estão intrinsecamente relacionados com o desigual processo de
tomada de decisões na gestão internacional da dívida. Vendo os Fóruns
aonde a dívida se negocia verificamos que são os credores que definem
o processo como tal, estabelecem as regras do mesmo e decidem
sobre casos particulares baseados em análises dirigidas e inclusive
produzidas por eles mesmos. Apesar de que tal desigualdade estrutural
entre partes em uma discussão entre credores e devedores em um
contexto nacional seria inimaginável, esta relação entre devedores
soberanos e credores se mantém sem ser questionada”. [2]
Com base nesse diagnóstico, a proposta inicial colocada para o Encontro seguiu
premissas básicas:
“A nosso modo de ver, há três elementos chave de um
processo reformado entre devedores e credores que não só ajudariam
a superar esta desigualdade estrutural e eticamente questionável,
como também levariam a uma mais eficiente gestão da dívida:
1. Um corpo de tomada de decisões neutro, independente de ambas as
partes envolvidas;
2. O direito de todos os envolvidos a serem escutados antes da tomada de
decisão;
3. A proteção das necessidades básicas do devedor – nesse caso dos
setores mais vulneráveis da sociedade do devedor soberano –
prioritariamente à cobrança da dívida;
4. A instituição de um estado automático, uma vez que em caso de
insolvência a arbitragem está aberta, a fim de evitar que o credor tome
desproporcionado proveito dos recursos restantes do devedor (...)
Como poderia ser introduzido um processo de reforma deste tipo?
Erlassjahr 2000 defende a proposta feita pelo economista austríaco
Prof. Kunibert Raffer já nos anos 80. A proposta de Raffer concebe
uma internacionalização do Capítulo 9 do Código de Insolvência dos
EUA. Este capítulo em particular estabeleceu as bases para um
processo de insolvência dos devedores soberanos (municípios) no
sistema legal norte-americano. Todos os elementos mencionados
anteriormente formam parte do Capítulo 9, aos quais foram aplicados
ligeiras reformas desde os anos 20 nos EUA.
O
único
elemento
que
faltaria implementar
para
fazer
funcionar este esquema a nível internacional seria uma Corte de
Arbitragem Internacional, já que não existe atualmente nenhum corpo
jurídico internacional com competência e capacidade para resolver os
problemas da dívida e pagamento entre devedores soberanos e
credores.
A
Corte
de
Arbitragem
deveria
ser
um
corpo ad
hoc composto por um número igual de juízes de ambas as partes –
credores e devedores. Esses exigem, então, uma pessoa adicional que
permita a decisão por maioria simples. Este processo não é, desde já,
desconhecido no mundo das relações internacionais, dado que se
aplica também a casos bilaterais entre países. O caráter informal do
corpo de arbitragem não seria um problema já que atualmente a
gestão da dívida também funciona melhor da forma ad hoc, sem
nenhuma vinculação à lei internacional. Hoje em dia esta gestão se
baseia na vontade política dos credores e na falta de alternativas do
devedor.
Desse modo, o mecanismo seria altamente flexível e pouco
burocrático. Não requereria uma grande estrutura internacional já que
o processo permanece amplamente nas mãos das partes envolvidas.
Deveria se considerar, de toda maneira, o estabelecimento de um
pequeno secretariado em uma instituição que não seja por si mesma
devedora nem credora – por exemplo, as Nações Unidas. A função do
secretariado seria a de apoiar o processo de adaptação de dados,
segundo
padrões
internacionais,
oferecer
apoio
técnico
aos
encarregados da arbitragem assim como organizar e ouvir todos os
envolvidos segundo procedimentos padrão.” (Folder da Reunião de
Guayaquil)[3]
As conclusões do primeiro painel do Encontro refletiu este pensamento. Segundo Oscar
Ugarteche, as reformas e os ajustes não resolveram os problemas da dívida externa,
mas, pelo contrário, geraram uma crise permanente e instabilidade econômica. O FMI
perdeu totalmente a sua credibilidade, principalmente com a crise argentina.
Como propostas consensuais para a instalação de um processo alternativo de
arbitragem, se destacam as seguintes:
1.
A base para a Arbitragem Internacional deve ser encontrada, em grande
parte, nos tratados internacionais de Direitos Humanos, que dão prioridade
à satisfação das necessidades básicas humanas, como saúde, educação e
outros.
2.
Qualquer país pode submeter sua dívida externa a uma estrutura de
Arbitragem, para a resolução de crises, com as seguintes justificativas: (a)
a incapacidade de pagar o serviço das dívidas e (b) a ilegitimidade da
dívida, por corrupção ou fraude, assim como pela natureza odiosa da
dívida, ou qualquer outra forma de ilegitimidade.
3.
Onde houver dificuldades dos governos buscarem a arbitragem para a
resolução das suas crises da dívida, deve haver pressão e mobilização na
sociedade civil para forçar os governos a desempenharem um papel ativo
no processo, tanto para prevenir o colapso da economia dos países, como
pela ilegitimidade da dívida.
4.
A sociedade civil deve criar instrumentos, estabelecer parâmetros,
escolher indicadores para monitorar a dívida externa em cada país para
determinar se o país está justificado para a aplicação do processo de
arbitragem ou não.[4]
No painel que buscou detalhar o funcionamento de uma estrutura independente de
arbitragem, Kunibert Raffer se pronunciou a favor do estabelecimento rápido de uma
estrutura ad hoc. Segundo Alberto Acosta, este organismo ad hocpoderia depois se
institucionalizar, sob suporte de algum organismo já existente. Foi ressaltado o risco
de que o processo de arbitragem seja lento e sujeito a interrupções, podendo assim
permitir a legitimação da dívida. Neste sentido, a arbitragem não seria a única solução.
As propostas foram as seguintes:
1.
Deve-se debater uma proposta concreta.
2.
Há a necessidade de politizarmos a questão e tirar vantagem da
dinâmica atual.
3.
Devido à urgente necessidade de um processo de arbitragem para
solucionar a crise da dívida e a conjuntura política (a crise argentina e a
proposta do FMI), o estabelecimento de um processo de arbitragem
poderia começar com um procedimento ad hoc.
4.
A arbitragem talvez não consiga solucionarr o problema da dívida ou do
subdesenvolvimento, mas poderá se constituir uma estrutura viável para
resolver um problema essencial que diz respeito ao desenvolvimento das
nossas sociedades.
5.
O caráter ético e econômico do serviço impagável da dívida deve ser um
escudo moral que não deve impedir a elaboração de outras propostas.
6.
Um Tratado Internacional foi proposto, que permite o uso de
instrumentos legais das já existentes instituições de Direitos Humanos,
sustentadas pela mobilização da sociedade civil.
7.
O processo deve incluir a presença de diferentes atores sociais.[5]
O terceiro painel buscou delinear condições adicionais nas quais o processo de
arbitragem deveria ser implementado. Também foram ressaltados alguns riscos de que
o processo não se dê democraticamente. As propostas:
1.
Um objetivo final da arbitragem é a defesa dos Direitos Humanos,
econômicos, políticos, sociais e culturais;
2.
Uma condição aceitável para a arbitragem seria baseada na Declaração
Universal dos Direitos Humanos;
3.
Existe o amplo reconhecimento da falta de democracia não somente nos
países do sul, mas também do norte;
4.
Durante o processo de arbitragem é importante que os governos
assumam a responsabilidade de incluir nos orçamentos futuros todos os
fundos necessários para garantir os direitos e necessidades básicos das
pessoas; e aceitem a participação da sociedade civil na discussão e fazer
as pessoas controlá-la.
5.
Deve-se ressaltar que existe o risco de que o governo local crie uma
representação da sociedade civil ad hoc ,para atender a seus interesses.
6.
Não é possível condicionar a resolução dos problemas à existência de
um governo democrático, pois não pode ser exclusividade dos governos
democráticos a resolução da dívida externa.
De uma forma geral, as propostas colocadas até o momento já dão pistas
importantes sobre a conformação de uma alternativa à imposição da “Concordata
Soberana” pelo FMI. No entanto, como colocado no Encontro de Guayaquil, é
necessário aproveitarmos este momento de crise dos países latino-americanos para
aprofundarmos esta proposta e, assim, reivindicá-la.
[1] Economista – Auditoria Cidadã da Dívida
[2] Folder da Reunião de Guayaquil
[3] Idem acima.
[4] RED GUAYAQUIL (2002). International Workshop Memory. Foreign Debt: A Fair and
Transparent Arbitration Process. Guayaquil, Equador, p. 6.
[5] Idem acima, p. 8.
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A proposta de Guayaquil – Rodrigo Ávila