73 Sertão de estrelas: A delimitação das latitudes e das fronteiras na América portuguesa Maria Fernanda Baptista Bicalho Universidade Federal Fluminense A cultura seiscentista, sob o aspecto da ciência e das técnicas, é caracterizada pelo sentido matemático, a ponderação e a mensuração exatas. Ailede-se o tempo; medese a luz; mede-se o espaço. Jaime Cortesão Resumo: Este artigo aborda a missão dos padres Diogo Soares e Domingos Capassi e o movimento de expansão e demarcação das fronteiras marítimas e geográficas do Novo Mundo, associando-os ao alargamento do conhecimento científico europeu. Trata-se da assimilação e transformação de saberes técnicos e conhecimentos empíricos, do encontro entre homens de ciência, pilotos e sertanistas, modificadores das fronteiras fisicas, políticas, econômicas e culturais. Abstract: The article enhances the mission of the priests Diogo Soares and Domingos Capassi as well as the movement towards the expansion and settling of maritime and geographic boundaries to tr-e "Nov~ Mundo", which were associated to the enlargement ofthe European scientific knowledge. It goes through the understanding and transformation of technical learning into empirical knowledge, throughout the gathering of scientists, pilots and "sertanistas", the physical, political, economical and social boundaries' transformers. Tanto os contemporâneos aos descobrimentos portugueses, quanto a historiografia dedicada ao tema são pródigos em mencionar os novos mares, ilhas e terras desvendadas por aqueles que se aventuraram nas viagens oceânicas no hemisfério sul. Alguns esqueceram-se, no entanto, de uma outra descoberta, tão ou mais importante que as marítimas ou as terrestres, por permitir o controle das rotas de navegação pelo Atlântico e Índico: a observação de novos céus e de novas estrelas. Mais do que ilhas, terras e mares, o conhecimento das constelações austrais abria aos europeus a perspectiva de um novo domínio, não apenas material, mas científico. A possibilidade de medição do espaço 74 através da observação da posição e da trajetória do Sol e das estrelas no firmamento permitia-Ihes localizar terras até então inatingíveis, além de guiar os navios em rotas mais seguras, de modo a que chegassem a salvo nas mais distantes, paradisíacas ou ameaçadoras paragens do globo. Pode-se portanto atri!:mir aos portugueses a inauguração de novos caminhos do pensamento científico, assim como foram responsáveis por mudanças e revoluções na técnica náutica e na arte de navegar. Na lida dos descobrimentos, a prática baseada na experiência de gerações de capitães, pilotos e mareantes, combinou-se ao conhecimento teórico e à atividade científica, difundindo a consciência do espaço terrestre e celeste e de seu valor geo-estratégico e político. A exploração da costa ocidental da África seguida do longínquo Oriente representou, para Sérgio Buarque de Holanda, uma vasta "empresa exorcística» levada a cabo pelos navegadores portugueses. À medida em que a expansão ia prosseguindo por mares e terras até então incógnitas, as miragens fabulosas e monstruosas típicas do medievo iam se apagando das imaginações, dos roteiros e dos mapas daqueles marinheiros. Seus relatos de viagens apresentavamse despidos de representações profundamente edênicas, baseadas na tradição do maravilhoso medieval. Eram, ao contrário, marcados por um "realismo comumente desencantado", voltado para o particular e o concreto, por "uma curiosidade relativamente temperada, sujeita, em geral, à inspiração prosaicamente utilitária". Baseavam-se no saber empírico regido pela experiência imediata, por uma espécie de "verismo naturalista", verdadeiro substrato da mentalidade lusa. De acordo com o historiador, "os olhos que enxergam, as mãos que tateiam, hão de mostrar-Ihes constantemente a primeira e última palavra do 1 saber." Assim, as descrições das viagens marítimas a partir do Atlântico vieram preencher novas funções e objetivos correspondentes a um modelo mental em mutação. Embora influenciadas por relatos de viajantes medievais, a literatura relativa aos descobrimentos foi sem dúvida portadora de uma certa ruptura com aquela visão. Revelou um olhar diferente, segundo o qual as maravilhas e singularidades foram descritas de par com os dados observados em primeira mão, solidarizando real e imaginário, casando gesta e fábula com fatos concretos, constituindo uma nova dialética nascida da intromissão de notícias e de realidades geográficas, astronômicas e etnográficas até então desconhecidas. Impunha-se um novo saber, cada vez mais baseado na experiência e apoiado na observação. Como afirma Michel de Certeau acerca do relato deJean de Léry sobre a América nos primórdios dos Quinhentos, as crônicas e os relatos de viagem "indicam uma nova relação, escriturária, com o mundo: são o efeito de um saber que 'pisa' e percorre 'ocularmente' a terra para construir nela a 1. HOLANDA, Sérgio Buarque de - Visão do Paraíso. Os Motivos Edênicos no Descobrimento e Colonização do Brasil, Rio de Janeiro,José Olympio, 1959, p. 7-14. 13. 75 representação. O processo fundamental dos tempos modernos, é a conquista do 2 mundo enquanto imagem concebida." Muito já se escreveu sobre o impacto dos descobrimentos na cultura e no saber 3 científico em Portugal Um destes saberes era o da astronomia. Já em fins do século XV os pilotos lusos mediam a latitude baseando-se no percurso do Solou da estrela Polar, diminuindo desta forma os riscos de navegação à longa distância em mar aberto. Pedro Nunes, matemático e cosmógrafo-mór do Reino, foi responsável pelos avanços da arte náutica lusitana num período de fértil inter-relação entre o saber teórico e a experiência empírica. Apresentou, em 1537, cálculos para a determinação das latitudes por alturas extrameridianas do Sol. Os métodos por ele descritos para a medição da declinação da bússola contribuíram igualmente para o aperfeiçoamento 4 das técnicas até então utilizadas, e logo se impuseram na marinharia quinhentista. Além disso os pilotos portugueses foram pródigos em fornecer, em seus relatos dos descobrimentos, descrições das constelações celestes; medindo e registrando, nas cartas que enviavam ao Rei, a latitude das regiões percorridas e alcançadas. Fora íntima a relação entre o descobrimento da terra de Santa Cruz, e uma observação mais sistemática das constelações do hemisfério austral, e particularmente do Cruzeiro do Sul. Ao mesmo tempo em que a carta de Pero Vaz de Caminha relatava as maravilhas naturais e chãs das terras recém-descobertas, Mestre João - fisico e astrólogo integrante da esquadra de Cabral - esmerava-se em fornecer ao Rei uma descrição celeste, ou melhor dizendo, cosmo gráfica, centrada no estabelecimento das latitudes medidas através da posição do Sol e do Cruzeiro do Sul. Esta constelação, conhecida dos antigos, sobretudo dos árabes, e descrita nos tratados medievais, foi pela primeira vez regularmente observada por pilot9s portugueses, vindo a substituir, abaixo do Equador, a estrela Polar, estrela-guia dos navegantes no hemisfério norte. Seu aproveitamento como base de medição das latitudes deu origem a um regimento que já aparece no Livro de Marinharia deJoão Lisboa, publicado em 1514, e em vários outros textos e cartas desenhadas ao longo 5 do século XVI. 2. 3. 4. 5. CERTEAU, Michel de - "Etno-Grafia. A Oralidade ou o Espaço do Outro: Léry" in A Escrita da História, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1982, p. 222. Cf, entre outros, DIAS, José S. da Silva - Os Descobrimentos e a Problemática Cultural do Século XVI, Lisboa, Editorial Presença, 1988; BARRETO, Luís Felipe - Caminhos do Saber no Renascimento Português, Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1986, e do mesmo autor, Os Descobrimentos e a Ordem do Saber, Lisboa, Gradiva, 1989; ALBUQUERQUE, Luís M. de - As Navegações e a sua Projeção na Ciência e na Cultura, Lisboa, Gradiva, 1987, e Introdução à História dos Descobrimentos Portugueses. (3ª ed.), Lisboa, Publicações Europa-América, 1986. ALBUQUERQUE, Luís M. de - "Sobre a determinação de latitudes no hemisfério sul, na náutica portuguesa do século XVI". Separata da Revista Portll,guesa de Históna, vol.lX, Coimbra, 1961. ALBUQUERQUE, Luís M. de - "As Inovações da Náutica Portuguesa do Século XVI". Separata de A Presença de Portugal no Mundo (Actas do Colóquio), Lisboa, 1982. 76 Não causa espanto que o registro e a descrição dos mares, das constelações e da posição geográfica das ilhas e territórios percorridos pelas expedições portuguesas tenha 6 representado a prova cabal de sua descoberta. Não raro os reis de Portugal reivindicaram o direito de posse e domínio de terras e mares nunca dantes navegados apoiando-se no pioneirismo de seus pilotos tanto na experiência náutica, quanto nas contribuições às ciências astronômicas. Foi o caso específico de D.João III que, em carta enviada em 1534 a Rui Fernandes, feitor em Flandres, sustentava a idéia de imperium e a defesa do mare clausum no conhecimento e na perícia de seus pilotos: "Os mares que todos devem e podem navegar são aqueles que sempre foram sabidos de todos e comuns a todos, mas os outros, que nunca foram sabidos nem parecia que podiam navegar e foram descobertos com 7 tão grandes trabalhos por mim, esses não." O domínio do saber astronômico possibilitava, portanto, a posse e o monopólio das rotas de acesso a lugares e regiões até então intangíveis. Se a medição das latitudes era relativamente fácil, o mesmo não acontecia com as longitudes. Teoricamente, estas se mediam pela diferença de tempo de um mesmo fenômeno astronômico observado de um lugar pré-definido de origem das longitudes, ou seja, do primeiro meridiano, e do ponto de vista do observador situado alhures em qualquer lugar do globo. Desde fins do século XV alguns navegadores tentaram utilizar o método dos eclipses lunares. Os resultados eram bastante falhos em termos de precisão, levando a erros grosseiros. Os grandes desvios provocaram não raro grandes desencontros, perda de naus que vagavam à deriva pelos mares, e trágicos naufrágios. Esta imprecisão possuía igualmente funestas consequências políticas e econômicas. Não obstante, já na primeira metade dos Seiscentos, Galileu formulou um princípio astronômico que levaria a uma solução muito aproximada para o estabelecimento das longitudes. Em 1610 observou os quatro primeiros satélites de Júpiter. Esse processo foi sendo progressivamente aperfeiçoado através da medição dos instantes dos seus eclipses. Ao mesmo tempo, pesquisas procuravam adaptar o relógio oscilatório às necessidades da navegação. Assim, já em inícios do século XVIII, uma medição bem mais aproximada das longitudes poderia ser feita através dos dois métodos: ou do cálculo da diferença das horas entre o lugar do primeiro meridiano (Paris ou Greenwich) e o lugar da observação que se fazia alhures, através da conservação do tempo pelo transporte do relógio; ou pelo processo astronômico, através da medição dos instantes dos eclipses dos satélites de Júpiter. 6. Esta é a tese muito instigante apresentada por SEED, Patricia - Cerimonies of Possession in Europe's Conquest of the New World (1942-1640). New York, Cambridge University Press, 1995, especialmente no capítulo dedicado às formas de posse dos territórios descobertos pelos portugueses, intitulado "'A New Sky and New Stars': Arabic and Hebrew Science, Portuguese Seamanship, and the Discovery of America", p. 100 -148. 7. Apud SEED, op. cit., p.102, nota 8. 77 A partir do primeiro quartel do século XVIII, com o aprimoramento destes dois métodos, tornou-se possível corrigir os erros mais grosseiros que deformavam as cartas geográficas anteriores, ou, segundo Jaime Cortesão, a fraude cartográfica relacionada com a precisão da linha de Tordesilhas e,por suposto, a afirmação da soberania territorial das potências ibéricas nos territórios americanos. A seu ver a história dos tratados de limites entre Espanha e Portugal, de Tordesilhas (1494) a Madri (1750), prende-se estreitamente a do problema das longitudes. A elas, e sobretudo à falta de precisão do traçado da linha de Tordesilhas, deveu-se igualmente a missão, na primeira metade do século XVIII, dos padres jesuítas Diogo Soares e 8 Domingos Capassi ao BrasiI. Desde a época dos descobrimentos, Portugal havia perdido a supremacia do saber geográfico e cartográfico para a Inglaterra ou França. Em 1720, Guilhaume Delisle, Cartógrafo do Rei de França, leu perante a Academia Real de Ciências de Paris sua dissertação intitulada Determination géographique de la situation et de l' étendue des dijjérentes parties de la terre. Segundo Cortesão, tratavase de obra revolucionária, "gigantesca tentativa de remodelação de toda a carta da terra, reunindo as alterações de posição 9 obtidas com as longitudes observadas por meios astronômicos". A dissertação de Delisle corrigia enfim a fraude cartográfica portuguesa que insistia em desviar o meridiano de Tordesilhas para oeste, dilatando os territórios lusos na América, subtraindo-os ao hemisfério espanhol. A notícia daquela obra não tardou a chegar ao Rei de Portugal, tendo-'lhe sido transmitida, em março de 1721, por D. Luís da Cunha. Em dezembro do ano anterior D.João V fundara a Academia Real da História Portuguesa que reunia alguns dos espíritos mais ilustrados do Reino, como Bartholomeu e Alexandre de Gusmão (este a partir de 1732), o Padre Raphael Bluteau, o Conde de Ericeira, Manoel de Azevedo Fortes (Engenheiro-móI' do Reino), e Martinho de Mendonça de Pina e Proença (que viria a ser governador de Minas Gerais no período de compreendido pela missão dos padres matemáticos naqueles sertões). Apesar de seu cariz aristocrático, a Academia representou o renascimento dos estudos históricos, geográficos e cartográficos em Portugal. Simultaneamente, D. João V adquiriu os melhores mapas e obras de cartógrafos, engenheiros e gravadores de seu tempo, mandou vir a Lisboa astrônomos estrangeiros, encomendou instrumentos matemáticos em Paris, fundou um observatório e ordenou o restabelecimento, em novas bases, da cartografia do Reino. Os problemas de soberania, quer em Portugal, quer em seus domínios ultramarinos, mormente na sua porção mais preciosa, ou seja, na América, foram 8. CORTESÃO,Jaime - Alexandre de Gusmão e o Tratado de jl;fadrid, Rio de Janeiro, Ministério das Relações Exteriores / 9. CORTESÃO, op. cit., p. 275. Instituto Rio Branco, 1961, especialmente Parte I, Tomos I e II 78 sem dúvida de terminantes para aquele renascimento científico. Segundo Cortesão, "D. João V convenceu-se de que para obviar as futuras alegações do governo espanhol, fundadas na situação do meridiano de Tordesilhas, era indispensável renovar, por meio de núvos métodos e, em especial da cultura astronômica, a 10 cartografia portuguesa, e dar base científica à sua diplomacia.” O papel de Manoel de Azevedo Fortes foi fundamental no seio deste processo. Desde 1721 o Engenheiro-Mór propunha-se a fazer o levantamento topográfico de Portugal. Em 1722 publicou o Tratado do modo o mais fácil e exacto de fazer as cartas geográficas, assim de terra como de mar, e tirar as plantas das praças. Em 1728 saiu a lume, de sua autoria, O Engenheiro Português, manual teórico e prático da engenharia militar em Portugal. Deu novo impulso às Academias Militares que, sob proteção régia, tornaram-se lugar obrigatório de formação de engenheiros, geógrafos e cartógrafos. Por elas passaram alguns dos futuros governadores de regiões fronteiriças da América portuguesa, como D. Antônio Rolim de Moura e Luís de Albuquerque Pereira e Cáceres que, além de governadores de Goiás e Mato Grosso, incentivaram expedições de exploração geográfica pelo interior do Brasil; e ainda José da Silva Paes, engenheiro e governador de Santa Catarina. Ao mesmo tempo em que investia na formação de quadros técnicos internos ao Reino, D.João voltava-se parq. a Itália em sua busca de matemáticos e astrônomos. A matemática era então uma ciência indispensável. Por ela se regulavam as "épocas e as medidas dos tempos; as situações geográficas dos lugares; as demarcações e as medições dos terrenos; as manobras e derrotas de pilotagem; as operações táticas de campanha, e da marinha; as construções de arquitetura naval e militar; as máquinas, fábricas, artificios e aparelhos que ajudam a fraqueza do homem a executar o que de outra sorte seria impossível às suas 11 forças." A opção pela contratação de especialistas na Itália, e sobretudo padresjesuítas, devia-se certamente à íntima conexão entre Portugal e Roma, e entre D.João e a Companhia de Jesus; ou mesmo à prudência daquele rei que, embora lhe fosse forçoso atrair cientistas, não os queria amealhar no perigoso epicentro das Luzes, ou se;ja, na França. Em 1722, ano da publicação da obra de Delisle, foram contratados dois jesuítas naturais de Nápoles, os padres matemáticos - como ficariam conhecidos 12 João Batista Carbone e Domingos Capassi. Chegados ambos a Portugal em 10. CORTESÃO, op. cit., p. 280. 11. Citado por DOMINGUES, Ângela - Viagens de Exploração Geográfica na Amazónia em Finais do Século XVIII: Política, Ciência e 12. O Padre Capassi nasceu em Nápoles a 29 de agosto de 1694. Foi admitido à Companhia de Jesus em 6 de março Aventura, Lisboa, Analecta Transmarina, Série Atlântica, N" 2, 1991, p. 25. de 1710. Ensinou Gramática e Humanidades. Contratado por Portugal, partiu para o Brasil onde iria falecer em 1736. (SOMMERVOGEL, Carlos (S.I) Bibliotheque de La Compagnie de Jesus, Tomo VIII, Paris / Bruxelas, Alphonse Picard / Oscar Schepens, 1898). 79 14. setembro daquele ano, o padre Carbone ficaria servindo em Lisboa, tendo adquirido o status de Matemático Régio. Em fins de 1729 o padre Capassi seria enviado ao Brasil 13 na companhia de Diogo Soares, jesuíta português, com a missão de traçar um Novo Atlas do Brasil, além de observar, por métodos astronômicos, as latitudes e longitudes de diferentes comarcas, cidades e vilas da América portuguesa, mormente daquelas integrantes da região centro-sul da colônia, entre o Espírito Santo e Minas Gerais e o Rio da Prata. Aos dois padres se deve o primeiro levantamento das latitudes e longitudes de grande parte daqueles domínios, conferindo uma base científica às pretensões do Rei de Portugal acerca dos limites territoriais entre os territórios pertencentes à duas metrópoles ibéricas. Fechava-se assim o cerco lusitano na atualização da cultura e dos estudos astronômicos e cartográficos já há muito em decadência na península. Os trabalhos de Azevedo Fortes no, Reino e dos padres-matemáticos na colônia complementavamse num esforço de dar um caráter científico à cartografia portuguesa, justamente num momento em que as luzes e a racionalidade dos franceses impunham-se sobre o pensamento escolástico ainda predominante Portugal. Mas num momento também em que urgia definirem-se as fronteiras e a soberania de ambos os países ibéricos na América. Em 1719 chegaram a Lisboa as primeiras notícias sobre as descobertas das minas Cuiabá. Ao lado da boa nova, aumentava o receio de mais um conflito com os súditos do Rei de Espanha, pois os descobridores haviam encontrado jesuítas espanhóis nas vizinhanças dos novos descobrimentos. O Conde de Assumar, então governador de Minas, escreveu em abril de 1719 ao ouvidor-geral, ordenando-lhe que encarregasse pessoa que "trouxesse uma exacta informação do país e da força dos lugares que ali têm os castelhanos". Uma provisão régia de agosto de 1920 determinava "pelo que respeita às novas minas, que se deva fazer no distrito delas povoação, para que, estabelecida ela, se possa embaraçar aos castelhanos ocupar 14 aquele distrito". Diferente era a situação das terras do Sul. Desde a fundação da Colônia do Sacramento em 1680, enclave português em pleno estuário do Prata, território que pelo meridiano de Tordesilhas pertencia à Espanha, a cidadela foi 13. Diogo Soares nasceu em Lisboa, a 16 de Janeiro de 1684. Entrou na Companhia de Jesus aos 17 anos, em 1701. Ensinou Humanidades e Filosofia na Universidade de Évora, e Matemática no Colégio de Santo Antão, em Lisboa. Em 1729, através do Alvará de 18 de Novembro, D.João V nomeou-o Geógrafo Régio no Estado do Brasil, determinando que ele, juntamente com o jesuíta italiano Domingos Capassi, partissem para aquelas bandas, onde deveriam fazer "mapas das terras do dito Estado não só pela marinha, mas pelos sertões". Diogo Soares passou do Rio de Janeiro ao Rio da Prata, e de São Paulo aos sertões das Minas e Goiás, anele viria a falecer em 1748. (LEITE, Serafim (S.L) - História da Companhia de Jesus no Brasil, voI. IX, Rio ele Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1949, p. 393). 14. Apud CORTESÃO, op. cit., p. 360. 80 alvo de um profundo litígio entre Espanha e Portugal. Tomada em 1705 pelos castelhanos durante a Guerra de Sucessão ao trono espanhol, foi restituída a Portugal devido às negociações entabuladas pelo Tratado de U trech (1713). Desde então, e por todo o século XVIII, constituiu-se em pomo de discórdia e disputa entre os dois países. A partir de 1725 os portugueses passaram a ocupar mais efetivamente o continente do Rio Grande de São Pedro. Território geo-estratégico do ponto de vista de defesa da região sul da América lusitana, uma vez que a sobrevivência da Colônia do Sacramento dependia de suas conexões com outros pontos de ocupação portuguesa, as paragens do Rio Grande poderiam tornar-se, por suas riquezas e possibilidades pecuárias, o complemento econômico das minas, fonte de fornecimento regular de gado e outros produtos. Poderiam também servir de barreira à expansão dos espanhóis pelas campanhas sulinas. Como afirma Renata de Araújo, discutindo a constituição do território luso na América, as "balizas, situadas no limite do confronto com a outra nação estabeleceriam o território por oposição e por continuidade, sendo este não apenas o espaço que correspondia à soberania de cada núcleo, mas o espaço entre os núcleos criados. Assim o território não é só referenciado a partir do seu limite exterior, a partir da linha imaginária que o fez surgir, mas é conceitualmente concebido como um espaço que se define tanto pelo seu contorno como pelas suas 15 interligações." A fronteira entre os territórios dos países ibéricos na América era pois, à época da missão dos padres matemáticos, ainda uma raia fluida, condicionada à progressiva ocupação do espaço. Do tratado de Tordesilhas ao de l\IIadri, apenas uma linha virtual- e constantemente desrespeitada - norteava a priori a definição dos limites entre as possessões portuguesas e hispânicas. Mais do que a concretude da ocupação do espaço que levasse à negociação da soberania territorial, os vastos sertões americanos não eram mais do que uma grande e indefinida fronteira: "a fronteira-zona, caracterizada pelo espaço fluido de trocas comerciais e humanas, e pela relativa indefinição da soberania sobre o território faz parte da vivência da região e convive, a vários níveis, com a formação da fronteira-linha, permanecendo inclusive, 16 sob certos aspectos, encapotada por esta." Aliás, ainda naqueles tempos, vários eram os sentidos da palavra fronteira. Ao longo da Idade Média, em Portugal, ela era pouco usada, ao contrário de termo, extremo, ou raia. A partir do século XIV a palavra fronteira foi assumindo, cada vez com mais frequência "a noção de um espaço fraccionado e não homogêneo (partidas), com a acepção primitiva de frente ou zona de 15. ARAÚJO, Renata Malcher de - A Urbanização de Mato Grosso no Século XVIII. Discurso e Método, Lisboa, Tese de Doutorado a ser apresentada à Faculdade de História da Arte da Univer. sidade Nova de Lisboa, 1999 (mimeo), capo I, p. 26 16. Idem, p. 31. 81 combate (frontaria) e, finalmente, talvez um esboço de oposição entre o corpo do reino 17 e as suas zonas periféricas (estremo)." Segundo o Elucidário das palavras, termos e frases que em Portugal se usaram..., a palavra fronteira designava uma "expedição militar, guerra ou campanha que se fazia no limite, raia ou fronteira de algum reino, ou província beligerante e comarcã, sem mais destino que conter-se na defensiva e impedir que o inimigo se adiantasse fora das suas terras ,fazendo nas alheias alguma conquista, 18 roubo ou dano." Portanto fronteira aqui não diz respeito a um limite preciso, a uma linha demarcatória, a uma raia ou divisão. Ao contl'ário, ir em fronteira era o mesmo que ir em expedição, geralmente expedições armadas, com objetivos exploratórios, de 19 conquista. É neste contexto de expansão territorial e de necessidade de bases científicas para as negociações diplomáticas dos limites da soberania lusa na América, que se insere a missão dos padres matemáticos. O alvará que nomeou os dois jesuítas, determinava que partissem rumo ao Brasil, com o objetivo de "fazerem-se mapas das terras do dito Estado, não só pela marinha, mas pelos sertões", para "se evitarem as dúvidas e controvérsias que se têm originado dos novos descobrimentos que se têm feito nos sertões daquele Estado de pouco tempo a esta parte", e para que "melhor se conheçam os distritos de cada bispado, governo, capitania, comarca, e doação". Ao mesmo tempo conclamava as diversas autoridades na colônia a lhes darem toda ajuda 20 e favor no que fosse preciso. Os dois jesuítas-matemáticos saíram de Lisboa em direção ao Rio de Janeiro, de onde, a 4 de julho de 1730, o padre Diogo Soares informava ao Rei que, durante a sua estada naql1ela cidade, já havia "sondado, e riscado, todo este grande recôncavo, e suas ilhas, que são inumeráveis; visitado, medido e feito plantas de todas as suas fortalezas". Enviava a derrota de sua viagem, "com a vista desta Barra e de todas as mais Ilhas, que nela avistei e delineei, para cômodo e utilidade dos Pilotos, que navegam para esta América". A 27 de julho de 1731 voltaria a escrever a D. João V, desta feita da Colônia do Sacramento, dizendo-lhe que embora sua intenção fosse passar do Rio diretamente às Minas, dirigiu-se primeiramente àquela Colônia, "não só a ver e a . delinear em melhor forma a sua povoação, mas considerar o modo de cingir a cidadela com nova muralha". Nesse sentido tirou a planta da fortaleza, medin- 17. GOMES, Rita Costa - "A Construção das Fronteiras", in BETHENCOURT, Francisco e Diogo R. CURTO (orgs.) - A Memória da Nação. Lisboa, Livraria Sá da Costa Ecl., 1991, p. 360. 18. 19. apud ARAÚJO, op. cit., p. 29. Ver, para uma discussão dos significados e da expansão das fronteiras setentrionais do Brasil, GOMES, Flávio (org.) - Nas Terras do Cabo Norte: Fronteiras, Colonização e Escravidão na Guiana Brasileira (Séculos XVIIIXIX), Belém, FUNDECAP, 1998. 20. LEITE, op. cit., p. 130. 82 do todo o seu terreno, anotando o número de famílias e casais ali residentes, riscando então uma nova fortificação. Levantou também as medidas do recôncavo e das ilhas e campanhas adjacentes. Para tanto se valeu não de sua própria observação, mas de manuscritos dos melhores pilotos e práticos experimentados na navegação do Rio da Prata, que somavam mais de 30 diferentes viagens, não desprezando as cartas francesas, espanholas e inglesas. De todas elas formou o seu próprio mapa, que 21 remetia então à Portugal. Considerava aquela Colônia a "mais preciosa e necessária" das muitas possessões portuguesas na América. Isto porque "do Rio Grande e seu sertão, cuja povoação não seria de menos glória para Deus, que de crédito, conveniência e aumento dos domínios de V. Majestade nesta América, principalmente quando se pode temer que, desamparada pela barra e aberto os dois caminhos, que se abriram agora nela, tenha a Espanha e os padres das Missões uma porta para se introduzirem nos nossos sertões e Minas; além do que fortificando aquele rio, terá esta Praça mais prontos, e mais à mão os subsídios; e crescerá, com a comunicação, o comércio, e 22 com a extração dos frutos, os negócios e as alfândegas." Duas portas, dois caminhos, a barra e o sertão. Pivô principal das disputas pela soberania dos países ibéricos em território americano ao longo do século XVIII, aquele vasto continente do sul, da Colônia do Sacramento ao Rio Grande, não tinha apenas interesse erp. si próprio, mas constituía-se igualmente em porta ou chave dos sertões mineiros. Marinha e sertão complementavamse na construção do território e da soberania portuguesa na América. Ainda no século XVII, o Padre Simão de Vasconcelos dizia que os rios Amazonas e Paraguai eram as "duas chaves de prata que fecham o Brasil", ou os "dois gigantes que a defendem (a fronteira) e a demarcam 23 entre nós e Castela". Segundo Sérgio Buarque de Holanda, "que os portugueses pretendessem para sua Coroa a maior extensão possível da costa é indiscutível. Já se viu como os seus cartógrafos e geógrafos traçavam a linha de Tordesilhas de maneira a não tocar apenas nos estuários como a cortar claramente o curso do Amazonas e o 24 do Prata." apud AL V ARENGA, Luis de Mello - "Notícia 4" Prática da Coleção Pe. Diogo Soares e o SargentoMór José Mattol. São João deI Rei, 19/10/1981". (IHGB, Lata 589, Pasta 19). 22. Idem. 23. apud ARAUJO, op. Cit., p. 19. 24. HOLANDA, Sérgio Buarque de - "Um Mito Geopolítico: A Ilha Brasil" in Tentativas de Mitologia, São 21. Paulo, Perspectiva, 1979, p. 81. Neste ensaio, Sérgio Buarque discute a visão de Cortesão em trabalho diverso do que vem sendo citado aqui, e contesta a afirmação deste autor de que a expansão bandeirante teria se inserido "em uma espécie de programa deliberado, explicável por considerações geo-políticas". Coloca-se contra o "intencionalismo na história da conquista do sertão" e a fabricação por viajantes e cartógrafos lusitanos quinhentistas do "mito da Ilha Brasil", ao procurarem apresentar em seus relatos e mapas uma "entidade geográfica brasileira" perfeitamente definida, denotadora de que se encontravam, 'já àquele tempo tão impregllados da noção moderna das "fronteiras naturais". 83 Com um forte conteúdo simbólico, o termo sertão representava um território ambíguo e liminar, tributário do deserto ou da floresta na tradição do Ocidente medieval. Segundo Jacques Le Goff, à medida em que tais territórios iam sendo desbravados e ocupados presenciava-se uma mutação em seus significados, que passavam de espaços prenhes de alegorias e visões paradisíacas - atraentes Eldorados pela promessa de riquezas incomensuráveis - a fonte de medo e representação da barbárie-verdadeiro 23 "deserto institucional" Aqueles sertões americanos - territórios sem fronteiras - apareciam recorrentemente . na documentação dos séculos XVII e XVIII quer como promessa de riquezas e de metais preciosos, quer como fonte de desassossego, como espaço da desordem, do vazio de autoridade. Impunha-se, portanto, por ambos os motivos, desbravá-Ias, incorporá-Ias, colonizá-Ios. E nesse sentido resgata-se a primeira acepção do termo fronteira. Inúmeros eram os sertanistas que partiam em fronteiras - ou mais comumente em bandeiras - pelos sertões a dentro, para o seu desbravamento, domesticação e incorporação. Assim que chegara ao Rio de Janeiro, proveniente de Lisboa, na primeira carta que escrevera ao. Rei, o padre Diogo Soares dizia-lhe ter recebido "uma grande cópia de Notícias, vários Roteiros e Mapas dos melhores sertanistas de São Paulo, e Cuiabá, Rio Grande, e da Prata, e vou procurando outras a fim de dar princípio a alguma carta, porque as estrangeiras andam erradíssimas, não só no que toca ao Sêrtão, mas ainda nas Alturas e Longitudes, de toda esta costa, se não falham as nossas observações, as quais determinamos ratificar antes 26 que deixemos este Rio, passando a Cabo Frio." Estas Notícias Práticas compreendem uma gama riquíssima de roteiros, descrições de caminhos, relatos de descobrimentos, enfrentamentos com índios, negros aquilombados, intempéries ela natureza, provações, dificuldades, etc. Algumas são bem descritivas e geográficas, como a Notícia 7ª Prática, e roteiro verdadeiro das Minas de Cuiabá, e de todas as suas marchas, cachoeiras, e itaipavas, varadouros) e descarregadores de canoas, que navegam para as ditas Minas, com os dias de navegação, e travessa, que costumam Jazer, por mar e terra... , de NIanuel de Barros. Outras são relatos de bandeiras e expedições, como aquelas do Alferes José Peixoto da Silva Braga, ... do que passou na Primeira Bandeira, que entrou ao descobrimento das 25. L.E GOFF, Jacques - "O Deserto-Floresta no Ocidente Medieval" in O Alaravilhoso e o Cotidiano no 26. ALV ARENGA, op. cit.; e CORTESÃO, op. cit., especialmente o capítulo "A Missão dos Padres Ocidente Medieval, Lisboa, Edições 70, 1985. Matemáticos no Brasil", no qual se encontra uma listagem de todas estas Notícias Prácticas, além dos planos, mapas e cartas traçados pelos dois jesuítas. O original destas Notícias encontra -se na Colecção do Padre Diogo Soares... , depositada na Biblioteca Pública de Évora, códice CXVI / 215, 1 vo1. 4". Elas foram transcritas por Varnhagen e publicadas na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Tomo LXIX, Parte I, Rio de] aneiro, Imprensa Nacional, 1908. Os mapas desenhados por ambos os padres encontram-se hoje no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa. 84 Minas do Guoyses até sahir na Cidade de Belém do Grão-Pará. Ou ainda informações históricas, como a 3 a Notícia Prática que dá o Mestre de Campo José Rebello Perdigão que se dizia "habitador dos mais antigos destas Minas" - sobre os primeiros descobrimentos das Minas Gerais de Ouro, com detalhes da formação político-administrativa da capitania. A partir destas notícias e do que Cortesão chamou de "cartografia espontânea dos sertanistas", os padres matemáticos teceram seus mapas e cartas geográficas. Segundo aquele autor, "lusos e lusos-brasileiros, igualmente dotados dum agudo sentido do espaço, elaboraram muitas cartas, das quais a grande maioria se perdeu e de cuja existência temos notícia apenas por documentos escritos. Comandantes de tropas, a q!1em as obrigações militares forçavam a grandes deslocamentos, sertanistas, cujas atividades múltiplas alargavam a muito vastos territórios o raio de ação, e mineradores nômades, por necessidade ou 27 ambição, se entregaram a esta tarefa" Por outro lado, parte destas cartas baseava-se em informações fornecidas por índios, antigos habitantes daqueles sertões. Como concluíra Cortesão, "mais uma vez, como tantas sucedera na história do Brasil, o Português dava sentido político ao maravilhoso sentido topográfico dos índios, talhando com seus informes as pedras do edificio do 28 Estado." A partir destas informações amealhadas pela experiência de índios, sertanistas e colonizadores, os padres matemáticos desenharam um grande número de cartas geográficas do Brasil, em colaboração ou separadamente, e confeccionaram a Tabuada das latitudes dos principais portos, cabos e ilhas do mar do sul na América austral e portuguesa pelos padres Diogo Soares e Domingos Capaci, matemáticos régios no 29 Estado do Brasil. Porém o cálculo das longitudes, ao contrário do que determinava a razão - e de acordo com a precaução e a necessidade de se manter segredo, sobretudo em relação aos espanhóis - fora feito tomando como parâmetro não o meridiano de Paris, como era então de praxe e procedimento reconhecido em toda a Europa, mas, ao contrário, o meridiano do Rio de Janeiro, dificultando assim a sua leitura e tradução. Portanto, assim como nos primórdios dos Descobrimentos a expansão das fronteiras marítimas e geográficas do Novo Mundo significou o alargamento das fronteiras técnicas e científicas do saber europeu; nos séculos seguintes, o adentramento dos sertões americanos e, seguindo-se a este movimento, a busca de delimitação das bordas territoriais entre as colônias ibéricas atualizaram um novo tipo de encontro, de troca, de assimilação. Processo este que resultou na construção de novas fronteiras, fisicas, políticas, econômicas e culturais. 27. CORTESÃO, op. cit., p. 492. 28. Idem, p. 366-367. 29. FUNDAÇÃO João Pinheiro. Códice Costa Matoso. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, CEHC, 1999. Doc. 1, p. 159-166. 85 Referências bibliográficas ALBUQUERQUE, Luís Mendonça ele - Sobre a Determinação de Latitude no Hemisfério Sul, na Náutica Portuguesa do Século XVI. Coimbra, Separata da Revista Portuguesa de História, V 01. IX, 1961 . ______________________________________Introdução à História dos Descobrimentos Portugueses. (3ª ed.), Lisboa, Publicações Europa-América, (1986?) ___________________________________- As Navegações e a sua Projecção na Ciência e na Cultura. Lisboa, Gradiva, 1987. ______________________________- As Inovações da Náutica Portuguesa do Século XVI. Lisboa, Separata de presença de Portugal no Mundo (Actas do Colóquio), 1982. HOLANDA, Sérgio Buarque ele - "Um Mito Geopolítico: A Ilha Brasil" in Tentativas de A1itologia, São Paulo, Perspectiva, 1979, p.6l-84-. 86 Os caminhos da memória: paulistas no Códice Costa Matoso John Manuel Monteiro Departamento de Antropologia - IFCH / Unicamp Resumo: Este artigo aborda um grupo de memórias sobre o descobrimento aurífe-ro em Minas Gerais, tomando o padrão estrutural das expedições sertanistas, as ambiguidades e assimetrias nas relações entre paulistas e índios e a fixação de memórias de sertanistas como elernentos utilizados para elaborar a caracterização e identidade dos paulistas. Abstract: The article focuses on a group of memories related to the gold discovery in Minas Gerais. It regards the structural standards of the hintcrland expeditions, ambiguities as well as asymmetries in the relationship between Paulistas and Indians, and also the sertanistas' memories as a pattern to establish elements to set up the Paulistas' characterisation and identity. Fonte tão notável quanto insólita, a "Coleção das Notícias dos Primeiros Descobrimentos das Minas na América" I traz, entre outros atrativos, informações e opiniões esclarecedoras sobre o processo de transformação das Minas Gerais de um sertão inculto a um dos núcleos mais importantes da América portuguesa. Ao recopilar este dossiê durante sua gestão como Ouvidor Geral em Ouro Preto, Caetano da Costa Matoso visava estabelecer um registro oficial dos fatos e dos eventos que marcaram as origens das minas. À primeira vista, foi motivado tanto pela própria curiosidade intelectual quanto pelo desejo de comprovar a legitimidade do domínio português sobre as minas de ouro não só das Gerais como também de Goiás e Mato Grosso, nessa conjuntura de negociações sobre os limites da América meridional. Mais importante, porém, a "Coleção das Notícias" buscava criar subsídios para uma história do triunfo da ordem e do bom governo na consolidação da América portuguesa. Um dos aspectos mais fascinantes do Códice Costa Matoso reside no uso de reminiscências de alguns dos primeiros povoadores, já idosos, cuja memória proporcionava o único registro possível destes tempos cada vez mais remotos, 1. FUNDAÇÃO João Pinheiro. Códice Costa Matoso. Belo Horizollte: Fundação João Pinheiro, CEHC, 1999. Formam a "Coleção de notícias" os documentos 2 a 15, pp. 166-295. 87 antes do estabelecimento da ordem e da justiça. Personagens secundários ou mesmo figurantes anônimos, estes velhos povoadores relataram o que viram e o que ouviram talvez com destaque para o segundo - numa prosa fluente e agradável, mesclando fatos corriqueiros com detalhes saborosos, alternando entre uma narrativa seca e pequenos vôos literários, bem ao gosto do ouvidorintelectual que coletava os depoimentos. Este recurso de transformar a memória oral em registro escrito constituia, por seu turno, um método bastante comum entre os memorialistas e genealogistas do Setecentos, cujas obras começavam a adensar o conhecimento histórico a respeito da presença portuguesa na América. Com referência à história de São Paulo, a memorialística da "Coleção das Notícias" antevê diversos temas que seriam desenvolvidos mais plenamente pelo genealogista Pedro Taques de Almeida Pais Leme e pelo frei Gaspar da Madre de 2 Deus, no último quartel do século XVII Tomando este ponto de partida, o que se pretende aqui é explorar estas narrativas no que diz respeito à caracterização dos paulistas. Briosos, altivos, pouco polidos - para não dizer meio selvagens -, os paulistas emergem nestas narrativas primeiro como eximios sertanistas, responsáveis pelas expedições que resultaram nas descobertas de ouro, porém também como opositores renitentes da autoridade externa e, por fim, protagonistas de um episódio - mais adiante batizado de "Guerra dos Emboabas" - que aparece aqui como uma espécie de divisor de águas na história primordial de Minas Gerais. Num plano mais geral, entretanto, os paulistas parecem representar um tempo que já havia passado, tempo este visto com nostalgia por uns, com escárnio por outros. Muito embora as práticas sertanistas continuassem a vigorar em outros sertões por muito tempo ainda, na ótica mineira de meados do século XVIII claramente figuravam como coisas do passado, pertencentes a um tempo difuso e desordenado, que se contrasta, nas . narrativas, com o tempo das Minas, que é marcado com precisão e ordem pela cronologia dos governantes. 15. 2. Em seu estudo intradutório na Nobiliarquia de Pedra Taques, Manso de Escragnolle T aunay traz uma discussão interessante cios informantes do genealogista. Pedra Taques de Almeida Pais Leme, Nobiliarquia Paulistana Histórica e Gellealógica, org. A. E. Taunay, 3 voIs., São Paulo e Belo Horizonte, Edusp/Itatiaia, 1980 (série Reconquista do Brasil, 11.5., 5-7), voI. I, pp. 37-69. Devese sempre lembrar, contudo, que várias clestas obras - como o próprio dossiê de Costa Matoso só chegariam ao prelo anos depois, embora circulando de forma restrita em cópias manuscritas no período em que foram escritas. 88 Sertão dourado Ao longo das páginas do Códice Costa Matoso, a reconstituição do tempo do sertanismo ressalta, em primeiro lugar, o espírito aventureiro e a aspereza da vida no mato, elementos centrais na construção de uma imagem do caráter dos paulistas. Vários sertanistas oriundos de São Paulo, como se sabe, penetraram aqueles sertões bem antes das descobertas auríferas da década de 1690. As diversas narrativas que compõem a "Coleção das Notícias" documentam, de forma expressiva, as características mais marcantes do sertanismo paulista, mostrando como os descobrimentos foram diretamente decorrentes destas atividades. Assim, logo no início das "Notícias", na narrativa de Bento Fernandes Furtado, explica-se que Antônio Rodrigues de Arzão, "homem sertanejo, conquistador do gentio dos sertões da Casa da Casca", estava "aquartelado" naquelas paragens junto com outros paulistas, "onde faziam entradas e assaltos ao gentio mais para o centro do 3 sertão" A vida no sertão não era nada fácil, sobretudo quando a expedição se deparava com "grandes perigos do gentio, fomes e esterilidades", como relatam as "Notícias", ou com as "frechas, feras e febres" da frase memorável de Sérgio 4 Buarque de Holanda. As adversidades apresentadas pelo sertão servem, neste e em outros relatos, como pedras fundamentais na construção de uma identidade paulista. As "cinquenta e tantas pessoas" do grupo de Rodrigues de Arzão, composto de brancos e carijós domésticos - isto é, índios sob a administração particular dos mesmos brancos - encontravam-se "nus e esfarrapados, sem pólvora nem chumbo, que é o único remédio com que os sertanistas socorrem as faltas de víveres, com a grande inteligência e trabalho que aplicam caçando as aves e feras 5 do sertão para se sustentarem". Das dezenas de expedições de apresamento que pontuaram o século XVII, várias delas atravessando os sertões que posteriormente seriam terras mineiras, uma delas recebe uma atenção especial nos relatos da "Coleção das Notícias": trata-se da grande aventura de Fernão Dias Pais, que se internou no sertão do Rio 6 das Velhas entre 1674 e 1681. Pode-se perguntar por que a expedição 3. FUNDAÇÃO João Pinheiro. Códice Costa Matoso. Belo Horizonte: Funelação João Pinheiro, CEHC, 1999. 4. Sérgio Buarque ele Holanela, Caminhos e Fronteiras, 3a. ed., São Paulo, Companhia elas Letras, 1994. 5. FUNDAÇÃO João Pinheiro. Códice Costa Mataso. Bdo Horizonte: Fundação João Pinheiro, CEHC, 1999. 6. A bandeira de Fernão Dias Pais tem sido objeto de inúmeros estudos. No que diz respeito à discussão p. 169. p. 170. aqui, para além da historiografia convencional paulista, poele-se destacar os artigos de Manuel Cardozo, "Dom Rodrigo de Castel-Blanco and the Brazilian El Dorado", The Americas, I (2), 1944 e "The Last Adventure of F ernão Dias Pais (1674- 1681)", Hispanic American Historical Reuiew, 26, 1946; e Eduardo Canabrava Barreiros, Roteiro das Esmeraldas, Rio ele Janeiro, José Olympio, 1979. 16. 89 de Fernão Dias Pais não antecipou o descobrimento aurífero, já que passara quase dez anos rondando as zonas que, pouco depois, renderiam tanto ouro. Uma resposta está nos documentos da segunda metade do século XVII: obcecados com a prata e com pedras preciosas, mal mencionam o ouro, a não ser em relação às minas de Paranaguá, que alimentavam as esperanças (porém não os cofres) da coroa nos anos que sucederam à Restauração. O sonho do morro resplandescente - o Sabarabuçu ou Itaberaba-açu - prometia aos aventureiros e 7 administradores régios, desde o século XVI, um verdadeiro Potosí lusitano. Nunca antes parecia estar tão perto quanto na expedição de Fernão Dias. Entretanto, a exemplo das investidas anteriores, como a de Marcos de Azeredo, os resultados mostraram-se pífios. A prata não existia, apesar das informações algo misteriosas deixadas por Azeredo, e quanto às esmeraldas, Fernão Dias parece ter sido enganado pelas mesmas turmalinas verdes que seu antecessor 8 havia enviado para Lisboa por volta de 1611. Do ponto de vista mineralógico, todos os esforços e sofrimentos de Fernão Dias e seus seguidores somavam a um punhado de pedras coloridas remetidos a Rio de Janeiro em um "saquinho de 9 chamalote". No que diz respeito ao ouro, contudo, é dificil acreditar que as várias expedições que varriam esses sertões ao longo das décadas de 1640 a 1690 não tivessem reparado na sua existência. Um indício da sua circulação em São Paulo antes do descobrimento formal- isto é, quando Cados Pedroso da Silveira avisou ao governador Castro Caldas em 1694 - está no inventário do comerciante português Gonçalo Lopes, falecido em 1689, deixando um espólio superi or a 12 contos de réis, incluindo mais de 6 contos em dinheiro amoedado e 207 oitavas de ouro em pó. Poucos anos antes, num atestado passado pela Câmara 7. Em reação à crise fiscal e monetária que se abateu após a Restauração, esta mesma meta também foi perseguida em outras partes do mundo português, em especial na África meridional. A melhor obra a respeito continua sendo C. R. Boxer, Salvador de Sá and the Strugglefor Brasil and Angola, 1602-1686, Londres, Athlone, 1952 (traduzido para o português pela Cia. Editora Nacional e Edusp, 1973). 8. As informações sobre a expedição de Marcos de Azeredo são muito sumárias na bibliografia. Ver, por exemplo, Francisco de Assis Carvalho Franco, Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil, São Paulo, IV Centenário, 1954, s.v. Azeredo, Marcos de; e Cardozo, " The Last Adventure of Fernão Dias Pais". Pedro Taques, Nobiliarquia, traz pormenores que são dificeis de verificar. Por exemplo, diz que Azeredo, "recolhido ao Rio de Janeiro quis antes morrer em uma cadeia e sequestrados todos os seus bens do que declarar o sítio onde tinha achado as esmeraldas e prata" (vol. 2, p. 45). Mais adiante, se contradiz afirmando que Azeredo "no mesmo sertão perdeu a vida com todos os do seu troço", porém antes teria deixado "um roteiro dajornada que seguira, figura da serra, e altura dos graus deste sítio no inculto sertão e reino dos bárbaros gentios Mapaxós" (vol. 2, p. 197). Estaria Taques confundindo este roteiro com o de Wilhelm Jost Ten Glimmer, divulgado primeiro por Samuel Purchas em 1625 e depois por Maregrav em meados do século XVII? 9. Pais Leme, Nobiliarquia, vols. 2, p. 199. 90 Municipal de Parnaíba, este mesmo comerciante figurava entre os principais 10 credores de Fernão Dias Pais. Uma segunda explicação para o pouco caso que os sertanistas de São Paulo faziam do ouro que por ventura encontrassem reside no objetivo maior de todas estas incursões pelas matas. Estas buscavam uma outra fonte de riqueza: o "ouro vermelho" do conhecido comentário de Antônio Vieira, referindose ao sangue dos índios. Segundo outro jesuíta, Andreoni, os paulistas não exploraram o ouro antes "porque o gênio de buscar índios nos matos os desviou desta diligência 11 menos escrupulosa e mais útil". Para o narrador anônimo das "Notícias do que ouvi sobre o princípio destas Minas", percorriam os leitos dos rios, os campos e as serras para "apanharem gentios para se utilizarem deles, e repartirem entre todos o 12 número deles". Assim, os paulistas traziam ao descobrimento das minas e ao subseqüente conflito com os emboabas vivos vestígios desta organização sertanista. Esta continuidade da empresa do sertão, por assim dizer, se mostra em diferentes detalhes mencionados nos relatos. Assim, por exemplo, respondendo ao chamado de seu cunhado, Bartolomeu Bueno "se armou" para ir ao sertão, o que significava mais do que juntar espingardas, pólvora e chumbo: refere-se à "armação", termo corrente na segunda metade do século XVII para descrever a organização das expedições de apre~amento, onde um "armador" fornecia materiais e mesmo gente 13 para () empreendimento, esperando em retorno metade do lucro da expedição. Mais adiante, segundo o narradorJosé Álvares de Oliveira, na expedição comandada por Amador Bueno da Veiga em resposta à chacina do Capão da Traição, a tropa dos paulistas marchavam "debaixo de um estandarte grande 14 encarnado (que se disse trazia efigie de São Paulo)", cuja organização militar lembrava as grandes expedições que saquearam as missões jesuíticas das províncias de Guairá e Tape mais de meio século antes. A "Coleção das Notícias" oferece outros indícios que sugerem que as primeiras expedições para as recém-descobertas minas de ouro seguiam este 10. Inventário e testamento de Gonçalo Lopes, 1689, Arquivo do Estado de São Paulo, Inventários do Primeiro Oficio, no. 13.770; "Atestado da Câmara Municipal de Parnaíba sobre Fernão Dias Pais", in M. E. Azevedo Marques, Apontamentos Históricos Geográficos) Biográficos, Estatísticos e Noticiosos da Província de São Paulo [1876], 2 vais., São Paulo e Belo Horizonte, Edusp/Itatiaia, 1980 (série Reconquista do Brasil, n.s., 3-4), vol. 1, p. 269. 11. André João Antonil Ú)seud.), Cultura e Opulência do Brasil [1711], ed. facs., Recife, Museu cio Açúcar, 12. FUNDAÇÃO João Pinheiro. Códice Costa Mlatoso. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, CEHC, 1999. 13. Para um estudo detalhado das "armações", ver John Monteiro, Negros da Tena: índios e bandeirantes nas 1969, pp. 129-130. p. 217. origens de São Paulo, São Paulo, Companhia das Letras, 1994, capítulo 2. 14. FUNDAÇÃO João Pinheiro. Códice Costa Matoso. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, CEHC, 1999. p. 237. 91 17. padrão estrutural. Por exemplo, Bento Furtado relata uma anedota sobre o paulistaJosé de Camargo Pimentel que, num arraial mineiro em pleno sertão, fez uma generosa doação em ouro para uma mulher pobre que lhe pedira uma esmola. Nessa altura, o "sócio" dele advertiu: "Devagar, que isso também é nosso!" Se esta interpelação mostra que a prática de repartir os lucros - só que agora em ouro e não mais em cativos - entre os membros de uma expedição continuava em vigor, a resposta de Camargo Pimentel revela uma outra faceta deste mesmo tipo de empreendimento. O "liberalíssimo" Camargo, tirando mais um tanto de ouro para a .mendiga, informou ao sócio: "É verdade, que faltava lá o 15 seu quinhão". Bento Furtado conta esta história para lembrar como este paulista, a despeito do contrato implícit.nas relações aparentemente simétricas entre sertanistas numa expedição, ocupava uma posição hierárquica superior, por ser "homem poderoso". Mais do que isso, o abuso da situação contratual se justifica pelas outras características do homem poderoso, que também era generoso, ajuizado e, acima de tudo, justo. As ambiguidades desta assimetria do poder também se manifestavam nas relações entre paulistas e índios, outro aspecto fascinante que os relatos da "Coleção das Notícias" esclarece. Ora distantes, ora próximos dos nativos, os paulistas elaboraram a sua identidade não apenas a partir da fama de conquis tadores dos índios como também pelo conhecimento profundo da língua e dos costumes dos índios. Ambas estas características aparecem com vigor no Códice. No sertão, apesar da ampla destruição de populações nativas, os índios surgem nos relatos como adversários duríssimos. Bento Furtado escreveu que o sertão da Casa da Casca "está povoado de bravos e orgulhosíssimos gentios, que têm 16 impedido várias diligências que se lhes têm feito por outros bandeirantes". De fato, como demonstra um trabalho recente, a reconhecida capacidade de combater e vencer aos índios bravos e bárbaros foi um elemento constitutivo da imagem do paulista, nome aliás que se tornou moeda corrente justamente no período das guerras contra os índios no nordeste, nas quais os sertanistas de São Paulo foram contratados pela administração colonial como a única solução para 17 os "insultos" praticados pelos índios. Nos sertões mineiros, a ação dos paulistas parece ter sido particularmente devastadora, pois já no século XVII surgem nos inventários dos paulistas etnônimos de índios provenientes de diversos locais posteriormente mineiros, abrangendo Cataguás, Caetés, Araxás, Tobajaras e outros quejá não figuram 18 mais nos documentos dos séculos posteriores. Pouco ou nada sabemos das 15. Idem. p. 174. 16. Idem. p. 170. 17. Pedro Puntoni, "A Guerra dos Bárbaros: povos ind(genas e a colonização do sertão nordeste do Brasil, 16501720", tese de doutorado (inédita), FFLCH-USP, 1998. 18. Veja-se, a respeito, a 1istagem de expedições no anexo da tese inédita:John Monteiro, "São Paulo in the Sellenteenth Century: Economy and Society", University of Chicago, 1985, pp. 416-426, com as respectivas fontes. 92 características etnográficas destes grupos, a não ser que alguns deles falavam a "língua geral" e outros não, apesar de terem nomes em tupi, obviamente atribuídos pelos paulistas. Na verdade, as informações mais minuciosas são sobre grupos posteriormente enfeixados no etnônimo abrangente de "Botocudos". Há várias menções ao "Reino dos Mapaxós", desde as expedições do início do século XVII às memórias elaboradas por Pedro Taques em sua Nobiliarquia, no final do XVIII. No relato de Bento Furtado, um aspecto notável deste episódio é o penoso exílio de Manuel de Borba Gato, o genro de Fernão Dias que assassinou dom Rodrigo de Castelo Branco e que se embrenhou nas matas do Rio Doce para evitar o seu próprio esquartejamento. Lá "viveu barbaramente, sem concurso de sacramento algum... naquele modo de vida, nem comunicação com mais criaturas deste mundo em 16 anos... " Quanto às criaturas daquele mundo, Borba Gato teria estabelecido relações com os índios de algum grupo cujo nome não aparece neste relato, "aos quais domesticou à sua obediência, e ficou entre eles, 19 respeitado como cacique, que é o mesmo que príncipe soberano entre eles". A descrição deste príncipe entre os selvagens evoca algo da ambiguidade do discurso sobre o passado paulista e das relações entre estes e os índios, oscilando entre a conquista e a persuasão. A menção mais interessante das relações entre paulistas e índios, no entanto, está nas "Notícias do que ouvi", onde o narrador anônimo fornece um detalhe precioso. "Passando ao sertão, [os paulistas] deram com uma aldeia neste distrito do rio das Mortes, a que chamam Cataguases, onde prendendo muito gentio do beiço e orelhas furadas, estes falaram perguntando por que os perseguiam; se era pelo que traziam no beiço e nas orelhas, que os largassem, que lhes iriam mostrar. Não levados os paulistas desta oferta, nunca deixaram de os prender, e logo para o rio das Mortes foi uma bandeira com seu capitão chamado J aguara, que na língua dos carijós é cachorro. A estes mostrou um dos capitães do gentio o ouro no capim, em folhetas, e outro, como grãos de 20 munição". É significativo este relato por diversos motivos. Em primeiro lugar, evoca de forma interessante o primeiro encontro entre sertanistas e índios evidentemente Botocudos, inclusive projetando a visão dos nativos sobre a sua alteridade. Ao mesmo tempo, porém, denuncia o padrão de violência nas relaçõesentre bandeirantes e Botocudos, apesar das tentativas de conciliação por parte das chefias ("capitães") indígenas, que chegaram até a revelar o ouro ao paulista Jaguara que intentava os escravizar. 19. FUNDAÇÃO João Pinheiro. Códice Costa Matoso. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, CEHC, 1999. 20. Idem. p. 218. p. 188. 18. 93 Outro detalhe marcante deste pequeno relato é a menção da "língua dos carijós". Referência à língua geral paulista, falada pela vasta camada subalterna e conhecida intimamente pelos seus domina dores, esta "língua dos carijós" exercia um papel de relevo na ocupação inicial das minas pelos paulistas. Ao longo dos relatos, é frequente a digressão etimológica dos memorialistas que, antecipando a febre tupinológica dos intelectuais do século XIX e do início do XX, buscavam explicar o significado das palavras indígenas registrados nos lugares, nas práticas sociais e nas alcunhas dos paulistas. Assim, apesar do fato de muitos dos índios "conquistados" pelos paulistas nestes sertões obviamente não serem Tupis mas na verdade Botocudos, o esforço em explicar a origem tupi dos topônimos estava associada à demarcação deste tempo antigo. Por exemplo, quando o autor de um dos relatos se refere ao local chamado Aiuruoca, ele o identifica etimologicamente como "casa dos papagaios", por ser um lugar "em que os papagaios faziam morada naquele tempo em 21 que os gentios habitavam aqueles lugares" (ênfase minha). É provável, contudo, que muitos desses nomes tenham sido dados pelos próprios paulistas, aliás bastante adeptos em lançar mão de neologismos em língua geral, como é o caso da palavra 22 "Emboaba" que, como veremos, dá muito o que falar no Códice Costa MIatoso. Se podemos encontrar urpa certa nostalgia de um tempo anterior nesses exercícios de tupinologia, é porque remetem a um mundo que no meio do século XVIII já estava em franco declínio. De uma maioria expressiva no século XVII, a população nativa constituía uma minoria absoluta na segunda metade do século XVIII, tanto em São Paulo quanto em Minas Gerais. Mas não se tratava apenas da população do sertão que perecia diante dos repetidos assaltos dos paulistas. As "Notícias dos Primeiros Descobrimentos" também fala da massa informe de índios e mestiços que acompanharam os paulistas em suas aventuras. Produto de um longo processo de dominação e de imiscuidade cultural, a base mais ampla da sociedade paulista não pode ser desconsiderada como fator de relevo na elaboração desta figura singular que é o paulista. 21. Idem. p. 184. Sobre a toponímia e etnonímia tupi, veja-se a dissertação de mestrado (inédita) de 22. Pedro Calmon, esclarecendo numa nota à História da América Portuguesa, escreve: "Na topo nímia Benedito Prézia, "Os Ind(genas do Planalto Paulista", FFLCH-USP, 1997. mineira é saliente a linguagem cabocla ou tupi elos sertanistas de S. Paulo , ainda bilíngues escrevendo português e conversando guarani - como os paraguaios de hoje ... " Sebastião ela Rocha Pita, Histólia da Amélica Portuguesa, São Paulo e Belo Horizonte, Edusp / Itatiaia, 1976 (série Reconquista do Brasil, 32), p. 263, n. 6. Não se pode falar do tupi de São Paulo sem lembrar do texto de Sérgio Buarque de Holanda, "A Língua Geral em São Paulo", em Raizes do Brasil, Rio de Janeiro,José Olympio, 1936. Um ensaio recente que acrescenta interessantes observações é o de Luiz Cados Villalta, "O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura", in L. Mello e Souza, org., História da Vida Privada 1. Cotidiano e Vida Plivada na América Portuguesa, São Paulo, Companhia elas Letras, 1997, pp. 331-38.5. 94 Assim, composta de "negros, índios, bastardos e brancos", a sociedade mineira no alvorecer do século XVIII já nascia complexa, segundo estes relatos. No entanto, os segmentos inferiores não se saíam muito bem nessas memó rias posteriores. Em sua "História do Distrito do Rio das Mortes", José Álvares de Oliveira lembrava que além do brio dos paulistas, era também necessário aturar os "cotidianos atrevimentos de seus bastardos, carijós e tapanhunos às lojas e 23 vendas dos mercadores e tratantes". Antes de entrar na descrição do conflito entre paulistas e emboabas, Bento Furtado refletiu sobre o problema da justiça na ausência de uma autoridade régia firme, cujo triunfo se apresenta, aliás, como a principal mensagem da "Coleção das Notícias". De acordo com este narrador, "não se duvida que entre tantos bons havia alguns maus, principalmente mulatos, bastardos e carijós, que alguns insultos faziam", elementos perniciosos "quanto mais em um sertão onde, sem controvérsia, campeava a liberdade, sem sujeição a 24 nenhuma lei nem justiça, senão a natural, observada dos bons". Aí reside uma outra ambiguidade delicada na memória dos paulistas, que buscava conciliar um discurso sobre a liberdade dos sertanistas com a sujeição dos índios, mestiços e negros, cujo exercício da liberdade redundava, antes de mais nada, em infração criminosa. Confronto de imagens n' A Rochela do Atlântico Sul A liberdade e a oposição à autoridade externa compõem outra característica dos paulistas que foi suscitada em mais de uma ocasião ao longo das narrativas. De fato, desde meados do' século XVII, diversos observadores sublinharam a suposta autonomia e rebeldia dos colonos de São Paulo, sobretudo em função da sua franca desobediência às leis do Reino referentes à liber dade dos índios. Certamente esta tendência começou a ser fomentada pelos jesuítas durante os conflitos em torno das missões de Guairá: assim, por exemplo, fundamentando-se nas informações dos inacianos, o bispo de Buenos Aires caracterizou o Planalto como uma espécie de refúgio onde "se há juntado um grande número de homens de diferentes nações, ingleses, holandeses e judeus que, em liga com os da terra, como lobos raivosos, fazem grande estrago no 23. Bastardos eram mestiços que, por serem filhos de mães índias, permaneciam sujeitos ao serviço obrigatório. Carijós eram os índios "domesticados" no serviço de particulares e tapanhunos eram escravos africanos e afro-descendentes. Mulatos, no caso de São Paulo seiscentista, eram mestiços de africanos e-Índios. Cf. meu Negros da Terra, capítulo 5. 24. FUNDAÇÃO João Pinheiro. Códice Costa Mataso. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, CEHC, 1999. p. 193. 19. 95 25 novo rebanho de Vossa Santidade". Outros, mais adiante, até denominaram São Paulo de "A Rochela do Brasil", algo equivalente ao reduto calvinista de La Rochelle na França. No final do século, o viajante francês François Froger fez escala no Rio de Janeiro e, a partir das opiniões vigentes, descreveu os paulistas como "um conjunto de bandidos de todas as nações, que pouco a pouco formaram uma grande cidade e uma espécie de República, onde eles 26 têm como lei não reconhecer o governador de forma alguma". Este tema foi retomado por diferentes narradores na "Coleção das Notícias". Em seu relato, Bento Furtado evocava o episódio do assassinato de D. Rodrigo por Manuel de Borba Gato como um incidente precursor daquilo que os historiadores mais tarde chamariam de "Guerra dos Emboabas", pois sublinhava a obstinada recusa dos paulistas a se submeter a qualquer autoridade externa. Ao mesmo tempo, servia também para articular o fio da narrativa que passava a discutir os tumultos ocorridos na vila de São Paulo ao longo da década de 1690, em protesto ao cerceamento das moedas, já que o fracasso das expedições de Fernão Dias e de dom Rodrigo realçava a crise monetária que abalava tanto a metrópole quanto as capitanias. Ao historiar a subida do governador Artur de Sá e Meneses para São Paulo em 1699, momento aliás de inflexão no estabelecimento da autoridade régia no Planalto, o narrado r remetia a um episódio ocorrido no ano anterior, quando os principais paulistas se revoltaram contra um decreto do Rei sobre as moedas. Esta recusa por parte dos moradores do Planalto, segundo o narrador, motivou o secretário do governo do Rio de Janeiro a emitir o seguinte parecer sobre os paulistas: "Senhor, aquelas vilas não são de Vossa Mc0estade, pois se o fossem, obedeceriam ao decreto que Vossa Majestade mandou expedir para todas as partes [...] e sendo em 27 todas obedecido, nesta foi desprezado". Por outro lado, nota-se a constante afirmação, por parte dos paulistas, da sua fidelidade e vassalagem perante o rei. É claro que isto nem sempre valia para os representantes do rei, frequentemente o objeto do escárnio dos paulistas e não poucas vezes vítimas 25. Carta elo fr. Cristóbal, bispo elo Rio ela Prata, ao Papa Urbano VIII, Buenos Aires, 30 -91637, in Jaime Cortesão, org., Jesuítas e Bandeirantes no Tape Mlanuscritos da Coleção de Angelis III), Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 1969, p. 381. Convém apontar que em meu livro, Negros da Terra, atribuí erroneamente esta carta ao bispo ela Bahia, por elesatenção. 26. François Froger, Relation d'une voyage fait en 1695,1696 & 1697 aux côtes d'Afriique, Détroit de Mlagellan, Brésil & Isles Antilles ete., Paris, M. Brunet, 1698, p. 82, tradução minha. A citação original: "un assemblage de brigans de toutes les nations, que peu à peu y ont formé une grande Ville et un espece de République, ou ils se font une loi de ne point reconnaitre le Gouverneur. " 27. FUNDAÇÃO João Pinheiro. Códice Costa Matoso. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, CEHC, 1999. p. 189. 96 28 de ameaças e mesmo de violência fisica. Trata-se, portanto, de um discurso ambíguo, que capta todo o conflito entre diferentes percepções de justiça e autoridade. Este narrador, paulista, apesar de defender o bom governo do Rei e de seus prepostos coloniais, também dava razão aos rebeldes, prejudicados pelos 29 "malévolos ladrões [que] cerceavam estas moedas", referência, sem dúvida, a comerciantes forasteiros que se aproveitavam da escassez da moeda na capitania. De fato, nos relatos de paulistas, a imagem dos portugueses na época das descobertas não chegava a ser muito edificante. Bento Furtado, ao iniciar a sua discussão do episódio dos emboabas, falava do "pernicioso levantamento (...) dos ingratos filhos da Europa contra os famosos descobridores destes haveres, 30 para remédio de tantos desvalidos europeus". Este mesmo narrador evocava os atravessadores que tiveram um papel marcante no início do período do ouro, papel este que já se delinhava bem antes com os monopolistas que exploravam a carestia de certos gêneros, como o sal, o fumo e, em certas conjunturas, mesmo os escravos. Ao contrário dos paulistas deste mesmo relato, que enfrentaram grandes obstáculos e padeceram misérias, encontramos os "filhos de Portugal" que, "sendo mais ardilosos para o negócio, quiseram inventar contratos de vários gêneros para, mais depressa e com menos trabalho, encherem as medidas a que 31 aspiravam da incansável ambição". As proezas do sertão e a conquista dos índios, sempre em nome do Rei, certamente foram cruciais na configuração de uma alteridade paulista. Mas a construção desta imagem e portanto desta identidade também se alimentava da visão preconceituosa dos portugueses que, ocupando cargos de autoridade, enxergavam neles apenas a barbárie. Assim, num incidente conhecido, o bispo de Pernambuco, ao encontrar o paulista Domingos Jorge Velho pela primeira vez, ficou com esta impressão: "Este homem é um dos maiores selvagens com que tenho topado: quando se avistou comigo trouxe consigo língua, porque nem falar sabe, nem se diferencia do mais bárbaro Tapuia mais que em dizer que é 32 Pedra Taques, ao descrever a desavença entre um capitão de Cristão". infantaria ("arrogante por natureza e oposto por inclinação aos filhos do Bra- 28. Sobre a questão da vassalagem neste mesmo período crítico, ver Ilana Blaj, "A Trama das Tensões: o processo de mercantilização de São Paulo colonial (1681-1721)", tese de doutorado (inédita), FFLCH-USP, 1995. Abordo este tema em mais detalhes no texto "Sal, Justiça Social e Autoridade Colonial: São Paulo no início do século XVIII", trabalho inédito apresentado no XXI Congresso Internacional da LASA, Chicago EUA, 1998. 29. FUNDAÇÃO João Pinheiro. Códice Costa Matoso. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, CEHC, 1999. 30. Idem. p. 177. 31. Idem. p. 192. 32. Carta de d. frei Francisco de Lima a d. Pedro lI, in Ernesto Ennes, As Guerras nos Palmares, São Paulo, p. 188. Companhia Editora Nacional, 1938, p. 353. 97 97 sil") e Domingos Rodrigues do Prado, lembrou que tomado por um "furor fanático", o capitão português "capacit[ou]-se que qualquer paulista se reputava 33 por um índio neófito". Essa proximidade com os índios também foi sugerido num dos relatos do Códice: na "História do Distrito do Rio das Mortes", José Álvares de Oliveira só não os chamou de selvagens. "E os paulistas", escreveu ele, "por se afastarem da vizinhança dos homens, porque só a faziam com as feras pela semelhança dos corações, se arrancharam pelo arrabalde em moradas de espaçosas varandas a fim de ostentarem os seus grandes cabides de armas, fatos indicantes das suas dissimuladas proezas, força com que cada 34 um deles afetava o ser um Atlas dos emboabas". O confronto das imagens atingiu o seu ponto máximo no contexto do conflito entre paulistas e emboabas. Não é o caso de repisar aqui os eventos e controvérsias que deram corpo ao conflito, porém vale a pena apontar para alguns relances que se destacam no documento em referência às identidades contrastivas que se pode apanhar em plena construção. Se o termo "paulista" já era de uso corrente desde a segunda metade do século XVII, ganhava novas inflexões, inclusive nativistas, no episódio dos emboabas. Recentemente, em sua abordagem bastante original do conflito, Adriana Romeiro sublinha a dimensão política deste jogo de espelhos, mostrando como os seguidores de Manuel Nunes Viana se apropriaram do epíteto de "emboaba" para realçar o caráter rebelde e anti-Iusitano dos paulistas. Souberam, segundo esta autora, "tirar proveito da origem tupi do vocábulo, que, denunciando a notória fluência dos paulistas na língua geral transplantava para o domínio linguístico a cisão entre os que falavam a língua portuguesa - pura e autêntica - e os que falavam 35 a língua indígena - a do aborígine e do inimigo". Na "Coleção das Notícias", pode-se perceber que a categoria "paulista" de fato estava em fase de constituição. Do ponto de vista do paulista Bento Furtado, ainda era possível traçar um contraste entre taubateanos e paulistas, no trecho em que falava da ocupação do córrego Padre Faria. Para o narrador, tratava-se de uma "adversão simpática procedida de serem os de São Paulo de vila maior e composta de homens ricaços e de elevados pundonores, e aqueles de vila mais pequena e menos poderosos, dotados porém de alentados e superabundantes brios". Porém, do ponto de vista dos emboabas, esta distinção se dissolvia. Na "História do Distrito do Rio das Mortes", o autor José Álvares de Oliveira falava de como os taubateanos também eram "tidos por paulistas, como todos os naturais de Serra Acima, prezando-se muito deste 33. 34. Pais Leme, Nobiliarquia, vo!. 2, p. 33. FUNDAÇÃO João Pinheiro. Códice Costa Matoso. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, CEHC, 1999. p. 231. 35. Adriana Romeiro, "Um vísionário' na Corte de D. João V: revolta e milenarismo nas Ailinas Gerais", tese de doutorado (inédita), IFCH-Unicamp, 1996, p. 236. 98 nome, e naquele tempo por horrendo, fero, ingente e temeroso, e apoderando se de todo o descoberto como costumavam em todas as Minas, porque em todas punham e dispunham despoticamente pelo ditame de 'assim quero, as sim o 36 mando, e à razão prevalece a vontade". A adoção do termo "emboabas", por sua vez, parece dizer mais sobre os paulistas do que qualquer outro grupo social. Como já vimos, o uso do tupi demarcava, para os paulistas, elementos centrais na constituição tanto da sua memória quanto da sua identidade coletiva. Se é comum pensar que o termo se aplicava aos portugueses, na verdade os paulistas chamavam de emboabas não apenas a estes "mas a todos os que não saíram da sua região", como bem lembrava Rocha Pita em sua História da América Portuguesa. Adriana Romeiro também coloca que o termo "designava todos os adventícios ou, antes, todos aqueles que não eram paulistas - nome dado aos descobridores das primeiras minas e aos moradores da serra acima - desde portugueses, baianos, pernambucanos e outros". Esta mesma autora argumenta, ainda, que a origem deste termo não deve ser entendida tanto no seu sentido literal mas antes no processo dinâmico de significação através do qual os usuários deste "imaginário" podem conferir "uma 37 certa ordem ao mundo". Ainda assim, o termo "emboaba" também servia para lembrar que a forma de vestir proporcionava um marcador claro de identidades. Na "Relação de um Morador de Mariana", o narrador observava que os paulistas chamavam aos reinóis "emboabas por desprezo, que na sua língua quer dizer galinhas calçudas, o que imitavam pelos calções que usavam de rolos". Em contraste, ao descrever os paulistas, o narrador da "História do Distrito do Rio das Mortes" procurou recuperar o modo de ser desses paulistas maléficos e desordeiros de antanho, inclusive pincelando um memorável retrato da moda da época. "Fiquem também como em esquecimento as repetidas assuadas que pela menor desconfiança vinham a dar à povoação, entrando por ela com gente armigerada, e o senhor na frente, de pé descalço, em ceroulas arregaçadas, catana talingada, patrona cingida, pistolas no cinto, faca no peito, clavina sobraçada, e na cabeça, ou carapuça' de rebuço ou chapéu de aba caída, e a som de caixa e clangor de trombeta, vozeando 'morram emboabas'; e não só com estas tumultuosas amotinações mas com as bravezas de um chamado Jaguara, que é o mesmo que cachorro bravo, que quando se embriagava eram poucos os alpendres e 38 pequenas as ruas do arraial para semear de chumbo a puros tiros". 36. FUNDAÇÃO João Pinheiro. Códice Costal\1atoso. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, CEHC, 1999. 37. Rocha Pita, História da América Portuguesa, p. 241; Romeiro, "Um Visionário", p.234. 38. FUNDAÇÃO João Pinheiro. Códice Costa Matoso. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, CEHC, 1999. p. 230. p. 231. 20. 99 Este contraste das aparências redundava, no contexto do conflito dos emboabas, num choque de costumes. Um indício disso é contado na "Relação do princípio descoberto", no incidente entre Jerônimo Pedroso - vulgo Poderoso "por este ter também bastantes escravos" - e Manuel Nunes Viana. Quando este desafiou aquele a um duelo, Pedroso respondeu que "queria o desafio, porém que não havia usar de estocadas nem cuteladas, só sim tocar uma espada na outra com as pontas para o ar; mas o dito capitão-mor [Nunes Viana] lhe tornou a mandar dizer que não sabia esse jogo de espada e que saía, porém, à fortuna do que elas dessem". Preocupado em contrastar a desordem dos paulistas com a ordem dos emboabas, o mesmo narrador da "Relação do prin. cípio descoberto" chamava a atenção para o fato de que apesar dos cabos dos emboabas estarem "sem insígnias", pelo menos o líder Manuel Nunes Viana trazia "seu bastão alvorado como capitão-mor da vila do Penedo", na ocasião em que foram enfrentar o novo governador dom Fernando Martins Mascarenhas de Lencastre. Por fim, o autor anônimo introduziu um outro símbolo para encerrar o seu relato: a entrada triunfal e pacificadora da autoridade régia na pessoa de Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, reiteradamente chamado de "senhor governador". Com o triunfo da ordem, a derrota final dos paulist4ls teve, no entanto, um desfecho ambíguo. Por um lado, diversos aventureiros egressos das Cataguases deram sequência à tradição do movimento, desbravando novos sertões, descobrindo ouro em Cuiabá e em Goiás, travando novos embates com inúmeros povos indígenas. Por outro, tiveram que amargar o cerceamento de uma certa autonomia que desfrutavam na ausência de um Estado organizado, longe do alcance das autoridades régias. ParaJosé Álvares de Oliveira, o narrador emboaba da "História do Distrito do Rio das Mortes", saíram com a reputação maculada: ':Junto com a queda da soberba, perderam também o respeito do seu honroso nome depois de tantos anos pelas suas insolências adquirido" . O mesmo José Álvares de Oliveira, apesar de parcial aos emboabas, explicava com clareza o significado do evento, numa frase que reflete de forma emblemática a tônica do Códice Costa Mlatoso como um todo. "Esta resolução tomada pelos emboabas do Rio çlas Mortes e do Arraial Novo, ainda que agitada pela cegueira de sua compaixão, sempre foi a que deu princípio para ao diante todo o país das Minas e de Serra Acima conhecer verdadeiramente ao seu verdadeiro senhor, até então menos conhecida a sua grandeza e pouco temida a sua justiça". Para os paulistas, o conhecimento do verdadeiro senhor passava, necessária e talvez dolorosamente, por um verdadeiro conhecimento de si próprios.