A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO
DE 9 A 12 DE OUTUBRO
A AURA DA ESPACIALIDADE QUILOMBOLA:
A “HISTÓRIA-PRETEXTO” DO “SER QUILOMBOLA”
ENQUANTO PROJEÇÃO DE FUTURO
ZAIRO CARLOS DA SILVA PINHEIRO1
Resumo:
Esta pesquisa tem por finalidade estabelecer uma reflexão do “ser quilombola” enquanto fruto de
imaginários “nas” espacialidades e “no” presente. O que atualmente se entende como “resgate da
memória”, ou como “ancestralidade quilombola” (sob o conceito “tradição”), na nossa análise é tida
enquanto uma aura (Benjamin) de “história-pretexto”, isto é, agrupamento de sentidos dos mais
variados em prol do objetivo de ir para o “futuro” e de se “desenvolver” como qualquer outra
comunidade (entidade) que se pretende moderna. A base desta reflexão é a Comunidade de
Remanescentes Quilombolas de Pimenteiras do Oeste (Rondônia). O “ser quilombola” é, portanto,
considerado aqui como fluído, não tendo nenhuma ontologia que o sustente, a não ser a ontologia
fundamentada na fluidez do presente (exógeno/endógeno).
Palavras-chave: espacialidade; aura; história-pretexto; ser quilombola; Rondônia.
Abstract:
This research aims to establish a reflection on the “quilombola being” as a consequence of
imaginaries “in the” spatialities and “in the” present. What recently is understood as “memory rescue”,
or as “quilombola ancestry” (under the concept “tradition”), in our analysis is seen as an aura
(Benjamin) of “excuse-history”, that is, the grouping of varied meanings in favor of the objective of
going to the “future” and of the “auto-development” as any other community (entity) that aims to be
modern. The basis of the reflection is the Community of Remaining Quilombolas in Pimenteiras do
Oeste (Rondônia). The “quilombola being” is, therefore, considered here as a fluid, not having any
2
ontology to sustain it, but the ontology based on the fluidity of the present (exogenous/ endogenous).
Key-words: spatiality; aura; excuse-history; quilombola being; Rondônia.
1
Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Rondônia – UNIR. E-mail:
[email protected]
2
A tradução se deve a gentileza da profa. Laura Borges Nogueira. Assessora de Relações
Internacionais: International Affairs Advisor, do Instituto Federal de Educação – IFRO.
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1 Introdução
Mas é preciso um sacrifício, porque
realmente deve vir à luz um novo
momento, porque a nova realidade
não é apenas uma conclusão da
ultrapassada, e sim contém em si
algo mais, não é um corretivo para o
passado, mas é ao mesmo tempo
novo início. (Kierkegaard, 2010, p.
244).
A realidade passada (de uma comunidade) não pode ser descartada, mas sim
compreendida. Porém, junto aquela existe a realidade presente que é inteiramente
“nova” porque procura responder aos anseios (interno/externo) que estão no tempoespaço da atualidade. Segundo Kierkegaard (2010, p. 259), a realidade históricoespacial entra em “relação” com o sujeito de maneira inteiramente justificável: como
“dom” (presente, dádiva) e como “tarefa” (o desejo de ser realizada). Para o caso da
comunidade quilombola de estudo, o “dom” é a presença do passado transmitido
nas oralidades dos sujeitos em relação com seu ambiente de entorno. O passado
quer ainda existir e existe, como práticas “tradicionais”, não (podendo) ser
esquecido. A tarefa que se apresenta, ou a possibilidade para esse diálogo é o seu
“ser quilombola” (SQ), pois este permite justificar, tanto a presença histórica, quanto
a realização propriamente dita (o se fazer efetivo) da comunidade no espaço atual.
O conceito de “aura”3 é retomado aqui de Benjamin (1994). Porém, dá-se um
sentido totalmente positivo, diferente do negativo dado por ele. Para Benjamin,
levando em conta a obra de arte, a aura (essência) é perdida em sua
reprodutibilidade técnica. Isto é, ela nunca será apreciada porque a
reprodutibilidade, caráter “opressivo” da modernidade, a leva sempre para mais
longe do “conteúdo” original. Eis o sentido negativo dado por Benjamin. Ao contrário,
ao nosso ver, esta “perda” não é perda, mas ganho, tanto para o próprio objeto
(sentido lato), quanto para quem o aprecia no presente. De modo semelhante, a
“história-pretexto” (HP) se torna a aura de ligação, porém, não como “retorno à
Benjamin descreve a aura, assim: “é uma figura singular, composta de elementos espaciais e
temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja.” (1994, p. 170). Não
queremos aqui alongar sobre uma discussão metafísica da aura, apenas, queremos tomar este
conceito no que ele tem de positivo para compreensão de nosso tema.
3
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tradição”, ao mundo de escravidão e sofrimento da comunidade (como poderia ter
sido, ou foi no passado), mas como projeção de futuro.
Com essas ponderações, o desdobramento do imaginário nas espacialidades,
presentes nas falas dos sujeitos membros da Associação de Remanescentes
Quilombolas de Pimenteiras do Oeste (ARQOS) torna-se o “novo início”, no sentido
dado por Kierkegaard na epígrafe. Nesse sentido, o passado e/ou o imaginário nas
espacialidades vividas ganham sentido de “história-pretexto”. Isto nada mais é que
possibilidade de diálogo com o passado, enquanto vis inertiae (força de inércia) em
prol de algo que não seja visto enquanto retorno da tradição.
2 A geograficidade metodológica da história oral
A metodologia empregada na pesquisa tem por princípio a perspectiva
fenomenológica porque é o que mais nos aproxima das vivências, que expressam as
espacialidades tomadas como singularidades e transitoriedades.
Nesse sentido, podemos dizer que o imaginário das narrativas expõe a
espacialidade. O método fenomenológico da geografia é realizado na obra de Éric
Dardel (2011), leitor de Gaston Bachelard (1990, 2001), o qual se leva em conta
para o entendimento da espacialidade quilombola. O processo desdobrado a partir
dessa perspectiva fenomenológica, não se diferencia nem do momento descritivo,
nem do de análise. Toda descrição já predispõe uma explicação ou interpretação.
Na escolha do tema já está implícito as possibilidades de realização da pesquisa.
Assim, apresentamos a seguir as imersões que fizemos no mundo quilombola
para conhecer suas narrativas, bem como, os processos “transcriativos” utilizados
para captar a geograficidade através da história oral.
A metodologia da história oral não é um “dar voz” aos vencidos, mas um
“ouvir”, com a intenção de buscar uma compreensão do sujeito e de qual modo ele
se apresenta dentro do diálogo, porém, de forma singular. Compreendê-los nessa
singularidade é o objetivo. Mas pretende-se que essa compreensão esteja ligada
não mecanicamente, mas em forma de parceria, para que o resultado da
investigação seja não uma visão única do pesquisador, mas de uma compreensão
mútua com os sujeitos do fenômeno estudado, ou seja, os sujeitos quilombolas.
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A partir do exposto, estamos ligados diretamente às obras de José Carlos
Sebe Bom Meihy (1990, 1991, 1996) e de Alberto Lins Caldas (2001). Podemos
dizer que este tipo de história oral é um “novo olhar” no sentido em que coloca o
sujeito no zênite da pesquisa. Portanto, e nesse sentido, a história oral torna-se
processo de geograficidade, em que a Geografia acadêmica passa a ver e
compreender a importância dos sujeitos para a compreensão do fenômeno
estudado, sem aquele caráter puramente academicista já bem criticado por variados
autores, entre eles, Josué de Castro (2012, p. 240-241).
Expõe-se todo esse desdobramento a partir da metodologia da história oral
meihyana, de quatro maneiras: primeiro, o “processo transcriativo”, em que o mesmo
perpassaria todo o processo de organização das fontes orais para melhor
aprimoramento qualitativo. Segundo, caracteriza-se pela “transcrição” como parte
importante na configuração dos diálogos gravados ipsis litteris. Terceiro, a
“textualização”, que se apresenta como um momento em que o narrador aparece
integralmente no texto escrito; por último, a “observação participante”, que com sua
prática fecha todo o processo transcriativo para permitir um sentido de conjunto de
todo o trajeto desta investigação.
3 O imaginário nas espacialidades quilombolas: “apropriações” enquanto
“história-pretexto”
Se outrora a linguagem usada pelos antigos escravizados era a guerra de
resistência ao cativeiro, sob mocambos, a guerra era com paus e pedras; hoje, a
linguagem falada e os mecanismos legais do Estado são a forma atualizada dessa
luta. A diferença entre as duas formas não é de natureza, mas de grau. A primeira
se queria fazer pela força bruta, a atual pela “persuasão”, ambas respostas a seus
respectivos momentos históricos. Nosso interesse neste item se volta para a
segunda forma, que de certa maneira não está longe da primeira: nas duas devemos
ver lutas por “objetivos peculiares” (os imaginários) dos envolvidos, que estarão
sempre de acordo com o espaço-tempo, isto é, com seu “interesse” de grupo social.
Para a investigação do escopo geral da pesquisa, para o qual este texto e um
aporte sucinto, o interesse volta-se para a análise do papel do “imaginário” nas
espacialidades dos quilombolas do Vale de Guaporé/RO. Para este fim, pensa-
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se no seguinte objetivo específico: identificar as narrativas de (re)construção das
espacialidades quilombolas a partir do imaginário social do “indivíduocoletivo”. São as narrativas que fundamentam a aura das espacialidades do SQ
enquanto HP para o desenvolvimento da própria comunidade estudada.
Deve-se levar em conta que o SQ se fundamenta na HP a partir dos sujeitos,
no presente. Saber apenas que se teria “uma origem escrava”, com ascendência
negra ajuda o SQ, portanto, parcialmente. O impulso para que o SQ se faça, isto é,
ganhe vida, é gerada pela HP, ou seja, o sentido que a comunidade se apropria para
que ela mesma se reconheça enquanto prenhe de SQ. De certa forma, essa troca
de sentidos não é constatação nova, pelos anos cinquenta do século passado, o
cientista político Leslie Lipson, constatava que,
Humanity contains no master-race, nor race de slaves. Many people that
have considered themselves racially unmixed, and therefore “pure,” (sic) are
not so in fact. Communities that have accepted, or even welcomed,
miscegenation have frequently gained in the quality of their human material.
A contemporary witness to this truth is the Brazilian nation, which is the
outcome of inter-breeding between Europeans, Indians, and Negroes
4
(LIPSON, 1954, p. 145).
Ora, se não há, como nunca deve ter havido, “raça-pura” em lugar algum do
planeta, então, como defender uma comunidade tradicional - seja negra, seja
indígena - como se faz tão costumeiramente hoje? Não se vê outra possibilidade
para tão ampla defesa e criação de comunidades tradicionais na atualidade que uma
necessidade que qualquer grupo social tem de se fazer valer e se fazer referendar, e
porque não, para poder sobreviver. Isto é, cada grupo procura sua “históriapretexto”.5 Esta nada mais é que o meio existencial para, não retornar ao passado,
mas para ir para o futuro, que em certa parte é completamente indeterminado.
Em tradução livre: “A humanidade não contém raça-pura, nem raça de escravos. Muitos povos que
se consideravam racialmente sem mistura, e, portanto, "puros", não são assim, na verdade. As
comunidades que tenham aceitado, ou mesmo dado um “bem-vindo” para outras, portanto, a própria
miscigenação de seu povo, têm frequentemente enriquecido a qualidade de seu material humano.
Uma testemunha contemporânea [Lipson escreve pelos anos 1950] para esta verdade é a nação
brasileira, que é o resultado da mistura entre europeus, índios e negros”.
5
Como exemplo do que se procura dizer aqui, toma-se o caso do holocausto judeu. Este não passou
como corolário de uma “história-pretexto”, usada pelos nazistas, e pelo qual gerou todo o nefasto
extermínio de outras “raças” tidas como inferiores.
4
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Para Seu Tarcísio (9)6 a aura do SQ aparece claramente, na sua fala, como
que “justificada” pela aura da HP, quando comenta que:
Nossa relação com isso de quilombolas ... olha isso ainda fomos saber
desde o tempo ... já de criança saber que nós somos descendente de
quilombos ... Desde criança ... já criaram com aquele ... é ... nós sabia
que a nossa descendência era dos quilombolas ... que nós éramos
escravos ... nós fomos criados já sabendo que tinha essa vida ... né? ...
que nós era daquela família ... (TARCÍSIO – 9).
Ao dizer “Nossa relação com isso de quilombola” torna possível indicar que há um
estranhamento, mas que este não o incomoda, pelo contrário, isso transforma-se na
possibilidade do SQ aparecer e se tornar real: sua justificação histórica. A relação
com o SQ se faz ao longo de sua vida? Sim, pelo seu dizer “que já de criança saber que
nós somos descendente de quilombos”.
Seu Tarcísio não teve escolaridade, mas nem
por isso não deixou de aprender com as estórias contadas pelos seus pares, que
preenche seu imaginário e o ajuda a entender o que vem a ser, agora, quilombola.
Para outro narrador, como Seu Eulálio, que mostra uma intenção puramente
econômica na sua fala, a herança quilombola, como “história-pretexto” se torna o
meio pelo qual pode vir o desenvolvimento material tão esperado, quando comenta:
“Se vir algum recurso pra gente ... pra mim ...”. Seu Eulálio sabe que, em outras
comunidades ao longo do rio Guaporé,7 ao se dá a formação de entidade quilombola
possibilitou ganho econômico, logo, se a ARQOS for também reconhecida, pode
melhorar a vida material dos sujeitos associados. Ao dizer que em outra comunidade
como Pedras Negras alguém “fez financiamento pra comprar gado ... comprou motor ...
tem prazos de pagamento ... com umas taxas com juros muito mínima ... é através dessa
associação ...” (EULÁLIO – 20),
ele mostra a consciência desse “novo” sujeito, que é
também um ser político, que visa algo material porque faz parte do mundo a vida
com recursos para a sobrevivência.
6
As falas estão em negrito, seguidas pelo número que indica o parágrafo a qual fora retirada na
narrativa completa. Sugere-se a leitura das narrativas dos sujeitos. Aqui, devido ao caráter de artigo,
as falas só aparecem recortadas, estando completas na tese (PINHEIRO, 2014).
7
Até o momento, as comunidades reconhecidas em Rondônia como quilombolas são: Santo Antônio,
Forte Príncipe da Beira, Pedras Negras, Rolim de Moura do Guaporé, Laranjeiras, Jesus e por última,
Santa Fé. Ver o site: <http://www.palmares.gov.br/?page_id=88&estado=RO>. Acesso em 20 de maio
de 2015.
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Nesse sentido, a ARQOS surge com o mesmo espírito que outras
instituições como a Igreja, a Família ou o Estado. Porém, cada instituição tem sua
própria peculiaridade, com a qual, nesse sentido, dialogaria. Isso é o que se chama
de “elo” (ou “história-pretexto”) que justifica a criação da ARQOS. Assim, cada
instituição humana, na figura de seus membros, busca seu caminho. De acordo com
as palavras de Lipson (1954, p. 160), “If the good life were unobtainable through
politics, it must be sought in other ways”.8 Esse outro meio de se encontrar “a boa
vida de outrora” nada mais é, referindo-se a comunidade de estudo, que a busca de
um passado de resistência e escravidão que justifique outra saída para os
problemas atuais.
Visto assim, a ideia de “exclusão social” vem para reforçar este novo
caminhar da comunidade em busca de seu desenvolvimento de maneira ampla,
mesmo que esse desenvolvimento nunca venha a tornar-se de fato. Porém, a
ARQOS não é somente um aglomerado de indivíduos, é uma associação de
necessidades complexas, por isso nos voltamos paras os sujeitos. Por exemplo, o
“elo” da Comunidade quilombola de São João, no estado do Paraná, pautou-se no
“direito pela terra” (LÖWEN SAHR et al., 2011, p. 19). Isto é, a referida comunidade
para não ser expulsa de seu lugar, “dialoga” com termo “remanescente quilombola”
para poder sobreviver e trilhar caminhos dentro das regras atuais. De certa maneira,
dadas às peculiaridades de cada comunidade afora, isso é o que se constata em
Pimenteiras.
O sentido de “história-pretexto” torna possível, por exemplo, entender como
a própria líder dos quilombolas pode comentar: “A ideia dos quilombolas surgiu assim ...
A primeira vez que eu ouvi falar foi quando eu estudava ... lia muitos livros assim ... Nossa
história mesmo dos negros sempre me chamava a atenção ... né?”
(BECA – 42). Observa-
se que para Beca o seu elo é “A ideia dos quilombolas surgiu assim”, isto é, dos “livros”
de história. Como que, querendo dizer: “o SQ é novo para mim”. Portanto, o SQ para
a comunidade estudada é fundamentado em seu contato pelos discursos e pelas
práticas, isto é, pela prática que o passado deu, mas com o sentido impulsionado no
presente. Isso não quer dizer que os sujeitos “inventaram” deliberadamente a
Em tradução livre: “Se a boa vida era inalcançável por meio da política, deveria ser procurada por
outros meios”.
8
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ARQOS, ou sua herança quilombola, mas todo processo se formou porque tudo na
sociedade humana é “criação humana”. O interesse volta-se aqui para a
compreensão dessa “criação”.
A origem quilombola, que ajuda a formatar o SQ, aparece para Seu Paulo
(52) não mais como uma herança pelo contar de histórias familiares, mas pela
descendência direta quando diz que:
Descendo de pai e de mãe quilombolas ... e de meu vô ... vem do meu
vô daí ... vem da minha mãe ... das duas vós por parte de mãe ... e meu
vô por parte de mãe ... esse era de lá de Vila Bela ... que era um
cativeiro mesmo ... meu vô. (PAULO – 52).
Seu Paulo sente uma presença de sofrimento na vida dos negros que
moravam em Vila Bela. Como essa ideia de sofrimento veio até ele? Não seria a
“história-pretexto” sendo utilizada pelo SQ? É o que se afirma. Não se sabe se pela
família somente ou por escutar outros falares, todavia, pouco importa aqui a origem
do discurso, mas como esse torna-se uma realidade, no presente, e em que viabiliza
o SQ aparecer nos sujeitos, tornando-se a conditio sine qua non.9
Para a historiografia, a antiga capital do Mato Grosso, Vila Bela, não era um
“cativeiro mesmo”
como é para Seu Paulo. O imaginário (re)constrói, à maneira que
pode, a partir de seu modo existencial, sua espacialidade. Isso não quer dizer que
Seu Paulo não esteja dando uma verdade para o fato, que todos leem, de que a
história de Vila Bela não foi a de um cativeiro, mas sim de uma cidade em que era a
sede do governo da capitania do Mato Grosso. Ao mesmo tempo, ao afirmar que
Vila Bela era “cativeiro mesmo”, seu Paulo está a pensar, indiretamente, que lá
existiam pessoas e que estas viviam em sofrimento, o que não deixa de ser verdade.
Não há livro de história algum,10 que defenda Vila Bela como um “cativeiro
mesmo”;
e sim, que foi uma cidade na qual escravos trabalhavam, o que é diferente
de “cativeiro”. Nesse sentido, Seu Paulo se liga ao sofrimento dos que viveram
naquela cidade se valendo da “história-pretexto”. Ao compartilhar, através da fala, o
sofrimento, ele restaura ou redime o próprio sofrimento no presente.
9
Expressão latina: “uma questão imprescindível”.
Para acesso a estudo antropológico de Vila Bela, ver a obra de Maria de Lourdes Bandeira (1988).
10
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4 Considerações Finais
Para compreender a aura das espacialidades, isto é, o “querer SQ” foi que
nos propomos a compreender de que maneira surge o “SQ” nas diferentes
espacialidades e temporalidades da trajetória coletiva e individual no Vale do
Guaporé/RO, levando em consideração o ambiente narrativo dado pelos sujeitos no
quilombo Pimenteiras.
Há, sem dúvida, para a formatação desse “SQ” genérico, as influências de
diversos agenciadores (o Estado, as ONGs, o Movimento Negro, entre outros),11
porém, sem desconsiderar esse aspecto, o foco central da investigação se voltou
para entender as espacialidades (re)construídas pelo grupo e pelos indivíduos ao
longo do percurso histórico vivenciado pelos mesmos, os quais se “utilizaram”,
daquelas características exógenas ao espaço vivido na atualidade para dar
continuidade ao seu desenvolvimento enquanto “história-pretexto”.
Mas, mesmo levando em conta o que dissemos anteriormente sobre a
influência dos agenciadores, não podemos perder de vista o sentido, dado pelo
presente, desse “SQ”. Este passa a ser entendido como “forma aparente”
encontrada pela comunidade para se (re)construir: ganhar projeção de futuro.
Porém, isso não exclui de forma alguma sua ligação com o que se chama de
“passado”. Entende-se, apenas, que o passado é ampliado com o sentido que a
comunidade estudada, mesmo sem se dar conta, o qualifica, através da
compreensão do universo das narrativas e da observação in loco. Enfim, o passado
é tão somente: “história-pretexto”.
Desse modo, não vemos os fatores exógenos como “causadores” do bem ou
do mal para a comunidade. Isto é, a espacialidade presente da comunidade
pesquisada, sob o “imaginário” que tem por base uma espécie de “esforço procurado
por novos objetivos”, dá sentido aos fatores exógenos, e deles se “apropria” para
lhes dar sentido. Compreendido dessa maneira, os “agenciamentos” perdem aquela
característica “negativa” indicada pelas pesquisas sobre a quilombagem
remanescente no Vale do Guaporé em Rondônia. O “SQ”, pelo menos da
comunidade em questão, não tem sentido antitético aos agenciamentos; pelo
11
Para uma profunda análise das influências exógenas (os agenciamentos) ao ambiente de uma
comunidade quilombola, ver a tese elaborada por Carla Holanda da Silva (2013).
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contrário, “serve-se” deles enquanto aura de uma espacialidade fundamentada a
partir da (re)utilização da história sobre a escravidão.
Nesse sentido, mesmo não perdendo de vista a perspectiva que leva em
conta as influências exógenas, acredita-se que são os sujeitos que “pautam” suas
próprias espacialidades. Não encontramos “culpados” pela não inclusão dos sujeitos
nas “conquistas” do Estado, e menos ainda, os próprios sujeitos são culpados pela
sua possível procura de “inclusão” dentro das conquistas materiais almejadas a
partir de sua posição enquanto quilombolas. Porém, esta afirmação só tem sentido
para a comunidade estudada, não podendo ser levada para as outras comunidades,
nem dentro ou fora do Vale do Guaporé.
Na verdade, tanto os “agenciadores” quanto os quilombolas desta pesquisa
fazem parte de um todo que vai além deles. No entanto, esta perspectiva holística
do fenômeno foge ao nosso objetivo, que se restringe apenas a uma pequena
parcela do todo dado pelo fenômeno do ser quilombola, em Rondônia, e logo, no
restante do país.
Sendo assim, a reivindicação dos membros da ARQOS enquanto
remanescentes quilombolas, faz parte do anseio de (re)construir uma espacialidade
que persiste no “imaginário” do grupo e que o liga – enquanto comunidade
quilombola – com um passado de sofrimento e escravidão, mesmo que tais
“sentimentos” não tenham sido vividos empiricamente pelos próprios envolvidos.
Como anteriormente expressado, o SQ é fruto de um anseio “novo”, como “esforço
imaginário”, porque é, como todo fazer humano, algo de prospectividade, que visa
objetivos que fogem até mesmo ao momento presente.
Não é por acaso que para efetivar esse “esforço procurado por novos
objetivos” faz-se necessário a “luta política” materializada sob a ARQOS, que
permite entender o “indivíduo-coletivo” e seu sonho em busca de refazer uma
harmonia com as espacialidades, onde sujeito e espaço entrem em sintonia.
Devemos esclarecer novamente que a pesquisa, empreendida na
comunidade, não pretende identificar uma “identidade” quilombola enquanto
“resgate”, pois é outra “realidade” o que qualificamos de “espacialidade quilombola”
para a comunidade estudada. Esta não só difere no tempo-espaço, mas
radicalmente tem disparidade a qualquer outra que tenha existido, no “passado”.
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Então, se há uma “identidade” com o passado, dos sujeitos quilombolas na
comunidade de estudo, isso se deve mais a sua diferença no presente, isto é, a
“perspectiva” atual, que retoma a antiga ancestralidade quilombola (a imagética
antiga, ou “história-pretexto”) como elo para novos objetivos. Ela é, a comunidade
quilombola atual, tão somente uma possibilidade de comunidade quilombola em
(re)construção provisória a partir do imaginário nas espacialidades.
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