Eu não sei ter
Eu não sei ter
Marcelo Candido
Copyright © 2011 Marcelo Candido
Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma
sem a prévia autorização da Editora Livros de Safra.
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei n. 9.610/98 e punido pelo
artigo 184 do Código Penal.
Preparação: Maria Cecilia Caropreso
Revisão: Luis Dolhnikoff e Thaís Iannarelli
Capa: Adriana Melo - obra: Esperando você
acrílica sobre tela de Adriana Conti Melo 60 x 50 cm, coleção particular
Indorzinho: Adriana Conti Melo - sem título nanquim sobre papel
Foto do autor: Juliana Neumann
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Candido Marcelo
:
Eu não sei ter / Marcelo Candido - São Paulo
Virgiliae, 2011
1. Ficção Brasileira I. Título
11-05557 CDD-869.93
Índices para catálogo sistemático:
1. Ficção: Literatura brasileira 8693.93
um selo da:
Livros que fazem o tico, o teco
e a turma toda funcionar
A gente aduba, planta
e colhe palavras!
Livros de Safra
tel 55 11 3094-2511
www.livrosdesafra.com.br
Rua Simão Álvares, 663
cep 05417-030 São Paulo - S.P.
Ao José Candido que, apesar de egoísta com
os livros, como são os verdadeiros amantes,
me legou o desejo de permanecer entre eles.
Agradecimentos
À Adriana, primeira e mais próxima leitora. Sei que não
é fácil conviver com o homem e com o escritor, só não sei qual
deles é mais difícil, nem quem está mais próximo de você, de tão
juntos que somos.
À Ana Maria, pelo empurrão, sem o qual este livro, e os
outros, talvez não existissem.
À Anna, primeira leitora externa a se manifestar. Ao Ricardo, pela atenção na leitura e por suas sugestões mais do que úteis
que incorporei. À Tati, que, pega de surpresa, não se negou a falar
a verdade e também me apresentou a obra do Márai. À Cristina, à
Alessandra e ao Rogério, por suas opiniões. À Ciça, por ter tido a
paciência que muitas vezes me falta, aprendi no processo...
Uma dúvida eterna do ser humano,
ser fiel ao que passa ou ao que fica?
M. C.
Não tinha sequer uma pistola, mas eliminara a grande fraqueza da
existência, fizera desaparecer a primária fragilidade da espécie: não
possuía qualquer indicação para o amor ou para a amizade!
Gonçalo M. Tavares
um
O celular vibra no meu bolso esquerdo, me assusto. Estava
distraído, parado no semáforo, minha reflexão fora de lugar é interrompida. Já nem lembro a besteira que eu estava pensando ao
tentar enxergar dentro daquela Mercedes. Vidros muito pretos,
era uma mulher, o dourado do colar superava o filme protetor.
Raciocino depressa e decido que é melhor não ver quem está
ligando. O sinal já vai abrir, desde o acidente com a motoneta fiquei mais medroso com o trânsito maluco desta cidade. Quando
der vejo quem ligou, se for importante haverá recado. A opção
pela moto foi em favor do tempo, não em detrimento da vida.
O aparelho vibra de novo. Tentei preservar as pessoas à minha volta dos toques esdrúxulos dos celulares e acabei me condicionando. Ele se agita e eu me sinto um cão num experimento
de Pavlov. Mas a vida não é isso? Não estamos, afinal, nos ensaios
de algum cientista excêntrico, sem saber, a maior parte do tempo,
quem nos observa? Novamente, ainda no meio do experimento,
preciso agir, é a sujeição dos tempos, os chamados externos são
físicos, perseverantes. Já os internos clamam de forma sutil, se
bobear passam despercebidos. Deve ser urgente, é minha única
9
hipótese, então procuro um lugar onde parar e vejo uma grande
banca de jornal. A estrutura torta de alumínio ocupa quase toda a
calçada, aposto que de forma ilegal, e ela ainda consegue oferecer
um estacionamento aos clientes, num recuo do quarteirão, um
privilégio escasso nas metrópoles. São Paulo é isto, a evidência
das diferenças. Para alguns a sobra; para outros a falta, tudo embaralhado, sem a mínima preocupação de justiça.
Paro, tiro o capacete. Curioso, pego o celular no bolso e
vou para a relação das chamadas não atendidas. Quando vejo o
nome dela, instantaneamente me repreendo por ter esquecido
de deletá-lo dos meus contatos. Eu havia jurado não deixar um
vestígio sequer dela na minha vida.
Quatro ligações. Nessas horas é um saco andar de motocicleta. No carro também é contra a lei dirigir e falar ao telefone, mas basta dar uma olhada em volta para ver todo mundo
falando, todos cometem esses pequenos delitos, e dos grandes
uns poucos se salvam. Se é perigoso no carro, na moto é muito
mais, tentei e desisti, assumi que eu não tenho coordenação para
tanto, nem sempre um homem dá conta de tudo o que gostaria, essa é uma lição dura que o tempo impõe. Mas se eu tivesse
visto quem era, teria tido o impulso de atender ou não. Agora
me remoo, não quero romper a promessa feita de nunca mais
ligar para ela. A contabilidade desses pequenos fracassos parece
inofensiva como goles de saquê. Os dois enganam. Me sinto um
bosta quando me dou conta do estrago, das mínimas coisas que,
isoladas, são incapazes de causar algum dano, mas que, juntas,
aos poucos vão minando a autoestima.
O celular interrompe o pensamento pela quinta vez. Por um
rápido instante, o visor parece um espelho onde imagino poder ver
minha pele sofrendo um choque térmico. O gelo e a brancura do
10
susto inicial a abandonam e ela é instantaneamente dominada pelo
calor e pelo vermelho, aliados incondicionais da raiva ou da vergonha. Pareço um adolescente tímido e ruborizado que, ao ousar encarar a garota que cobiça, recebe dela um sorriso. Eu não precisava
olhar, sabia quem era. Fico parado por alguns segundos em oposição completa à minha turbulência interna, numa confusão mental
que resgata muito de desejo, amizade e culpa. Volto ao embate moral anterior, quando decidi me afastar completamente. Convicto de
que Ignorar é a opção adequada, aperto Atender.
Já soube o que aconteceu com o Gregório? Pare o que
estiver fazendo e me encontre no Santo Grão às três da tarde!
Por favor, preciso falar com você! Estou indo pra lá! Foi tudo,
nem perguntou se eu estava bem. Despejou aquilo como uma
resolução, de forma direta, mais forte, até autoritária, diferente
de como costumava falar comigo ou com os outros nos muitos
encontros da turma. Penso que as poucas ordens de uma mulher
quase sempre submissa devem ser acatadas.
Não tive coragem de dizer não nem Sua vaca!, e tampouco
todos os outros desaforos ensaiados de forma pouco educada para
serem berrados na cara dela, mas que só foram mesmo na minha,
por várias manhãs, diante daquele espelho estúpido, incorruptível, a
me insinuar Você não a esqueceu, não consegue... Quase debochando de mim. Por mais que eu tivesse a certeza de não querer olhar
de novo para ela, só eu sei o puta trabalho que tive durante aqueles
meses para não correr nenhum risco de um encontro casual.
Digo um ok inseguro, seco, e desligo. Ninguém se despediu, nenhum beijo foi mandado. Ela sabia que eu preferia o café
do Suplicy, mas não pensou em me agradar.
Não consigo me lembrar da tecla de atalho do escritório.
Se eu fosse obrigado a passar por um detector de sentimentos,
11
ele talvez não apitasse, mas até o operador mais distraído perceberia na tela de seu scanner Orgulho Ferido escondido no meu
coração de metal, colocado ali junto com moedas, o celular e as
chaves. Se me levassem para uma salinha de interrogatório e me
pressionassem, eu seria obrigado a confessar o despeito: Por que
ela não ligou para falar de nós? Começo a desconfiar de uma
nova enrascada, mas ainda assim me imagino caminhando para
ela com a serenidade temerosa porém verdadeira de um condenado ideológico, disposto a morrer por uma causa, entupido da
ilusão de estar servindo a algo maior.
Por fim me lembro do atalho, aperto o 1 e aviso minha
secretária da alteração da agenda: eu não iria para o escritório,
um imprevisto importante surgira.
12
dois
Foi difícil subir a rua Augusta, ora eram os carros me espremendo, ora um monte de cenas se chocando umas contras as
outras bem dentro da minha mente, aí dava vontade de agredir,
chutar os veículos, aceitar o rótulo de motoboy dado por aqueles
que dirigem sobre quatro rodas e não fazem distinção alguma,
apesar da scooter bacana e da mochila diferente, veem qualquer
um que esteja sobre duas como inimigo. Como quase sempre,
não fiz nada, me acertei com a raiva, dei um pedacinho dela para
cada órgão do meu corpo sem pensar que aquilo poderia ser
mais um componente de um câncer futuro.
Quem mora em um país civilizado – digo isto sem a certeza
de que exista um, em alguns momentos concluo, sem hesitar, que
seus habitantes são apenas pessoas mais reprimidas – prefere não
ver os contrastes dos lugares distantes, tende a não gostar de uma
cidade como São Paulo, prefere a beleza natural de um Rio de Janeiro. Esquece os morros e a vida das favelas, só enxerga o Cristo,
as praias, as bundas e o carnaval. Sim, o Rio de Janeiro é muito
mais bonito, mas é em São Paulo que a vida precisa ser descoberta,
uma cidade que não fica no raso, que pede que se mergulhe nela
13
sem água nem equipamentos, mergulho livre, ela exige fôlego,
controle emocional e oferece uma fauna vestida, fantasias de todo
dia enganando quem fica no primeiro olhar. Cidade feia privilegia
suas pessoas, é nelas que os olhos se distraem.
Quase zonzo, dei seta, encontrei um buraco entre dois
carros na rua Rio Preto, e a partir de então mais do que nunca
só conseguia pensar naquele rosto comprido, magro, no leve estrabismo dela. Como as mulheres estrábicas têm mais charme!
Deve ser porque despertam nos homens a possibilidade do não
enxergar direito, do fazer vista grossa às nossas ações. Os cabelos
pretos, sem tintura, ainda compridos, uma postura de desprezo
à ditadura imposta pela moda. Se eu me baseasse em seus cabelos,
poderia afirmar que ela não assistia a novelas, não cultuava celebridades. O melhor, porém, era a relação esquisita entre olhar
meio baixo e nariz meio alto, quase uma contradição, algo possível de ser lido como um pouco de timidez cercada de muita autoconfiança, que ela, porém, preferia não utilizar, mantendo-se
distante, despreocupada dos acontecimentos ao redor, deixando
para alguns a sensação de que se achava superior e, para outros,
a de ser ausente.
Ansioso, nem olho para a cara da pessoa que me recepciona. Escaneio o local com os olhos como um bicho que ainda
carrega uma mordida aberta e sangrenta recebida de um animal
mais forte do qual fugiu, e que agora está pronto e desesperado
para dar o bote num animal menor e garantir a comida do dia.
Ela ainda não chegou. Impaciente, quebro uma regra do meu
regime e peço um bloody mary, uma bebida que no mínimo
entrega minha idade de espírito, uma bebida sem a doçura dos
coquetéis de hoje, que não tenta encobrir o sabor da vida. Nos
dez minutos que o copo deve ter demorado para ser colocado
14
à minha frente, fiquei ali, abandonado, atônito, sem conseguir
fixar o pensamento em nada, numa confusão que já me cansava.
Lembrei do quanto já me escondi para encontrá-la; hoje não temia ser visto. Ela pediu o encontro e está atrasada.
A garçonete tinha um jeito tão esnobe que, enquanto a
avaliava, quase consegui relaxar. Odeio esse tipo afetada de atendente, elas pensam apenas num futuro brilhante e se esquecem
da dureza do momento, de que estão ali para servir, e não apenas
como peça decorativa do lugar, como atrativo extra para uma
clientela carente. Outro dia fiquei ouvindo uma conversa entre
duas delas. A que havia chegado atrasada, mesmo antes de se
trocar, relatava seu dia anterior, contando um encontro pessoal que se misturava com uma entrevista. Ela parecia estar mentindo. Sempre tomo por mentira o que as pessoas repetem com
uma pequena variação, quando contam duas vezes, quase num
reafirmar para si mesmas, a história em que precisam acreditar.
Ela ia fazer um teste para uma peça de um diretor descolado.
Também teria um bico numa festa. Talvez as mais bonitas só
consigam mesmo bicos como modelos; as mais ambiciosas buscam além, e muitas acabam na cama, iludidas por clientes. Os
homens devem ter o mesmo destino, porque não existe tanta demanda de arte num país dominado por novelas e reality shows.
Eu mesmo prefiro a comodidade sem muito questionamento,
deixar o tempo passar, ficar nas amenidades.
Aquela atendente diante de mim era bonita, usava uma camiseta apertada sem sobra de tecido suficiente para esconder os
dois bicos rijos, complementos de seus peitos pequenos, duros e
íngremes que não queriam passar despercebidos, contrastando
com o laranja do avental da casa. Nem perco tempo dando-lhe
uma cantada, não sou bom nisso. Prefiro não mentir num xaveco,
15
Se você gostou e quer continuar lendo este livro, pode
comprar seu exemplar diretamente com a editora ou então na
livrarias mais comprometidas com a difusão do livro e da cultura. Para comprar com a editora, digite:
www.livrosdesafra.com.br/2011/06/20/eu-nao-sei-ter/
Download

Eu não sEi tEr - Livros de Safra