A LIBERDADE DA IMPRENSA E A NOSSA LIBERDADE
Gisela Gondin Ramos
Um povo que não conhece sua história está fadado a repeti-la. A frase é
atribuída ao líder revolucionário da China, Mao Tsé-Tung. Sentenciado por
muitos como um dos ditadores mais perversos da história1, ele certamente
sabia do que estava falando. No Brasil, aqueles que proclamam a necessidade
de uma regulamentação para a imprensa, não precisariam ir muito longe para
conferir a verdade contida nesta afirmação. Uma rápida visita a nossa história
recente seria suficiente para desembotar a memória, e jogar algumas luzes
sobre esta questão.
Em 1964, o futuro ministro das comunicações no governo Médici, Higino
Corsetti, declarou que “se as emissoras de TV não melhorarem o nível cultural
de seus programas, o governo terá que intervir, pela sobrevivência da
televisão brasileira”2. Na mesma época, o General Justino Alves inovava o
conceito de liberdade, e quem sabe procurando tranqüilizar os espíritos mais
céticos, garantia que “a imprensa continuará livre, mas (em matéria de
restrição à liberdade, acreditem, sempre há um “mas”) é preciso que continue
colaborando com as autoridades”.
Já na fase inicial da ditadura militar, os áulicos do poder deixavam claro o
apreço que tinham pela democracia. Em 1965 o então ministro da Justiça do
governo Castelo Branco, Juracy Magalhães, afirmava sem pudores que as
“eleições diretas são um perigo para as instituições”. Forte nesta convicção, o
regime edita o Ato Institucional n°. 2 (AI-2), estabelecendo eleições indiretas
para presidente da República, e aumentando os poderes do executivo que, a
partir daí poderia decretar o recesso do Congresso, intervir nos estados, além
de baixar atos complementares em questões de segurança nacional. É o
mesmo ministro da Justiça quem explica: “o governo decidiu restringir
algumas liberdades para ampliar a área da própria liberdade e beneficiar o
povo brasileiro”. Na mesma época, tentando acalmar os ânimos de
parlamentares preocupados com a abrangência dos poderes concedidos ao
Executivo, o então deputado e futuro ministro da Justiça no governo Geisel,
Armando Falcão, ameniza a situação dizendo que “as cassações de mandatos,
se forem feitas o serão com o maior critério”. Não disse ele, naquela
oportunidade, quais seriam estes critérios, mas hoje todos sabemos quais
foram. O final daquele ano é marcado pela edição do Ato Complementar n°. 4
(AC-4), que impõe ao país uma nova legislação partidária, e limita a dois os
partidos políticos: ARENA (Aliança Renovadora Nacional) e MDB (Movimento
Democrático Brasileiro). Quem sustentava o regime, aderiu ao primeiro; aos
1 In Shelley Klein. Os Ditadores mais perversos da História. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. SP: Editora Planeta do Brasil,
2004.
2 Todas as citações destacadas, e sem nota de rodapé específica, foram extraídas da Obra “É dando que se recebe...e mais 1499
frases tiradas da boca da História”, de Carlos Eduardo Novaes, SP: ed. ática, 1994.
1
resistentes, qualquer que fosse a ideologia política, sobrou apenas o refúgio no
segundo.
O ano de 1966 assiste quase que anestesiado ao desaparecimento, em doses
homeopáticas, das liberdades públicas, não obstante algumas vozes se
levantem em alerta, como a do dramaturgo Dias Gomes: “Só existe uma
liberdade no Brasil: a de falar em liberdade; e quando se começa a falar
muito em liberdade, é sinal que ela não existe ou que está para
desaparecer”3. A edição da Lei 5.250, em fevereiro de 1967, autorreferida
como “lei de imprensa”, provou quão proféticas foram estas palavras. Roberto
Campos, então ministro do planejamento do governo Castelo Branco, tentava
minimizar alegando: “o que se pretende apenas é salvaguardar a honra de
homens públicos submetidos a uma dieta diária de calúnias”. A partir daí as
“boas intenções” ficaram mais explícitas e outras vozes se somaram ao coro
dos indignados. A deputada Conceição da Costa Neves, do MDB/SP, chegou
mesmo a sentenciar: “a nova lei de imprensa é a última pá de cal sobre o
cadáver da democracia brasileira”. Mal sabia ela, naquela data, quantos
cadáveres ainda moldariam o quadro ditatorial que se construía.
1968 entrou para a história como o ano que não acabou por conta da edição
do famoso, embora ainda pouco lembrado, Ato Institucional n. 5 (AI-5), que
proibiu manifestações políticas, suspendeu a garantia do Habeas Corpus, e na
sequência serviu de fundamento para o mais violento golpe contra a
República: o fechamento do Congresso Nacional. Apesar de tudo, como é
próprio dos regimes totalitários, ainda se tentava dissimular. O General Costa
Cavalcanti, ministro das Minas e Energia, dizia que “o Congresso não está
fechado, e sim em recesso”. O presidente Costa e Silva não deixava dúvidas de
que o parlamento era um órgão apenas acessório, ao dizer: “sacrificamos
transitoriamente o secundário em benefício do que é fundamental para Brasil”.
Nessas ocasiões, meia dúzia de iluminados estão sempre a postos para dizer o
que é melhor para o povo.
O grande problema com os regimes totalitários é que nunca se satisfazem com
o poder que amealham, e continuam querendo sempre mais e mais. A
liberdade, por certo, é sempre um incômodo, e algo a ser combatido sem
tréguas. Em 1970, no VI Congresso Brasileiro de Radiodifusão, o presidente
Médici dizia aos participantes: “o governo não pode assistir, omisso e
silencioso, à competição pela audiência só de números, à custa da
deseducação do povo”. Em 1972, o vice-líder do governo, Deputado Clóvis
Stenzel (ARENA), proclamava que “a subversão comunista, apesar dos males
que nos tem causado, é menos perigosa para a nação que os excessos da
televisão”; A Censura Federal emitia um Comunicado às emissoras de TV
proibindo a aparição de Dener, Clodovil e Clóvis Bornay “e qualquer outro que
faça o gênero”. Como donos incontestes da moralidade pública, diziam no
comunicado: “Não será permitida, sob qualquer pretexto, a inclusão nos
programas de artistas que possam transmitir estímulos negativos à formação
moral do telespectador”. No mesmo ano, o então presidente nacional da
ARENA, senador Filinto Müller, tentava apaziguar os ânimos explicando: “não
3
Grifos nossos.
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podemos dar total liberdade de imprensa para as manifestações de quantos
desejam destruir nossa liberdade”. Talvez alguns ainda acreditassem que ele
estava se referindo à liberdade do povo. Mas pensamos que, a esta altura dos
acontecimentos, muitos já enxergavam o que havia por detrás das máscaras,
embora a grande maioria, por absoluta falta de informações, fosse mantida
impotente e silenciosa. E é precisamente isto o que faz a falta de liberdade de
imprensa: garante a ignorância, a desinformação, e faz o povo refém de um
poder sem limites.
A questão dos oligopólios nos meios de comunicação também não passou
despercebida aos militares. Em 1975, Quandt de Oliveira, então ministro das
Comunicações do governo Geisel, perguntava: “é válida a televisão nas mãos
de uns poucos a falar para quase todos?”. Este parece ser um argumento
recorrente do poder arbitrário, talvez porque de fácil convencimento, embora
subverta a lógica. Com efeito, numa República democrática, os problemas da
liberdade são melhor e mais eficazmente resolvidos, como dizia Tocqueville,
com mais liberdade. No Brasil, as televisões e rádios são concessões públicas,
de forma que o Estado tem em mãos os instrumentos necessários para
distribuí-las de forma a garantir a pluralidade. Quanto aos jornais e revistas, a
nossa Constituição já garante que a sociedade civil organizada conceba
mecanismos que estimulem a livre circulação de idéias.
Sob o império da Constituição de 1988, não há como o Estado interferir na
liberdade de imprensa sem violar os direitos fundamentais insculpidos no art.
5º., reforçados no particular pelas garantias estipuladas nos arts. 220 e
seguintes. E nem se diga que há, aqui, qualquer confusão nos conceitos de
liberdade de imprensa e liberdade de expressão. O que é a primeira senão
uma das formas da segunda?! A imprensa é um MEIO pelo qual se manifesta a
opinião, o pensamento. Obviamente que, se estes não podem ser cerceados, o
MEIO também não pode. Para os que insistem numa monitoração, vale
registrar as sábias palavras do jornalista Rodrigo Haidar, lembrando que, de
qualquer modo, o controle social da mídia, já existe. Nas democracias ele é
feito por um cara chamado leitor, livre para ler ou deixar de ler o que quiser4.
Aos excessos, que sempre podem existir, temos um Poder Judiciário, com a
legitimidade constitucional para corrigi-los. De fato, é bom estar sempre
alerta, porque aquilo que chamam de liberdade DE imprensa, não é só a
liberdade DA imprensa. É da NOSSA liberdade que estão falando.
Enfim, é de se recordar o aviso de Rui Barbosa, de que por trás de toda
intenção em controlar a imprensa, há sempre o desejo nunca revelado de
submeter a controle a consciência da nação. E, do mesmo Rui, a lembrança
ainda pertinente sempre que se falar em marco regulatório para a imprensa:
"se o império não se temeu dessa liberdade, vergonha será que a República
não a tolere".
Por tudo, não temos dúvidas de que defender a “regulação da mídia” não
apenas é investir no desprestígio das instituições democráticas, desconfiando
da inteligência do povo, mas, sobretudo, é apostar no atraso. A vida deve ser
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Postado no twitter @RodrigoHaidar, em 03 de setembro de 2011.
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vivida no presente, com a consciência do passado, mas com os olhos voltados
para o futuro. E o futuro é a LIBERDADE.... a plena e sempre bem vinda
LIBERDADE, que os déspotas temem, e em frente a qual toda forma de
autoritarismo estremece.
Advogada, Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), onde
integra a Comissão de Direito Constitucional, e autora da obra Estatuto
da Advocacia: Comentários e Jurisprudência Selecionada (Ed.
Forense).
* O texto publicado não reflete necessariamente o posicionamento do IAB
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