A VISÃO DE UM CIDADÃO COMUM XXV ( O Estado e a Saúde… ) Nuno Melo A semana passada foi marcada por mais uma contestação às políticas desastrosas do actual executivo, desta feita proveniente da classe médica que se traduziu em dois dias de greve. Esta jornada de luta por parte dos clínicos portugueses embora possa parecer idêntica reveste-se de dois factores que, para já, a diferencia das greves perpetradas por outros grupos profissionais: em primeiro lugar contou com o apoio inequívoco da população portuguesa e das associações utentes do serviço nacional de saúde (SNS) e em segundo lugar pela adesão de 95% dos profissionais (médicos) num sector onde tradicionalmente as greves se traduzem numa fraca adesão. Hoje tentarei esmiuçar ainda que muito ao de leve o que está na origem deste descalabro na saúde, peço desde já desculpa pela leitura que eventualmente se poderá tornar maçuda e um pouco confusa para muitos dos leitores (a saúde em Portugal é tudo menos transparente), mas que se reveste de extrema importância para todos nós. O sucesso desta greve assentou maioritariamente no excelente trabalho efectuado pela Ordem dos Médicos na preparação da mesma junto dos seus profissionais, mas também junto dos utentes explicando as razões do seu protesto que não se limitam ao foro estritamente profissional, i.e. carreiras, mas também pela degradação das suas condições de trabalho e na destruição gradual do SNS com vista à privatização total da saúde em Portugal. O serviço nacional de saúde, considerado exemplar e dos melhores a nível europeu, tem vindo a acumular uma divida astronómica junto dos seus fornecedores, dívida essa de tal forma elevada que leva o actual executivo a alvitrar que também o SNS será insustentável. Para compreender esta problemática do SNS e do seu endividamento é necessário recuarmos uns anos. Hospitais SA e Hospitais EPE: Há cerca de dez anos, com os custos da saúde a crescer - o que é facilmente justificável pelo envelhecimento da população e pelos avanços técnicos da medicina cujo desenvolvimento tem custos iniciais elevados – o Estado viu-se na necessidade de camuflar esses custos nos Orçamentos Gerais do Estado e nas contas nacionais de forma a poder cumprir o Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC). A forma inicial que o Estado criou para escamotear as contas públicas foi destacar as despesas da saúde criando os Hospitais SA, uma figura que transformava os hospitais centrais e distritais em sociedades anónimas. É claro que os hospitais SA de sociedades anónimas de nada tinham pois o único accionista continuava a ser o Estado Português que através de contratos programa (previstos no OGE) financiava os mesmos, mas sempre de uma forma deficitária em relação às suas reais necessidades, resultando o excedente nas dívidas que acumulavam (frutos dessa mesma subdotação) não transitavam para as contas do Estado de modo a pesarem no deficit, eram contabilizadas como dividas a fornecedores não do Estado mas sim dos ditos hospitais-empresas. No entanto a designação de sociedade anónima, escondia algo bem mais sinistro: abria a porta à privatização destes hospitais através da entrada de capitais privados no seu capital social o que constituiria o inicio da privatização total da saúde em Portugal. Mais tarde o executivo de José Sócrates altera a designação dos Hospitais SA para Hospitais EPE (Empresas Publicas Empresariais) que fecha a porta à privatização destes hospitais dado que de acordo com o artº 26 do Decreto-Lei 558/99, que regulamenta as EPE, estipula que o capital é detido pelo Estado ou por outras entidades públicas. Tirando este pormenor mantém-se o “esquema”: suborçamentação → subdotação → acumular de divida. Acresce que esta transformação também permitiu que se criassem inúmeros jobs for the boys nas unidades hospitalares, que se adoptasse um modelo de gestão empresarial virada única e exclusivamente para a redução de custos acéfala, com métodos de contabilidade criativas no que toca à realização de actos médicos que permitem cumprir os contratos-programa anuais entre o Estado e os Hospitais EPE. Feita a resenha histórica e explicada a razão da dívida na Saúde voltemos ao presente para analisar o protesto da classe médica - também ela conivente com a situação por via do seu silêncio ao longo desta década. Com a criação dos Hospitais SA, e posterior conversão em Hospitais EPE, as carreiras médicas foram congeladas, aos clínicos mais velhos foi dada a hipótese de se desvincular da função pública e assinarem um contrato contrato individual de trabalho mais vantajoso a nível remuneratório e aos clínicos que entretanto acabavam a sua especialização (entre 3 a 6 anos após o internato geral que se segue à licenciatura) o acesso ao exercício da profissão era conseguido única e exclusivamente através de um contrato individual de trabalho. Esta situação dos contratos individuais de trabalho, com remunerações (que variavam em função do espaço geográfico, especialidade, experiência do clínico e número de horas semanais) originou um mal-estar generalizado no sector pelas diferenças existentes que se traduziu em migrações de pessoal, reduções de horários e muitos abusos que enfraqueceram a qualidade do serviço prestado aos utentes do SNS. O actual executivo atento a este mal-estar generalizado viu aqui mais uma brecha para conseguir aquilo que os executivos anteriores não tinham: a redução dos salários da classe médica com a sua consequente fuga para o sector privado que poderia (e ainda pode) ser o calcanhar de Aquiles para a sobrevivência do SNS. No orçamento geral do estado para 2012 incluiu o seguinte antigo: Artigo 34.º Aplicação de regimes laborais especiais na saúde 1 — Durante a vigência do PAEF, os níveis retributivos, incluindo suplementos remuneratórios, dos trabalhadores com contrato de trabalho no âmbito dos estabelecimentos ou serviços do Serviço Nacional de Saúde (SNS) com a natureza de entidade pública empresarial, celebrados após 1 de Janeiro de 2012, não podem ser superiores aos dos correspondentes trabalhadores com contrato de trabalho em funções públicas inseridos em carreiras gerais ou especiais. 2 — A celebração de contratos de trabalho que não respeitem os níveis retributivos do número anterior carece de autorização dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da saúde. 3 — O regime fixado no presente artigo tem natureza imperativa, prevalecendo sobre quaisquer outras normas, especiais ou excepcionais, em contrário e sobre instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho e contratos de trabalho, não podendo ser afastado ou modificado pelos mesmos, e abrange todos os suplementos remuneratórios. Cuja tradução para nós leigos será algo do género: 1 - Os Hospitais EPE não poderão estabelecer contratos individuais com pessoal médico cujo valor exceda aquele que auferem os clínicos da carreira médica (congelada desde 2002) – 1830,00 euros brutos, 1.100,00 euros líquidos para 35 horas semanais. 2 – Para os amigos (boys) contactar o Dr. Paulo Macedo que irá articular com o Dr. Gaspar para que seja possível. 3- A legislação anterior não se aplica (leia-se queremos, podemos e mandamos). Escudados por este artigo e pelo actual executivo, as administrações hospitalares ansiosas por agradar à tutela rapidamente passaram a tentar contratar clínicos por 1.100 euros mensais, aqueles que já tinham contratos assinados com outros valores viram os seus salários reduzidos por via de cortes nas horas extraordinárias realizadas. O que à partida poderá parecer a qualquer um de nós uma medida de gestão eficaz (a redução de trabalho extraordinário) constitui na verdade um verdadeiro atentado à saúde e vida dos portugueses. Para ilustrar em que medida nos afecta passo a exemplificar com uma matemática elementar a situação de um serviço de um hospital central da área da Grande Lisboa: Serviço X do Hospital Y Meios médicos: 14 médicos Número de camas: 18 camas de internamento e uma unidade de cuidados intermédios com 6 camas para doentes graves. O hospital onde se insere tem uma urgência geral aberta (que inclui esta especialidade) e serve uma população de cerca de 600.000 habitantes. Situação até 01 de Janeiro de 2012: Dois médicos escalados diariamente para serviço de urgência. Médico I - 12 horas de serviço de urgência: observação de doentes de outros serviços quando solicitado e permanência na urgência geral. Realização de exames complementares urgentes Médico II - 24 Horas de permanência na unidade de cuidados intermédios com apoio ao serviço de urgência a partir das 20H00. Realização de exames complementares urgentes a partir das 20 horas. Situação actual: Um médico de serviço 12 H durante a semana e 24 horas ao fim de semana: observação de doentes de outros serviços quando solicitado. Assegurar a unidade de cuidados intermédios e serviço de urgência. Realização de exames complementares urgentes. Como não há lugar a horas extraordinárias temos: 35H-12H de serviço de urgência = 23 horas a repartir pelos restantes dias (não chega a 6 horas diárias para observar doentes internados, realizar consultas, realizar exames complementares de diagnostico). No caso dos clínicos com 22 horas semanais a situação ainda é mais critica: 22H-12H= 10H/4 dias – não chegam a 2,5 horas diárias! Em jeito de conclusão poderemos afirmar sem sombra de dúvida que poderá e terá que existir uma racionalização de meios e redução de custos, mas não pode ser feita à custa dos Portugueses e do SNS. Todos os casos terão que ser analisados individualmente, não podemos continuar a ter clínicos com 22H de trabalho semanal mas também não os podemos ter a 1100,00 euros mensais. O serviço nacional de saúde não é insustentável, aliás falar de saúde a nível privado em Portugal é ridículo pois as unidades privadas só sobrevivem graças às convenções existentes entre as mesmas e o SNS (ou com os subsistemas de saúde ADM, ADSE, SAMS). Se os clínicos que trabalham para o Estado, regra geral, são os mesmos que trabalham no dito sector privado e, se o sector privado prospera com as convenções contratualizadas com o estado porque não criar a capacidade instalada e excluir o intermediário “privado” da equação (poupando dezenas se não centenas de milhões de euros anualmente) e remunerar melhor quem efetivamente trabalha? Para terminar deixo-vos com uma perola “democrática” e com o sentido de estado que tão bem caracteriza o Sr. Primeiro-ministro. No último debate da nação quando confrontado com o facto de os Portugueses, e os médicos em particular, estarem a mostrar o seu descontentamento na rua Pedro Passos Coelho respondeu: “Senhor deputado, o estado da nação não se mede por o que se passa na rua, é medido pelo que se debate hoje nesta Assembleia (da República) ” Nuno Melo 16 de Julho de 2012