Luís Braga da Cruz
Presidente do OMIP
– Operador do Mercado Ibérico
de Energia/pólo português
A liberalização do sector
da energia, o MIBEL
(Mercado Ibérico de
Electricidade) e o OMIP
(Operador do Mercado
Ibérico de Energia
- pólo português)
A liberalização chegou ao sector eléctrico apenas há três dezenas de anos.
Compreendendo a sua importância para o ordenamento económico europeu, a União Europeia tomou a iniciativa de promover medidas que harmonizassem procedimentos e generalizassem práticas comuns, traduzidas nas
directivas de 1996 e de 2003.
Era recomendada a separação de actividades de produção, transporte, distribuição e comercialização, distinguindo o que se deve manter como monopólio natural (o transporte) do que ganha em ser submetido ao regime de
concorrência (produção e venda a clientes finais).
Após estas primeiras iniciativas, havia a convicção de que o Mercado Único de Energia não seria tarefa fácil,
dada a grande variedade de soluções existentes nos diferentes Estados-Membros. Preferiu-se aproveitar as
experiências dos mercados regionais existentes ou em formação, para, a partir deles, se ir construindo o Mercado
Único Europeu de Energia.
Foi neste sentido que o Governo português propôs ao Governo espanhol, em 2000, a criação de um novo mercado
regional de electricidade para a Península Ibérica – o MIBEL. Relata-se a experiência da sua criação e como se
organizou o Pólo Português do Operador de Mercado – o OMIP. Faz-se um primeiro balanço do seu ano e meio de
actividade e discorre-se sobre as recentes medidas assumidas pelos Governos dos dois países para aprofundar o MIBEL.
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Liberalization has only reached the electrical sector three decades ago.
Understanding its importance for the European economical order, the European Union took the initiative of
promoting measures that would harmonize procedures and generalize common practices, translated into the
1996 and 2003 directives.
The separation of the activities of production, transport, distribution and marketing was recommended,
thereby differentiating that which should be maintained as a natural monopoly (the transportation) from that
which benefits from being submitted to the regime of competition (production and sales to end-clients).
Subsequent to these initiatives, there was a conviction that the Single Energy Market would not be an easy
task, given the huge variety of existing solutions in the different Member-States. It was preferred to take
advantage of the experience of regional markets already existing or under formation, in order to begin the
building of the Single Energy Market from them.
It was in this sense that the Portuguese Government, in 2000, made the proposition to the Spanish Government of the creation of a new regional market of electricity for the Iberian Peninsula – the MIBEL. This
article tells of the experience of its creation and of how the Portuguese Pole of the Market Operator – the
OMIP – has been organized. This is a preliminary evaluation of its year and a half of activity and a
reflection upon the recent measures adopted by the two countries in order to further advance the MIBEL.
1. A liberalização do sector
eléctrico
Os mercados de electricidade são uma realidade recente. Antes, as empresas do sector eléctrico produziam, transportavam e distribuíam
a energia eléctrica sem concorrência, numa dada
área geográfica. A única concorrência que poderia existir era de ordem interna a cada empresa.
Os desafios colocados com a liberalização do
sector eléctrico são sempre os mesmos: abolir
barreiras e desmantelar os velhos monopólios,
conceber uma nova arquitectura para a organização do sector e melhorar a afectação de recursos para concretizar um óptimo económico.
Nos EUA, a concorrência nas indústrias de
redes inicia-se nos anos 70 com o transporte
aéreo, as telecomunicações e o gás natural. Em
1978, o Public Utility Regulatory Policy Act aceitou a produção eléctrica independente para aumentar a concorrência.
A UE também acreditou no mérito da concorrência para o Mercado Interno Europeu.
O relatório Checchini chegou a quantificar os
chamados custos da «não Europa». Por essa
altura foi aberta a polémica sobre a legitimidade de se estabelecer a concorrência nos chamados Serviços de Interesse Geral.
No sector da energia foi aceite o princípio da
decomposição das actividades verticalizadas nos
diferentes segmentos da sua cadeia de valor,
onde se salientavam três medidas essenciais: a
dissociação de actividades (unbundling), o estímulo no acesso de terceiros à rede e a criação de
autoridades reguladoras independentes.
A aplicação dos princípios da liberalização ao
sector da energia iniciou-se pelo Reino Unido
nos anos 90. Portugal foi dos primeiros Estados-Membros a compreender as vantagens desta evolução.
O unbundling era a medida mais emblemática e
consistia na separação dos monopólios naturais
que deveriam manter-se fora do âmbito da concorrência, das actividades contestáveis, as quais
seriam submetidas ao regime de concorrência.
Havia a noção que diversos graus de unbundling seriam possíveis: meramente contabilístico (accounting undundling), com independência
de gestão (management undbundling), societário
(legal undbundling) e accionista (property undbun-
dling), os quais se admitia que poderiam ser alcançados de forma progressiva.
O sistema foi testado pela primeira vez no
Reino Unido com a desagregação da British
Gas, em várias companhias independentes.
Também foi introduzido o conceito de TSO –
Transmission System Operators, com a criação dos
Operadores de rede.
2. A Construção do Mercado
Único Europeu de Energia
Em 1996, a Comissão Europeia fez aprovar
uma primeira Directiva Europeia (Directiva 96/
/92/CE) para o sector da energia, dando corpo à vontade de liberalizar as suas actividades
à luz dos princípios acima referidos. Definiram-se as condições de acesso de terceiros às
redes, sendo resolvida a questão do reconhecimento dos custos pelos direitos de uso das
infra-estruturas de transportes. Foram ainda
definidas regras comuns para a produção, o
transporte e a distribuição.
Quanto à produção o espírito de concorrência garantia o direito de escolha de fornecedor e
estabelecia que a nova capacidade deveria ser atribuída mediante autorização ou ser adjudicada
por concurso.
Quanto ao transporte é acolhida a figura do
TSO, definidas as condições de acesso de terceiros à rede como actividade negociada, regulada
ou de comprador único. A actividade de transporte passa a ser independente face às actividades de produção e comercialização, pelo menos
no plano da gestão.
Quanto à distribuição é recomendada a constituição de Operador de Rede de Distribuição e
a separação contabilística desta actividade.
Numa segunda iteração, em 1998, é aprovada
uma nova directiva (Directiva 2003/54/CE)
que, em relação à anterior, evoluiu nas regras
comuns para produção, transporte, distribuição e comercialização de electricidade.
No que respeita à produção, a nova capacidade deve ser estabelecida mediante procedimento de autorização ou por concurso, quando estiver em causa a garantia de abastecimento.
No transporte e distribuição deve passar a
haver independência jurídica na organização e
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na tomada de decisão, nos casos em que a integração vertical ainda subsistir.
O acesso de terceiros às redes passa a ser baseado em tarifas publicadas, aplicadas objectivamente e sem discriminação a todos os utilizadores das redes. Cria-se a possibilidade de negação
desse acesso nos casos de insuficiência de capacidade, quando devidamente fundamentados.
No final dos anos 90 havia a convicção de que
o Mercado Único de Energia não seria tarefa fácil, dada a grande variedade de soluções existentes nos diferentes Estados-Membros e pelos
distintos graus de liberalização já experimentados. Além disso, a geografia europeia também
apresenta especificidades que não facilitam a interligação das redes. É constituída por um núcleo central (França, Alemanha e Benelux) e por
periferias (Reino Unido e Irlanda, Escandinávia, Península Italiana e Península Ibérica, hoje
acrescidas pela Europa de Leste). Ponderadas
estas razões, preferiu-se aproveitar as experiências dos mercados regionais existentes ou em
formação, para, a partir deles, se ir construindo
o Mercado Único Europeu de Energia.
Foi neste sentido que o Governo português
propôs ao Governo espanhol, em 2000, a criação de um novo mercado regional de electricidade – o MIBEL.
3. O MIBEL
Em termos da dimensão relativa do seu consumo, o MIBEL não é muito diferente dos outros mercados regionais europeus, como provam
a figura e o quadro comparativo dos consumos
anuais, em TWh, referidos ao ano 2005.
Quadro 1 - Consumos relativos dos
mercados regionais europeus, em 2005
600
176%
500
148%
400
116%
100%
101%
Iberia
Italy
117%
300
200
34%
100
0
NL
UK
Nordpool France Germany
Figura 1 – Consumos dos mercados
regionais europeus, em 2005 (TWh)
Poder-se-ia afirmar que, em termos regionais,
para Portugal e também para Espanha, o MIBEL não era apenas uma simples opção política
em linha com a orientação europeia, mas uma
real oportunidade para os agentes dos dois países e suas economias.
De facto, por razões geográficas e também de
escala, Portugal não tinha condições para desenvolver um mercado eléctrico isolado (Quadro 2).
Por outro lado, a evolução recente das trocas comerciais globais entre os dois países confirma
que o processo de integração económica de mercados já está em curso. Tudo convergia no sentido de privilegiar a acção, em vez de simplesmente reagir aos acontecimentos.
A partir de 2000 foi definido um modelo,
consideradas as restrições mais importantes que
poderiam condicionar o processo e definido um
calendário tentativo para a implementação do
MIBEL.
Como objectivos principais, o MIBEL visava:
· beneficiar os consumidores de electricidade
dos dois países;
· estruturar o funcionamento do mercado liberalizado;
· construir um preço de referência único para
toda a Península Ibérica;
· facultar o livre acesso ao mercado, em condições de igualdade, transparência e objectividade;
· favorecer a eficiência económica das empresas do sector eléctrico;
· promover a livre concorrência entre as mesmas.
Quadro 2 – Dimensão relativa dos sistemas eléctricos português e espanhol
Consumidores
(Milhões)
Potência Instalada
(MW)
Ponta Máxima
(MW)
Consumo Anual
(Twh)
Dimensão Relativa
Espanha
23
85.959
44.876
260,8
84%
Portugal
6
14.041
9.110
50,5
16%
29
86.792
51.500
311,3
5,1:1
Total
O MIBEL como conceito multifacetado representa uma tentativa de convergência a três
dimensões principais: física, económica, legal e
regulatória.
Em termos físicos, visa a melhor coordenação de procedimentos a nível da operação dos
dois TSO, bem como o desenvolvimento e o
reforço da capacidade de interligação das redes.
A nível económico, o que estava em causa era
a definição do modelo de mercado e o seu funcionamento. Tal implicava definir as condições
de remuneração e os encargos dos agentes, implicações dos CTC (custo de transição para a
concorrência, em Espanha), dos CMEC (custos para a manutenção do equilíbrio contratual, em Portugal), da retribuição da garantia
de potência, etc. Também eram ponderadas as
condições de acesso à interligação, bem como
as formas de coordenação entre os operadores
e os agentes de Mercado.
Quanto à dimensão legal e regulatória tratava-se de garantir a harmonização da legislação,
das regras de operação dos sistemas e da desejável convergência tarifária. Para isso cometeram-se funções de supervisão e regulação a um
órgão consultivo misto – o Conselho de Reguladores – com representação simétrica dos reguladores de energia e financeiros.
Como processo eminentemente político, o
MIBEL exprime a vontade de dois Estados,
mas é condicionado pelos calendários dos dois
Governos. Vicissitudes várias, embora perfeitamente compreensíveis, acabaram por atrasar o
arranque formal do MIBEL, em relação às metas inicialmente estabelecidas. Apesar de tudo, o
conceito foi-se desenvolvendo tendo sido alcançados diversos entendimentos. Nomeadamente, em Outubro de 2002 foi concebido o
Operador do Mercado Ibérico (OMI), com dois
pólos: um pólo com o mercado à vista (spot
market), a partir do operador já existente em
Madrid – o OMEL –, e um pólo em Portugal,
orientado para o novo mercado a prazo – OMIP,
de acordo com o seguinte esquema:
Quadro 3 – Esquema organizativo
do Operador de Mercado Ibérico
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Na Cimeira Ibérica de Santiago de Compostela, a 30 de Junho de 2005, foi celebrado um
convénio, mais tarde consagrado em Tratado
Internacional, ratificado nos Parlamentos dos
dois países. Na Cimeira Ibérica de Évora, em
18/19 de Novembro de 2005, foi fixado o arranque comercial do OMIP para o início de Julho de 2006, o que veio de facto a acontecer.
4. A organização do Mercado
O objectivo da bolsa de derivados do OMIP
é o de contribuir activamente para a constituição de um Mercado Ibérico, tanto pela formação de preços de referência ibéricos de forma
transparente e eficiente, como para dotar o
mercado de ferramentas eficientes para a gestão de risco.
Uma das missões do OMIP é a de contribuir
para a eliminação do chamado risco de contraparte, próprio das operações a prazo, e também ultrapassar as limitações que existem nos
negócios bilaterais (OTC – over the count).
Numa primeira fase o OMIP arrancou com produtos futuros de base – semanas, meses, trimestres e anos – bem como a compensação de contratos OTC. Com o tempo, pensa evoluir para
produtos mais sofisticados – produtos para períodos de ponta (peakload futures), restos de mês
(balance of the month), opções, derivados que tenham
outras formas de energia como subjacente, etc.
O OMIP está organizado com uma unidade
de negociação que é responsável pela organização
dos leilões e pela actividade de negociação em
contínuo. Possui também, com autonomia social, uma câmara de compensação – a OMIClear –
que funciona como contraparte central e é responsável pela gestão das garantias e liquidações.
Os contratos negociados no OMIP quando
entram em fase de liquidação podem ser liquidados fisicamente no OMEL ou ser objecto de
uma liquidação financeira junto do Banco de
Portugal.
Os membros do Mercado podem ser de negociação ou de compensação. Neste momento o
OMIP já tem 33 membros com a seguinte distribuição geográfica:
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Figura 2 - Distribuição geográfica dos membros do Mercado do OMIP
5. A actividade do OMIP
A performance de uma bolsa mede-se pela sua
profundidade (o número de ofertas disponíveis diariamente por parte dos agentes do mercado) e pela sua liquidez (o volume de negociação verificado). O quadro seguinte representa a
evolução dos volumes de energia negociada
desde o arranque do OMIP.
A actividade acumulada nesse mesmo perío-
do é resumida no quadro 6. Nele se faz a distinção do volume que resultou dos leilões periódicos de energia, da actividade em regime contínuo e ainda a compensação de contratos OTC.
Costumamos fazer um paralelo entre o start
up do OMIP, como operador do Mercado de
Derivados do MIBEL, com outros operadores
similares de mercado europeus comparáveis,
nomeadamente o francês (Powernex) e o alemão (EEX).
Quadro 5 – Evolução dos volumes de energia negociada no OMIP (MWh)
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Quadro 6 – Resumo de Actividade do OMIP como mercado a prazo
de 3.Jul.07 a 23.Jan.08 – Volumes negociados (GWh) e valores (M €)
De uma forma geral o desempenho do OMIP
não é muito diferente daqueles dois congéneres, embora a EEX já tenha mais liquidez e os
preços da Powernex sejam mais voláteis.
Entretanto o OMIP aceitou novos desafios.
Teve a responsabilidade, a partir de 2007, na
operacionalização e na gestão, para a REN Tra-
ding, dos leilões dos VPP (virtual power plants),
em Portugal e de fazer a gestão de parte das
garantias, e dos leilões CESUR (contratos de
energia para subministro de último recurso) que
se realizaram em Espanha e que envolvem também o comercializador português.
Quadro 7 - Comparação do arranque do OMIP com outras bolsas congéneres
Europeias: Powernex (França) e EEX (Alemanha)
6. Conclusões
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O que se verificou a partir da última Cimeira
Luso-espanhola (Badajoz, 24/25 de Novembro
de 2006) foi uma clara manifestação de vontade
política de acelerar o processo de construção do
MIBEL. É exemplo disso o grande conjunto de
medidas entretanto assumidas pelos dois países e que estão bem traduzidas no compromisso assinado pelos dois ministros da Economia
em Lisboa, a 8 de Março de 2007, o chamado
«Plano de Convergência Regulatória» e no esforço por fazer cumprir essas decisões no terreno.
A recente Cimeira de Braga, 18 e 19 de Janeiro de 2008, veio reafirmá-lo, aprovando alterações ao Tratado de Santiago, o qual carece agora
de ser ratificado nos dois parlamentos. A integração dos dois pólos no futuro OMI – Operador Único do Mercado Ibérico – foi consagrada e deve acontecer nos três meses seguintes
à sua entrada em vigor. É esse o próximo desafio do OMIP.
É legítimo interrogarmo-nos sobre o futuro
do mercado ibérico da energia eléctrica. Entendemos que tal virá a resultar da forma como
encaramos a liberalização do sector eléctrico e
da harmonização regulatória e normativa e, em
última análise, da convergência tarifária.
Também dependerá da capacidade da União
Europeia levar à prática as medidas que podem
acelerar este processo e que incorporam as propostas apresentadas na reunião dos ministros
da Energia de 19 de Setembro de 2007 – o terceiro pacote para o sector energético.
Mas pode também consolidar se associar a
electricidade ao gás natural, dando origem à criação de um mercado ibérico para o Gás Natural
– o Mibgás.
Em resumo, vale a pena explorar as vantagens de consagrar a Península Ibérica como espaço de inovação organizativa e regulatória nos
sectores energéticos, a nível europeu, na medida em que isso se traduzir num benefício para
agentes do sector e consumidores finais.
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A liberalização do sector da energia, o MIBEL (Mercado