Seminário “Evolução do Mercado Interno de Energia” Sessão II – O Mercado Nacional e o Mercado Interno Europeu Mercado e Concorrência Discurso do Presidente da Autoridade da Concorrência Minhas Senhoras e Meus Senhores, Gostaria de felicitar a Associação Portuguesa de Energia pela organização desta iniciativa e pela oportuna escolha do tema, num momento em que este possui especial relevância, face aos resultados dos inquéritos sectoriais recentemente divulgados pela Comissão Europeia bem como da discussão de remédios que surgirá na sua sequência. Os desafios da liberalização dos mercados energéticos A liberalização dos mercados energéticos na Europa, tendo por pano de fundo a concretização do mercado interno da União Europeia, tem fundamentos económicos sólidos. De facto, a produção de electricidade é hoje, fruto dos desenvolvimentos tecnológicos, uma actividade efectivamente contestável, e aliados às actividades de rede, tipicamente monopólios naturais, desde que convenientemente reguladas quanto ao seu acesso, permitem criar um ambiente favorável à concorrência. As decisões descentralizadas dos agentes económicos no domínio da produção podem substituir com vantagens a lógica de planeamento centralizado dos meios de produção que subsistiu em muitos países até à abertura dos mercados energéticos. É uma mudança de paradigma importante. O regime de planeamento central em que as decisões de investimento pertenciam ao Estado, maximizava o objectivo de garantia de abastecimento, contudo, com um custo elevado, assente na fórmula dos Contratos de Aquisição de Energia que passavam todos os riscos de exploração para as empresas utilizadoras e consumidores individuais. O paradigma de concorrência diz-nos que é aos agentes económicos que pertence a decisão de investir. São os agentes económicos que correm o risco. Diz-nos também que os agentes económicos em ordem a serem competitivos vão procurar as tecnologias mais eficientes do ponto de vista do custo de produção. A procura da eficiência é um benefício importante ao qual o planeamento centralizado não dava resposta suficiente. Obviamente que para que os benefícios esperados da liberalização produzam os seus efeitos pressupõe-se que seja conferida aos agentes económicos a liberdade de instalação e que o acesso às redes seja realizado de forma transparente e objectiva. E a resposta do mercado tem sido positiva. A este respeito, note-se, que em diversos mercados europeus se assinalam desenvolvimentos positivos, a avaliar pela quantidade importante de investimentos em novas capacidades de geração em ciclos combinados usando o gás natural como fonte primária de energia. E é neste contexto que surge a ligação entre a liberalização do gás e da electricidade. Existem argumentos lógicos para que os agentes económicos do sector do gás natural entrem no sector eléctrico e vice-versa, criando concorrência e favorecendo a concorrência. Contudo, ao contrário, estes benefícios são claramente postos em risco quando agentes dominantes de cada indústria se propõem fundir. Os efeitos de fecho dos mercados que podem daí advir podem ser de tal forma extraordinários que põem em causa os méritos que são expectáveis da liberalização em ambas as indústrias. A concretização do mercado interno – Da teoria à prática A concretização do mercado interno de energia cria expectativas positivas quanto aos benefícios que podem daí ser extraídos, traduzidos em incrementos do bem-estar e acrescida eficiência económica. Contudo, os resultados dos inquéritos sectoriais, recentemente divulgados pela Comissão, permitem verificar que estamos ainda longe de concretizar os objectivos últimos pretendidos com a liberalização. Com efeito, o ponto de situação actual permite verificar um conjunto de problemas que afectam a generalidade dos mercados energéticos na União Europeia. A elevada concentração do mercado, seja nos mercados eléctricos, onde a posse dos activos de geração contínua fortemente concentrada nos incumbentes, seja nos mercados gás natural, onde os incumbentes continuam a controlar as importações e as fontes de produção, onde elas existem. Acrescem os efeitos de foreclosure vertical dos mercados, derivado da integração vertical entre actividades que ainda subsiste. Nos mercados eléctricos a integração vertical entre a produção e comercialização num mesmo grupo empresarial retira liquidez aos mercados grossistas de energia e torna o processo de formação de preços opaco. No gás, o nível de separação de actividades no seio dos incumbentes é tido ainda como insuficiente, actuando em desfavor dos novos entrantes. Por outro lado, o mercado interno encontra-se ainda significativamente fragmentado em diferentes espaços nacionais. Nos mercados eléctricos tal tem a haver com os limites físicos das interligações mas também com diferenças de desenho de mercado entre países que actuam em desfavor das trocas transfronteiriças de energia eléctrica. No gás natural, apesar dos imensos fluxos de trânsito que ocorrem nas redes transeuropeias de gás natural, o comércio transfronteiriço desta fonte primária não é ainda uma realidade, dado que estas redes estão reservadas para contratos de muito longa duração detidos pelos incumbentes. Por fim, os mercados energéticos caracterizam-se pela falta de transparência, que se correlaciona com a falta de liquidez dos mercados grossistas – relacionado com a prevalência das transacções bilaterais intra-grupo ou com a preponderância dos contratos de longa duração na estrutura de aprovisionamento de gás natural – mas também com o acesso em tempo útil a informação necessária para o bom funcionamento dos mercados. Note-se que a transparência é um aspecto de vital importância no funcionamento dos mercados. Em última análise, sem sinais de preço eficientes compromete-se o investimento futuro. Por isso, para que a liberalização produza os seus efeitos e numa perspectiva dinâmica é necessário que os mercados funcionem convenientemente. Como se posiciona então Portugal no contexto da concretização dos objectivos associados ao mercado interno de energia? Em inúmeros aspectos sabemos que as conclusões que levaram à proibição, por parte da Comissão, da concentração EDP/ENI/GDP permanecem válidas. A posição da Autoridade ficou clara desde o início de 2004 com a publicação do estudo da CEPA (Cambridge Economic Policy Associates Ltd), dirigido pelo Prof. Newbery da Universidade de Cambridge, disponível na página na Internet da AdC. A Autoridade confirmou depois a sua posição em conferência de imprensa. Desde cedo fomos partidários de uma maior concorrência a nível da produção, distribuição e comercialização da electriciddae, bem como eliminando barreiras à entrada no gás. Partilhámos também da visão de que se deviam criar as condições para o aparecimento de além da EDP de mais 1 ou 2 grandes players na energia, para além da abertura ao mercado ibérico, que pudessem criar um mercado mais concorrencial. E como se prepara um mercado ibérico é evidente que as aquisições cross-border assumem mais relevância. Continuam ainda por resolver diversos aspectos para que a liberalização das trocas grossistas de electricidade seja uma realidade. Apesar da recente resolução do Conselho de Ministros que estabelece a Estratégia Nacional para a Energia, globalmente positiva quanto às propostas que contem no domínio da concorrência, verifica-se que ainda está por estabilizar o quadro legal do sector eléctrico, o mercado organizado eléctrico continua sem indicações quanto ao seu desenho nem quanto às regras a observar na gestão da interligação com Espanha e os anunciados investimentos em novas CCGT’s estão ainda por licenciar. A abertura à concorrência do sector do gás, apesar de se prever a sua antecipação face ao limite temporal da derrogação atribuída a Portugal pela Directiva do Mercado Interno do Gás Natural, continua ainda sem data perspectivada para o seu arranque. Acresce que o mecanismo estabelecido para a recuperação dos custos ociosos decorrentes da extinção dos Contratos de Aquisição de Energia – designado por CMEC – não oferece garantias nenhumas quanto à prevenção de comportamentos estratégicos por parte do incumbente nacional. Com efeito, a possibilidade de foreclosure vertical no mercado eléctrico Português é claramente mais forte que na maior parte dos países europeus, dada a dominância que a EDP detém na produção e o quase monopólio na distribuição, sobretudo no contexto de um mercado onde a contratação bilateral terá previsivelmente um peso importante. Como os consumidores não têm um lobby poderoso muitas vezes as soluções adoptadas são as mais onerosas para estes. Como sabemos, vai-se assistir a uma forte subida dos preços da energia nos próximos anos, devido à forma como os CMECs foram estruturados. A Autoridade já tinha feito saber ao Governo anterior que havia soluções mais amigáveis da concorrência. Por outro lado, o reforço da interligação, sendo importante, não será suficiente, do ponto de vista de concorrência, para considerar que os mercados ibéricos se integrem. Aliás, mesmo em países onde os sistemas eléctricos estão mais fortemente interconectados com os seus respectivos vizinhos, os mercados continuam a ser considerados como de âmbito nacional, como resulta da jurisprudência comunitária e das diferentes autoridades nacionais de concorrência. Contudo, considerar que os mercados geográficos são distintos de forma alguma significa que estes não se inter influenciem. Resultantes do comércio transfronteiriço de energia eléctrica identificam-se claramente efeitos importantes de preço e de quantidade, reproduzidos nas quotas dos agentes dominantes num e noutro lado da fronteira. Com efeito, a interligação pode constituir fonte de uma importante pressão competitiva externa, sendo esta uma das mensagens que está claramente presente no processo de construção do mercado interno de energia eléctrica. Contudo, é claro, tal pressão competitiva externa dependerá do comportamento concorrencial do mercado vizinho. Aplicando em concreto ao caso Português, sabemos que quanto mais competitivo for o mercado Espanhol, maior será essa pressão competitiva externa em Portugal. Ora esta constatação está na base da discussão que emerge com a recente decisão da Comissão Europeia em torno da verificação da ausência de dimensão comunitária da operação de concentração Gas Natural / Endesa. Se é verdade que à luz do actual regulamento comunitário de concentrações esta operação de concentração não cumpre a regra dos 2/3, como referiu a Comissária Neelie Kroes na sequência dessa decisão, essa regra não se encontra hoje ajustada à definição óptima da afectação de competência entre autoridades nacionais e comunitárias, constituindo mesmo um obstáculo a um tratamento consistente dos casos. Com efeito, a Comissária defende que apesar do impacto substancial que tal transacção poderá ter nos mercados energéticos Europeus, a sua análise está fora da competência comunitária, aquela, que também no entender da AdC, se demonstraria a mais adequada para proceder à sua análise. De facto, uma operação de concentração com aquela dimensão produz efeitos que se estendem potencialmente para além do território Espanhol. E as inter influências entre os dois mercados ibéricos são hoje evidentes, até porque existem razões para que Portugal seja claramente importador líquido de energia eléctrica dada a existência de um parque electroprodutor mais eficiente em Espanha, quer relacionado com a presença do nuclear, quer relacionado com os ciclos combinados que se estimam entrar em funcionamento nos próximos anos. Um dos principais méritos da liberalização prende-se justamente com a promoção da eficiência. O mercado eléctrico em Espanha, apesar dos inúmeros problemas, identificados nomeadamente no Libro Blanco, sobre os quais falará o seu autor na sessão da tarde, caracteriza-se pelo forte adição de novos ciclos combinados, distribuídos por mais de uma dezena de produtores distintos, onde marcam presença os incumbentes Belga, Irlandês e Português e também com um forte protagonismo do incumbente espanhol do gás natural. Em Portugal, investimentos em novas capacidades de geração por parte de produtores alternativos são tão ou mais importantes que os investimentos no reforço da interligação com Espanha no sentido de promover a concorrência. Os potenciais problemas de foreclosure vertical determinam que comercializadores sem activos de geração se posicionem desfavoravelmente face ao incumbente. Contudo, quanto aos novos investimentos em activos de geração em Portugal, continua-se, apesar das diversas intenções de investimento já manifestadas publicamente por diferentes agentes económicos, na mesma situação de há 2 anos. Em última análise, os sucessivos obstáculos criados aos licenciamentos podem comprometer a realização desses investimentos e põem claramente em causa a credibilidade internacional de Portugal no que respeita à captação de IDE. Sem novos investimentos, sem tecnologias de geração mais eficientes, não existe lugar aos ganhos expectáveis com a liberalização. Naturalmente, para que a entrada na produção seja uma realidade urge também liberalizar o mercado de gás para os produtores de electricidade. E definir claramente as regras que vão presidir à forma como a energia será transaccionada. Refira-se, a este propósito, a importância fundamental do OMIP para criar um ambiente favorável à contratação de energia, nomeadamente a contratação a prazos mais longos que a hoje oferecida no mercado pool Espanhol, e com a capacidade de fornecer preços forward da energia, tão essenciais à actividade dos comercializadores no mercado liberalizado. Face a este retrato, e no sentido de diminuir a incerteza futura que está subjacente à concretização dos tratados internacionais necessários à efectivação de um mercado organizado com regras comuns a Portugal e Espanha, seria porventura útil pensar, de forma antecipada, a concretização de um mercado à vista nacional. Tal poderia alicerçar e previamente ao MIBEL a experiência dos agentes económicos nacionais num funcionamento de um mercado à vista, aspecto que requer tempo de aprendizagem e experiência. Embora tenha sido opção excluída desde o início, dada a reduzida dimensão do mercado Português e a dominância que a EDP neste detém,1 um mercado à vista nacional não significaria de todo o modo que se deixassem de estabelecer trocas de energia eléctrica entre o mercado Português e Espanhol. Aliás, há formas de promover a relação entre dois mercados com desenhos institucionais distintos que permitem optimizar o uso eficiente da interligação, tendo em vista a arbitragem de diferenças de preços entre sistemas eléctricos. Esta solução exige a formatação das regras de um mercado pool nacional, matéria complexa e que toma o seu tempo a concretizar, mas será de qualquer forma uma melhor solução do que a que temos hoje e necessária se a concretização dos acordos internacionais entre Portugal e Espanha continuarem num estado de impasse. 1 Existem formas de limitar a dominância, como o Livro Branco espanhol propõe de uma forma acertada. Este retrato ficaria incompleto sem uma referência à regulação sectorial, dada a importância decisiva que tem para o bom funcionamento do mercado. De facto, para que o mercado funcione exige-se um bom quadro regulatório, assegurado por um regulador sectorial forte e independente, como hoje existe. Sabe-se também como uma correcta actuação regulatória ex-ante previne a formação de problemas que em última análise recaem sobre a alçada das autoridades de concorrência. Este facto é confirmado pela leitura recente dos inquéritos sectoriais promovidos pela Comissão Europeia, na sequência dos quais se promoverá uma consulta pública tendo como fim último a discussão e proposta de remédios estruturais, regulatórios e de concorrência. Este processo, diga-se, já teve um episódio anterior na revisão que foi operada nas Directivas do Mercado Interno do gás e electricidade em 2003, que abandonaram o modelo de acesso negociado às redes e confirmaram a individualização jurídica das actividades de transporte e distribuição como standard mínimo de separação, quando antes bastaria a separação contabilística, confirmando essas soluções regulatórias como claramente insuficientes para criar um ambiente concorrencial são e não discriminatório. E neste sentido, aproveitando a iniciativa do Libro Blanco Espanhol e o leque de soluções que nele foram desenhadas com vista a limitar a concentração no mercado eléctrico, seria de todo o interesse prolongar essa reflexão a Portugal. Com efeito, é importante pensar medidas que mitiguem a concentração no sentido que os problemas que se verificam hoje em muitos mercados eléctricos europeus, entre os quais o de Espanha, não ocorram também em Portugal. Os desafios que se colocam com a liberalização dos mercados energéticos em Portugal, em face dos dados do problema com que hoje nos confrontamos, suscitam necessariamente um papel activo da regulação, que se quer independente, e de uma preocupação central com o estímulo da concorrência, como fórmulas que permitirão dar corpo à concretização dos objectivos de maximização do bem estar e da eficiência. Desejo a todos uma boa sessão de trabalho.