Alain BOUREAU A PAPISA JUANA A mulher que foi Papa Título do original francês: A PAPESSE JEANNE Traduzido por: GUADALUPE LOIRO DO URQUÍA 1988 Aubier. 1989 fotografia coberta THE PIERPONT Morgan LIBRARY. 1989, Editorial EDAF, S. A. Jorge Juan, 30. Madrid. Para a edição em espanhol por acordo com o EDITIONS AUBIER, Paris (França). ISBN: 84-7640-353-4 Depósito Legal: M-388S1-1989 PRINTED IN SPAIN IMPRESSO NA Espanha Gráficas Rogar, S. A. Leão, 44. Pol. Cobo Ruela - Fuenlabrada (Madrid) A PAPISA JUANA Detalhe de «La Papisa», naipe do Tarot Visconti-Sforza, pintado por volta de 1450 por Bonifacio Bembo ou Francisco Zavattari, e que se conserva na biblioteca Pierpont-Morgan, de Nova Iorque. índice índice de ilustrações e planos Prólogo à edição espanhola Introdução Primeira Parte O SEXO DoS PapaS UMA HISTÓRIA ROMANA Primeiro capítulo: OS PONTIFICAIS Habet duos, 29.—A papisa: o rumor e o rito, 30.—Ritos e olhares, 31.—As duas primeiras testemunhas: Adão do Usk e Jacobo do Angelo, 33.—A Coroação do Gregorio XII (1406), 34.—Enigmas do rito de verificação de virilidade, 37.—Algumas testemunhas do século xV, 41.—Malícias de Platina, 42.—Brincadeiras humanistas e murmúrios pró testantes, 44.—Um luterano na coroação do Inocencio X (1644), 46.—Imagens do rito de verificação, 48.— Primeira explicação: a ré vancha dos intelectuais frustrados, 49.—A substituição «evangelista»: Rabelais, 53.—O horror do Roberto do Uzès, 54.—Segunda explica ción: o medo à invasão feminina, 56. —A exclusão do sacerdócio feminino no direito canônico, 57.— Justificação dos glosis lhas, 59.—Estruturas medievais da obsessão pelo feminino, 61. Capítulo II: HISTÓRIA DE UM ASSÉDIO Morfologia do rito de verificação de virilidade, 67.—Asseiem-nos tosse perfurados, 69.—A hipótese do Onofrio: sela parte ras, 71.—Crítica da hipótese, 73.—Primeira aparição dos asseiem tosse: a coroação de Pascal II (1099), 74.—Os assentos curules de 1099, 77.— Lucano, a cúria e o papado, 78.—Transações papais, 81.—A Cúria como Senado, 82.— Função política do rito de 1099, 85.—Fragilidade e escuridão dos significados rituais, 86.—A Cadeira de São Pedro, 88.—Eminência do Letrán, 89.—Da cadeira à coroação, 91.—Na soleira do palácio, 93. Capítulo III: AS PapaS ENTRE DUAS SEDES A Cornomanía segundo Juan Diácono, 95.—O testemunho do cônego Benito, 96.—Uma contra-liturgia, 98.—O investimento como revanche dos clérigos, 100.—O investimento como revanche comunitária: as diaco-nías, 102.—A paródia no calendário litúrgico, 104.—O espaço de compromisso no carnaval romano, 107.— Fim do compromisso: O espaço abstrato da dominação papal, 111.—Juana como última ré vancha, 113.—A sistematização dos ritos de coroação no século XII, 114.—Novos sentidos das cadeiras curulas no século XII: 1. A metáfora teológica, 118.—2. A metáfora eclesiástica: a soleira dos apóstolos, 119.—3. A metáfora jurídica: o corpo da Papa, 121.—Pilhagem e poder, 122.—A Papa morre, 124.— Conclusão: naci minto da Juana, da revanche ao rumor, 126. Segunda Parte JUANA A CATÓLICA Capítulo IV: JUANA A CATÓLICA (Séculos XIII-XV) Primeira forma: um sucesso em uma crônica, 131.—O enigma da Juana, 132.—Uma crônica em busca de autor, 134.—A rede domi nica, 135.—Contá-lo tudo, 136.—A Igreja à conquista do imagi nario, 137.—Azar e necessidade: as versões Enikel e vão Maerlant, 141.—Forma 2: do sucesso ao exemplum. Esteban do Borbón (H. 1260), 142.—A moral na história: Jacobo de Voragem (por volta de 1295), 144.— A Papisa no alfabeto: Arnoldo da Lieja (1307—.), 148.—O método do Martín, 148.—Do exemplum ao caso jurídico-histórico: Martín o Polonês (H. 1279) (Forma 3), 153.—Acreditar na Juana?, 155.—Excursus comprido, mas necessário, sobre a fé na Idade Média, 156.—Fortuna da Juana, 162.—Acertos, 163.—A fórmula das P e o esquecimento da tra dición franciscana, 166.—O texto da fórmula, 168.—A fabricação da fórmula, 168.—Os franciscanos e a pseudo-Papa, 171.—A Papa angélica e a pseudo-Papa: a junta de 1294, 175.—Juana, patrono da infalibilidade papal, 178.—Juana nas fronteiras, 182.—Juana no Cisma, 184.—Juana e os cães de Deus, 189. Capítulo V: A PAPISA E SUAS IRMÃS Juana como alegoria, 191.—A invenção do Tarot, 193.—Juana no Tarot, 194.—O jogo Visconti-Sforza, 196.—A papisa Manfreda, 197.—Mudança de escala, 200.—A papisa como bruxa, 202.—As duas figuras da Juana de Arco, 204.—Juana como feiticeira, 208.—A profetisa cristã, 211.—Uma má profetisa, a Pythya, 212.—Volta da Sibila, 214.—Loucuras da virgem prudente, 216.—Quatro configu racione, 218.—Uma profetisa na soleira da Igreja: María Robine, 22O.—Hildegarda do Bingen, profetisa maior da Igreja, 221.—A feminilidade e o sagrado na Hildegarda, 223.—Uma sexualidade feminina mística, 224.—As tiaras da Hildegarda, 226.—Um parecido de profetisa: a mulher no sistema do Roberto do Arbrissel, 228.—A profetisa domesticada, 230.—Guillermo Postel e seu Papisa Juana, 231.—Juana entre as damas deslumbrantes, 234.—A papisa Juana do Boccaccio, 235.—O trabalho do Boccaccio, 237.—Paixões da Juana, 238.—Posteridade do Boccaccio, 240.—A papisa do Tegernsee, 242. Terceira Parte MORTE E TRANSFIGURACIÓN DA PAPISA Capítulo VI: JUANA NA FOGUEIRA (séculos xV-xVII) A dúvida de Ns Silvio Piccolomini (1451), 247.—Roma e a Germa- nia: da invectiva à paródia, 249.—Boêmia ou a heresia como terri tório, 251.—Ns e Juana entre os selvagens, 252.—Juana e a Grande Rameira, 255.—Sinais do Anticristo, 257.—Juana entre as Amazo nas e os Hermafroditas, 259.—Fontes da Juana luterana, 261.—Primeira narração luterana: Juan Bala (1548), 264.—A papisa do Pedro Pablo Vergerio (1556), 265.—Baforadas de crença, 269.—-Juana repudiada pelos seus: Onofrio Panvinio (1562), 270.—Jesuítas e devotos ao assalto da Juana, 274.—O fim da Juana: o desprezo calvinista e racionalista, 276. Capítulo VII: BRASÃO LITERÁRIO DA PAPISA Fraw Jutta (por volta de 1480), 282.—O purgatório literário da Juana (1480- 1777), 285.—A papisa clandestina do Carlos Borde (1777), 287.—As luzes germânicas da Juana: Winkopp (1783), 290.—As luzes italianas da Juana: Casti (1804), 291 .—Juana no anticlericalismo teatral (janeiro 1793), 293.—O momento da Juana,; 294.—Juana na carreira de um autorator, Pedro Léger, 295.—A Juana do obstina dou Defauconpret, 298.—A papisa perdida do Flins dê Oliviers, 301.—Juana e a nostalgia revolucionária do Teodoro Desorgues (1801), 304.—Genealogia da papisa do Achim von Arnim (por volta de 1815), 306.—A papisa do Arnim, 310.—Pequeno intermédio teórico, 313.—Leituras burlescas, 314.—Um episódio de história cultural ale emana e inglesa (1890-1930), 316.—Leituras novelescas, 318.—Leituras metafóricas, 318.—Yentl, ou a ambivalência, 319.—Um crime, ou a mulher Cristo, 319. Epílogos capítulo VIII: PRIMEIRO EPILOGO.—HISTORIOGRAFIA DE LA PAPISA Capítulo IX: SEGUNDO EPILOGO.—O CORPO DO JUANA Notas Bibliografia cronológica de obras ou de fragmentos de obras dedicados a papisa Juana índice de ilustrações e planos - Detalhe de uma vinheta do Liber chronicarum do H. Schedel, Nurenberg, 1943 (Biblioteca Nacional, Paris) - Vinheta que lustra as Lectiones memorabiles do J. Wolf, Frankfurt, 1600 (B.N., Paris) - Fotografia do assento de «pórfido» do Letrán, conservado no museu do Louvre (negativo propriedade de Reunião dê Musées Nationaux) - Plano: espaço pontifício e espaço cidadão na Roma do seglo XII - Plano: o itinerário papal desde o Letrán até o Coliseu - Página do Liber chronicarum do H. Schedel, Nurenberg, 1493 (B.N., Paris) - Ilustração para o M. Schrott, Von der erschrocklichen Zurstorung dê Bapstums, 1550, F. A 5 V. (Germanisches Nationalmuseum, Nurenberg) - Vinheta que ilustra a edição do Boccaccio (De claris mulieribus), Ulm, 1473,f. 107 V. (B.N,París.) - Miniatura que ilustra uma tradução francesa das Mulheres dêlumbrantes (Femmes éclatantes) do Boccaccio, princípios século XV, Paris Arsenal, MS. 5193, F. 371 (B.N., Paris) • Ilustração para o Apocalipse na Bíblia do Lutero, Wittenberg, 1522 (B.N., Paris) Prólogo à edição espanhola Estava eu atarefada em um trabalho sobre a concepção dualista da cultura, que atribui uma tendência viril ou feminina a determinadas atitudes estéticas ante a vida, quando me brindaram a tradução de La Papesse Jeanne, do Alain Boureau, obra de recente aparição no mercado francês. O oferecimento não podia ser mais oportuno, pois a figura equívoca da papisa, presente no morbo popular há séculos, é sem dúvida, e precisamente por razão da ambigüidade que comporta sua identidade, um arquétipo desse dualismo que, como diz Guillermo Díaz-Plaja, «rege toda a história da cultura humana»*. Esta é, no meu entender, a essência do atrativo que exerce Juana, e também o segredo de sua larga e singular vida, concebida nas brumas do rumor medieval, mas cuja isto problemática é, o antagonismo entre os valores masculinos e femininos, entre o poder e a submissão, entre o religioso e o laico, entre o que parece e o que é, etc.—, que subjaze no dualismo, interessa ao leitor de hoje porque cai totalmente em nossa atualidade. Assim o entendeu Alain Boureau, e com seu Papisa Juana nos oferece não só um estudo erudito e exegético sobre um personagem sugestivo, mas também uma reflexão muito oportuno sobre um tema tão próximo a nossa realidade diária qual é o dos critérios que, em última instância, presidem a distribuição dos papéis na sociedade moderna. Poderemos coincidir ou não com dita reflexão, mas o que é seguro é que não poderemos sustraernos ao encanto da Juana do Boureau, e que seguiremos com interesse crescente suas peripécias ao longo e largo da Europa durante perto de oitocentos anos de paixões humanas, por conventos e praças, por palácios e frentes de batalha, nas reuniões de sobremesa e na quietude dos arquivos, e acompanhados em todo momento por esse conjunto de individualidades que, anonimamente ou de forma destacada, precedeu-nos na construção de nossa biografia, da que não sempre temos consciência clara. Como muito bem adianta A. Boureau em sua «Introdução», a história da papisa não se reduz a um episódio longínquo, envolto em um escândalo com aroma de incenso, nem tampouco a uma bandeirola de gancho habilmente agitado por descontentes, cismáticos e anticlericales. Neste sentido, quem espere encontrar neste livro um relato picante e mordaz sobre uma mulher que com engano ocupou a cadeira de São Pedro, descobrindo sua falsa identidade com um parto escandaloso na via pública, logo ficará defraudado. Pelo contrário, a quem deseja conhecer as circunstâncias que originaram semelhante fábula e as que contribuíram a sua longevidade na memória coletiva, o relato ameno e rigoroso em suas fontes do Alain Boureau não só não lhe defraudará, mas também lhe apresentará uma Papisa Juana muito mais lhe sugiram que a que, tradicionalmente, ficou-se enclausurada em seu papel de usurpadora papal. Porque Juana, ou melhor dizendo sua história, foi e é um escândalo e uma bandeirola de gancho, mas também muito mais. Produto de uma fusão de elementos cultos e folcloristas, Juana nasce do vazio histórico à plenitude do rumor, da fábula, da lenda, da invectiva, e finalmente da literatura, para instalar-se na verdade dos fatos históricos como expoente do que é e do que pode ser. Por isso, a evocação de sua lembrança provoca, ainda hoje, quando menos, um sorriso picasse e quando mais uma discussão entre quem assegura sua existência e quem a nega, fazendo-se todos eles eco, acaso sem sabê-lo, de centenares de anos de controvérsia sobre o divino e o humano —nunca melhor dizendo—, e em que possivelmente, depois de tudo, o menos importante tenha sido e seja a realidade de sua existência. Juana não existiu, e, como Boureau sublinha desde o começo, sua inexistência é um fato comprovado, isto é um dado objetivo. Mas a realidade, até sendo uma, projeta-se em muito distintos planos, e é no das crenças, receptáculo fecundo e frágil, onde a papisa encontra sua razão de ser e seu destino, que é servir e ser servida em sua condição de filha natural da história. Desde esta condição que a libera e a restringe a um mesmo tempo, Juana nos empresta sua vida como espelho no que se refletem outras vidas que nos interessa conhecer para compreender a nossa. Por isso, parece-me significativo que Boureau encabece seu trabalho com uma entrevista dos Ensaios do Montaigne. Além do conteúdo de dita entrevista, que lhe permite ao autor da papisa Juana nos situar do primeiro momento no contexto das crenças onde nasce e vive Juana, os Ensaios têm um claro sentido autobiográfico, como se desprende, entre outras coisas, das palavras prévias do Michel do Montaigne ao leitor, lhe advertindo: «Je suis moy-mesmes a matière de mon livre»*. Digo, pois, que é significativo porque acredito advertir na eleição do Boureau a intenção não já de nos referir a um testemunho direto e importante da vigência da papisa na memória romana do século XVI, referência que poderia ter resolvido com outros muitos textos, a não ser, sobre tudo, de nos sugerir até que ponto a história da Juana é a nossa. Boureau sabe do valor antropológico dos Ensaios, quer dizer do valor testimonial de vidas excepcionais que refletem a essência da condição humana, e se serve do Montaigne para nos dar uma chave temprana e inestimável sobre o significado da papisa, no século XVI e no século XX. Como hei dito antes, a oportunidade da papisa Juana do Alain Boureau é, pois, importante, e no caso da edição espanhola apresenta um interesse adicional, por duas razões, ambas as históricas. Em primeiro lugar, porque no curso de sua atormentada carreira, a papisa desempenha um papel destacado nas controvérsias doutrinais que balizam, a sua vez, a história da Igreja católica e em definitiva do Ocidente, controvérsias que alcançam um ponto gélido durante a Reforma, quando a Espanha desempenha um papel igualmente destacado, como nação católica defensora de Roma e como Império defensor de sua hegemonia, respondida em duas frentes: no cultural e no político. Em segundo término, porque a leitura global da vida da Juana nos remete em última instância, e como apontei ao princípio, a nossa realidade imediata. Refiro-me ao significado que adquire a identidade fronteiriça da papisa no contexto das mudanças registradas de um tempo a esta parte em todos os âmbitos da sociedade espanhola, entre os que cabe destacar aqui a separação Iglesia-estado, a laicización progressiva e a intervenção crescente do elemento feminino na vida civil e religiosa da Espanha. Pouco mais posso acrescentar sobre esta Papisa Juana do Alain Boureau, que não adiante o próprio autor em sua «Introdução», exceto, se acaso, duas opiniões pessoais. Por um lado, sublinhar a objetividade que preside o tratamento de alguns temas delicados por parte do Boureau, quem fugiu que panfletarismo fácil que está acostumado a acompanhar a Juana, atendo-se ao testemunho das fontes historiográficas com soltura de ofício não isenta de senso de humor; o resultado de seu esforço é que seu livro não ofende a ninguém e a todos interessa. De outra parte, significar a exígua presença da historiografia espanhola em um trabalho particularmente rico em fontes documentários. Pelo resto, só fica me reiterar nas qualidades lhes argumente deste relato ameno e esclarecedor sobre uma figura tão escorregadia como é A papisa Juana. Guadalupe Loiro da Urquía Introdução Do mesmo modo, no estudo no que me ocupo de nossos Montaigne, Ensaios, I, XXI. costumes e atuações, os testemunhos fabulosos, sempre que forem possíveis, têm o mesmo valor que se fossem verdadeiros. Porque, tenham acontecido ou não, seja em Paris ou em Roma, ao Juan ou ao Pedro, o certo é que são sempre um exemplo da capacidade humana, que é da que dou testemunho útil neste relato. «Quem poderia acreditar que ainda hoje existem em Roma pessoas que dão muita importância à história da papisa Juana?», escrevia Stendhal por volta do ano 1830. Entretanto, seu assombro não lhe impediu absolutamente ocupar-se ampliamente do tema. mais de 150 anos depois, o historiador da Juana tem que enfrentar-se freqüentemente com essa mesma classe de assombro, entre condescendente e admirativo, já que logo incorre na suspeita de querer desviar o prestígio do trabalho histórico, atraído pela piscada equívoco da crônica escandalosa, vendo-se obrigado a protestar em defesa de seu rigor e seriedade, embora sem convencer de tudo a ninguém. De fato, a história da papisa segue suscitando o desejo de penetrar nas halls e curvas do poder (neste caso de um poder sagrado e obstinadamente masculino), e durante os anos que dediquei à preparação deste trabalho assisti à aparição, na França, de uma trilogia criada novelas sobre a Juana, assim como de uma investigação sobre a secretária-enfermera de Pio XII, titulada A Popessa (por La Papessa, por efeito de uma tradução precipitada do inglês). Adverte-se, pois, um despertar incessante do gosto pela revelação extraordinária («Um escândalo no Vaticano», «A Papa era uma mulher»), expresso de múltiplos maneiras segundo os públicos. Este recurso, longe de desgastar-se ou de esgotar-se, alimenta-se a sua vez de outra fonte de poder, posto que na atualidade tanto o papado como o sacerdócio católico continuam sendo, no Ocidente, o último bastión de exclusão feminina; assim, neste reduto único pode desenvolver o antigo jogo da substituição dos sexos, falar da nostalgia da separação, ou, pelo contrário, tratar da fusão dos sexos. Riscarei aí o limite destas considerações em torno da fascinação que exerce a figura da papisa, para estabelecer a seguir minhas próprias ambições como historiador, com uma tenacidade exacerbada por essa avidez duvidosa que gera a crônica escandalosa. Em conseqüência, que ninguém espere de mim, e aqui, uma declaração de modéstia, pois o tema já se encarrega por si mesmo de me recordar minhas próprias limitações, de maneira que nestas páginas de apresentação não me ocuparei de exaltar os resultados obtidos, mas sim de explicar a natureza da tarefa empreendida e as expectativas formuladas. Consideremos em primeiro lugar o tema do que me ocupo, quer dizer, esse relato sobre a papisa Juana. A narração propriamente dita surge a finais do século XIII, e rapidamente se converte em uma versão comum que resumo a seguir, muito brevemente: por volta do ano 850, uma mulher, natural da Maguncia, mas de origem inglesa, adota a aparência de um homem para poder acompanhar a seu amante, um homem entregue a sua vez ao estudo, e portanto imerso em um mundo exclusivamente masculino. Mas também ela triunfa neste ambiente, até o ponto de que, depois de uma estadia em Atenas, onde se dedica a estudar, recebe em Roma uma acolhida calorosa e cheia de admiração que lhe franqueia o acesso à hierarquia da cúria, para finalmente ser escolhida Papa. Seu pontificado dura mais de dois anos e se vê interrompido com motivo de um escândalo: Juana, que não renunciou aos prazeres da carne, está grávida, e falece no curso de uma procissão que discorre entre São Pedro do Vaticano e San Juan do Letrán, depois de iluminar publicamente a um menino. As diferentes versões do relato vão deixando rastros, e provas, e em última instância a lembrança da existência da papisa; a partir de então, verificaria-se manualmente o sexo das Papas durante a cerimônia de coroação. Do mesmo modo, as procissões pontifícias abandonarão o caminho direto do Vaticano até o Letrán, à altura da igreja de São Clemente, para evitar passar pelo lugar onde se produziu a iluminação. Por último, a presença de uma estátua ou uma inscrição em dito lugar se encarregaria de perpetuar a memória deste incidente deplorável. Mas existiu realmente este papado? Certamente que não. O leitor que tenha albergado a esperança de encontrar a lembrança de um personagem real possivelmente possa consolar-se de seu desencanto se considerar que a presença da Juana no espírito das gente do passado foi tão real como a realidade mesma. depois de tudo, o sucesso do ano 850 só tem realidade histórica em função das crenças e dos comportamentos que gera; de ter sido real, embora ignorado, não teria passado de ser um fato insólito. Imaginemos, por exemplo, que Pio XII tivesse sido uma mulher travestida; se ninguém souber, o fenômeno, revelado por um historiador isolado, só tem interesse no que se refere à psicologia do Eugenio (ou Eugenia) Pacelli (1876-1958). Mas se o rumor se difunde transtornando a comunidade católica, seja esta a de 1995 ou a do 2123, então dito efeito gerará, por si mesmo, abundante matéria histórica. Não obstante, reconheço que o consolo proposto seria tão pequeno como rechazable (pois o historiador também se interessa pela psicologia dos soberanos) se a vida fictícia da Juana não resultasse tão sedutora. Em efeito, constitui por si mesmo um precioso tema histórico, cheio de conteúdos, embora completamente isento de verismo; é certo que não oferece ponto algum de inquietação, mas não é menos verdade que abunda em matizes que refletem um trabalho imaginário e ideológico, já que coincide ativamente com múltiplos zonas escuras da história, e em conseqüência pode tomar-se como referência visível entre as ilhotas que balizam o tempo. Quero insistir, pois, nesta orientação do tema de uma perspectiva completamente histórica e temporal da colocação proposta, detalhando a seguir os atrativos que, no meu entender, adornam a figura da Juana: 1. Em primeiro lugar, terá que dizer, não sem certo desapego, que esta narração, tantas vezes retomada, repetida, discutida e readaptada, constitui por si mesmo um fenômeno cultural (historiográfico, pictórico, editorial, literário e doutrinal) importante. 2. Mas o simples desejo de descrever um fenômeno não é suficiente para justificar uma curiosidade intensa, compartilhada durante muito tempo pelos atores e os comentaristas da história, e da que eu, a minha vez, reivindico a parte que me corresponde. O episódio da Juana encena uma transgressão capital, no coração e na cúspide mesmos da instituição fundamental do Ocidente, a Igreja. Embora resulte banal afirmar que o cristianismo representa a originalidade mais decisiva em todos os âmbitos, da história ocidental, o certo é que estamos ainda muito longe de esgotar todo o conteúdo que encerra sorte observação. E, quando a chave da abóbada do edifício central, quando Pedro se converte na Juana, quer dizer, quando a eleição divina se transforma em engano humano (e feminino), o que acontece então? Durante dois ou três séculos, todo mundo acreditou na veracidade do episódio. As gente da Idade Média se enfrentaram, pois, a esta realidade, e tentaram adaptá-la a suas próprias concepções do mundo. O ato mesmo da narração e da interpretação forma parte das táticas e das estratégias múltiplos e variadas, que envolvem os temas fundamentais da eclesiología (quer dizer, da teoria do estatuto da Igreja): o problema da validez dos sacramentos administrativos por mediação de um pontífice ilegítimo, o replanteamiento da infalibilidade do Pontífice e do princípio da tradução romana ininterrupta desde São Pedro, o tema da exclusão da mulher do sacerdócio, etc. Este embargo do escândalo e do horror, assim como os alardes e os protestos ocasionados, contribuíram decisivamente ao processo de construção da Igreja, edificada de uma vez com dízimos e com dogmas, com pedras e com o Pedro, com instituições e com crenças. E, quando os católicos rechaçaram a papisa, Juana contribuiu, da polêmica e a literatura, na construção dos edifícios reformados e laicos que se levantaram frente à Igreja. Encontramos, pois, neste episódio da Juana um tema de interesse histórico importante, entre ação e pensamento, entre religião e política, no coração mesmo da história. O relato e o rumor atuam no mesmo sentido em que um elemento químico atua e provoca reações. Esta convicção íntima me incita a rechaçar a orientação «historiográfica» destinada principalmente a descrever [ao fio do tempo] as transformações narrativas e temáticas de um texto, orientação que suscitou em diversos âmbitos a aparição de inumeráveis estudos sobre «a figura de x no tempo de e». Nosso relato, relativamente estável, se disposta pouco a essa tendência alheia a toda problemática, que trata o relato como um elemento decorativo, e que se empenha em uma contemplação abúlica das cores cambiantes que dão tonalidade ao tempo. 3. Por último, o historiador, à margem da curiosidade compartilhada, deve reconhecer os prazeres e benefícios próprios que deriva pessoalmente deste estudo, e que a sua vez espera brindar ao leitor: a história da Juana me serviu como instrumento de penetração em universos históricos complexos. Assim, a lenda da papisa, autêntica ou não, expõe o problema da crença, tema principal do presente trabalho. Entre o 1250 aos 1450 ou 1550, quer dizer durante dois ou três séculos, a Igreja crie e faz acreditar na existência da Juana, inclusive quando este episódio se afasta dela, como assim o demonstra o enfoque ulterior que protestantes e anticlericales conferem ao mesmo; portanto, que classe de crença permite de uma vez acreditar na Juana e acreditar na infalibilidade papal, claramente afirmada do século XIV? No que podemos acreditar quando nos conta dito episódio, ou quando o lemos em uma obra de ficção? O luterano que representa a Juana na figura do Anticristo, adere-se a esta representação da mesma maneira que o cronista medieval que avalia a verossimilhança do incidente? Quando se evoca o rito da verificação da virilidade das Papas, em que classe de certeza nos fundamos? A transformação radical das percepções da Juana, e da forma em que se inseriu sua história na trama dos discursos eclesiásticos, sugere a hipótese, sem dúvida discutida, de uma historicidade profunda que penetra nas formas de acreditar. Em términos mais gerais, a história da Juana, por seu caráter preciso e de tom menor, permitirá-nos entrar às vezes nos universos fechados ou complexos que revelam, quase inadvertidamente, um acesso indireto mas custodiado. Por minha parte confio em poder demonstrar que o assunto da Juana, no que se mesclam a história medieval de Roma, a liturgia e a eclesiología, proporciona-nos os meios necessários para captar certos matizes escuros dos rituais que compreende a coroação papal. Além disso, a história da papisa, pequena amostra concreta que facilita uma apreciação exaustiva das fontes, brinda-nos a ocasião de realizar um estudo sobre a casuística; assim, uma prosopografía breve dos autores de versões satíricas do episódio na Europa do século XVIII ajudará a reconstruir um fragmento da boêmia literária das Luzes, ao mesmo tempo que expõe a questão das funções e das formas do anticlericalismo revolucionário. Em resumo, trataremos a Juana como a uma figura emblemática dessa «larga Idade Média» das mentalidades, tão queridas pelo Jacques O Goff, e cujo marco cronológico situo eu a minha vez, e muito gostosamente, entre a morte de São Bernardo (1153) e a do Hegel (1831), datação que coincide, por outra parte, com bastante exatidão com a vida real da papisa. Os primeiros textos, datados por volta do 1250, fazem-me supor que a lenda nasceu a finais do século XII, e que em 1831 desaparece, ao mesmo tempo que Hegel, com o poeta prusiano Achim von Arnim, o último seguidor autêntico da Juana. A primeira parte da obra («O sexo das Papas, uma história romana») tenta recuperar e situar a origem do episódio, indagando não nos primeiros textos narrativos, que de fato nos propõem já uma história totalmente construída, a não ser no ritual de verificação da virilidade das Papas, que em um momento muito cedo, desde finais do século xIII, aparece já como a conseqüência institucional do acontecimento. Dito ritual, apresentado por autores, com freqüência próximos à a Santa Sede, como um elemento autêntico da coroação papal, não pôde referendar-se jamais alguns pontos de ancoragem para a crença na Juana. Na segunda parte («Juana militante») pretendo explicar a adesão da Igreja a esta lenda, examinando as distintas formas em que se utilizou o relato nos debates eclesiológicos da Idade Média. Como contraponto, analisamos também o lugar da papisa no horizonte das percepções clericais e laicas, ortodoxas e heréticas da mulher até a soleira da idade moderna. A terceira parte («Morte e transfiguración da papisa») apresenta o passo da Juana à controvérsia antirromana dos protestantes, que conduz ao abandono da papisa por parte da Igreja católica, no transcurso do século XVI. A seguir estudo as funções literárias da papisa desde finais do século xV até nossos dias. O livro é, pois, o resultado de dois métodos: em primeiro término (capítulo 1 ao 4), aplico um sistema de busca de indícios a partir dos rastros deixados pelo relato, indícios que intento reunir e inserir em seus próprios contextos explicativos, enquanto que os capítulos 5, 6 e 7 conformam mas bem um quadro diagnóstico. Só fica agradecer a todas as pessoas que me ajudaram nesta larga tarefa. Leitor, reconheço que às vezes me irrita este costume, porque me parece que apresentar uma lista de agradecimentos revela vaidade e impostura. Por um lado, porque dá a sensação de que o autor festeja a inauguração de um monumento com a convocatória de tantos participantes; e, por outro, porque faz uso de uma legitimação abusiva, ao propor como garante de seu trabalho a aquelas pessoas que, bem por generosidade ou por amizade, informaram-lhe ou orientou. Mas então, como agradecer sua ajuda aos que persegui para lhes pedir informação ou opinião, a todos os que têm lido meu trabalho com a paciência que só se explica pela amizade?; porque o que sim é absolutamente certo é que este livro, seja qual for seu resultado final, deve-lhes muito. Nestes momentos penso em leitores atentos como: Simona Cerutti, Colette Collomb Boureau, Cario Ginzburg, Christian Jouhaud, Giovanni Levi, Daniel Melo, Alinhe Rousselle e Jacques Revel; também em quem atendeu minhas petições concretas, como: Robert Darnton, Jan Macek, Agostino Paravicini Bagliani; e, nos que me proporcionaram pistas, como: Colette Beaune, Yvonne Cazal, Claude Gaignebet, Claudio Ingerflom, Jean-Enjoe Moeglin e Pierre Tranouez. Do mesmo modo, quero expressar meu agradecimento ao Maud Espérou, quem soube me procurar rapidamente textos impossíveis de encontrar na França, e, em definitiva, a todos os que acolheram diversas fases de meu papisa em seu seminário da Escola de Altos Estudos de Ciências Sociais: ao Claude Bremond, ao Roger Chartier, ao Pierre Nora e ao Jacques Revel. Por último, dirijo meu particular e especial agradecimento ao Bernard Guenée, quem, desde que minha investigação começasse a dar seus primeiros passados balbucientes, e sem outra garantia que a de sua confiança generosa, abriu a meu Juana seu seminário da Escola Prática de Altos Estudos, lhe dedicando depois uma sessão na Academia de Inscrições e Belas Letras, para finalmente lhe brindar um posto na presente Coleção Histórica. PRIMEIRA PARTE O sexo das Papas, uma história romana CAPITULO PRIMEIRO Os pontificais Em 16 de outubro de 1978, o conclave de cardeais reunido em Roma escolhia Papa a um prelado polonês que tomaria o nome do Juan Pablo II. No Nouvel observateur, o ensaísta e filósofo Maurice Cravo saudava o acontecimento e ao homem com as palavras seguintes: «Mas nos detenhamos. Primeiro ele. Vejo-lhe. Tem-nos. Duas et bene pendentes, com segurança. Essas costas, essas mandíbulas proletárias. trata-se de um desses hombretones fornidos, com aspecto de coelho quente, desses que, pelo menos em seu caso, tinham algo que oferecer a Deus, igual a aqueles monges medievais de estoque e de êxtase que, precisamente por esta mesma razão, alimentavam uma devoção sublime —sublimada, dirão os imbecis— para a Virgem Muito santo». Habet duos No chamado texto pode reconhecer-se sem dificuldade o tom populista e vociferante, brusco e emotivo adotado pelo Maurice Cravo, reivindicando assim a herança de Leão Bloy e do Georges Bernanos, de uma vez que assume o espírito de 1968. A figura do Juan Pablo II, prelado enérgico, de origem modesta, e forjado no ambiente combativo da comunidade católica da Polônia, respondia admiravelmente às expectativas de um dinamismo cristão, longamente esperado depois dos períodos de dúvida e de incerteza que tinha presidido a gestão atormentada do Pablo VI, e da fragilidade do Juan Pablo I. Cravo se regozija, pois, ante a chegada do robusto, do elementar, do fornido, na pessoa de uma Papa de couro e de aço, como sucessor vigoroso de pontífices apergaminados. O brasão masculino (costas, mandíbulas, força) desta emoção lhe gratifiquem e complacente se inaugura com a confirmação mesma da virilidade: «Tem-nos, duas et bene pendentes», pois esta fórmula latina cita elípticamente a frase que, segundo um velho rumor, proclamava a virilidade da Papa, verificada manualmente por um diácono depois da eleição: «Habet duos testículo et bene pendentes» (tem dois testículo, bem pendentes). A alusão de Cravo transborda seu próprio contexto de exaltação fascinada e nos situa ante a forma última de sobrevivência da lenda em torno da papisa Juana. Sem dúvida, todo mundo alcança a compreender o significado desta fórmula latina, fruto do rumor, quer dizer cunhada nesse microsaber que todos compartilham, mas que cada qual considera para si matéria reservada. De fato, no curso de nossa investigação sobre o particular, vários interlocutores nos repetiram esta mesma frase, escutada antigamente e conservada celosamente no registro da memória. Assim, dita lembrança reaviva uma fábula em que uma mulher, depois de dissimular seu sexo, chegou a ocupar a cadeira de São Pedro; após, a Igreja verificaria a virilidade dos escolhidos com o fim de evitar que se reproduzira um escândalo parecido. Entretanto, nenhum de nossas testemunhas contemporâneas soube nos dizer nada a respeito da realidade do rito. O certo é que o sistema de crenças ao que pertence o rumor impede sua invalidação, pois qualquer refutação neste sentido se interpreta como denegação, e em conseqüência como confirmação. Desta maneira, Juana passa à eternidade graças a rumorología. A papisa: o rumor e o rito O rumor ritual aparece vinculado já desde sua origem à lenda, a que a sua vez confere o peso de sua realidade e de sua atualização permanente. A fábula, como teremos ocasião de ver em um capítulo posterior, aparece por volta de 1250 na obra de alguns autores, antes de difundir-se ampliamente a partir do 1300. Além disso, por volta do 1290, o monge beneditino Godofredo do Courlon se refere em sua Crônica da abadia do Saint-Pierre-o-Vif do Sens à história da Juana, atendo-se a sua vez ao texto do dominicano Martín o Polonês (ou do interpolador anônimo que completou a Crônica das Papas de Roma e dos imperadores, por volta de 1280-1285). Mas este procedimento não tem nada de surpreendente, já que a Crônica do Martín conheceu um êxito tão imediato como duradouro, chegando a converter-se na fonte principal para os historiógrafos da Juana até finais da Idade Média. Não obstante, Godofredo acrescentou a seu modelo a nota seguinte: «Por isso, diz-se que os romanos adquiriram o costume de verificar o sexo do eleito através do orifício de uma cadeira de pedra». Em uma data muito próxima a do chamado dominicano, Roberto do Uzès menciona a sua vez uma das numerosas visões que teve durante sua estadia no Orange, e que ele data no ano 1291: «O Espírito do Senhor se apoderou de mim em espírito e me colocou em Roma... ali vi a cadeira de madeira, muito velha e vazia... e depois o Espírito me conduziu até o palácio do Letrán. Uma vez ali, depositou-me no pórtico, ante os escabelos de pórfido, onde conforme dizem se verifica se a Papa é um homem: tudo estava talher de pó e ninguém parecia estar vivo» . Assinalemos que a frase do Roberto parece implicar que na antigüidade se utilizou a cadeira de verificação, toda vez que a brevidade mesma da alusão permite supor que o leitor conhece o rito de antemão. Em conseqüência, pode inferir-se que já por volta de 1290 o rumor ritual estava estabelecido, embora ainda em sua condição oral (nossos dois autores se referem a uma tradição vaga: «diz-se...»). Durante perto de um século, o rumor ritual deixa de ouvir-se, ou melhor dizendo, seu eco não consegue chegar até nossos ouvidos. Neste sentido, seriam suficientes algumas lacunas ou desaparecimentos para que um fio tão tênue se interrompesse. Além disso, no século XIV, o papado abandona Roma pelo Aviñón; e, apesar das escrupulosas transposições litúrgicas, os ritos romanos perdem então boa parte de seu sentido e de sua complexidade fora da Cidade Eterna. Logo, logo que retornados a Roma, no 1378, as Papas recuperam o rumor ritual, em defesa própria: o continuador anônimo do cronista vienense Juan do Vicktring assinala, por volta de 1379, depois do papado da Juana, que «para evitar semelhante engano, uma vez que o eleito se sinta na cadeira do Pedro, o último dos diáconos lhe apalpa os genitálias em uma cadeira perfurada a tal efeito». Ritos e olhares Aproveitemos este silêncio de um século para fixar os objetivos e os procedimentos que presidiram uma investigação que, sem dúvida, parecerá tão tortuosa como o próprio caminho esboçado pela procissão das Papas através de Roma. Sabemos que, desde o começo de sua existência, a fábula da Juana se apóia em uma prova factual: a liturgia da coroação, tal e como se conhece, inclui um rito destinado a conjurar a reprodução do escândalo da papisa. Mas este rito não existe, ou, pelo menos, nenhum dos textos normatizados, que são muito numerosos e detalhados, e onde se fixam as formas da coroação papal, menciona-o. É certo que o rumor ritual goza do mesmo estatuto inexeqüível do rumor fabuloso, pois sua essência secreta sugere a existência oculta, invisível e inacessível de seu tema. Mas o rumor ritual habita diretamente na história e não na tradição ocupada dos livros. Em cada coroação, o rumor dirige o olhar e a interpretação dos espectadores e determina uma tática de alarde (de exibição e de defesa) por parte dos especialistas em liturgia e os mestres de cerimônias. Não obstante, antes de relatar a história de uma fábula, parece sensato esboçar a história da crença que a sustenta, já que a liturgia cerimoniosa evolui, desenvolve-se e se faz cada vez mais pública e política. Além disso, até o século XVII, os espectadores vêem, ou acreditam ver escondido, o rito de verificação da virilidade papal. Por este motivo, quis reconstruir o lugar que ocupou Juana nesses cortejos onde alguns situam a honra que lhe rende; por nossa parte, escoltaremo-lo em centenas de procissões que nos falam de sua lembrança. No momento, abandonaremos ao ser que encarna este gracioso fantasma, reservando para o final da investigação a tarefa de assinalar com que véus e com que adornos revestiu a Juana a quimera doce, ora arisca, ora maliciosa dos homens. Agora, tomaremos só como testemunha para medir o sentido e a função de certos ritos públicos; trata-se de uma tarefa imensa e árdua, para cuja realização nós gostaríamos de dispor do esplendor da Juana. Assim, e a modo de sinal permanente que se sobressai na superfície dessa onda imensa e imperceptivelmente móvel que está acostumado a ser um rito de coroação, Juana nos ajudará a nos perguntar o que é o que se oculta e o que é o que se exibe em um ritual, e o que é o que podemos apreciar neste sentido do exterior; quer dizer, o que é o que o homem domina, o que a história registra e o que a tradição a sua vez repete. Em resumo, a história do pretendido rito de verificação nos brinda a oportunidade de seguir ao mesmo tempo a construção de uma cerimônia e sua penetração, quer dizer de sua recepção por parte do público. Em efeito, a persistência de dita crença implica três posturas receptivas, igualmente reveladoras: — acreditam, de boa fé, na existência do rito; neste caso, terá que perguntar-se a respeito da complexidade das ações simbólicas, sobre a compreensão geral das cerimônias públicas com fins didáticos, em torno das escuridões que ocultam, e, por último, sobre as razões mesmas de semelhante adesão; — fingimos acreditar em dito rito por pura malícia, e então recorremos ao aparelho cerimonioso para desviar o leito de seus significados dentro dos márgenes do verossímil. Neste caso, é importante captar tanto a origem como a finalidade dessa postura, assim como as negações que suscita; — podemos, sem temor a que nos acuse, construir com a imaginação uma leitura passiva, lúdica e vizinha na paródia da cerimônia que dê réplica a nossa postura, tentando compreender assim os meios e os lugares de dita réplica. Confiamos em que, entre a atemporalidad do paradigma e a fragilidade dos contextos, possa deslizar-se até nós a magra silhueta da Juana. As duas primeiras testemunhas: Adão do Usk e Jacobo do Angelo Retomemos o fio interrompido dos testemunhos. Fora da menção isolada da crônica vienense de 1379, e apesar da ampla difusão que obteve a narração fabulosa sobre a Juana com o passar do século XIV, não encontramos rastros do rumor ritual até começos do século XV. Adão do Usk, clérigo galés, transladou-se a Roma para desempenhar ali cargos de importância, entre outros o de capelão da Papa Bonifacio IX. Em seu Chronicon relata as cerimônias celebradas com motivo do advento do Inocencio VII em 1404 ao papado, apresentando-se a si mesmo como uma testemunha ativa de ditos festejos («Tive a sorte de poder intervir em qualidade de ministro nesta cerimônia tão grande»). Em realidade, quão único descreve é a procissão pública que discorre entre São Pedro e Letrán, quer dizer, essa «tira de posse» do Letrán sobre a que voltaremos mais tarde, e que tem lugar depois da coroação na basílica vaticano, quando o cortejo papal «percorre a cavalo a cidade de Roma até San Juan do Letrán onde, em rigor, encontra-se a sede catedralicia da Papa. Desviando-se para evitar a lembrança detestável da Papa Inés [outro nome da Juana, como se verá], que se encontra representada com seu filho em uma estátua de mármore situada na via mais direta, perto de São Clemente, a Papa descende do cavalo para ser entronizado, e entra na igreja. Ali se sinta na cadeira de pórfido com o assento perfurado, para que o cardeal mais jovem se certifique de sua virilidade, e depois, aos sons do Lhe Deum, é conduzido até o altar». A qualidade da testemunha participante (exagerada sem dúvida, posto que Adão em realidade nem sequer consegue um lugar entre o pessoal da Cúria) não deve nos impressionar; de fato, este relato breve resume uma série de notas (sobre o desvio da procissão e a estátua da papisa) tão repetidas como refutadas do século XIII, de maneira que o rito de verificação se inserida de uma maneira vaga e pouco coerente na cerimônia do Letrán. Pelo contrário, sim podemos estabelecer melhor este momento concreto da verificação no relato que deixou a sua vez outro autor, contemporâneo do Adão, e que evoca com muita precisão as cerimônias celebradas para a coroação do Gregorio XII, em 1406. trata-se do Jacobo do Angelo da Scarparia, um desses humanistas procedentes do ambiente florentino, e cuja atividade se desembrulhava a cavalo entre o estudo de temas profanos e a obtenção de cargos eclesiásticos. Jacobo, natural da Scarparia, na Etruria, chega a Florência a finais do século XIV para instalar-se perto do grande Coluccio Salutati, e ali se uniu ao grupo de jovens e brilhantes discípulos do professor, como Leonardo do Arezzo ou Felipe do Bérgamo. Jacobo aprendeu grego com um bizantino que se encontrava de passagem pela Itália, Manuel Crisolaras, e depois de uma estadia no Bizancio em 1401, suas traduções do grego (algumas vidas do Plutarco e, sobre tudo, Ptolomeo) valeram-lhe a obtenção de diversos cargos menores na Cúria, que desempenhou entre 1401 e 1406, antes de converter-se em secretário da Papa Juan XXIII. Em uma larga carta dirigida ao Manuel Crisolaras, seu professor bizantino, Jacobo descreve os funerais do Inocencio VII e a coroação do Gregorio XII. A importância que reveste o relato não radica exclusivamente na menção e denegação do rito de verificação, a não ser na novidade que encerra o propósito da narração, pois se trata, com toda probabilidade, da primeira descrição não litúrgica nem hagiográfica de uma investidura papal. Graças a este testemunho, podemos, pois, seguir de perto o desenvolvimento desta cerimônia, tal e como tem lugar depois de dois séculos de elaboração, e que, embora está sujeita ainda a uma certa reserva medieval, apresenta já, não obstante, uma clara orientação cara ao público. Jacobo quer luzir ante seu correspondente bizantino o esplendor que rodeia à instituição romana e ao mesmo tempo mostrar a identificação desta última com os ritos orientais que configuram a sua vez as cerimônias de consagração das Papas e dos imperadores em Constantinopla. Com este dobro propósito, adota o ponto de vista do espectador maravilhado, mais sensível ao desdobramento de poder que à norma litúrgica e a seu significado teológico, anunciando assim toda a literatura da admiração que gira em torno das monarquias da Idade Moderna. Escutemos, pois, o relato do Jacobo, já que, por fim, permite-nos situar com exatidão as circunstâncias do rito de verificação. A coroação do Gregorio XII (1406) Os funerais do Inocencio VII se celebraram em São Pedro do Vaticano com toda solenidade e à vista do público (o corpo foi «chorado, lavado, ungido com os Santos óleos e revestidos com todos os ornamentos próprios de um pontífice, para que o espetáculo dos funerais possa oferecer-se a todo o povo, e que o defunto seja beijado e venerado publicamente»). Depois, ao nono dia, o Sacro Colégio se encerra em Conclave. Uma vez concluída a votação, começa a primeira fase do ritual de instalação, chamado tradicionalmente «eleição», mas que em realidade consiste em uma proclamação. O eleito é conduzido à basílica de São Pedro onde escolhe seu nome; «a seguir lhe despoja de suas roupas, lhe viu com sua nova vestimenta papal e lhe "coroa" com a mitra. adornam-se seus pés com sandálias douradas; lhe conduz rapidamente ao altar, onde recebe veneração e o beija-mão; reza. Depois, o primeiro diácono pontifício exclama a grandes vozes: "Vos anúncio uma grande alegria: temos como Papa ao Gregorio XII"... Acode então uma multidão extraordinária de toda classe de gente que saúda o Pastor santo, o concha, e lhe beija os pés». Na igreja contigüa à basílica se repete o rito: se concha ao eleito em um trono de pedra situado perto do altar. Enquanto isso tem lugar um curioso costume, da que temos aqui a primeira menção segura, e que nos importará logo em nossa investigação: «A que fora moradia privada do eleito é roubada aberta e, publicamente, rouba-se e se agarra tudo que se considera sagrado: o povo faz o rapa não só com o mobiliário, mas também também com as telhas, os tetos, as pedras e inclusive as paredes, e se disputa todo isso por causa de seu caráter sagrado». Por último, o eleito fixa, junto com o Sacro Colégio, o dia de sua consagração, que constitui a segunda fase da cerimônia. Na data acordada, os sacerdotes do lugar e o Sacro Colégio recebem à Papa, vestido com os hábitos pontifícios e com a mitra, na basílica de São Pedro, onde lhe veneram. Do santuário que se encontra na parte inferior da basílica, Gregorio benze à multidão. Continuando, veste-se com os ornamentos de aparelho: sandálias douradas (cuja instituição Jacobo atribui ao Diocleciano), anel, túnica bordada em ouro, toga de brocado dourado, manto triunfal e faixa de lamé dourado. Segundo Jacobo, «são ornamentos próprios de reis», e que se utilizam de acordo com uma tradição que se remonta aos soberanos etruscos, transmitida pelo Tarquino o Velho, Augusto e Constantino. Começa então a consagração propriamente dita: Gregorio se dirige para o altar de São Pedro, levando na mão um cano largo com um pouco de estopa acesa, enquanto entoam três vezes seguidas «Pater sancte sic transit glorifica mundi» (Santo Pai, assim passa a glória do mundo). A Papa chega então ao altar maior, onde só ele pode oficiar, toma assento em um escabelo e os três bispos mais dignos lhe consagram e lhe beijam a mão e os pés. Descende do altar apertado com o pálio, «que representa a dignidade do Supremo Pontífice. Ninguém pode tocar ("attrectare") este pálio, a não ser que seja a mão pura e consagrada de um sacerdote». A seguir, e «a instâncias de seu Patriarca [aqui Jacobo se está dirigindo a seu correspondente bizantino], dirige-se ao trono dos reis, um elevado trono de mármore, onde o Pai dos Pais ("Patrum Pater") e o Rei dos homens se deixa, segundo o costume, venerar e beijar por todos». depois das diversas aclamações, cujo tom militar e imperial sente prazer em sublinhar Jacobo, tem lugar a missa de consagração. Continuando, e depois de novas bênções, volta a tomar assento na cadeira elevada e começa a terceira fase da cerimônia, a coroação, seguida do rodeio para o Letrán. «Sob o olhar de uma grande multidão, os chefes do colégio pontifício, depois de retirar a mitra à Papa, colocam sobre sua divina cabeça a coroa, ou tiara, ou citaris, que se chama diadema ou regnum». Esta tiara, de cone comprido e reto, «com a que se proclama a nossa Papa Rei de reis», procede, segundo nosso autor, do penteado dos sacerdotes do salio instituídos pela Numa Pompilio, e que logo foi transmitida já como coroa aos imperadores romanos, e mais tarde, em tempos do Constantino, às Papas. Uma vez coroado, Gregorio monta em um cavalo branco, talher com uma toalha vermelha de altar. forma-se o cortejo do rodeio: 12 cavaleiros, com trompetistas e estandartes, em representação dos 12 povos da Etruria, levam os símbolos do poder romano (cadeira curula, faz, fáleros e sombrinha de seda); depois vêm os dois prefeitos da marinha («para que se compreenda que nosso Pai reina não só sobre a terra, mas também também sobre o mar»). Seguem-lhes outros dois cavaleiros blandiendo querubins na ponta de suas largas lanças, e a seguir passa a grande cruz papal de prata. O pontífice chega justo detrás, jogando na multidão moedas de prata, segundo o costume dos césares, comenta Jacobo. Ao cruzar a ponte do Adriano, os judeus de Roma, levando as Pranchas da Lei, saem ao encontro do cortejo, que segue seu curso «triunfal pela cidade», em meio de saudações e grandes aplausos «de uma multidão compacta, que arroja flores a seu passo». Finalmente, a Papa chega ao Letrán, «palácio particular de nosso sagrado Pontífice; antigamente as Papas viviam ali, quando o ar não era tão insalubre como agora, a não ser saudável e puro». «No palácio, a Papa descende do cavalo, e a comunidade de sacerdotes que atende a igreja lhe conduz até um escabelo de mármore que se encontra no centro do pórtico há uma eternidade. A este escabelo lhe chama "estercar", para que o pontífice recorde que saiu que barro e do lixo ("stercus")». depois de extrair de uma vasilha várias moedas de ouro, joga-as no povo por três vezes dizendo: «Não quero este oro para mim; não me dêem seu preço a não ser que seja porque protejo, dirijo e tenho misericórdia de meu povo». A Papa entra então na basílica do Letrán e, de um escabelo de mármore, recebe a veneração e os beijos dos sacerdotes. A seguir passa ao palácio contigüo, chamado palácio do Constantino, em cuja entrada se encontra uma cadeira curula; ali Gregorio invoca a Deus. Depois, sobe à planta do palácio, ao santuário de São Silvestre, «diante do qual há dois assentos de pórfido encravado, e, dado que estes dois assentos estão perfurados, o vulgo conta a fábula insensata de que ali se toca ("attrectetur") à Papa para verificar que em efeito se trata de um homem». No assento da direita recebe de mãos do sacerdote de São Silvestre o bastão e logo as chaves; e no segundo assento o mesmo sacerdote lhe impõe uma bandagem vermelha da que penduram doze pedras preciosas. «Com o bastão ("férula") lhe outorga, como se se tratasse do cetro real, o poder de julgar e de governar. As chaves significam o dom que nosso Redentor deu ao Pedro». Por sua parte, as pedras evocam, segundo Jacobo, o sacerdócio do Antigo Testamento. Finalmente, a Papa, despojado já de seus ornamentos, oferece um banquete público no palácio do Letrán. Enigmas do rito de verificação de virilidade A descrição do Jacobo do Angelo situa pela primeira vez o rito de verificação no contexto da cerimônia de investidura papal. Assim, no curso da terceira fase, a cerimônia de coroação e tira de posse do Letrán, substitui a um rito real, oficial: sentando-se sucessivamente em dois assentos perfurados, executados em pórfido e instalados ante a capela de São Silvestre do Letrán, a Papa distribui riquezas, para depois receber a sua vez e devolver os símbolos de poder (bastão, chaves e bandagem). Mas antes de examinar, no capítulo seguinte, a morfologia e a sintaxe deste rito oficial, podemos adiantar já algumas observações sobre o particular: 1. A verificação tem lugar em uma cadeira perfurada; a descrição do Jacobo, assim como todas as demais evocações litúrgicas, atribui um papel capital ao assento na celebração do rito oficial. É preciso, pois, destacar esta obsessão cerimoniosa pelo assento, já que se trata de um rasgo constante dos ritos de poder até o Saint-Simón. Em conseqüência, nossa investigação deve ter em conta o detalhe do inventário do mobiliário empregado na investidura papal. 2. Todas as alusões posteriores sobre a verificação confirmam o lugar, o momento e o instrumento de semelhante operação. Além disso, em boa lógica, a circunstância se corresponde muito com muita dificuldade com a função explícita do rito. Em uma data muito temprana, o direito canônico afirma que, em efeito, a Papa goza da plenitude de seus poderes do instante mesmo de sua eleição. A verificação intervém, pois, muito tarde, já que para que tivesse alguma eficácia deveria realizar-se durante o conclave, o que por outro lado facilitaria o segredo institucional sobre a operação (de fato, os autores que escreveram comédias brincadeiras sobre a papisa durante a Revolução Francesa situaram a verificação no momento do conclave). O rito dos assentos perfurados, em suas duas versões, a oficial e a legendária, apresenta, pois, uma densidade particular que é preciso penetrar e perfurar. 3. O mistério do dobro rito se aloja no enigma mais extenso do episódio do Letrán. No ano 1406, como assinala Jacobo do Angelo, o palácio já não alberga aos pontífices, e a vida litúrgica e política do papado se concentra totalmente no Vaticano. Por outra parte, esta fase da investidura se distancia cada vez mais da primeiras; quer dizer, que pode ter lugar várias semanas depois da consagração. Além disso, a cerimônia de tira de posse do Letrán se desenvolve de forma quase idêntica até começos do século XVI, quando se simplifica, mantendo-se igual até nossos dias. Inclusive nesta cerimônia nos escapa o significado de sua função: por que repetir as formas propriamente litúrgicas de investidura (entrega-a das chaves, a adoração no trono, a humilhação do estercar)? Do mesmo modo, a complexidade que supõe a chegada triunfal até o Letrán impede de considerá-la como o simples objetivo de um desfile análogo ao de uma entrada real. Letrán encerra, pois, outros mistérios, como se desprende, por exemplo, da alusão à impureza do ar nesses lugares sagrados, que são abandonados e, entretanto, estão cuidadosamente conservados. 4. escutamos durante muito momento o testemunho de um espectador particular, Jacobo do Angelo, e o fato de haver escolhido a ele precisamente tem uma justificação. Como já havemos dito, trata-se do primeiro autor que situa o rito no contexto cerimonioso; mas além disso, parecenos interessante nos aproximar da cerimônia no marco de sua existência histórica, a meio caminho entre o momento de sua encenação completa (finais século XI) e o de sua fossilização (século XVII). Não obstante, esta descrição em particular expõe ao mesmo tempo o problema da visibilidade do Jacobo. O que podia ver? Sem dúvida, algo mais que o romano ou que o viajante comum, e muito menos que um cônego do Letrán; mas persiste uma grande incerteza que nos devolve o tema insolúvel da visibilidade durante as cerimônias, e dos estilos narrativos que dão corpo a semelhantes lembranças. Nestes casos, está acostumado a se empregar o mesmo tom para contar o que se vê, o que se sabe e o que se interpreta, eliminando-se qualquer possível diferencia na entonação, dado que a ação representada é ao mesmo tempo empírica, normatizada e normativa, de maneira que «a Papa se sinta» pode ler-se de uma vez: vi-lhe sentar-se, sei que se sinta, deve sentar-se, e parece que se sinta. Neste sentido, a visão da cerimônia reveste um caráter político em seu conjunto. Mas ainda há outra pergunta sobre o Jacobo: o que queria ver?, por que evocar e reevocar ao mesmo tempo a verificação de virilidade? Mais adiante voltaremos de novo sobre este curioso mecanismo de denegação. Porque, à margem do episódio do Letrán, e tendo em conta a personalidade bizantina do destinatário da descrição, intuímos em que direção está orientada o olhar do Jacobo. Em seu relato, nosso autor prima a magnificência e a exibição de poder, de maneira que nos parecem determinantes, para avaliar o texto, a intervenção de dois fatores conjunturais: o contexto eclesiológico do qual escreve e o contexto mesmo do destinatário. Não terá que esquecer que a princípios do século XV ainda se confiava, embora por última vez, na reunificação do Ocidente e Oriente, apesar de que então a Europa estava rasgada pelo Grande Cisma. Em 1369, o imperador bizantino Juan VIII Paleólogo se converteu ao catolicismo a título pessoal; e, em 1438-1439, o Concílio Ecumênico de Florência proclamava a sua vez uma unidade ilusória. Em 1406, durante essa operação de sedução, parecia importante ampliar as dimensões imperiais do papado, único herdeiro autêntico do Império Romano, sublinhando a tais efeitos os parentescos decorativos dos rituais de investidura do patriarca de Constantinopla e do patriarca universal. Neste sentido, Jacobo não faz, pois, a não ser acentuar uma antiga tendência latina: desde que se inventasse a lenda do Constantino (finais século V), e concretamente depois da «Donatio» do Constantino (mediados século VIII), a Papa reivindica para si as insígnias do poder imperial romano. A férula que recebe no assento perfurado encerra um significado não litúrgico, a não ser político, porque o que a Papa Silvestre recebeu em seu dia de mãos de Constantinopla não foi outra coisa que o cetro imperial. A tradição e a circunstância se reencontram em torno de um objeto que não trocou, projetando assim a ilusão da continuidade. 5. À margem do contexto imediato, a cerimônia de 1406, vista por um observador alheio à mesma mas atento, comporta uma série de desequilíbrios ou de tensões, entre a publicidade e o secretismo, entre a participação comunitária e a distância calculada, entre as distintas figuras do poder representado (o pontífice universal, o bispo de Roma, o rei de reis, o senhor de Roma), entre as fontes do poder reivindicadas (cristã, judaica, antiga), entre a humilhação (rito da estopa, rito da cadeira estercolera), e a glorificação (veneração, besapiés, procissão, etc.); ambos os rasgos se misturam durante as três fases da cerimônia, sem que se produza uma progressão sintática. Por isso, tudo começa de novo no Letrán: ao Gregorio lhe dá o tratamento de bispo romano (recebe-lhe o capítulo da basílica), de supremo pontífice (entregam as chaves de São Pedro), de dono do mundo (recebe a férula de juiz e de reitor), de governador da cidade (abre-se para ele sozinho o palácio). Também no Letrán se o concha como a São Pedro, e ao igual ao Vaticano dá testemunho de sua humilhação. A cerimônia reitera os elementos do sacro, sem ordená-los em um sistema ritual de trânsito. Terá que interpretá-lo como uma indeterminação essencial e constitutiva, ou como uma proliferação da célula litúrgica original? Na descrição do Jacobo se adverte de uma maneira confusa o desejo de superar essas tensões e de representar o desenvolvimento de um simbolismo coerente do poder, embora há algo que resiste, refreando o processo. O que é? Acaso a consciência da debilidade de um poder terrestre, apoiado na crença no mais à frente? Possivelmente a obsessão cristã da vangloria do mundo? Ou, em realidade, trata-se do olhar, a voz e o contato do povo, especialmente presentes na cerimônia, solicitados por uma parte e apartados por outra; o povo quer tocar o sagrado, e por isso saqueia a moradia da Papa e beija seus pés, mas, entretanto, se o prohíbe tocar o pálio. Não obstante, através do discurso («a fábula insensata»), converte-se em partícipe do tocamiento sacrílego (os genitálias da Papa: a palavra mesma «attrectare» se refere por igual ao tocamiento do pálio e ao pretendido gesto de verificação da virilidade). A Igreja não pode passar de outra maneira o mistério da encarnação: um dia Deus quis salvar a distância que lhe separava, e, até a risco de incorrer em promiscuidade, fez-se homem. A Papa, a sua vez, e para defender seu corpo, não pode por menos que imitar a Cristo: Tomam quis tocar o sagrado, e Jesus o aceitou. Mas um apócrifo antigo, o Protoevangelio do Santiago, diz que à parteira que quis verificar manualmente (sempre o tocamiento sexual) a virgindade da María, lhe secou o braço, indicando assim que a tolerância tem uns limites. Em conseqüência, a investidura deve convocar e rechaçar de uma vez ao povo cristão, e nossa picante historieta romana pode que se refira mas bem a essa classe de poder que se alimenta do contato e da distância alternativamente, do consenso e da força que se mascaram reciprocamente. A coeternidad do Pai divino e do filho humano, percebidos sucessivos e simultaneamente pelo cristão, metaforiza a instabilidade essencial desse poder apressado entre a fé e o fato. Algumas testemunhas do século XV Voltemos para a história do rito de verificação, segundo nos conta isso Jacobo do Angelo, mas a um ritmo mais rápido. Por volta de 1435, o dominicano do Lübeck, Hermann Korner, relata em seu Chronica Novella a história da Juana e suas conseqüências institucionais: a Papa se desvia evitando o lugar maldito da iluminação papal, e «para que não se repita este engano em um futuro se tomam precauções, pouco depois da eleição do novo pontífice, ao objeto de assegurar-se sobre sua virilidade e seu sexo»... O rumor ritual alcança uma ampla difusão, inclusive fora do âmbito estritamente clerical, já que em meados do século XV uma das numerosas guias de Roma, construída segundo a antiga tradição das Mirabilia Urbis, o livro do G. Rucellai, Da beleza e da antigüidade de Roma, menciona: «Perto da susodicha Sancta Sanctorum [a capela de São Lorenzo] há dois assentos de pórfido, de uma só peça, nos que se sinta a Papa recém renomada; por um orifício perfurado no fundo do assento se tenta saber se for homem ou se for mulher». Na mesma época (mediados do século XII), um viajante inglês, Guillermo Brevin, se fixa na mesma curiosidade, extraída sem dúvida de uma dessas guias pitorescas da cidade que abundavam então igual a agora: «Na capela de São Salvador há duas ou várias poltronas de mármore e de cobre com orifícios perfurados no fundo; por quanto pude me inteirar ali, nestas poltronas tem lugar a verificação que permite saber se a Papa é ou não do sexo masculino». O horizonte geográfico dos testemunhos se amplia durante mediados do século XV, como o demonstra o fato de que o grego Laónicos Chalcocondyle também registrasse em sua crônica Dos assuntos turcos, o rito no momento da eleição do Nicolás V, associando dito rito à lembrança da papisa: «Já que é um fato estabelecido que um dia uma mulher foi elevada até o papado porque se desconhecia seu sexo. Em realidade, quase todos os ocidentais da Itália se barbeiam a barba. Por isso, para evitar um segundo engano, e com o fim de conhecer a verdade sem lugar a dúvidas, apalpam as partes viris da Papa recém eleita. E, quem os toca exclama: «O senhor nos deu um varão.» O relato do Chalcocondyle, embora impreciso, tem o interesse de demonstrar que, para um observador estrangeiro, a peculiaridade do ritual forma parte dos mistérios políticos que rodeiam a eleição; de fato, para nosso grego, o rito se desenvolve antes da coroação, em um momento presidido pela incerteza sobre a oportunidade política da eleição: «Escolhem a Papa entre as famílias Colonna ou Orsini. Quando se juntam os sufrágios necessários, retêm ao eleito no palácio e tentam averiguar se a eleição convém a outros [refere-se sem dúvida aos grandes personagens que não são membros do Sacro Colégio]. Indicam à Papa selecionada que se sente em um assento perfurado para que aquele a quem lhe confiou esta tarefa apalpe os testículo que penduram por dito orifício e dê testemunho de que a Papa é realmente um homem». O texto do Chalcocondyle sublinha este matiz político do rumor, que logo reaparecerá com todo seu esplendor nas versões humanistas da narração ritual. Ainda, dentro do contexto do século XV, contamos com o testemunho do cônego suíço Félix Hammerlein (Malleolo), quem acrescenta uma série de interessantes precisões em seu diálogo Da nobreza e a rusticidade . Hammerlein procede em primeiro lugar a relatar a aventura da papisa, ateniéndose à forma habitual estabelecida pelo Martín o Polonês, e a completa da seguinte maneira: «Benito III, que lhe aconteceu, recordando o acontecimento, mandou instalar em San Juan do Letrán uma cadeira perfurada que ainda pode ver-se; dois clérigos dignos de crédito tocavam seu testículo, e estas testemunhas davam testemunho legal de sua virilidade. E, se os achavam intactos, exclamavam em voz alta enquanto os apalpavam: "Testiculos habet", ao que o clero e o povo respondiam: "Deo Gratias". Continuando, procedia-se felizmente à consagração do eleito. Este costume se conservou durante muito tempo». O texto do Hammerlein apresenta, pois, várias novidades interessantes. Em primeiro lugar, tenta conferir certo historicismo ao rito, lhe proporcionando uma origem precisa na iniciativa do Benito III. Do mesmo modo, desaparece a incoerência funcional: a antigüidade da instituição da verificação se situa em um momento no que a eleição ainda se desenvolvia no Letrán, de maneira que bem podia preceder à consagração. Assim, a realidade do rito apresenta já com rasgos arqueológicos; quer dizer, nosso autor se apóia em uma lembrança coletiva que já não se atualiza na memória, mas sim se reaviva com a simples conservação de um assento perfurado. Por último, aparece pela primeira vez a fórmula triunfal que se encarregará de perpetuar o rumor até nossos dias. Malícias de Platina dentro desta sucessão de testemunhos, cada vez mais densa, nossa seguinte testemunha é um personagem de talha: trata-se do Bartolomé Sacchi, quem se fez chamar Platina, latinizando seu topônimo de origem, Piadena, perto da Cremona. Este humanista, membro da Academia Romana e erudito de talento, desempenhou um papel importante na cúria romana. Primeiro foi «compendiador» (agora se chamaria redator, em uma administração atual) sob o papado do Paulo II, quem o destituiu de seu cargo, antes de lhe fazer padecer mil misérias, como veremos mais adiante. Mas ao morrer Paulo II em 1472, recuperou sua alta fila curial, já que Sixto IV, fundador da Biblioteca Apostólica Vaticano, confiou-lhe a responsabilidade da mesma. Ao mesmo tempo, Sixto IV lhe encarregou que escrevesse uma Vida das Papas, que devia recuperar, harmonizar e aperfeiçoar uma recopilação heterogênea, começada no século VI, e que se chama o Liber Pontificalis. Platina cumpriu esplendidamente o encargo, apesar da urgência, já que o livro devia contribuir à celebração do jubileu de 1475, e, em efeito, a finais de 1475, Platina tinha terminado o trabalho. Nesta obra de caráter oficial, nosso autor, humanista crítico e vítima da arbitrariedade do Paulo II, não regula comentários a respeito da instituição pontifícia, motivo pelo qual o livro não se imprimiu em Roma, a não ser em Veneza, e além em 1479. Não obstante, não só não foi objeto da censura eclesiástica, mas também conheceu um êxito considerável (43 edições latinas até o século XIII, e 21 edições italianas). Mas o que aqui nos importa é que na seqüência cronológica das Papas, e no momento indicado pelo Martín o Polonês (entre o Benito IV e Leão III), narra a história da Juana, e a prolonga com o comentário institucional, habitual já desde o Godofredo do Courlon: «Alguns escrevem sobre o particular duas coisas: de uma parte, o Pontífice, quando se dirige à basílica do Letrán, desvia voluntariamente seu caminho, por odeio a este crime; por outra parte, para evitar que se repita esse engano, tão logo se sinta na cadeira do Pedro, perfurada por este motivo, a Papa consente que o último dos diáconos lhe toque os genitálias. Não negarei o primeiro costume; quanto à segunda, este é meu sentimento: preparou-se assim esse assento para que quem é investido como um poder tão grande saiba que não é Deus, a não ser um homem; quer dizer que está sujeito às necessidades da natureza e que deve defecar. Por esta razão, chama-se a este assento muito justamente o assento estercolero (excremental)». No texto de Platina, o assento perfurado, testemunho essencial do rito, converte-se, pois, em uma vulgar cadeira de alívio, ao preço de uma confusão entre a cadeira estercolera colocada no pórtico da basílica de San Juan do Letrán, conhecida e descrita nas cerimônias oficiais do século XII, e as cadeiras de pórfido da capela de São Silvestre, cujo papel litúrgico só intervém depois da cerimônia celebrada na basílica. Não deixa de ser chamativa tão manifesta ignorância do cerimonial de coroação papal em um dignatario da Cúria, mas também é certo que freqüentemente nos encontraremos com contra-sensos sobre a liturgia: a complexidade extrema das metáforas gestuales e verbais faz que o ritual resulte opaco. A tradição se converte então em matéria de exegese, e sua escuridão confere aos objetos cerimoniosos a natureza poderosa e incerta, quase escritural, das criações divinas. portanto, embora não nos assombrem os grandes enganos que se puderam cometer na leitura das cerimônias, tampouco podemos descartar a suspeita de uma certa malícia por parte de Platina quem, para salvar à Papa da impureza sexual, afunda-lhe no excremento! Brincadeiras humanistas e murmúrios protestantes A malícia maliciosa que preludia as brincadeiras pesadas dos protestantes, percebe-se claramente em um amigo de Platina, o humanista húngaro Jano Pannonio quem, em um de seus ferozes epigramas antipapales, finge querer salvar, ele também, ao papado do ridículo rito: «Pedro, graças a um rito inalterado na eleição das Papas, um dia uma mulher ousou sentar-se em sua cadeira e promulgar leis vergonhosas ao universo. Tivesse permanecido oculta durante muitos anos se não tivesse insone o fato com uma iluminação surpreendente. Após, e também durante muito tempo, Roma se acautelou contra semelhante artimanha, adotando o costume de inspecionar os lugares secretos das Papas. Ninguém pode obter as chaves que abrem os céus sem que antes lhe examinem os testículo. por que, então, abandonou-se este costume em nossos dias? Pois porque a Papa demonstra adiantado que é um varão». Nesta última frase advertimos uma alusão às respectivas origens das Papas, tema freqüente e habitual de brincadeiras nos séculos XV e XVI, até o próprio Rabelais. A brincadeira adquire carta de natureza, converte-se em lugar comum, e aparece em textos como o de Marco Marullio do Split, autor de outro epigrama antipapal a finais do século XV: «por que buscas, Cevo, testemunhos que digam se for varão ou fêmea; toma como objeto seguro a tropa de seus filhos; engendrou recentemente oito filhos e outras tantas filhas». Pouco depois, o francês Juan-Jacobo Boissard repetiria sorte alusão em sua Topografia da cidade de Roma, publicada em 1597-1602, onde, ao igual aos outros viajantes que citamos até o momento, refere-se em primeiro lugar aos assentos perfurados de pórfido, que se encontram ao final da «Scala Santa» do Letrán. Segundo este autor, o rito só esteve vigente alguns anos depois do papado da Juana, mas o importante é que Boissard completa a fórmula ritual: «Testículo habet, dignus est papali coroa» (Tem testículo; é digno da coroa papal), ao mesmo tempo que esta rechaça «historia ridícula» (que não obstante reproduz sem modificar, nem marca alguma de discurso indireto), acrescentando: «Atualmente não é necessária semelhante investigação: não se promove a ninguém ao papado se antes não deu provas suficientes de sua própria virilidade». Mas o fato de que nem Pannonio nem Hammerlein reconheçam a existência do rito de verificação não impede em modo algum que se desse crédito a dita existência; além disso, o rumor ritual, impreciso quanto à atualidade do gesto, mantinha sua existência própria. Por isso, encontramonos isso sem modificar no Livro de Crônicas do cronista alemão Hartmann Schedel, obra impressa no NUREMBERG em 1493, em Sobre as damas famosas e ilustres do frade agustino JacoboFelipe Foresti do Bérgamo, em uma nota acrescentada pelo editor veneziano à tradução italiana das Mulheres ilustres do Boccaccio de 1506, ou inclusive na Vida das Papas, publicada pelo Juan Stella em Veneza em 1505. Em 1531, e apesar da reação iniciada a este respeito pelas Papas a começos do século XVI, quem suprimiu os ritos do Letrán associados à cadeira estercolera e aos assentos de pórfido, o humanista Juan-Pedro Valeriano Bolzani, protegido de Leão X, consegue que se edite uma carta dirigida ao cardeal Hipólito do Médicis, A favor da barba dos sacerdotes, onde se demonstra que o costume da barba teria evitado o triste escândalo do papado da Juana. Bolzani resenha o rito acentuando ainda mais seu caráter público e oficial: «À vista de todo o povo, e no pórtico de San Juan que está frente à ampla praça repleta de público chegado com ocasião do rito, obriga-se ao nova Papa a demonstrar sua virilidade com (a verificação) de abundantes testículo. Esta confirmação, anunciada em voz alta pelo sacerdote, registra-se imediatamente nas atas: só então sabemos que temos uma Papa legítima, depois da testificación ocular que prova que em efeito tem o que tem que ter». Assinalemos nesta relação uma nova ambigüidade da narração: o uso do tempo presente nos remete tanto à atualidade empírica como à lembrança de um gesto pretérito; a moda narrativa do cerimonial mistura constantemente a norma e a realidade, o passado e o presente. No século XVI surgem dois novos fatores que multiplicam vertiginosamente a difusão do rumor ritual: a imprensa e o protestantismo. Já apontamos o êxito considerável das edições impressas das vidas das Papas de Platina, desde 1479. A Crônica do Schedel também obteve um grande êxito. A partir de então até o mais pequeno opúsculo se difunde por toda a Europa. A propaganda protestante se serve abundantemente da fábula da Juana e do rumor ritual, como veremos mais adiante, e o leitor terá ocasião de aborrecer-se com a série interminável de libelos protestantes que mencionam o rito de verificação; em conseqüência, limitaremo-nos a assinalar neste sentido o trabalho enciclopédico do protestante alemão Juan Wolf, as Lectiones memorabiles et reconditae «Lições memoráveis e ocultas», que se apresentam como uma grande historia universal, articulada sobre dois eixos: as mentiras e os crímenes papais. Naturalmente, Wolf menciona a história da Juana no quadro que dedica ao século IX, onde reúne e entrevista 19 fontes que dão autenticidade a dita história, das quais 16 evocam o rito de verificação. Bom número destes testemunhos foram citados já nas páginas precedentes, de maneira que a recopilação do Wolf não nos contribui nada novo neste sentido, no máximo uma criação de léxico registrada pelo anônimo autor protestante do De pontificum romanorum emisariis: ouça-se dizer que no Papado, com freqüência se chama o membro viril com o nome de Pontificais». Um luterano na coroação do Inocencio X (1644) Concluiremos este percorrido pelos itinerários do rumor com uma última descrição da cerimônia de investidura, a do Inocencio X em 1644. Como a maioria das coroações papais da Idade Moderna, esta cerimônia é bem conhecida graças a uma multidão de livrinhos breves, impressos rapidamente durante o conclave, entre o conclave e a coroação, ou inclusive depois da cerimônia. encontramos uma última menção do rito de verificação em Roma triumphans, obra que o jurisconsulto sueco Laurent Banck consagrou a dita coroação, minuciosamente detalhada. No século XVII, tira-a de posse do Letrán, o «possesso», distingue-se nitidamente das duas fases anteriores: Inocencio X, eleito durante um conclave que se celebra entre o 2 e em 15 de setembro de 1644, é coroado em 4 de outubro, e não toma posse do Letrán até em 23 de novembro. O solene cortejo que atravessa Roma, saindo do Vaticano por volta das 16 horas, adquiriu uma complexidade considerável dos tempos do Jacobo do Angelo, e cada vez nos recorda mais às entradas reais, às que por outra parte e com toda probabilidade serve de modelo no século XV. As filas, as ordens e as precedências têm aqui tanta importância como os arcos, os cenários e as inscrições que balizam o percurso da procissão. Entre as 21 e as 22 horas, o cortejo chega ao Letrán, lugar onde se encontra reunida a multidão mais compacta. Inocencio descende então de seu beliche e é conduzido em cadeira de mãos sob o pórtico principal da basílica de San Juan. O chão do pórtico e da basílica aparece talher com tapetes e tapeçarias, e os sinos de todas as Iglesias e de todos os monastérios repicam. Ali, Inocencio se sinta em um trono decorado com seda e ouro. Os cônegos do Letrán, com o arcipreste à cabeça, o cardeal Colonna, recebem-lhe levando vasos de prata, com a cruz pontifícia de prata dourada e as chaves de São Pedro, uma de prata e outra de ouro. A Papa agarra a cruz, beija-a e reza. Os cardeais Médicis e Barberini lhe retiram a tiara de triplo coroa e lhe colocam a mitra coalhada de pedras preciosas; então, o cardeal Colonna, seguido do clero do Letrán, entrega ao Inocencio as duas chaves, ao tempo que lhe dirige uma oração. depois de uma nova série de orações e de bênções, a Papa retorna a sua cadeira de mãos para entrar na basílica: «Depois, as mesmas pessoas [nobres e condes da igreja do Letrán] conduzem-lhe até o assento de mármore perfurado, que se encontra perto, ao objeto de que, uma vez sentado, apalpem-lhe as partes viris. Não há dúvida de que as coisas se desenvolvem desta maneira. Em efeito, é absolutamente seguro que este assento de mármore, perfurado, conservou-se nesta mesma basílica do Letrán, e o vimos em várias ocasiões com nossos próprios olhos. É igualmente certo que os Pontífices recém nomeados eram conduzidos a essa mesma cadeira, antes de ser admitidos na direção secular do Letrán, como o testemunham claramente entre outras pessoas os próprios católicos, como Platina, Sabelio [sic, pelo Sabellicus] (na Vida do Juan VIII), Stella, o sacerdote de Veneza, etc. Dizem que depois da morte do Juan VIII se julgou prudente que o Supremo Pontífice fora conduzido a uma cadeira pontifícia e não recebesse confirmação alguma antes de que lhe apalpassem as partes viris na cadeira, assento da humildade, para receber uma advertência: deve sentir sua humildade pessoal na mesma medida em que sente a altura e a glória da sede episcopal; deve recordar que é como outros homens, que está sujeito aos mesmos defeitos de nossa natureza disforme, e que não é Deus. Desta maneira, recebe, pois, esta lição: que não deve sentir nenhum orgulho pela coroação, como se diz, que tem que seguir ao rito... Hei aqui, pois, estes testemunhos. depois desta proclamação, e quando se compreendeu que a Papa tem em efeito os pontificais, manifestam-se distintos signos de alegria, e a Papa se instala de novo na cadeira de mãos. Continuando, e a passo lento, dirige-se ao altar maior». Banck, que se apresenta como testemunha ocular dessa cerimônia que descreve ampliamente, em realidade não viu o rito de verificação. Entretanto, enquanto o analisa com o mesmo tom de asseveração que emprega para o resto da cerimônia, expõe uma certeza que é fruto da tradição escrita e da visão direta dos assentos perfurados. Ficamos com o mistério desse rito público que ninguém vê, mas que outros viram sempre. Por outro lado, Banck, seguindo a Platina e a todos os que arrastaram o mesmo engano, confunde o assento estercolero com as cadeiras perfuradas, quando de fato, fazia já um século e médio que não se celebrava o rito de humilhação, como o demonstra visualmente a magnificência do trono instalado sob o pórtico da basílica, substituindo à cadeira estercolera. A precisão mesma da descrição que nos brinda Banck situa o momento da verificação na entrada na basílica, entre a oração solene do arcipreste do Letrán e a missa, quer dizer no coração mesmo do espetáculo festivo visível, descrito a sua vez pelo mestre de cerimônias Fulvio Servanzio da seguinte maneira: depois de escutar a oração do cardeal Colonna, e de colocá-la mitra, Inocencio «sobe à cadeira de mãos para ser levado a centro mesmo da basílica; os cônegos desta basílica... colocam um baldaquino sobre Sua Santidade; uma vez ali, descende de sua cadeira, deposita seu mitra, ajoelha-se, considera e concha ao chefe dos Santos Apóstolos, enquanto que os cardeais se ajoelham sobre o pavimento nu dos laterais inferiores. Lhe translada em cadeira ao altar do Santo Sacramento, e depois se dirige a pé até o altar maior». A partir daqui nos encontramos com o resto da cerimônia descrita escrupulosamente pelo Banck. A diferença das visões, em um lugar e em um momento tão concretos, surpreende; além da variante no ritual, há numerosas diferenças no protocolo (às que caberia acrescentar as que encontramos na meia dúzia de livrinhos romanos que relatam, sem referir-se à verificação, tira-a de posse do Letrán em 1644) que dão a impressão de que ninguém viu a cerimônia em seu desenvolvimento real. Mais até que na Idade Média, a cerimônia se apresenta como um texto infinito e escuro que nenhuma representação nem nenhuma exegese saberiam esclarecer e ainda menos esgotar, e que, além disso, transcende a ação imanente dos participantes. Sem dúvida, terá que ver em dito texto um efeito do absolutismo que tende a absorver qualquer conduta em uma participação que nunca se concluiu, quer dizer que nunca teve lugar. Nesse caso, a cerimônia se apresenta como uma realidade lhe englobem, sem projeção exterior e hipertrofiada, cuja eficácia radica precisamente em sua capacidade para neutralizar as olhadas mais diversas, bem sejam as dos devotos, as dos ignorantes, ou as dos maliciosos. O próprio Banck, luterano ele, manifestava ao longo de toda seu Roma triumphans uma admiração crescente pelos esplendores escuros da cerimônia; assim, ao adquirir no texto do Banck uma exegese litúrgica, a evocação do rito de verificação perde sua natural picardia. A ausência de negação da cerimônia, essa máquina generadora do sentido, explica possivelmente a pacífica sobrevivência do rumor no universo romano. Imagens do rito de verificação A propósito do Wolf e do Banck, terá que assinalar que o poder de difusão da imprensa se incrementa com o do prestígio da imagem: a primeira edição das Lectiones do Wolf em 1600 apresenta, sem dúvida por primeira vez, uma ilustração do rito de verificação: uma gravura em madeira mostra a uma Papa mitrado sentado em uma banqueta, ante uma multidão de bispos e de cardeais; situado atrás da Papa há um personagem meio doido com cape-o cardenalicio, que levanta com uma mão o traje do pontífice enquanto passa a outra por debaixo do assento. O estrado sobre o que se encontra a banqueta tem em seu frontispício o princípio da fórmula ritual HABET. depois desta primeira edição de 1645 de Roma triumphans, Banck publicará em 1656 uma segunda versão, aumentada e ilustrada, onde se encontra uma representação da cena de verificação. A lenda indica «Sedes marmorea Pontificis in Basilica Lateranensi» (o assento de mármore da Papa na basílica do Letrán), e a imagem mostra à Papa em meio de uma dúzia de clérigos, monges, bispos e cardeais, e ante dois prelados ajoelhados, sinta-se em um trono fechado cujo frente está decorado com um querubim. Um cardeal ajoelhado posa a mão direita em seu chapéu, e passa a esquerda por uma estreita abertura retangular, praticada no lateral esquerdo do trono; um filáctero que sai de sua boca reproduz sua exclamação: «Pontificalia habet» (tem os pontificais). Primeira explicação: a revanche dos intelectuais frustrados Uma vez concluída este largo comparecimento de testemunhos sobre o ritual de verificação, podemos distinguir diversas modalidades quanto à colocação do episódio, assim como diferentes intentos por racionalizar sua existência. Mas, sobre tudo, pudemos constatar que era impossível manifestar a inanidade do rito em uma cerimônia de tanta complexidade. Entretanto, persiste uma dúvida: por que motivo se quis acreditar de uma maneira positiva, ou se quis fazer acreditar na existência de um ato que ninguém pretendeu ver diretamente? Pergunta-a parece relativamente singela de responder a partir de mediados do século xV (mas isso não é mais que um limite da explicação) se tivermos em conta, não tal ou qual escuro cronista encerrado em suas próprias fontes, a não ser os ambientes dos quais se propagou ativamente o rumor, como é o ambiente no que se desembrulham os humanistas da Cúria romana. Nas pérfidas negativas de Platina, e nos epigramas zombadores do Pannonio ou do Marullo, podemos ler a reação social de um grupo de intelectuais frustrados pela atuação do Paulo II, e desencantados pela penúria dos cargos que ocupavam. Desde os primeiros meses de seu pontificado, em 1464, Paulo II procede a suprimir as funções de comentarista desempenhadas geralmente até então por jovens humanistas brilhantes, que as tinham comprado e das que esperavam obter um benefício material e social. A Papa lhes privou delas sem indenização alguma. Platina reagiu energicamente, sitiando, junto com outros comentaristas, ao Paulo II durante vinte dias seguidos, sem ser recebido. Então escreveu uma carga violenta ao Pontífice, lhe ameaçando convocando um concílio, e apelando ao mesmo tempo aos reis e príncipes da cristandade para que secundassem seu propósito. Uma ameaça muito menos jactanciosa que parece, se recordarmos que a finais do século XIV o papado acabava de confrontar uma corrente antimonárquica muito poderosa, de caráter conciliarista, e reavivada ao máximo a finais de dito século e princípios do XV pelo Grande Cisma do Ocidente, que se fecha a sua vez com o Concílio da Constanza celebrado pelos príncipes cristãos. Paulo II encarcerou imediatamente a Platina no castelo do Sant Angelo durante quatro meses. Quatro anos depois, em 1468, a Papa descobriu uma conjuração contra a instituição pontifícia, encabeçada pelo florentino Felipe Bonaccorsi e animada por vários jovens humanistas próximos à Academia Romana. Platina foi encarcerado pela segunda vez e Paulo II fechou a Academia, proibindo deste modo o ensino da poesia latina nas escolas. Como vemos, pois, o incidente superava ampliamente a história pessoal de Platina, para adquirir traçados de um conflito social e político. A revolta dos humanistas, como muito bem demonstrou Cesare d'Onofrio, forma parte das lutas contínuas da cidade por defender sua autonomia frente ao despotismo papal, movimento que tem sua origem no primeiro intento por instaurar uma Comuna romana em 1144, mais tarde, no século XIV, depois da República Romana de Cauda dava Rienzo. Nos três casos (séculos XII, XIV e XV), a partida romana se apóia em uma lembrança antiga, de maneira que a proibição dos poetas latinos nos programas de ensino não significa nem de longe uma postura de obscurantismo antihumanista por parte das Papas de meios do século XV (Calixto III, Pio II e Paulo II), a não ser uma verdadeira confisco do patrimônio reivindicativo da cidade de Roma. A carreira de Pio II assim o confirma, pois antes de converter-se em Papa formou parte desse grupo de humanistas da Cúria, com o nome de Ns Silvio Piccolomini. Durante essa etapa de sua vida, escreve uma novelita cheia de encanto, titulada a História de dois amantes, e, em condição de membro da Cúria, apresenta-se então, ao igual a Platina, como conciliarista acérrimo. Mas como resultado de sua aproximação ao poder papal não duvida em desenvolver um sentimento monárquico claramente antihumanista. Não obstante, e antes de abordar este tema em detalhe, assinalemos que durante sua legação em Boêmia, em 1451, foi o primeiro autor medieval que rechaçou a história da papisa Juana. À vista do exposto, é evidente que a narração de Platina não tem nada de inocente nem de fútil, pois indica uma postura dentro do âmbito social romano, concretamente na Cúria, mas desesperadamente longe do poder monárquico. O humanista da Cúria, dotado de um capital simbólico importante (como um conhecimento perfeito da língua e da literatura latinas, e às vezes competências específicas em direito canônico), prefigura ao «intelectual frustrado» do século XVII, que tem que desembrulhar-se no seio de um grupo muito numeroso para poder aspirar a uma posição acorde com sua formação. A esta pletora demográfica, cabe acrescentar as constrições próprias da situação romana: Roma, por seu prestígio milenario e pelo atrativo de seu sacralidad, assim como pelas miragens produzidas pela florescente burocracia papal, constitui um foco de atração para uma multidão de candidatos a prebendas, procedentes de todas as partes da Europa. Por outra parte, a vida político-social romana não oferece apenas saídas, já que a monarquia pontifícia, mantida em todo momento pelos estados europeus, à margem dos cismas ou das disputas, tampouco deixa lugar algum à ação política, ao contrário do que ocorre nas cidades-estado da Itália medieval e renascentista. Além disso, a forte posição da nobreza romana, ameaçada durante um breve instante pelas intenções de Cauda dava Rienzo, constitui a sua vez o ferrolho definitivo do dispositivo romano. Assim, pois, a essa classe formada pelos intelectuais (a palavra aqui não parece anacrônica) romanos, ou romanizados, só fica o rancor e o assobio, rasgos ambos que conferem esse tom tão particularmente seu às evoluções da papisa e do ritual de verificação: nem se destrói nem se vitupera, mas se arranha à pessoa, à pessoa além disso perpetuada, mais que à própria instituição. Este dobro aspecto, social e político, da crítica humanista se encontra precisamente em um gênero bem conhecido, que se desenvolve na época de Platina, a pasquinada. Em efeito, embora a primeira pasquinada —epigrama satírico destinado a pôster— que se conservou é relativamente recente, pois data de 1523, a finais do papado do Adriano VI, não obstante sabemos, graças a certos inícios convergentes, que o uso de fixar pôsteres com libelos e santinhos, sobre a estátua antiga (um torso sem braços) que se encontrava na atual praça do Pasquim, muito perto da praça Navona, remonta-se a esses anos de 1460, quando os humanistas romanos se enfrentam ao Paulo II. É certo que a tradição romana da sátira antipapal tem raízes antigas, sem dúvida contemporâneas da primeira comuna romana (século XIII), e que provavelmente herdou certos tema surtos da feroz controvérsia antipapal, de inspiração germânica, na época da Luta das Investiduras. Mas a geração de Platina soube conjugar a antiga veia popular com a arte reencontrada do epigrama latino, e para isso encontrou o tom e o lugar adequados: a antiga estátua ocupa o lugar do Campo dava Fiori, teatro do enfrentamento aberto e da repressão, enquanto que o assobio interno substitui ao ataque direto. Como já vimos a propósito do Pannonio e do Marullo, o rumor ritual se emprestava bem ao gênero epigramático, sempre equívoco segundo a melhor tradição antiga, toda vez que nas pasquinadas as alusões sexuais são inumeráveis. De fato, encontramos uma pasquinada muito próxima por seus conteúdos aos epigramas do Pannonio e Marullo, citados mais acima: «Que não se busquem as testemunhas («teste»: trocadilho já tradicional, com «testiculi») da Paulo/La filha que engendrou já demonstra suficientemente que é um varão». Estaríamos tentados de ampliar esta explicação sócio-cultural no curso do tempo, se não fora porque é suficiente poder determinar seu momento de aplicação, para justificar grande parte do êxito do rumor, se tivermos em conta, neste sentido, o papel capital desempenhado pelo texto de Platina. Se remontarmos a princípios do século XV, advertimos que a postura do Jacobo do Angelo logo que difere da de Platina e seus amigos: a mesma formação humanista, a mesma espera larga para obter um posto na Cúria, e a mesma menção do ritual. Desde esta perspectiva, e forçando algo nosso determinismo, poderíamos inclusive dizer que o fato de que Jacobo negue o rito significa uma ascensão melhor e menos atormentada que o de Platina dentro da Cúria. No caso do Jacobo, a alusão ao rito demonstra sua pertença a um grupo quase análogo ao de Platina; entretanto, defender o papado contra a difamação significa a sua vez recordar a existência de dita calúnia, utilizá-la e constituir-se em protetor simbólico da instituição. No caso oposto se encontra a figura contemporânea do Adão do Usk, esse galés propagador do rumor do que já falamos, que veio a Roma em busca de um cargo que nunca obteve, e que, depois de retornar a seu país natal, escreveu sua experiência romana com um sentimento de amargura. Mas, infelizmente, não podemos nos retroagir com tanta precisão na preteridad de nossa própria tradição, com a única ajuda desse frágil marco explicativo, posto que, depois de superar o vazio do século XIV, nos escapa por completo a figura farto misteriosa do monge do Sens, Godofredo do Courlon. Quanto ao Roberto do Uzès, bastante melhor conhecido, a verdade é que este dominicano visionário nos apresenta como uma figura de uma massa bem distinta a de nossos jovens ambiciosos e retorcidos. Sua dramática evocação do rito não se sai do molde agradável das alusões registradas no século xV, e portanto nos reservamos seu caso para mais adiante. Esta primeira hipótese que explica a perenidade do rumor, graças à manipulação voluntária do pesado edifício litúrgico, e à ação de um grupo sócio-político interessado em uma revanche calculada, permitem-nos apreciar como os protestantes, dotados de um espírito nitidamente mais agressivo, puderam utilizar um material que já estava divulgado. A transição da alusão satírica ao ataque violento, a começos do século XVI, produz-se simultaneamente na esfera romana e nos ambientes europeus que, a falta de um vocábulo mais preciso, poderíamos denominar «evangelistas». A substituição «evangelista»: Rabelais A princípios do século XVI, o poderio do Vaticano é já um fato indiscutível. Em Roma, o absolutismo papal já não teme ao espírito da comuna, cuja expressão última foi a conjuração do Bonaccorsi. Julho II se lança a uma verdadeira «política territorial e militar», que em um momento determinado merece o seguinte comentário: «Tinha entrado em Roma no domingo do Ramos de 1507, com um "triunfo" militar sem precedentes». A atitude de Julho II, simbolizada em um aparelho cerimonioso de corte realista, ajudou a que o rechaço tradicional alcançasse então vôos violentos, perfeitamente legíveis na ascensão do tom violento das pasquinadas. Dito protesto encontrou a sua vez a aprovação desses cristãos contemporâneos do Lutero, que se tinham mantido dentro da ortodoxia, mas que olhavam com horror o espetáculo que oferecia Roma. A postura «evangelista» se situa, pois, no extremo oposto da crítica, sem oscilar de tudo para a condenação total, e por esta razão não duvida em manifestar-se através da ficção meio satírica e semiseria, ilustrada no Elogio da loucura do Erasmo (1511), ou por obra do Francisco Rabelais. Como no caso dos humanistas romanos do século XV, a postura tática determina a sua vez uma forma narrativa de evocação, quer dizer um tom; e, também como eles, a questão da adesão à lenda da Juana ou ao mito de verificação de virilidade não se expõe. A distância que se estabelece com a ironia ou com a jocosidade neutraliza a projeção da crença. Tomemos aqui a modo de exemplo a alusão do Rabelais ao rito no Quarto Livro (1548), de sua famosa sátira Gargantúa e Pantagruel. Pantagruel, «abandonando a ilha desolada dos Papífigos», aborda junto com seus companheiros a ilha dos Papímanos; ali se fazem adorar porque viram à Papa, e inclusive a três Papas sucessivas, «de cuja visão eu não gozei», precisa não obstante Panurgo. Os papímanos se ajoelham diante de nossos viajantes e pretendem lhes beijar os pés; os destinatários de semelhantes comemorações se negam a aceitá-los argumentando que estes devotos não seriam capazes de fazer a mesma ante a própria Papa: «Sim faríamos, sim, respondiam eles. Isso já ficou resolvido entre nós. Beijaríamo-lhe o culo nu e os cojones igualmente. Porque tem cojones, o santo pai, assim o encontramos em nossas formosas lhes decrete, já que de outro modo não seria Papa. De maneira que em sutil filosofia decretalina, esta conseqüência é necessária: é Papa, portanto tem cojones. E, quando o mundo já não requeira cojones, então o mundo já não terá Papa». É evidente que Rabelais se refere ao rito em questão, cuja fórmula figura de fato já no Terceiro Livro (1546); quando Panurgo quer afugentar a sombra ameaçadora de um Júpiter que, ao pôr os chifres aos humanos, demonstra a fragilidade do matrimônio, instituição em que nosso herói deseja acreditar, então sonha o seguinte: «Agarrareilhes isso com um gancho de ferro. E, sabem o que farei? Recuerno!... cortarei-lhe os cojones a ras do culo. Não ficará nem um cabelo. Por esta razão não será jamais Papa, já que "testiculos non habet”. Seria tão absurdo perguntar-se que grau de realidade confere Rabelais ao rito de verificação, como interrogar-se sobre sua crença na deidade pagã citada, porque em seu caso não são mais que meros instrumentos aptos para seu propósito: a brincadeira. Mas a referência aos pontificais tem em si mesmo uma importância capital. A viagem do Pantagruel e de seus amigos, que lhes leva aos mundos igualmente absurdos dos papímanos e dos papígrafos, produz o mesmo efeito de sátira global, que a que produz o investimento do mundo no Elogio da loucura. A piada verde degrada a instituição suprema sem pretender derrocá-la, e, se Lucien Febvre tiver razão ao associar as «criancices do Rabelais» a uma larga tradição de «jocosidades próprias de homens de igreja», pela mesma razão também terá que pensar na tática igualmente própria dos evangelistas», herdeiros neste sentido dos humanistas romanos, e de seu apetite de dominação simbólica. A explicação sócio-cultural do rumor ritual dá conta de uma transmissão importante a finais do século XV, mas nada diz sobre o origem da crença que ela mesma neutraliza e multiplica a um mesmo tempo. É ignorante da angústia que atende ao Roberto do Uzès ou ao Godofredo do Courlon, e, no referente à baixa Idade Média, só pode aplicar-se aos relatos zombadores ou retorcidos da cerimônia, e não às ingênuas reconstruções dos Mirabilia urbis, ou das lembranças de viagem, pois inclusive no caso do Lorenzo Banck a menção do rito tem mais aspecto de perplexidade que de polêmica ou de azedo. O tom com o que se difunde o rumor é importante, já que sem este componente sério, dramático, inquieto ou angustiado, o murmúrio se perderia nos estalos alegres e múltiplos do discurso anticlerical, dentro ou fora da Igreja. Retornemos, pois, aos primeiros testemunhos, ou, melhor ainda, ao Roberto do Uzès, já que a Crônica do Godofredo do Courlon não transmite a suficiente aspereza para poder captar o tortura que padece seu autor. O horror do Roberto do Uzès Não há nenhuma dúvida de que, no caso do Roberto, o rumor se expressa em términos de horror, pois o apontamento, pareça ou não factual e referencial («diante dos assentos de pórfido onde se conta que se verifica se a Papa é um homem»), se inserida em um conjunto de textos que deploram, com tristeza e aflição, a decadência da Igreja romana. Estes textos, reagrupados em duas coleções, o Livro das visões e o Livro das revelações, estão escritos dentro do gênero da profecia, tal como o desenvolvem Joaquín do Fiore ou Juan do Roquetaillade: «Plujo ao Senhor Jesus Cristo me revelar a mim, o mais vil dos pecadores, suas vontades, ora durante meu sonho com visões imaginadas, ora durante a vigília com idênticas visões, ora com um discurso externo ou interno, com numerosas metáforas acompanhadas de sua glosa correspondente». Deus encarregou a seu mensageiro (nuntius) anunciar ao mundo a iminência dos tempos finais, e denunciar a corrupção da Igreja e sobre tudo do papado. Esta postura profética adquire todo seu sentido quando temos em conta o momento das visões, vividas e redigidas entre 1291 e 1295, já que em 1294, Benito Caetani, o futuro Bonifacio VIII, empurra ao Celestino V (Pedro do Morrone) à abdicação (à «resignação» como se dizia). Uma Papa com aspecto político, romano e autoritário, acontecia, em circunstâncias duvidosas, a um ermitão, sem dúvida desordenado e pouco eficaz, mas considerado santo (de fato, foi canonizado rapidamente) nos ambientes reformistas que viam nele uma imagem autêntica dos apóstolos pobres, e inspirados pelo Espírito Santo. Esta situação refletia materialmente uma oposição fortísima, que presidiria todo o século XIII, entre verdadeiros e falsos sectários de Cristo. As visões do dominicano provenzal apresentam imagens violentas do fim do mundo, da chegada do Anticristo e do descalabro da Igreja (nave sem piloto, tempero deserto e vazio, etc.). Os assentos de pórfido utilizados na verificação apareciam na basílica abandonada, um cenário sinistro evocado por outra visão: «durante a vigília, vi sobre a terra um montão de mitras e de cruzes pastorais, sem bispo nem prelados, formando uma massa indefinível» . O rito, bem seja interpretado como um sintoma ou como um remédio, surge ao fio de uma evocação geral da falsidade e vacuidade de Roma, como o manifesta «a visão XXXI sobre o estado da Igreja romana: eu rezava de joelhos, com o rosto levantado para o céu, à direita do altar de São Jaime em Paris, e vi como no ar, e diante de mim, o corpo de um supremo pontífice, com alvoradas de seda; estava de costas ao oriente, e levantava as mãos para o ocidente, como fazem os sacerdotes durante a celebração do mistério da missa solene, e eu não via sua cabeça seca, apergaminada como se fora de madeira. O Espírito do Senhor me disse: "...representa o estado da Igreja romana"». Advirtamos o paralelismo das expressões entre este texto e o que evoca o rito de verificação («sedes... ubi dicitur probari Papa, an sit homo / intuens an esset homo sine capite...»). Nesta dobro visão da Papa, sem pés nem cabeça, o horror do vazio se complementa com o da aparência equívoca da seda sobre o pó. Assim, o papado e a Igreja representam uma paródia terrível que investe os valores, sem que ninguém se de conta do que ocorre: «Visão XXVII horrível e terrível. Vi o seguinte em sonhos: eu queria entrar em rezar na igreja da Santa María do Tarascón e, quando entrei pela porta principal, vi ao redor do altar a um grupo de judeus pontuados, que levavam as vestimentas sagradas dos sacerdotes, diáconos e subdiáconos, e oficiavam no altar ignoro que classe de rito, enquanto a massa do povo assistia a essa celebração como se assistisse aos sagrados ofícios» . Em outro lugar o Espírito Santo diz por boca do Roberto: «Profanarão as Iglesias, poluirão os Santos cálices; homens imundos vestirão as roupas consagradas, e os panos sagrados receberão as impurezas da menstruação». Em conseqüência, para o Roberto do Uzès o pior da profanação é o contato impuro, que subverte o sagrado: o judeu, por um lado, e a mulher com sua menstruação, por outra, tocam os objetos sagrados da liturgia. Mas nos achamos muito longe desses investimentos do sentido moral que tanto agradavam aos humanistas. Aqui, o investimento é uma cópia perversa que indica a ação diabólica, pois não terá que esquecer que no século XII, durante o qual se medita muito sobre o homem como imagem de Deus, está acostumado a se pintar ao diabo como ladrão desta imagem. Guillermo do Saint-Thierry assim o conta («usurpou o parecido com Deus»), utilizando para isso o verbo «praesumere», o que a sua vez qualifica a ação da Juana segundo seus primeiros historiógrafos; do mesmo modo, Gerhoch do Reichersberg emprega términos análogos em seus próprios textos: «Este aspecto presunçoso do divino parecido». Por sua parte, Pedro do Blois associa a evocação da consagração diabólica a de uma cadeira maldita, reflexo perverso da cadeira de São Pedro: «O (Satã), este ser de extrema perdição, não quis ficar sem Deus, mas, desejando usurpar a imagem do poder divino, fabricou-se uma cadeira pestilento nas regiões do Aquilón e caiu». No texto do Roberto, o rito de verificação, brevemente evocado, mas com o eco preciso da descrição e da perversão-investimento romana, assinala ou conjuração a maior das profanações: a corporeización do divino, quer dizer a paródia diabólica da encarnação. Neste ponto, o rumor ritual se encontra com o rumor anti-semita surto durante o século XII, que encena igualmente a perversão do sagrado com o investimento litúrgico e o contato profanador. Segunda explicação: o medo à invasão feminina Desde esta perspectiva, o rito de verificação conjuraria imaginariamente uma angústia que se mantém ao longo de toda a Idade Média: o perigo de que a mulher polua o sagrado com sua presença. que uma mulher se apoderasse secretamente do sacerdócio supremo contribuiria a exacerbar a angústia de dito perigo; por isso, a idéia deste medo só se expressa de uma maneira colateral, quer dizer mediante a fábula e o rito. Por sua parte, o direito canônico óbvia o tema; e só muito tardiamente encontramos uma menção explícita da exclusão da mulher do papado, em um canonista de começos do século XVI, o cardeal Domingo Giacobazzi, quem, em seu Tratado do Concílio, aborda os casos de anulação em uma eleição papal por parte de um concílio: «O que acontece se o eleito é acusado e sentenciado de ser uma mulher? Acredito que um concílio pode depô-lo; em primeiro lugar, porque as chaves da Igreja não podem cair em mãos de uma mulher, já que esta não tem direito nem a possuir nem a conservar o pontificado, mas sobre tudo porque não lhe compete a tarefa de julgar, que é uma tarefa masculina. E todo isso vem a propósito do escândalo produzido na Igreja universal.» Neste caso, justifica-se a verificação, a falta de uma evidência constatable em outros casos de eleição ilícita: «O que ocorreria se se tratasse de um menino de curta idade ("infans")? O problema pode parecer fútil... não é verossímil que os cardeais sejam tão insensatos em sua eleição. Por isso, não convém interrogar-se sobre este particular.» Giacobezzi enumera os casos de incapacidade, sem esquecer a angústia do imprescriptible, quer dizer o fato de que a eleição mesma confere já, definitivamente, a dignidade papal: «Mas me interrogo de novo sobre os defeitos que se possam atribuir a uma Papa e que fazem que não seja uma verdadeira Papa, apesar de ter sido eleito por dois terços dos cardeais: pode ser judeu sem batizar, pagão, inimigo e perseguidor de nossa fé, ou mulher; ou outra razão que em nome do direito divino ou natural lhe impeça de ser Papa. Pode o concílio, então, pronunciar-se a respeito? Terá que assinalar que quem sai eleito pelos dois terços dos cardeais não pode ser rechaçado; lhe aceita porque não pode alegar-se nenhuma exceção». A angústia da invasão secreta se intensifica do momento em que não se apóia em uma exclusão clara do sacerdócio feminino, pois o rechaço da mulher carece de fundamento teológico seguro, toda vez que constitui um fenômeno relativamente antigo. Em realidade, a exclusão procede de um horror profundo ao contato impuro, codificado muito tardiamente. A exclusão do sacerdócio feminino no direito canônico Em efeito, se tomarmos como referência essas passagens do Decreto do Graciano (por volta de 1140), base do direito canônico, onde se exclui à mulher do sacerdócio, a verdade é que não achamos nenhum fundamentou autorizado que justifique teológicamente essa exclusão; além das proibições de que as mulheres pregassem (capítulo 29 da distinção 23, e capítulo 20 da distinção 4, De consecratione), há três passagens que prohíben à mulher ter contato com o sagrado: «pôsse em conhecimento da Sede Apostólica que as mulheres consagradas a Deus ou as moniales revistam tocar (contingere) os copos sagrados ou os hábitos sagrados que lhes foram confiados... todo isso deve abolir-se... E, para evitar que esta peste (pestis)... estenda-se até mais, mandamos...» (capítulo 25 da distinção 23). Encontramos a mesma proibição em outro lugar: «A Santa Sede Apostólica decidiu que ninguém toque os copos sagrados exceto os homens consagrados a Deus, ao objeto de que Deus, irritado por semelhantes perversões, não envie uma praga a seu povo» (capítulo 41 da distinção 1, De consecratione). Por último, o capítulo 29 da distinção 2, De consecratione prohíbe taxativamente que tanto os laicos como as mulheres levem a sagrada forma aos doentes. É certo que os textos do Graciano são muito anteriores ao século XII, mas recordemos também que em realidade o que persegue o Decreto é, como indica seu título autêntico, uma Concórdia dos cánones discordantes, e, a partir de elementos diversos (cartas papais, cánones sinodiales ou conciliar, etc.), constrói um conjunto sistemático de textos. Não obstante, a exuberante legislação religiosa vigente na alta Idade Média facilitava uma orientação bem distinta a da síntese pretendida em primeira instância. Neste sentido, é preciso ter em conta que o Decreto remete a uma situação concreta, qual é o contexto anímico que preside o século XII, pois a exclusão das mulheres, junto com o medo à contaminação feminina ou judia, pretendida-a instauração do rito de verificação, e, em definitiva, a história da papisa afundam suas raízes profundas neste século XII obcecado pela idéia da pureza. Os decretistas que glosaram ao Graciano com o passar do tempo confirmam esta impressão de que a mulher produz um horror sagrado quando se aproxima dos lugares e aos objetos de culto. Assim, e contra uma antiga decisão do Gregorio o Grande, retomada a sua vez pelo próprio Graciano e seus primeiros comentaristas, Rufino, autor de uma Soma dos decretos redigida por volta do ano 1158, e utilizada com freqüência pelos cronistas, prohíbe à mulher entrar na igreja imediatamente depois de um parto. Do mesmo modo, Paucapalea, um discípulo do Graciano que, entre 1140 e 1148, escreveu o primeiro comentário bolones de seu professor, a soma, refere-se à menstruação da mulher da maneira seguinte: «Posto que a mulher é o único ser animado com menstruação: com o contato de seu sangue os frutos não maturam, o vinho se azeda, as novelo morrem, as árvores perdem seus frutos, o ferro se embolora, o ar se vicia, e, se os cães lamberem esse sangue, contraem a raiva». Pouco depois, o chamado Rufino reutiliza textualmente esta descrição dos efeitos do sangue menstrual, descrição que de fato já tinha sido utilizada a sua vez pelo naturalista Solino. Justificação dos glosistas A justificação da exclusão da mulher só intervém de uma maneira tangencial e/ou tardia, a posteriori; quando isso ocorre, encontramo-nos então com a misoginia psicológica e jurídica, tradicional e universal. Assim, e a modo de exemplo, no Aparelho para os lhes decrete do Gregorio IX (1245), do Bernardo de Bolonha, texto considerado como glosa ordinária do Liber extra (os lhes Decrete) desta última Papa, encontramo-nos com a seguinte adivinhação, que por outro lado bem poderia pertencer a uma fábula: «O que é mais ligeiro que a fumaça? O vento. O que é mais ligeiro que o vento? O ar. O que é mais ligeiro que o ar? A mulher. O que é mais ligeiro que a mulher? Nada» . Do mesmo modo, os rasgos universais da misoginia (a mulher é «variável», «ardilosa», etc.) aparecem teorizados e classificados no Código Justiniano, que exclui à mulher dos cargos civis por razão de sua debilidade moral, intelectual e física («imbecillitas et fragilitas»). Ao parecer, o primeiro canonista que conferiu um fundamento teológico a este antifeminismo «clássico» foi Huguccio, sem dúvida o jurista mais importante do século XII, quem em sua soma (1188) declara que nenhuma mulher pode receber ordens dado que a «Constituição da Igreja se apóia na razão do sexo» («constitutio ecclesiae facta propter sexum»). Até então, e de acordo com o exposto pelo Graciano, justapunham-se interdições pontuais ou gestuales, fruto a sua vez de autoridades antigas e de um simples «dictum» (opinião que não tem o caráter de uma decisão pontifícia ou conciliar) do próprio Graciano, que afirmava que não se podia receber à mulher nem como sacerdote nem como diaconista. A partir de então, para o Huguccio se trata de um princípio constitutivo, e seu argumento essencial radica em uma leitura da Gênese 1,17: o homem, mas não a mulher, foi criado a imagem de Deus. Dita leitura permite interpretar uma construção hierárquica do universo, interpretação que alcançaria seu pleno desenvolvimento no século XIII, cujo marco tranqüilizador e legalista, farto homogêneo em relação com as construções laicas do momento, permite aliviar essa carga de angústia que aparece unida à obsessão da impureza. Huguccio, o mais «justiniano» dos canonistas do século XII, pode prescindir, em conseqüência, de qualquer alusão às sujeiras ou necessidades próprias da mulher, já que ele parte da base que ao igual a ocorre na sociedade civil, a origem, a anterioridade e a necessidade hierárquica, e não a «natureza», são as razões que privam à mulher dessa semelhança divina: «diz-se que o homem, e não a mulher, é a imagem de Deus por três razões: de igual modo que Deus é único e que todo deriva dele, assim em um princípio só se criou ao homem... Em segundo término, de igual modo que a origem da Igreja brota do flanco do Cristo adormecido, em forma de sangue e água, assim se formou Eva da costela do Adão dormido. Em terceiro lugar, de igual modo que Cristo manda na Igreja e a governa, assim o homem manda na mulher.» Uma vez formulado esta colocação quase feudal, Huguccio pode afirmar: «Mas, em uma quarta instância, a mulher é tão imagem de Deus como o homem, na medida em que é acessível à essência divina (essentie Divine capacem), por raciocínio, por intelección, por memória e por julgamento». portanto, Huguccio consegue articular a tradição fria da legalidade romana com o temor ardente da obsessão antifeminista. Cinqüenta anos antes, Graciano mantinha separados estes domínios; assim, enquanto por uma parte se apoiava em escuras prescrições «naturais» para rechaçar a idéia da ordenação feminina, por outras assinava tranqüilamente a exclusão cultural justiniana, apoiada só na consideração das tradições e pelo que se refere ao tema dos juizes (e a Papa é o juiz supremo): «Há três impedimentos para ser juiz: a natureza (o surdo, o mudo, o furioso perpétuo e o impúber porque carecem de julgamento), a lei elaborada pelo Senado e os costumes (moribus), as mulheres, e os escravos, não porque estes últimos careçam de julgamento, mas sim porque está estabelecido que não desfrutem de cargos civis». Mas ainda temos que encontrar outro sinal distintiva que marca esta evolução da mentalidade, a finais do século XII e a princípios do XIII; referimo-nos ao segundo grande pilar do direito canônico medieval, o já chamado Liber extra (ou lhes Decrete, ou Nova compilação) do Gregorio IX (1234), onde se trata quase exclusivamente o tema da limitação do poder das abadessas, e sobre tudo das abadessas mitradas, cujo estatuto era, em muitos sentidos, muito parecido ao dos bispos. De novo, encontramo-nos ante uma situação clara e institucional (que não obsessiva) de domínio masculino, que nos convida a situar a origem da angústia que gera a fábula da Juana, e também o desejo de acreditar no rito. As reminiscências tardias da obsessão, que são as que estruturalmente definitivamente o rumor (junto com as sátiras do século XV), estão já pressente de algum modo nos textos do Roberto do Uzès e do Godofredo do Courlon, e refletem uma postura particular, a dos «reformistas proféticos», que encontramos de novo na soleira da Idade Moderna na pessoa do cardeal Gil do Viterbo (1469-1532). Este agustino, autor de uma História de XX séculos, depois de relatar a história da papisa, constrói uma história universal da perdição humana, apoiada em três enganos que a sua vez têm sua origem em uma feminización da espécie humana. Ao primeiro engano, o encargo pela Eva, Gil acrescenta em segundo lugar, e servindo-se de um florilegio de entrevistas proféticas, uma tendência dos povos a «transformar-se não só em mulheres, mas também em prostitutas»; o terceiro engano se refere à progressiva animalidad do gênero humano: «reunimos todas estas palavras [dos profetas] para descobrir a razão dos três enganos: assim, a alma se acomoda a um corpo mau, para logo abrandar-se e efeminar-se; por último, desliza-se pelo torvelinho da impureza e se converte em besta». Enquanto na chancelaria romana se pode contar a fábula da Juana ou referir-se ao rito de verificação sem pestanejar, nos desertos e nos bosques da meditação os «profetas» pressentem a ameaça de impureza que se abate sobre uma instituição debilitada por sua própria frivolidade. Estruturas medievais da obsessão pelo feminino Como explicar a gênese da obsessão sexual dentro da Igreja do século XII, obsessão bem distinta da misoginia rabínica e mediterránea, ou da segregação jurídica romana? Sem dúvida, faz-se necessário recuperar aqui o tema da estrita obrigação do celibato eclesiástico, no momento da reforma gregoriana do século XI, sublinhando de passagem a seguinte paradoxo: precisamente no momento em que se impõe o celibato aos sacerdotes é quando se adverte a necessidade de verificar a virilidade do mais eminente de todos eles. O século XII, momento de apogeu do feudalismo e da reforma da Igreja, gera uma situação de sujeição por partida dobro: para sobreviver, o laico deve contrair matrimônio com alguém que seja muito próximo (para assim assegurá-la solidez do feudo) e de uma vez os suficientemente longínquo (para assim evitar o incesto, ampliamente definido em tempos do Gregorio VII). A mulher representa então o papel de vínculo nesta dobro sujeição, e em conseqüência sua imagem se idealiza de uma vez que se despreza, e é tão querida como temida. Nesta ordem de coisas, cabe entender que o século XII produzira simultaneamente a literatura cortesã e a devoção Mariana por uma parte, e o furor misógino por outra. A Igreja, penetrada dessa mesma fascinação, de uma vez que ciumenta de sua própria hierarquia suprema, outorga-se a si mesmo um estatuto suprasexual, de varão andrógino: A Igreja é mãe («mater ecclesia»), algema («sponsa», mística de Cristo) e filha, nascida do flanco de Cristo, como Eva nasce do flanco do Adão. Em sua obra, l'Homme enceint, Roberto Zapperi demonstrou que é no século XII quando aparecem as primeiras representações dessa reescritura da Gênese, a que nos referimos mais acima: Eva sai de um Adão grávida, que lhe engendrou, enquanto que o texto bíblico fala da extração de uma costela, sublinhando assim o paralelismo entre Igreja e Eva. Mas além disso, esta equiparação confere ao mesmo tempo certo fundamento a preeminencia masculina, como já vimos a propósito do comentário do Huguccio à Gênese 1,17: mulher em sua vertente divina, a Igreja goza do gênero masculino em sua vertente terrestre, já que procede do Jesus e do Adão a um mesmo tempo. Esta androginia resulta válida sempre e quando ficar sem resolver, quer dizer, enquanto não seja mais que um símbolo, em cujo caso se sacrifica o exercício da sexualidade com o celibato voluntário, refletido externamente na tonsura. O homem pode sacrificar, ou melhor dizendo sacrificar-se, porque é superior, porque está do lado do eminente (sexual e juridicamente), enquanto que a mulher, em seu vazio, não pode acessar a essa suprasexualidad que prescinde do sexo e dispõe seu rechaço. Enrique de Suas, o famoso cardeal Hostiensis, grande canonista do século XIII, diz em sua Soma dourada (por volta de 1250), e a título de causa que não de conseqüência, que «não se pode tonsurar à mulher, nem pode amputar-se sua cabeleira (amputando)». Não se cortam os cabelos de uma mulher porque seu ser sexual se manifesta com os rasgos que a distinguem, de maneira que não ficaria indício algum de dito ser, enquanto que o super-homem eclesiástico apresenta de uma vez um sinal natural e a de sua superação, já que aquela é quente e esta fria. Nada demonstra melhor este asserção que as interrogações expostas pelos canonistas em torno dos hermafroditas, cujo interesse aqui radica em que nos recordam o rito de verificação. Huguccio, por exemplo, perguntase se se pode ordenar sacerdote a um hermafrodita, e, ao transladar algumas considerações do código justiniano sobre o valor do testemunho de um hermafrodita, chega à conclusão de que se o sexo do hermafrodita for mais quente que frio, então terá que aceitar a ordenação. Como entender, pois, semelhante interpretação da androginia, elemento dominante masculino, dessa sexualidade assexuada? É certo que a percepção do real não deve sucumbir ante o assombroso delírio exibido tanto pelos canonistas como pelos «profetas», pois no mais gélido da Idade Média ninguém ignorava no que radicava essa distinção dos sexos; em realidade, achamonos ante uma colocação tendenciosa, que, como tal, fluctúa entre a sensação de angústia e a necessidade de adaptação. Tiremos de uma parte ao homem do equilíbrio, a Santo Tiram do Aquino, e de outra aos «profetas» iluminados, e comparemos. Em Tomam, a exclusão da mulher também se apóia em sua incapacidade para significar-se, mas esse limite se inserida no contexto dos valores sociais, herdados a sua vez do espírito jurídico romano: «Dado que o sacramento é um signo ("signum"), nos atos sacramentais se busca não só a coisa, a não ser o signo da coisa. Além disso, no sexo feminino não pode destacar-se nenhuma eminência de grau, já que a mulher tem um estatuto de submissão; em conseqüência, não pode receber o sacramento da ordenação»65. Como se vê, a fisiologia sexual carece de importância para Tomam, em quem a evocação da papisa ou do rito de verificação só tinha suscitado um breve gesto de curiosidade. Mas se, pelo contrário, fixamo-nos no Roberto do Uzès, um autor mais jovem, sentimos vibrar as categorias fisiológicas do direito canônico: em suas visões, as Papas fantoches são «imberbes», «secos», enquanto que os profetas do Oriente mostram uma barba abundante. Assim, na Roma repudiada pelo Roberto, a androginia sagrada se transforma em femineidad lasciva: «A câmara do Pastor Jesucristo: José e María. E, a sua (a das Papas) está repleta de jovenzinhos pontuados, lascivos e impudicos, que levam armas, alimentam pássaros e cães, roubam aos pobres e engordam às prostitutas». dentro desta linha profética que reclama a virilidade necessária para o exercício do sacerdócio, é preciso mencionar a um monge do século XII, de personalidade escura, um tal Burchard do Bellevaux, autor de uma Apologia da barba, quem assinala a barba, atributo viril suscetível de tonsura, como um elemento necessário para a expressão da condição eclesiástica. Nesta obra nos encontramos ante um desses casos limites que por sua exemplaridade resulta quase tão revelador como o do hermafrodita chamado pelo Huguccio. trata-se do caso da Galla, a mulher a Barbuda cuja historia Burchard toma emprestada do Gregorio o Magno. Ornamento adverte que lhe sai barba quando faz muito calor (rasgo masculino), e o único remédio para seu mal consiste em que acesse a romper sua castidade; ela se nega a ceder e conserva sua barba, como testemunho de sua participação meritória na androginia sagrada. Entre estas duas figuras extremas, as de Tomam e Roberto, caberia situar uma visão intermédia da mulher dentro do universo sagrado da Igreja, tal e como de fato aparece em outro autor que aqui nos importa, dado que se trata do historiógrafo mais conhecido da Juana: Martín o Polonês. Este dominicano, homem da Cúria e capelão pontifício, redigiu a finais do século XIII uma Margarida Decreti («A pérola do decreto»), que resulta ser um cômodo índice alfabético da obra do Graciano. Citamos a seguir, e em sua integridade, o artigo «Femina» (Mulher), que reúne bom número dos comentários referidos mais acima: «Que não deve julgar-se nunca à mulher por razão da vergonha associada a seu sexo. Que, embora seja douta e Santa, não deve pregar em uma assembléia de homens. Que nem as monjas nem nenhuma outra mulher Santa devem tocar os ornamentos do altar nem tampouco os copos sagrados. Que a religião não permite que um homem só fale com uma mulher sozinha. Que não se devem comentar as formas das mulheres. Que a mulher não deve nem amputar sua cabeleira nem usar roupas masculinas por afã de lucro. Que, embora a mulher esteja grávida ou com a menstruação, não lhe deve negar a entrada em uma igreja». Neste texto cheio de moderação estão pressentem ainda essas obsessões que durante o século XII mantiveram vivo o temor para a mulher e seu possível domínio. Até o momento, pudemos identificar duas formas complementares do eco que produz o rumor: alguém é de caráter burlesco e vingativo, e a outra apresenta rasgos alucinados e obsessivos. Ambas nos permitem perceber dois sistemas de representação bem diferenciados, que a sua vez dão sentido ao rito de verificação da virilidade papal, respectivamente. Não obstante, temos que continuar com este processo de reconstrução arqueológica do rumor para compreender as formas de inserção do rito nas cerimônias de investidura papal. Neste sentido, deteremo-nos considerar a disposição espacial dos objetos, dos gestos, das épocas e dos povos que foram dando corpo a este rumor, tão bem acolhido nos corações, ou pelo menos em determinados corações. CAPITULO II História de um assédio Segundo todas as aparências, sim se verifica o sexo das Papas, e o eco deste rumor medieval se amplificará com o terror obsessivo ou com a alegria zombadora que se acontecem nos ambientes de forte reverberação ideológica. Mas, além desta amplificação, é preciso recolher também, e em suas próprias fontes, o murmúrio anônimo e de caráter geral. Até aqui, ocupamo-nos que captar as interpretações delirantes ou maliciosas do ritual que rodeia a coroação papal; mas sorte interpretação não pode prescindir ou evitar o que constitui seu primeiro tema interpretativo, isto é o que constitui matéria de exegese, porque o fato de que o rumor persista guarda relação direta com a própria permanência desses sinais que aquele descreve a sua vez. Retornemos, pois, ao lar, a essa cinza ou brasa de onde emana a fumaça do rumor, já que é preciso reconstruir a história de um ritual, neste caso o da coroação papal, porque dito ritual é o que permite que subsista a possibilidade de uma interpretação lhe desviem, e portanto de uma separação entre o que a cerimônia quer significar e o que em realidade mostra. Por outro lado, esta história não se reduz à história de um mal-entendido, de uma perda de informação que repõem os diferentes propagandistas do rito ou do rumor, mas sim nos indica deste modo de que maneira uma sociedade resiste a ritualidad e ao poder significados em dita cerimônia. Neste sentido, é certo que terá que guardar-se da orientação pansemítica de alguns herdeiros, farto abusivos, do Ernst Kantorowicz ou do Clifford Geertz, quem vê em qualquer cerimônia pública uma ocasião de intercâmbio, quer dizer de feliz circulação ideológica, um momento metaforicamente contratual entre os que detêm o poder e os sujeitos do mesmo; e para isso, isto é, para rebater essa edulcoración lenitiva do alcance político que comporta a cerimônia, é preciso recordar que muitas cerimônias, como, por exemplo, as das entradas reais francesas dos séculos XV ao XVII, de fato, sim encenam uma força logo que dissimulada, e ilustram a singela alternativa que os poderosos blanden sobre as cabeças de seus súditos: inspirar temor ou consentir piedade. Mas, embora a partir do século XIII tende a confundir-se com os absolutismos aos que serve de modelo, o poder papal se distingue daqueles em razão de seus próprios orígenes, tantas vezes recordados pelos reformistas inimigos do poderio militar e estatal das Papas: o pontífice, bispo de Roma, é o eleito do clero e do povo romano; domina para servir, e se receber riquezas e poder é para pô-los a disposição dos pobres e dos fracos. As escrituras e a liturgia não deixam de dizer-lhe aos fiéis. Uma das características mais destacadas deste poder é que se beneficia da aprovação divina, tão desesperadamente reivindicada a sua vez pelos monarcas laicos, ao mesmo tempo que expor sorte carência ante seus súditos com a publicação de textos e crenças nos que se apoiavam! Em efeito, o cerimonial que rodeia o advento de uma nova Papa à cadeira de São Pedro é uma parte integrante da liturgia católica, acessível por principio a cada fiel, e sobradamente conhecida menos de maneira fragmentária. A interação que se estabelece entre a Papa e seus confie romanos procede, pois, da particularidade da situação: se expressa em términos paroxísticos durante as cerimônias, cuja defasagem permanente em relação com a realidade política e religiosa provoca a sua vez a lembrança de um passado exaltado com o passar do ato cerimonioso, ou pelo menos rememorado. Nesta sintaxe de acordes discordantes, quer dizer, na cerimônia mesma, é onde procuraremos o sentido do rito de verificação, confiando em poder encontrar a implantação progressiva e difícil dos «mistérios de Estado», analisados magistralmente pelo E. Kantorowicz. Não obstante, seria um vão intento por nossa parte pretender escrever uma crônica abreviada dos rituais da coroação papal, já que estão muito bem documentados e minuciosamente analisados há séculos; por isso, nesta historia sobre a discussão que agora nos ocupa, só escrutinaremos aqueles pontos de acordo entre os discrepantes que rodeiam diretamente o recitativo da verificação. Morfologia do rito de verificação de virilidade antes de proceder à reconstrução desta sintaxe, recordemos brevemente os elementos morfológicos que contribuem, em um momento ou outro, à elaboração do rito de verificação e em conseqüência da lenda da papisa Juana. Os elementos que identificamos são os que seguem: — lugares: o palácio do Letrán, com suas diferentes basílicas e capelas, onde, como vimos, desenvolve-se a verificação. Este lugar é o contraponto de outro cenário, o Vaticano (com a basílica de São Pedro), destino da procissão da Juana. Assinalemos deste modo um lugar intermédio, perto da igreja de São Clemente, onde se supõe deu a luz a papisa. De fato, uma das versões do texto do Martín o Polonês fala de uma «rua da papisa»; — tempos: desde o Martín o Polonês, o papado da Juana se situa no ano 855. Mais adiante (capítulo IV) teremos ocasião de discutir as circunstâncias precisas que justificam esta data dentro da historiografia papal; no momento, o que nos importa é situar dito tempo em relação com a evolução da cerimônia de coroação. Os tempos do calendário não são pertinentes, já que o advento de uma nova Papa pode produzir-se em qualquer época do ano, em função da morte de seu predecessor. Não obstante, é preciso sublinhar dois dados que sim aparecem conexos sobre o calendário; a primeira aparição provada da fábula, em à crônica do Juan do Mailly, datada por volta do 1250, desvela um detalhe bastante curioso: «Baixo ele (a Papa mulher) ficou instituído o Jejum do Témporas e lhe chama o Jejum da Papisa». Narrações mais tardias (século XIV) revelam a sua vez uma segunda indicação sobre o calendário: a papisa deu a luz durante a procissão das Rogativas; — atores: a Papa e seu séquito; um diácono (está acostumado a se precisar: o «último diácono», «ultimus diaconus») encarrega-se de tocar os pontificais; — ações: a verificação mesma, tira-a de posse do Letrán, a separação da procissão para evitar acontecer perto do lugar da iluminação da Juana. Este último aspecto do ritual aparece muito em breve: Jacobo de Voragem* o resenha em sua Crônica da Génova em 1297, como muito tarde, e — objetos: o objeto determinante e principal é, é obvio, o par de «cadeiras perfuradas» feitas em pórfido e que, segundo o rumor, permitem verificar a virilidade papal. No capítulo anterior apontamos o papel conexo que desempenha a sua vez a poltrona «estercolero», confundido em ocasiões com os perfurados. As diferentes versões que existem sobre a lenda nos proporcionam, em seu conjunto, um pequeno lote de objetos suplementares: uma «imagem» (retrato ou estátua) levantada no lugar da iluminação, e que representa a Juana com seu filho; a primeira notícia deste dado se deve à pluma do chamado Jacobo de Voragem. Algo mais tarde, vários autores se referem a um pequeno edículo, instalado no mesmo lugar. Mas ainda há um último rastro da Juana: trata-se de uma inscrição lapidária, cuja menção se reitera a partir do relato institucional do Juan do Mailly, quem a situa sobre a sepultura da papisa. Dita inscrição, que muitos quiseram apresentar como um sarcasmo do próprio diabo, oferece-se como uma fórmula com seis P iniciais. O texto da mesma varia segundo os autores, mas a estrutura não troca; por nossa parte, transcrevemos a seguir o texto do Juan do Mailly: «Pedro, Pai dos Pais, Publica o Pacto da Papisa» («Petre, Pater Patrum Papisse Prodito Partum») . Providos com esta bagagem um tanto heteróclito de signos, tratemos agora de identificar quais foram os processos essenciais da interação ritual que deram sentido e contexto ao rito de verificação e portanto à lenda da Juana. Os assentos perfurados. nos situemos, assim de repente, no momento de aparição dos «assentos perfurados» no ritual romano oficial, e consideremos em primeiro lugar a natureza mesma do objeto em questão. Em efeito, os assentos existem realmente, e podemos rastrear sua história litúrgica ininterrupta do 1099 até o século XVI, quando desaparecem da cerimônia de coroação. A última referência litúrgica ao uso de ambos os assentos tem lugar com motivo da cerimônia de coroação de Leão X, em 1513; meio século mais tarde, em 1560, Pio IV faz desaparecer do rito a «cadeira estercolera». Por sua parte, as duas cadeiras perfuradas foram relegadas ao palácio do Letrán, e, logo, já no século XVIII, Pio VI as colocou no museu do Vaticano. Os acontecimentos históricos se encarregaram de separar às cadeiras as gema, e embora uma delas se conserva ainda no Vaticano, a outra se encontra atualmente no Louvre, pois foi levada a Paris pelo Napoleón a raiz do Tratado do Tolentino. Estes dois assentos idênticos estão feitos com um mármore precioso, de tom alaranjado, chamado «vermelho velho», que se utilizou durante o Império Romano, e que se extraía de umas pedreiras situadas ao sul da Grécia; esta classe de mármore recorda bastante ao pórfido, razão pela qual no século XII se chamou a estes assentos «assentos de pórfido» («porphyreticae» ou «porphyrae»). O assento propriamente dito repousa sobre dois suportes paralelos e maciços (de 48 centímetros de altura), cujos bordos anteriores e posteriores esboçam volutas; o respaldo adota a forma de um meio cilindro, tem 44,5 centímetros de altura, e se prolonga em uns braços decotados. O assento, que está delimitado por dito respaldo, apresenta em seu centro um orifício circular de 21,4 centímetros de diâmetro, talhado em seu quarto anterior por uma abertura (13,2 por 13,7 centímetros) quadrada, que parte o bordo frontal do assento. Assinalemos de passada que não existe nenhuma descrição objetiva e asséptica do assento, e que por nossa parte construímos nossa descrição em função de dito orifício. Mas, se a esse objeto que na atualidade constitui uma peça de museu, exposta a sua contemplação global, aplicamo-lhe as teorias e os exercícios perceptivos da Gestalttheorie*, quer dizer da psicologia da forma, então constatamos que, sem partir já do orifício, mas sim da forma em seu conjunto, também pode ver-se uma cadeira com assento profundamente decotado e não um orifício praticado em um assento. O matiz é capital. Não obstante, a forma dos assentos resultou em seu dia o suficientemente estranha para suscitar toda essa série de interpretações funcionais que reunimos no capítulo anterior. Os eruditos modernos e contemporâneos, sem dúvida mais pacatos e também mais respeitosos, deslizaram-se geralmente do âmbito da interpretação ao menos comprometido da descrição, para determinar a primeira função dos assentos, cuja fabricação se remonta, em efeito, à antigüidade tardia. Mas a origem não pode converter-se em causa, e ao falar de reutilización não se explica nada, de maneira que só subtrai considerar as gente do medievo como a selvagens ingênuos, que utilizavam qualquer resto antigo sem discernimento algum. Por sua parte, os arqueólogos chegaram quase sempre à conclusão de que se tratava de assentos de banho, cujo lugar original eram as termas. Já em 1841, F. do Clarac expor esta hipótese em seu guia do Louvre, que seria retomada logo, a princípios do presente século, pelo Ameling, e logo pela enciclopédia PaulyWissowa; recentemente, J. Deer confirmou sorte conjetura com argumentos bastante sólidos. Alguns investigadores alemães, entre eles Amelung e Helbig, não excluem a idéia de que fossem assentos «de noite» ou «de alívio», de maneira que não sem certa malícia poderíamos dizer que a arqueologia mais séria coincide em seu diagnóstico com as picardias escatológicas de Platina. Mas no que se refere ao sentido de seu reutilización, reina o silêncio mais absoluto, com uma só exceção. A hipótese de d'Onofrio: sela parteiras Em efeito, a construção audaz, engenhosa e bem documentada proposta pelo Cesare d'Onofrio em 1979 apresenta o interesse de explicar ao mesmo tempo a origem e a reutilización dos assentos. Particularmente, a hipótese d'Onofrio não parece convincente, mas a solidez de sua argumentação nos convida a nos deter nela alguns instantes. Segundo d'Onofrio o pontificado medieval utilizaria duas cadeiras parteiras antigas para significar metaforicamente o conceito do Mater Ecclesia, de Mãe Igreja. Nosso autor toma como ponto de partida a interpretação de um médico dinamarquês, Cheire Borrichius, quem em 1690 descrevia os assentos conservados à maturação no Letrán, cujo antigo uso cerimonioso ao parecer conhecia, e que identificou então como as cadeiras parteiras utilizadas em seu dia pela imperatriz Popea. O uso da cadeira parteira, onde se sentava à parturiente para lhe facilitar a tarefa, recolhendo-se ao recém-nascido por um orifício praticado no centro do assento, está bem documentado durante os primeiros séculos da era cristã. Soranos, um médico grego do século II —cuja obra foi traduzida ao latim no século V, e mais tarde no VI foi adaptada pelo Muscion, um médico africano de língua latina—, descreve com grande precisão este tipo de cadeira: «O que é uma poltrona obstétrica? Pois terá que imaginar uma poltrona de barbeiro; e, ao sentar-se, debaixo do sexo se abre um orifício em forma de lua, de maneira que o menino possa deslizar-se por ele». Um baixo-relevo de princípios do século III, esculpido na tumba da parteira ScriboniaAttica, representa uma cena de parto em que se observa a uma mulher sentada em uma cadeira, cuja altura, forma quase cilíndrica, e decotes dos braços, recordam muito aos assentos de pórfido que agora nos ocupam. Na mesma cena, uma mulher sujeita à parturiente pelas costas, enquanto que a parteira, agachada diante desta, passa uma mão por entre suas pernas e deixa a outra suspensa no ar, para reter a queda iminente do recém-nascido. O uso da cadeira parteira se mantém ao longo da Idade Média, como assim o demonstram, além da iconografia, um tratado da Avicena sobre o parto, e um texto escrito em italiano a começos do século XV pelo médico paduano Miguel Savonarola, avô do terrível dominicano de Florência. Parece, pois, que se cumpriu com as condições materiais do uso metafórico do assento; mas as condições ideológicas também resultam solventes, se tivermos em conta que o palácio do Letrán, legado pelo Constantino ao papado, oferecia seu marco (e seu mobiliário) à reivindicação papal de uma continuidade entre o Império Romano e o pontificado. Cesare d'Onofrio combina com astúcia as fontes para demonstrar que o fato de que os assentos sejam de pórfido não tem nada de fortuito, mas sim forma parte da simbologia do poder imperial. Quando, em meados do século X, Liutprando da Cremona relata suas impressões de Constantinopla, assinala que o atributo imperial «porphyrogeneta» não significa «nascido na púrpura» (significado, por outra parte, aceitável do ponto de vista do léxico), a não ser «nascido no edifício chamado Porphyria», quer dizer no palácio reconstruído no Bizancio sobre o modelo do Letrán, que Constantino tinha cedido ao papado. Nesta mesma ordem de coisas, dois séculos depois, a princípios do século XII, a princesa imperial Ana Comneno, ao recordar seu próprio nascimento no palácio, indica que essa sala chamada Porphyria, completamente revestida de mármore vermelho (o mesmo material que o dos assentos), estava exclusivamente destinada às iluminações imperiais . O aspecto imperial destas cadeiras parteiras deveu perdurar, pois, vivo nas memórias romanas e clericais, ciúmas sempre por controlar toda essa simbiología imperial que o pontificado tinha tomado emprestada para seus próprios fins. Por outra parte, a eclesiología romana podia admitir perfeitamente a metáfora maternal: a expressão Mater Ecclessia figura na literatura patrística do século II, e não deixa de utilizar-se e glosar-se durante toda a Idade Média. Do mesmo modo, podemos coincidir com o Cesare d'Onofrio em que o costume de representar à Virgem da Anunciação encostada aos edifícios da igreja provocou a confusão dos dois temas iconográficos: a Virgem e a Mãe Igreja. A prova iconográfica mais turbadora se encontra em uma série de cilindros do Exultet, decorados com miniaturas, e copiados entre os séculos X e o XIII no sul da Itália. Três destas miniaturas representam a uma mulher que emerge do telhado de uma igreja, e se trata em efeito de uma representação feminina da Igreja, e não já da Virgem, como o indica o fato de que vista muito ostensiblemente o «pallium» pontifício ou arzobispal. Além disso, ainda há uma quarta miniatura onde, em um marco idêntico e com o mesmo gesto lhe orem (os braços em cruz) substitui-se sorte figura feminina pela representação de um prelado barbudo e vestido com o «pallium». Desta maneira, quer dizer mediante uma singela permuta, a Papa ocupa o lugar da Igreja feminina. Fica ainda um último argumento que permite articular metáfora e ritual: por volta do 1190, isto é perto de um século depois da introdução dos assentos de pórfido, encontramos em três cerimoniais de investidura (dos que falaremos mais adiante) uma indicação ritual tão estranha como pouco explicável: «Nestes dois assentos (os assentos de pórfido), o eleito deve sentar-se como se jazesse entre dois leitos («inter duos lectos jacere»). Os textos sobre o cerimonial de coroação repetem de século em século esta indicação. A posição estendida, tão oposta à superioridade de um trono, bem poderia favorecer a idéia do parto. Crítica da hipótese Apesar de sua coerência sedutora, a hipótese do Cesare d'Onofrio não pode convencer de tudo a ninguém, já que há quatro objeções importantes que impedem de assinar sorte tese: 1. Nenhum texto, nem litúrgico nem doutrinal, associa os assentos com a imagem da Mater Ecclesia, toda vez que, como se verá, a cerimônia está glosada com todo detalhe. A miniatura do Exultet constitui um hápax, quer dizer um caso absolutamente único de equivalência entre a Papa como majestade e a figura feminina da Igreja. 2. D'Onofrio não explica em nenhum momento a binaridad gemelar, e portanto essencial, dos assentos. 3. Sem ânimo de polemizar sobre matizes semânticos, parece razoável considerar que a Mater Ecclesia desempenha em um princípio um papel protetor, mais que um papel progenitor. Em outras palavras, que a Mãe Igreja se apresenta como matrona, materfamilias, e não como parturiente. Assim, o autor do cerimonial de 1273, por exemplo, justifica o que a Igreja promulgue as excomunhões o dia de Quinta-feira Santa, e o que em dita festa deva proibir-se qualquer atuação de caráter judicial: «Terá que responder que não se trata de uma promulgação de sentença, mas sim da representação de uma exclusão, e isso não pela via judicial, a não ser mediante a advertência e a correção maternais». Entretanto, o paralelo com a Virgem da Anunciação se desvia; durante a narração evangélica, María, uma vez foi visitada, anuncia uma história particular, única e insubstituível, a da Encarnação: está grávida do Jesus e do salvador, coexistentes ambos. A Igreja, por sua parte, do que poderia estar grávida? Como se chamaria o recém-nascido expulso sob seu assento? Com este embaraço repetido d'Onofrio aumenta dramaticamente a demografia sagrada. A Mãe Igreja, já amadurecida e bem assentada em sua opulência prudente, aparece mas bem como uma variante dos papéis protetores e dominadores assumidos pelas Papas e os bispos: pai, mãe, pastor. 4. A praxe da permutação sexual (aqui é a representação da Papa em mãe) parece tão impossível em sua realidade individual e concreta, em sua representação gestual, como o é possível (como de fato tudo é possível) em uma derivação metafórica da meditação doutrinal. A conotação paternal que comporta o pontífice, muito forte e muito antiga, impede qualquer assimilação feminina: o término «Papa» tem seus orígenes na língua grega, e dos tempos homéricos, no balbuceio infantil com que se designa ao pai. Cipriano e Agustín o aplicam ao bispo, e esta designação adquire carta de natureza, no século V, para nomear ao pontífice; entretanto, no século VI encontramos já o nascimento da expressão «Pai dos Pais» («Pater Patrum»). O apelativo era tão mais importante do momento que conseguia conjugar o vocabulário pão-familiar dos cristãos e o léxico político do Império Romano, ao qual o pontificado teve tanto empenho em vincular-se. De fato, os juristas do segundo século chamavam o imperador «Pater Patriae», «Pai da Pátria», embora M. Cartilha e Q. Catulo já se dirigiram ao César em ditos términos; e, ainda em tempos da Papa Gelasio (finais do século v), o imperador Anastasio gozava do mesmo título. Por isso, seria bastante surpreendente que a finais do século XI, época que se caracteriza precisamente por importantes imitações nostálgicas do pretérito modelo imperial, recorresse-se à metáfora oposta que supõe uma maternidade muito parturiente. Em uma palavra, se a Igreja for mulher e mãe, a Papa é a sua vez homem e pai. Abortemos, pois, o feto Papa d'Onofrio, já que só pode transtornar a esse casal sólido, e retornemos ao momento preciso da aparição dos assentos, para tentar escapar do claustro familiar que encerra ao pontífice. Primeira aparição dos assentos: a coroação de Pascal II (1099) A aparição se produz no ano 1099, no momento do advento de Pascal II à cadeira do Pedro. Leiamos a seguir a narração completa da investidura desta Papa, segundo o relato contemporâneo do Liber Pontificalis: «Havendo falecido o senhor Papa Urbana (= a Urbano II), de solene memória, a Igreja que estava em Roma quis proporcionar um pastor. Com este propósito, reuniram-se na Igreja de São Clemente os pais cardeais e bispos, os diáconos e os magnatas da cidade, com os primeiros notários e os tabeliães regionais. depois de discutir numerosas candidaturas, chega-se a um acordo fácil sobre ele (igual a Urbano II); esta eleição, uma vez conhecida, desagradou a este homem de bem; quis evitá-la fugindo e escondendo-se. Mas não pôde escapar por muito tempo, para agrado de um sozinho, da decisão humana, ele a quem a graça do poder divino tinha decidido designar para a salvação da multidão. Lhe encontra, lhe arrasta ante a assembléia e se reúnen de novo. discute-se sua fuga: "Verdadeiramente precisava fugir, Pais, diz ele, antes que suportar, com uma excessiva presunção de alma, o peso muito desigual deste fardo; não convinha que o sacerdote que eu sou se enrede nas laçadas desta honra para sucumbir, preso, aos vínculos desta carga." "Não, dizem os pais, não deve falar assim; sua vontade deve deixar-se guiar para o ponto onde, você sabe, olhada-las divinas orientaram sua decisão. Hei aí que o povo da cidade te quis como pastor; o clero te escolheu, os pais lhe felicitam e por último o cuidado de toda a Igreja repousa sobre ti. Todo isso é divino e é por inspiração divina que, reunidos, escolhemo-lhe e confirmou para o pontificado supremo." Assim, depois de prolongadas reticências, troca seu nome, e logo os primeiros notários e os tabeliães regionais lhe aclamam por três vezes: "Papa Pascal, São Pedro te escolheu." depois de proferir estas aclamações e outros louvores, os pais lhe vestem com a clámide vermelha e lhe coroam com a tiara; acompanhado pelos cantos da massa, deixa-se conduzir ao Letrán; levam-lhe ante o pórtico norte da basílica do Salvador, que se chama basílica do Constantino; descende do cavalo; colocam-lhe no assento que ali se encontra, e logo no assento patriarcal; continuando, sobe ao palácio e se chega até as duas cadeiras curulas (ad duas curules). Ali lhe rodeiam com o baltheum (a banda ou faixa) de que penduram as sete chaves e os sete selos; desta maneira sabe que com a graça septiforme do Espírito Santo deverá presidir, sob a autoridade divina, o governo das santas Iglesias, unindo e desunindo com toda a justiça e solenidade requeridas; continuando, desagrade-se de um assento a outro, e recebe em sua mão a férula; e, conclui os ritos da eleição, ora sentado, ora caminhando (vel sedens vel transiens), exercendo já seu papel de senhor, pelo resto dos lugares do palácio que estão reservados unicamente aos pontífices romanos». O começo do texto narra atentamente a reticência de Pascal II, mas não nos deteremos no relato, já que dito episódio reitera uma «toupeiras» da eleição do pontífice, reproduzido constantemente da eleição do Gregorio o Magno. Pascal I, de quem o recém eleito de 1099 toma o nome, também manifestou idêntica reticência no 817. Sem dúvida, neste rito, apresentado em todo momento como uma atitude individual, podemos advertir a proclamação inequívoca de que o eleito não pretendeu obter a sede papal mediante a intriga. Mas o rito cumpre deste modo a função de explicar uma separação radical entre os fiéis e o eleito; este último, que ainda é um homem comum, sobressaltado de espanto, não pode admitir sua transmutação divina por mediação do Espírito Santo. O discurso argumentado dos pais manifesta a sua vez a parte divina na eleição humana de uma Papa. Em conseqüência, esta necessidade da separação revela no curso da sintaxe a existência de ritos de trânsito, tal e como o analisa Arnold Vão Gennep. A cerimônia em si mesmo não apresenta um aspecto litúrgico propriamente dito, pois a consagração litúrgica só intervém depois, na basílica de São Pedro do Vaticano, enquanto que o rito da eleição («modus electionis»), que seria suficiente por si só para a investidura papal, conclui a sua vez com a tira de posse do Letrán, único lugar específico, já que o cenário do escrutínio (neste caso a igreja de São Clemente) é contingente. Embora a tira de posse do Letrán não comporta a celebração de uma missa, terá que distinguir, não obstante, entre uma fase religiosa e pública e uma fase profana, separadas entre si pela ascensão da escalinata do palácio. A fase religiosa compreende o uso de dois assentos: o primeiro, sem qualificar («in sede») encontra-se situado sob o pórtico da basílica do Salvador (a basílica patriarcal, San Juan do Letrán); o segundo, chamado «assento patriarcal», e sem localizar no texto, está situado no interior da própria basílica, ou em uma sala pública adjacente. Fontes posteriores nos permitirão voltar sobre este particular. A segunda fase, que tem lugar em uma planta do palácio, desenvolve-se em uma soleira: a bandagem com as sete chaves e os sete selos (que unem e desunem de uma vez que expressam a plenitude jurisdicional do pontífice) entrega-se à Papa justa antes de que tome assento nas cadeiras curulas; o matiz cronológico é importante, já que, como se verá, as versões posteriores da cerimônia, com significados diferentes, assinalam a entrega das chaves durante a parada que o eleito efectúa nas cadeiras de pórfido. A insígnia que em 1099 recebe a Papa nas cadeiras curulas é o bastão («férula»), atributo nitidamente imperial (e/ou senhorial) que representa a autoridade secular, e que se utilizava desde mediados do século X. Por outra parte, um cerimonial anônimo de finais do século XII, o Ordo da Basilea (na Igreja se chama «ordo» a um texto normativo, cerimonial e/ou litúrgico), descoberto recentemente pelo Bernhard Schimmelpfennig, diz que «estes dois assentos e o que se chama estercolero, não foram em modo algum patriarcais, a não ser imperiais». A parte final de ritual de 1099, a de marcha ou parada (deveríamos dizer a sessão «vel sedens vel transiens»), está referida a outros lugares do palácio, reservados unicamente aos pontífices romanos; quer dizer, que os assentos pertencem já ao específico e senhorial da Papa, fora dos lugares compartilhados (a basílica ou a sala pública do palácio). Em definitiva, os assentos associam e separam de uma vez o poder jurisdicional e o poder senhorial do pontífice. Os assentos curules de 1099 Mas passamos por uma qualificação essencial, quase sem nos dar conta: aos assentos lhes chama curules. por que? Fustiguemos ainda um pouco mais a preguiça arqueológica, que neste caso nos indica uma reutilización duplamente ignorante por parte da Igreja; pois se, por um lado, os assentos curules não têm por que estar em dito lugar, por outro, a cadeira curula dos romanos, símbolo do poder de cônsuis e pretores, era uma cadeira dobradiça de madeira ou de marfim, com forma de X, e que não guarda relação alguma com a forma dos assentos de mármore vermelho que nos importam. Mas, precisamente, e aqui propomos solenemente a seguinte hipótese: em realidade se trata, sem lugar a dúvidas, de assentos curules; a exatidão formal não é relevante, já que neste caso ditos assentos desempenham um papel simbólico. Como teremos ocasião de demonstrar, faziam falta sela curules, mas esse mobiliário frágil —madeira ou marfim— não durava em Roma. Pelo contrário, os assentos de pórfido, de cuja antigüidade gloriosa se tinha notícia, puderam subsistir graças a seu gemelidad (as cadeiras curulas foram sempre por casais). Por isso, e partindo da percepção de seu significado de fundo segundo o modelo perceptivo da Gestalttheorie citada mais acima, entendemos que não se trata de poltronas com um orifício, a não ser com um assento estreito, como o das susodichas sela curulas, e as volutas em forma de S investida dos suportes seriam a sua vez uma lembrança da X que figura aos pés do assento dos cônsuis. Em última instância, a pertinência simbólica importa mais que a estrita adequação formal. por que era preciso que figurassem umas cadeiras curulas no 1099? Um artigo do Stephen Kuttner nos põe sobre a pista. Mediante uma hábil separação de seu significado eclesiológico e político, Kuttner demonstra que até o Inocencio III a titularidade canônica das Papas oscila entre dois extremos: por uma parte, Gregorio o Magno implantou a denominação humilde de «escravo dos escravos de Deus» («servus servorum Dei»); o pontífice, que é chefe da Igreja, fica ao serviço dos bispos e dos sacerdotes (que são os servidores de Deus). Mas, por outra parte, ao investir esta situação em relação com os prelados, os pontífices da época gregoriana (quer dizer, imediatamente antes de nosso cerimonial de 1099) tentam proclamar-se Papas ou patriarcas universais. A posta é realmente maiúscula, pois dito título implica a submissão de outros patriarcas (Constantinopla, Antioquía, Alejandría e Jerusalém) a Roma, e a fortiori, dos prelados da igreja cristã em todo o universo. Entretanto, Gregorio o Magno tinha proibido que ninguém pretendesse autodenominarse «universal», reforçando-se dita proibição nas lhes-decretales Decrete isidorinas do século IX, através da voz do pseudo Pelago. Ao legislar desta maneira, Gregorio põe de manifesto sua humildade pessoal, mas também expressa uma vontade férrea de resistir às pretensões universais manifestadas a sua vez pelo patriarca de Constantinopla, com o apoio do Império. E, ainda a finais do século VIII, enquanto se preparava o concílio da Nicea II, Adriano tem ocasião de reprovar ao patriarca Tarasios de Constantinopla seu prepotente título. Não obstante, as Papas não podiam sustraerse de tudo à tentação de passar da proibição em si mesmo defensiva, à apropriação real do título, de maneira que a partir do século VII, e concretamente desde o Martín I, empregam já a titulación universal, até que no século VIII a difunde definitivamente a falsa Doação do Constantino. Durante a reforma gregoriana (segunda metade do século XI), e em pleno apogeu da hierocracia papal (por utilizar a expressão magistralmente analisada pelo Walter Ullmann), a reivindicação de universalidade se afirma com primeiro força com o Alejandro II, no 1061 (aconselhado sem dúvida pelo archidiácono Hildebrando, futuro Gregorio VII); neste sentido, é significativo que o primeiro juramento de caráter feudal que se faz à Papa, o pronunciado pelo Ricardo da Capua em 1073, dirija-se a «meu senhor Gregorio Papa universal». Em 1080, Roberto Guiscardo repete esta fórmula ao receber do mesmo Gregorio VII os feudos da Sicilia, Apulia e Calabria (assinalemos de passagem essa contribuição normanda a hierocracia papal, ao associar o uso de pórfido na construção das tumbas dinásticas dos soberanos normandos do sul da Itália, à figura de seu senhor, a Papa). A expressão de «universal» aparece ainda nas atas do Sínodo romano de 1079, até que os Dictatus papae do Gregorio resolvem definitivamente a questão: «Só o pontífice romano pode chamar-se com justo título universal.» Aqui terei que citar igualmente ao cardeal Deusdedit e aos Dictatus do Avranches (1085-1087). Lucano, a cúria e o papado Mas essa titularidade universal encontra uma forte oposição dentro da própria Igreja romana. Os primeiros grandes canonistas do século XI se apóiam em proposições bastante vagas do pseudoPelago ou do Gregorio o Magno («Que ninguém se autotitule universal») para opor-se firmemente a dito uso, como pode advertir-se nas Diversorum patrum sententiae, no Polycarpus (1109-1133) ou no Anselmo do Lucques (1083-1086). Graciano, autor da primeira grande recopilação de direito canônico, por volta do 1140, toma postura clara a respeito: «Ao pontífice romano não lhe chama universal» (Distinção 99). Entretanto, o uso de dito título, iniciado pelo Gregorio VII, adquire caráter institucional como assinala Rufino em seu Summa; a partir de então, os glosistas do direito canônico, como Juan Faventino ou Juan o Teutónico, fixarão-se a um mesmo tempo no uso do título e sua derrogação teórica no Decreto do Graciano. A finais do século XII, a Soma Tracturus Magister oferece um argumento mais preciso: «Não se conserva esta palavra para evitar assim essa arrogância que a gente de Constantinopla estava acostumada atribuir aos pontífices romanos em tempos do imperador Mauricio»; esta alusão a Constantinopla dissimula mal o alcance romano e político da controvérsia: quer dizer, a idéia de universalidade expressa já o absolutismo do pontífice. Consideremos agora a postura do grande jurista do século XII, Huguccio, quem, depois do cardeal Humberto*, foi um dos primeiros defensores do poder oligárquico dos cardeais-obispos, cujo monopólio eleitoral, estabelecido em 1059, tendia a adotar a dimensão de uma partilha do poder pontifício. Huguccio tomou parte no debate, contribuindo ao mesmo maior grau de generalidade: «Porque se a palavra ("universal") convém a vários e só se atribui a um, parece como se a tirasse a outros.» A atitude antimonárquica aflora sob a defesa dos patriarcas; em efeito, Huguccio continua dizendo: «Já que aquele que se diz universal ("universus do universalis") parece ser tudo ("é-se omnia") no sentido em que César foi tudo.» Curiosamente, esta última frase cita e parafraseia com bastante exatidão o começo de um verso do Lucano («Omnia Caesar erat») («César era tudo»), no livro III da Farsalia, com intenção de provérbio político*. Leiamos a seguir essa parte no que Lucano narra com espanto a cena de demissão dos senadores da República ante o César: «A massa dos Pais (patrum) encheu os palácios (palatia) do Febo, abandonando suas dobras sem nenhuma forma senatorial legal; os assentos sagrados não emprestaram seu esplendor a nenhum cônsul; não está presente nenhum pretor, poder legitimamente próximo ao consulado; retiraram-se de seus lugares as cadeiras curulas vazias ("vacuaeque louco é-se curules"). César era tudo». O hemistíquio que precede imediatamente à locução utilizada como provérbio contra as pretensões universais e absolutistas das Papas diz explicitamente que as cadeiras curulas estão vazias. Neste sentido, compreende-se então a função simbólica das curulas do Letrán, posto que com sua presença habitada negam o «cesarismo» das Papas, e converte aos cardeais em «senadores» (patres) dirigidos por um cônsul. Os assentos de pórfido são, pois, sem dúvida alguma, sela curulas, que cumprem a função simbólica de marcar um transação cerimonioso entre a monarquia pontifícia e a oligarquia cardenalicia. É certo que a referência literária empregada pelo Huguccio pode parecer tardia (terceiro quarto do século XII) e erudita; mas a verdade é que de fato nos situa ante um conhecimento compartilhado pelos homens da cúria e pelos grandes teólogos dos séculos XI e XII. Por sua parte, Gerhoch do Reichersberg emprega deste modo a expressão do Lucano a propósito das Papas de investigatione antichristi: «portanto, se, como se há dito a propósito do César, o romano pontífice o é tudo...» Por último, o sentido proverbial do hemistíquio do Lucano aparece também, e inclusive em um contexto diferente, sob a pluma do Pedro «O Chantre»* quem em seu Verbum abbreviatum lança contra os bispos pluralistas, quer dizer aqueles que desfrutavam de diversos benefícios em lugares diferentes, a seguinte invectiva: «São piores que Julho César, de quem Lucano, ao enumerar todos seus crímenes, há dito a modo de conclusão que César era tudo ("omnia Caesar erat»); em efeito, César era a um mesmo tempo, cônsul, cuestor, etc., na mesma cidade; mas aqueles que atuam do mesmo modo em várias cidades são ainda piores». Parece, pois, bastante verossímil que esta denominação proverbial do absolutismo (e sua correta tradução no vazio das cadeiras curulas) circulasse efetivamente no meio curial de finais do século XI. Assim, o fato de que a Papa faça uso das curulas no momento de seu advento ao trono do Pedro constitui uma negação metafórica, pois desta maneira a Papa assume uma superioridade (a de cônsul) que implica a sua vez uma hierarquia e não uma tirania. Esta réplica gestual aos que, como Huguccio, queixavam-se («se eu for tudo, você não é nada», «se ego omnia, seu é nihil») anuncia com precisão a resposta discursiva e logística do Inocencio III, um século mais tarde: «fala-se da Igreja universal em dois sentidos. Se se compuser do conjunto das Iglesias, diz-se Igreja universal ou católica, segundo o vocábulo grego; desde esta acepção, a Igreja romana não pode ser universal [de fato não o é um absoluto], pois só é uma parte da igreja universal, a parte principal e primeira, como a cabeça o é do corpo. chama-se igreja universal a que governa a todas as Iglesias, e somente neste segundo sentido se chama universal à Igreja romana». Transações papais Voltemos sobre os términos eclesiológicos do transação justificando em primeiro lugar o uso do vocabulário romano da República, e depois sua adequação à situação concreta de 1099. Gregorio o Magno já falava da «sociedade da República cristã», sobre a qual exercia seu principado o papado, e em seu próprio epitáfio ao Gregorio lhe chama «consul Dei» («cônsul de Deus»). Esta titularidade se compreende já em relação com o tema da universalidade do poder pontifício, posto que, como havemos dito mais acima, Gregorio foi o primeiro em protestar contra as pretensões de Constantinopla em erigir-se em patriarcado universal, apoiando-se no estatuto de cidade real («urbs régia») da metrópoles do Oriente. O vocabulário romano reinstalava a Roma e a sua igreja como cabeça do mundo («caput mundi»), ao mesmo tempo que vinculava à Papa o direito imperial sobre as questões sagradas («jus in sacris»). Ao longo de toda a alta Idade Média, vão se acontecer ambas as concepções da comunidade cristã, a corporativa e a republicana, em função das estratégias contingentes. Mas o vocabulário romano alcança seu verdadeiro desenvolvimento quando Roma se emancipa por completo de Constantinopla, no século VIII. Com motivo de sua visita a Pepino o Breve, no ano 754, Esteban II unge ao rei dos francos com o título de «patrício dos romanos»; e no texto de uma carta da mesma Papa Esteban ao próprio Pepino, redigida [por volta do ano 750] à vista de uma confirmação da falsa Doação do Constantino, encontramo-nos com uma designação na verdade assombrosa: «A Santa Igreja de Deus e da República dos Romanos» («sancta Dei ecclesia et republicae Romanorum»), que se repete na biografia do Esteban II no Liber Pontificalis. Walter Ullmann se ocupou de analisar detalladamente semajante titulación, para chegar a seguinte conclusão: é evidente que a expressão guarda relação estreita com a denominação clássica «Respublica romana», mas esta forma verbal nos situa de novo no Império e em conseqüência ante sua cabeça bizantina; o novo título («República dos Romanos») engloba a quão cristãos vivem de acordo com a fé romana e não com a grega, e que em conseqüência seguem os ensinos da Igreja de Roma e não da do Bizancio. A cristandade se confunde, pois, com a romanidad, atendendo a um movimento iniciado em seu dia pelo Gregorio o Magno e enfocado à a Inglaterra e à a Germania não imperiais, mas romanas, depois das grandes conversões que ali tiveram lugar durante o século VII. Não obstante, é evidente que o término contém implicações sociais, políticas e culturais que acompanham a conotação estritamente religiosa. Efetivamente, na mesma Roma, este encargo eclesiástico do léxico antigo marca as etapas de um processo de conquista urbana, registrado entre os séculos VIII e IX, durante o qual o papado consegue arrancar à sociedade laica suas antigas referências políticas. Até mediados do século IX, o término de Senado comportava ainda uma acepção institucional, que se utilizava para designar a um corpo bastante bem definido em sua composição de patrícios e cônsuis, assim como uma organização administrativa e judicial. Os nobres romanos recebem os nomes de «proceres» e «optimates», enquanto que os chefes aristocratas da tropa urbana («exercitus») chamam-se a sua vez «duces» ou tribunos. Por outra parte, também é verdade que a geografia eclesiástica mostra bem às claras as usurpações da Igreja, e, por exemplo, o Senado do século VIII já não pôde reunir-se na «Cúria Senatus», que tinha sido transformada em caminhos Iglesias (São Adriano e Santa Martina); e é deste modo certo que o desenvolvimento da própria Igreja passa igualmente por uma absorção da nobreza «senatorial» dentro da ordem clerical. Não obstante, a lembrança republicana antiga se conserva na memória com a suficiente vigência durante o século XII como para que a revolução de 1144 institua imediatamente uma «renovação do Senado». A cúria como Senado Durante o século XI, os cardeais tomaram parte ativa nessa reconstrução ideológica da Roma antiga. O término de cardeal, cunhado provavelmente no século VI, aparece no VIII, embora para designar unicamente o liturgo de uma grande basílica romana. No papado do Esteban III achamos uma menção dos sete cardeais-obispos semanais, quer dizer dos sete bispos suburbiales de Roma encarregados das diocese da Ostia, Porto, Silva Candida, Palestrina, Sabina e Túsculo, quem realizava um serviço litúrgico semanal no Letrán (pelo qual de fato lhes chamava bispos do Letrán). A estes sete bispos terá que acrescentar os 28 cardeais-sacerdotes que, em um princípio, tinham a seu cargo as 28 igrejas-titulares intraurbanas de Roma, embora também eles garantiam um serviço litúrgico no Letrán. Por último, embora são algo mais tardios, estão os 18 cardeaisdiáconos encarregados a sua vez das 18 Iglesias diaconales de Roma, sobre as que voltaremos mais adiante. Assim, desta maneira, vai constituindo pouco a pouco um corpo coerente, formado em seu conjunto por um total de 53 dignatarios, que reflete a geografia religiosa especificamente romana (colateral e urbana), sem por isso riscar as estruturas diocesanas ordinárias, dado que mescla os graus litúrgicos. Mas o que esse corpo constrói em realidade é uma espécie de senado da Igreja romana, toda vez que confere uma estrutura fixa ao clero (cleros) romano, tomando como tudo e como parte da comunidade urbana dos fiéis, de maneira que do «senatus populusque» se passa ao «clerus populusque». E, inclusive quando Leão IX (1049-1054) amplia o horizonte geográfico do corpo cardenalicio excluindo do mesmo, por motivos de simonía, a certos romanos em benefício de prelados italianos ou transalpinos (por exemplo, abate-os de Monte Carmelo, de me Vendo ou de São Víctor da Marsella), mantém-se o esquema romano: o abade franco toma o título presbiterial de uma igreja da cidade. A assimilação desta élite do clero no Senado se vinha preparando da Doação do Constantino (mediados do século VIII): «Queremos que os homens muito reverendos [titulación senatorial], os clérigos das distintas ordens que servem a esta igreja romana, desfrutem desta eminência, desta especificidad, deste poderio e desta preeminencia com a que se adorna nosso muito alto Senado para sua glória; que lhes faça, pois, patrícios e cônsuis, e que lhes decore com as dignidades imperiais» . E se, por nossa parte, corremos o risco de pecar de anacronismo ao discernir detrás desta élite clerical o corpo dos cardeais aos que se outorgou honras senatoriales e consulares, é porque esta oferta pseudoconstantiniana se decantaria logo [durante o século Extra grande], com toda naturalidade para o corpo cardenalicio. Mas, o que se poderia descrever com esta metáfora senatorial? Acaso uma função, ou uma simples fila? No sínodo de Roma, celebrado em 1059 sob a direção do Nicolás II, aparece já uma resposta a nossa pergunta. Sabemos que a Igreja primitiva requeria o assentimento do clero e do povo para a eleição do bispo ou do pontífice, mas também sabemos que os progressos do poder clerical, o medo à intervenção dos laicos, e o risco permanente de um golpe de força induzem ao papado a apartar aos laicos do processo eleitoral; de fato, Símmaco no 498 e Esteban III no 769 já tentaram sem êxito reservar o sufrágio ao voto do clero. No ano 1059, Nicolás II outorga o direito ao voto exclusivamente aos cardeais; assim, os cardeais-obispos designam um candidato, logo lhes unem outros cardeais para a eleição formal, e por último pedem o consentimento do clero e do povo. O papado do século XI instala, pois, uma clara oligarquia eleitoral, segundo o modelo antigo de deliberação, explicitamente solicitado pelo Pedro Damián, bispo-cardeal da Ostia, e grande ideólogo da reforma gregoriana: «A Igreja romana, que é a sede dos apóstolos, deve imitar a antiga cúria dos romanos». Para o Pedro Damián, os cardeais são os «senadores espirituais da Igreja universal». É então quando o cardeal Deusdedit leva a assimilação ainda um pouco mais longe, e diz que ao igual ao Senado se nutre da classe Patricia, assim «os clérigos romanos ocupam o sítio dos antigos patrícios». Mas esta convergência aparente, que reflete a preocupação comum por dotar de uma organização forte e concreta a «societas christiana», tomada como corpo político autônomo, se por uma parte dá vida autêntica à Cúria romana, por outra deixa aberta a questão da partilha do poder entre a Papa e os cardeais. Porque, se os cardeais tomavam como referência o modelo republicano, segundo o qual o Senado exercia um controle estrito sobre o consulado, o papado pensava a sua vez no modelo imperial, segundo o qual o Senado se encarregava de apoiar o «principatus», quer dizer a soberania do imperador. Pedro Damián é muito claro a respeito: «O Senado terrestre aconselhava, dirigia e realizava o esforço de seu trabalho comum ao objeto de submeter à multidão dos povos à soberania romana.» Desde esta perspectiva se compreende a ampliação geográfica começada por Leão IX e continuada pelo Gregorio VII, de tal sorte que muitos cardeais procedem do norte dos Alpes, para significar com sua presença a universalidade da sociedade cristã. Frente a esta função representativa e intermediária, os cardeais apresentam sua própria visão oligárquica da atuação da Igreja romana. O já chamado cardeal Humberto, cujos passos seguirá brilhantemente Huguccio um século mais tarde, pretende que a Igreja romana se componha da Papa e dos cardeais, e, ao referir-se ambos, Humberto e Huguccio, ao direito imperial romano, aspiram a converter-se em uma parte do corpo da Papa, do mesmo modo que os senadores tinham sido uma parte do corpo do imperador. Por outro lado, o decreto eleitoral de 1059 conferia um estatuto ambíguo aos sete-bispos cardeais encarregados da designação do pontífice: ao dirigir a eleição do clero e do povo, desempenhavam o papel de um capítulo catedralicio em relação com o bispo ordinário; ao fazer interina esta eleição, comportam-se como bispos coprovinciales do eleito; e, ao lhe dar a consagração (carga litúrgica atribuída desde antigo ao Hostiensis, quer dizer ao bispo da Ostia, a quem assistem os bispos de Porto e do Albano), assumem coletivamente a função de metropolitano («Posto que a sede apostólica prevalece sobre todas as Iglesias do mundo, e posto que, em conseqüência, o metropolitano não pode estar por cima, são os cardeais-obispos quem, sem dúvida alguma, desempenham as funções de metropolitano e elevam ao bispo a mais alta topo apostólico»). Esta série de identificações acumuladas confere ao grupo dos sete cardeais-obispos uma personalidade corporativa forte, por cima das hierarquias eclesiásticas, no coração da instituição pontifícia, que eles mesmos engendraram a perpetuidade. Função política do rito de 1099 A finais do século XI, esta ascensão do poder cardenalicio se acentúa ainda mais. O cisma do Gilberto da Rávena («Clemente III», o antipapa do Gregorio VII), em 1080, aumenta as pretensões oligárquicas do Sacro Colégio, já que o antipapa, para assegurar o apoio dos cardeais, reconhece-lhes uma série de privilégios que logo não esquecerão, a pesar do fracasso do cisma. Ditos privilégios compreendem a preeminencia dos cardeais sobre qualquer bispo, o direito de julgar também a qualquer bispo, o requisito de apresentar a três dúzias de testemunhas para poder inculpar a um cardeal processado, o direito a assinar atos papais, a quase suplantación dos sínodos pelas reuniões cardenalicias que se chamarão «consistórios», término este mencionado por primeira vez baixo Pascal II, e que a Papa se sente nas curulas. Neste sentido, o cardeal Hugo chega ainda mais longe, pois pretende que sem as assinaturas dos cardeais as declarações da Papa (os lhes decrete) carecem de valor! Neste caso, a Papa só seria então a voz da Igreja. O cisma provoca defecções entre os cardeais (este é o caso do Juan de Porto, quem, em 1084, passa-se ao bando do Gilberto) antes de que se produza o desdobramento do Sacro Colégio, como conseqüência do sínodo gilbertino de 1098. A eleição de Pascal II, a sua vez cardealsacerdote de São Clemente, desenvolveu-se, pois, em um ambiente de competência feroz pelo poder, e no que quem mais quem menos tinha algo que oferecer em troca. A invenção do rito das cadeiras curulas no cerimonial se origina diretamente à sombra deste debate capital, que ocupa os últimos anos do século XI, quando o peso dos cardeais e da Cúria não deixa de aumentar. O primeiro que faz Pascal II ao chegar à basílica é afirmar sua plenitude religiosa como patriarca universal, sentando-se no trono «patriarcal»; logo sobe ao palácio onde vincula sua plenitude jurisdicional com os sete poderes judiciais, ao ater o «baltheum» dos sete selos e das sete chaves. Quem é estes sete poderes judiciais? Certamente não se trata dos sete juizes chamados «ordinários» ou «juizes do clero» (primário, secundário, arcarius, sacellarius, protoscrinarius, primus defensor e nomenclator), que são simples oficiais do Letrán, às vezes inclusive laicos, cuja função tinha perdido contido no século X, e portanto neste momento só representa uma fila. O que sem dúvida terá que advertir no gesto de Pascal II é uma abertura cerimoniosa por parte do poder papal frente aos sete cardeais-obispos; ou, dito de outro modo, o que se desprende é uma tradução ritual da assinatura cardenalicia aos atos do pontífice (os lhes decrete papais som em realidade documentos de caráter judicial). No caso de que não esta fora a interpretação correta, como se explica sorte cifra (sete) que evoca vagamente os sete dons do Espírito Santo, embora no texto do Liber Pontificalis está explicitamente associada à direção («regimen») das Iglesias? Por outra parte, o rito de ater o «baltheum» tem lugar pela primeira vez no ano 1099. As representações anteriores das chaves (sem os selos) falam de três; depois, o rito, com um significado diferente, pendura doze chaves da cintura papal. Em um terceiro momento, a Papa adota a postura de cônsul único [postura imperial] no momento de tomar a férula, enquanto proclama —dado que as cadeiras curulas não estão vazias— a originalidade de sua relação pessoal com o corpo dos Pais, nessa soleira estreita, mais à frente do espaço litúrgico e público da basílica, que se encontra entre o espaço judicial e eclesiástico do palácio, compartilhado com a cúria, e o espaço reservado à moradia papal e senhorial. Fragilidade e escuridão dos significados rituais À vista do exposto, resulta compreensível a fragilidade deste rito sutil, metáfora gestual de um transação delicado que está dirigida a alguns homens da cúria. Não obstante, e apesar de conservar sua forma como parte da liturgia cerimoniosa, o rito adquire fatalmente uma opacidade total. Vinte e cinco anos mais tarde, no 1124, achamos uma segunda aparição das cadeiras curulas durante a coroação do Honorio II. Mas neste caso, o redator do Liber Pontificalis chama a estas cadeiras os «assentos em forma de sigma» («in simis»), pois só toma notícia de seu aspecto formal. Continuando, nas «ordene» de finais do século XII (Ordo da Basilea, de Albino, do Cenco), esfuma-se a descrição formal para ressaltar sua natureza material, o que fica ainda mais longe de seu sentido original; a partir de então, quando se fizer referência às cadeiras curulas se falará já, para sempre, dos dois «assentos de pórfido». Esta transição da forma à matéria indica possivelmente que, no século XII, existe um intento por separar as primeiras percepções escatológicas ou indecorosas do rito. De fato, a «sima» (ou «sigma») do Sidonio Apolinar se refere ao assento de banho, muito decote, ateniéndose a sua forma semicircular, já que a sigma grega em grafia uncial tinha, em efeito, a forma de uma C. A imprudência, não isenta de ingenuidade, que se desprende da denominação empregada em 1124 pôde ter gerado interpretações impróprias para a dignidade papal, e por este motivo se retificou. O mal-entendido ritual, que chega ao paroxismo do rumor comentado no capítulo anterior, emana de uma estrutura institucional com registro dobro. O transação, materializada nas cadeiras, tem lugar entre vários indivíduos, enquanto que o estatuto litúrgico da cerimônia projeta a sua vez a narração de dito rito sobre o teatro universal da comunidade de fiéis. Mas então, do que serve o gesto ritual se este permanecer escuro para a maioria dos fiéis? Para os membros da cúria, acostumados por sua formação litúrgica e jurídica a um certo «realismo» da nominação (verbal e gestual), trata-se de uma atuação legislativa. A Papa formula a lei, e aos fiéis concerne a tarefa de conhecê-la. O gesto e a palavra rituais fazem a lei, exatamente com o mesmo efeito que o decretal, quer dizer, essa lei criada pelo pontífice por razão de circunstâncias particulares, e que está dirigida a um indivíduo (ou a um grupo) em forma de carta, mas cujo valor é, não obstante, de alcance universal (como o demonstra a constituição mesma das coleções de lhes decrete). Esta continuidade dos atos cerimoniosos e das redações lhes decrete aparece com nitidez na forma em que a Papa Adriano IV tratou ao imperador Federico Barbarroja, por volta de 1155, quando, uma vez concluído o comprido conflito que, da época gregoriana, enfrentava ao papado com o Império, a Papa quis pôr de manifesto a sujeição que lhe devia o imperador. Em um primeiro momento, concretamente em 8 de junho de 1155, Adriano IV pretende obrigar ao Federico, no Sutri, antes da coroação imperial em Roma, a que desempenhe o papel de «strator», quer dizer o encarregado de sujeitar as rédeas do cavalo papal. Para o Adriano este gesto supunha conferir caráter de interinidade ao princípio do traslado imperial do Bizancio a Roma. Desta maneira, isto é de desempenhar este papel, Federico se instalaria no trono em qualidade de sucessor do Constantino, já que, segundo o texto da falsa Doação do Constantino, dito monarca deteve sua vez o cargo de «strator» para a Papa Silvestre, com o propósito de manifestar assim seu respeito para o papado. Federico se negou violentamente, pois interpretou o gesto como um signo de submissão feudal muito explícito. Adriano IV não insistiu, mas dez dias mais tarde, no momento da coroação imperial em São Pedro, a Papa perseverou em seu esforço de legislação ilustrada com os gestos, e modificou o ritual de coroação estabelecido desde 1014: a unção imperial não se realizou durante a missa a não ser antes, deixando assim de aparecer como a concessão de uma ordem sagrada; além disso, dita unção, outorgada pelos cardeais, tampouco teve lugar no altar maior, reservado exclusivamente ao pontífice, a não ser ante o altar de São Mauricio. Do mesmo modo, uma promoção aparente ajudou a desvalorizar o significado da coroação: a Papa fez entrega das insígnias imperiais ante o altar maior e durante a missa, em vez de ante o altar de São Mauricio; desta maneira ficava de manifesto que o motivo principal da cerimônia não era outro que a entrega das insígnias por parte da Papa, o que em definitiva apresentava ao papado como fonte do poder laico. Federico não protestou, provavelmente porque não entendia bem a natureza destas mudanças complexas e simultâneas; mas, para o papado, esta mutação adquiriu fila de lei, e foi Inocencio III quem a incorporou definitivamente à última forma medieval de coroação imperial. Por sua parte, Federico Barbarroja não advertiu com claridade a verdadeira vontade do pontífice, até que não recebeu no Besançon, em 1157, uma carta do Adriano IV em que lhe reclamava o «beneficium», quer dizer, em que lhe recordava o benefício que lhe tinha sido outorgado com a coroação. O conselho do Federico, Rainaldo do Baissel, futuro arcebispo de Colônia, traduziu ao imperador, que desconhecia o latim, a palavra «beneficium» pelo equivalente germânico de «feudo», o que provocou o furor do Federico. Esta anedota ilustra com claridade tanto o papel legislativo do rito, com fila igual ao da decretal, como a escuridão do mesmo, generadora a sua vez de tantos contra-sensos. A cadeira de São Pedro O mal-entendido e a «má impressão» de 1099 não teriam alcançado uma importância tão grande, se não tivessem acompanhado e expresso uma redistribuição capital do espaço cívico e religioso da cidade romana. Mas se em realidade foram poucos os que captaram o significado das cadeiras curulas, o ritual, pelo contrário, confirmava a todos, desde seu cenário de conjunto, a constituição de um lugar abstrato de poder, de uma corte, de uma cúria, ali mesmo onde Roma tinha conhecido um espaço concreto e acessível de domínio episcopal. Percorramos rapidamente estes espaços, sucessivos e encaixotados, nos transladando de sede em sede, «vel sedens vel transiens», conforme nos sugere a forma pontifícia de concentração de significados. Até o século VIII, a vida religiosa e cívica de Roma se desenvolve em uma rede que a sua vez está tecida com múltiplos malhas. Se, da época do Constantino, Letrán, com seu palácio e sua basílica do Salvador, serve de residência episcopal para as Papas, enquanto que a basílica de São Pedro do Vaticano alberga ao primado pontifício, materializado na presença do corpo do Pedro, as diferentes Iglesias da cidade (basílicas, Iglesias titulares, Iglesias diaconales) integramse a sua vez pela via indireta da liturgia sazonal, dentro de um espaço comunitário e episcopal. Letrán não se distingue apenas de uma residência episcopal ordinária, quando se trata de assaltála em caso de rivalidade de candidaturas ou de cisma, de maneira que sua específica condição de basílica pontifícia surge lentamente dessa rede local, cristalizando-se em torno de outra sede capital, a cadeira de São Pedro, cuja história conhecemos graças aos trabalhos respectivos de monsenhor Maccarrone e Nikolaus Gussone. A cadeira («cathedra») como tal em um princípio só tem um sentido simbólico, e representa como diz São Cipriano (século III) a eminência supraepiscopal do Pedro: «Existe um só Deus, um só Cristo, uma só Igreja e uma só cadeira apoiada na palavra pronunciada pelo Senhor a propósito do Pedro». A noção de «sede apostólica» («sedes apostólica») define-se no século IV, antes de recuperar o objeto concreto que é o trono episcopal. O uso deste trono é essencialmente litúrgico, já que a cadeira e o altar constituem elementos fundamentais do espaço sacramental. Há outros dois tipos de assentos que aparecem na basílica da alta Idade Média, como de fato aparecem já em qualquer catedral: a cadeira portátil da confissão apostólica («sela gestatoria apostolica confessionis»), registrada a partir do século VI, e o assento, também dobradiça, colocado na sacristia, e reservado às funções judiciais da Papa-bispo. Mas a hierarquia determinada pelo uso de ambos os assentos se limita ao âmbito religioso, como pode deduzir-se de um canon do Concílio de Cartago, celebrado no ano 395: «Que o bispo, na igreja, sente-se mais acima que os sacerdotes; mas, que no palácio, considere-se colega dos sacerdotes». O espaço sagrado começa a explicar-se com o Gregorio o Magno, quem foi o primeiro em instaurar a consagração papal em São Pedro, e, conforme parece, o primeiro também em instalar uma cadeira fixa, de pedra, escolhendo para isso uma disposição que, com grande sentido da coerência, respondesse além a suas próprias expectativas em matéria de titularidade. Assim, ao tempo que se desprende de tudo sinal de orgulho, proclama a eminência romana, mandando colocar no ábside de São Pedro 24 assentos que rodeiam o trono papal. Evidentemente, esta cifra recorda a assembléia escatológica do Apocalipse e expressa, mediante essa encenação da herança crística, a primazia de Roma sobre Constantinopla, no lugar exato onde se justifica sorte primazia: perto da tumba do Pedro. Hei aqui, pois, a primeira separação no espaço romano: o Vaticano, que se encontra extramuros, transcende a rede urbana e, graças à cadeira de São Pedro, dá corpo à noção de sede apostólica. Eminência do Letrán E, ao igual à apropriação por parte de Roma do título patriarcal universal se desenvolve a partir da tática defensiva, que neutralizou a denominação, assim o estatuto eminente e pessoal do bispo de Roma, cuja sede é Letrán, adquire vigência do momento em que o próprio pontífice se esfuma no Vaticano, de acordo com a noção transpersonal da sede apostólica. O papel específico do Letrán se afirma no século VIII, quando Roma alcança uma autonomia definitiva em relação ao Império de Constantinopla, embora algo antes, quer dizer, durante a última década do século VII, o que até então se conheceu como o «episcopium» do Letrán (a residência episcopal) passa a chamar o «patriarchium Lateranense» (o patriarcado do Letrán). ao redor dessas mesmas datas (no 685), o Liber Pontificalis menciona pela primeira vez a cerimônia de «introdução» no Letrán justo depois da eleição: «Seguindo a antiga tradição, a assembléia introduz ao eleito na igreja do Salvador que chamam constantiniana, e logo na residência episcopal». Esta novidade assinala um novo regime do poder papal, pois em efeito, a cerimônia parece adotar como modelo a tira de posse («introductio» em linguagem jurídica) de uma igreja titular por parte de um sacerdote recém consagrado em São Pedro. De um modo ou outro, as aclamações, o uso de um assento concreto, a missa e a celebração de um banquete interinizan um direito jurídico-litúrgico. Com o passar do século VIII, a distinção entre o poder de jurisdição («potestas juridictionis») e o poder de ordenação («potestas ordinationis») das Papas, entre o Letrán e o Vaticano adquire maior consistência ainda. A basílica do Constantino perde todo seu conteúdo litúrgico na instalação papal, em benefício do palácio que, no século XI e sob a influência imperial, receberá o nome de «sacro palácio do Letrán» («sacrum palatium Lateranense»). Começa, pois, a construira cortecuria fazendo convergir para o palácio toda a vida romana. O decreto pontifício do 769, que tenta regrar a eleição das Papas, proporciona-nos o sentido desta evolução: «E depois de que a Papa seja eleita e conduzido ao patriarcado, a gente se precipita para lhe saudar como senhor universal (omnium dominum)». Assim, o palácio do Letrán faz que tanto o tema do patriarcado universal como o da dominação absoluta, cuja modalización ritual (as curulas) observamos já no 1099, convirjam em seu espaço. Por isso, embora o chamado decreto do 769 só se aplica parcialmente, o certo é que estabelece com claridade uma jerarquización do espaço sagrado romano, já que exclui do mesmo aos laicos durante a eleição e a tira de posse do Letrán. Enquanto esta cerimônia se desenvolvesse totalmente na basílica estava dirigida à comunidade dos fiéis; mas no palácio só eram admitidos os dignatarios. O espaço romano perde então esse traçado original de rede, a que nos referimos mais acima, para adquirir uma forma concêntrica construída ao redor da figura da Papa. O dispositivo comunitário dos bispados pertencentes a vicarías suburbiales e das Iglesias titulares se focaliza em torno de Letrán no século VIII, mediante o sistema da participação semanal: bispos, sacerdotes e diáconos asseguram o serviço litúrgico da basílicia do Salvador, com um sistema de voltas. Esta organização reflete a sua vez o modelo corporativo da Igreja, cuja cabeça se encontra ao mesmo tempo na parte superior do corpo e por cima do mesmo (fora dele); assim, as cinco basílicas patriarcais (das que falaremos mais adiante) estão coroadas pela primeira delas, a basílica do Letrán, que regula seu funcionamento litúrgico da cúspide e do exterior de dita estrutura patriarcal. Neste sentido, a basílica do Letrán figura como «a cabeça e a cúspide das Iglesias», segundo a expressão empregada na Doação do Constantino; mas, ao mesmo tempo, a Papa já não recebe ali a investidura religiosa, posto que o pontificado se proclama em outra parte, mais acima (na planta do palácio), e em outro lugar, fora da rede romana, quer dizer em São Pedro. O novo espaço litúrgico de Roma funciona então como a representação dos sucessivos encaixotamentos da monarquia pontifícia: as cinco basílicas patriarcais (Letrán, Vaticano, São Pablo, Santa María a Maior e São Lorenzo do Verão) representam a sua vez aos cinco patriarcados da cristandade, enquanto que as titularidades cardenalicias (bispados e Iglesias) desenham por sua parte uma imagem do povo romano, presente no Letrán através do serviço litúrgico. A Papa participa desta construção ao tempo que escapa da mesma graças a sua posição elevada, posto que ao ser bispo coprovincial dos sete cardeais-obispos, e patriarca entre os patriarcas, situa-se sempre na parte mais alta da espiral ascedente, simbolizada a sua vez na tira de posse do Letrán; o bispo e o patriarca cedem ante o pontífice, cujo palácio reflete a supremacia, no primeiro piso dos edifícios do Letrán, isto é, em cima da basílica. Da cadeira à coroação Uma vez mais, um assento expressa por si mesmo esta expansão do poder. Em efeito, a cerimônia de investidura do Felipe, celebrada no ano 767, em que já não se introduz ao eleito na basílica a não ser no patriarcado, menciona pela primeira vez a presença de um assento papal no Letrán: «conduz-se [o que significa já uma «introdução»] ao Felipe até o interior da basílica do Salvador, de acordo com o costume habitual; uma vez ali, depois da oração de um bispo, [Felipe] distribuiu a todos a paz, e logo foi introduzindo no patriarcado ao Letrán. Ali toma assento na cadeira pontifícia («in sellam pontificalem») e distribui uma vez mais a paz conforme é costume, para depois subir ao palácio e oferecer um banquete, como fazem todos os pontífices». No ano 827 aparece a menção de um trono pontifício no Letrán, segundo um modelo cada vez mais imperial: Valentín, «eleito para a sede pontifícia, foi conduzido ao patriarcado e colocado no trono pontifício; recebeu a ovação unânime do senado dos romanos»; a imagem antiga, em que a noção do senado se aplica ainda com certa vaguedad aos aristocratas laicos parece essencial aqui. As cerimônias de coroação subseqüentes, quer dizer as que se acontecerão com o passar do século IX, apresentam ligeiras variantes deste modelo: a partir do ano 847 (Leão IV), conduzse ao eleito ao «palácio» do Letrán, que se converte no «sacro palácio» no ano 885 para o Esteban V, e após o trono se designa com a palavra «solium», de maior sentido secular que «thronos». Quando o narrador do Liber Pontificalis relata a invasão do Letrán, no ano 855, por parte do Anastasio o Bibliotecário, adversário do Benito III, leva ainda mais longe a sacralidad do trono do Letrán, pois se indigna porque Anastasio se sentou nesse assento «que não deveria haver meio doido nem sequer com as mãos». O trono se converte em um objeto tão sagrado como o pálio ou o altar maior de São Pedro, reservados exclusivamente à Papa eleita canonicamente. Na mesma época, a cadeira de São Pedro, trono de mármore situado no ábside de São Pedro, adquire uma nova importância; desde finais do século IX, no domingo de consagração se estava acostumado a realizar uma coroação litúrgica, quer dizer uma ordenação-consagração que agora quer substituir por uma cerimônia mais específica, em que o eleito já é bispo, e portanto já está consagrado. A primeira vez que teve lugar dita inovação foi no ano 882 com Marinho, bispo do Cerrae, e logo no 891 com o Formoso, bispo de Porto. Até então, as regras canônicas proibiam a «translação», isto é o passo de um bispado a outro; a inovação se introduziu, pois, com dificuldade, como se desprende da sorte postuma que correu Formoso, cujo cadáver foi exumado e arrojado ao Tíber. Não obstante, o costume de escolher um bispo para o pontificado se estendeu ampliamente durante o século XI. Em definitiva, a multiplicação dos tronos e dos assentos pretendia simbolizar, a olhos dos fiéis, o espaço cada vez mais importante do domínio jurisdicional das Papas, em detrimento da partilha litúrgica. A instalação do trono patriarcal no Letrán (segundo assento na cerimônia de 1099) materializava claramente a separação desse espaço pontifício; desta maneira, se fazia passar ao eleito da primeira zona (de caráter público, na basílica do Letrán) à segunda (de caráter reservado, a do patriarcado). Com o passar do século XI aparece uma terceira zona, ainda mais secreta, que é a do palácio, de caráter quase pessoal; a soleira desta zona estará adornado com cadeiras as cure. Na soleira do palácio A clausura paulatina do Letrán se acelera durante os séculos X e XI, e, sem necessidade de forçar a analogia, podemos transladar ao palácio do Letrán o processo de «incastellamento» analisado magistralmente pelo Pierre Toubert a propósito do Murcho feudal no século X. Se trata do desenvolvimento dos domínios senhoriais concentrados ao redor dos castelos («castra», «castelli»), formas bem distintas das estruturas do feudalismo clássico, feudo-vassalagem, que surgirão mais tarde, durante a segunda metade do século XI. depois da fase de retomada agrária (século IX), que também afetou ao papado em sua condição de senhor de domínios agrícolas (os «domuscultae»), cada vez mais numerosos na região do Murcho, a dominação castral (século X) canaliza esse crescimento. A rede eclesiástica rural do Murcho conhece, pois, a mesma concentração que a que apresentam os domínios agrícolas, e inclusive o sistema paroquial urbano de Roma: à dispersão das Iglesias de aldeia (as «plebes»), e a criação das Iglesias batismais, dos oratórios e das capelas dos domínios (séculos VIII-IX), acontecem-lhes em primeiro lugar o desmembramiento das «plebes», e em segundo término a retirada das mesmas sobre as Iglesias senhoriais («ecclesie castri»). Seguindo um processo idêntico e simultâneo, o palácio do Letrán passa então a converter-se no centro burocrático de gestão do patrimônio de São Pedro, de acordo com as características senhoriais do «castrum». A partir do Juan XIII (ano 970), o pagamento anual dos censos e do denario de São Pedro se efectúa no palácio, e, seguindo o modelo senhorial-imperial do palácio da Pavía, dota-se ao Letrán de uma chancelaria, de arquivos e de um tribunal. O término de chanceler («cancellarius») aparece com o Juan XVIII no ano 1005, enquanto que durante o papado do Benito VIII encontramos já a menção de um «arquivista e notário de nosso sacro palácio e de nossa Santa igreja romana». Esta última denominação indica a orientação da vida política do palácio do Letrán com o passar do século XI. depois da fase «cuasi municipal» (P. Toubert) de gestão urbana e senhorial, produz-se um movimento dobro, de feudalización e de curialización, que instala uma administração pontifícia de projeção suprarromana. A feudalización eclesiástica se produz exatamente no mesmo momento no que se sintam as bases das estruturas feudais clássicas, quer dizer do contrato feudo-vassalo, laicas do Murcho (segunda metade do século XI). Já nos referimos antes ao compromisso feudal que contraem os normandos na Sicilia (1070-1080); pois bem, imediatamente depois, o papado começa a desdobrar suas ambições feudais, metafóricas e reais a um tempo, para a Croácia e Dalmacia (a partir de 1076), e para a Provenza, Bretanha, Dinamarca, Hungria, etc. A reforma gregoriana impõe aos bispos da cristandade uma submissão direta a Roma, distinta se se quer da sujeição feudal propriamente dita, mas que em definitiva adota o mesmo vocabulário (trata-se sempre de «fidelidade»), e conduz à obtenção dos mesmos resultados. A cúria do Letrán adquire então rasgos radicalmente distintos dos da administração cidadã e episcopal, e se constitui como uma corte feudal ou monárquica, com uma nova organização financeira (ao «cubicular» e ao «vestiarius», herdados do Império, acontece-lhes agora o garçom, chamado além «garçom do senhor Papa», com Urbano II, para converter-se durante o papado de seu sucessor, Pascal II, no «garçom da cúria romana»); do mesmo modo, por estas datas aparecem igualmente as funções de «dapifer» (cambelán), de «pincerna» (bodeguero) e de «capelão». Em conseqüência, é um poder de novo marca o que em 1099 toma assento nas cadeiras curulas, ao manifestar um alinhamento da comunidade romana por partida dobro. Por um lado, o poderio romano das Papas se esconde, se repliega e se entrincheira no palácio inacessível do Letrán, trono, centro e topo da cidade, «castrum» altivo que vazia a Roma de sua vida local. Por outra parte, o povo romano perde o domínio da linguagem simbólica comunitária, cuja antiga simplicidade litúrgica se inserida no discurso sinuoso, escuro, e jurídico, ora verbal ora gestual, da negociação do Estado. Não obstante, esta linguagem do Pedro, apesar de seus intersicios equívocos, ainda permitia que se deixassem ouvir os murmúrios zombadores da cidade. Neste sentido, e mediante uma substituição festiva, a escolta legislativa da cerimônia gestual podia ainda ceder o sítio a um comentário alegremente subversivo. Por um breve instante, a Juana romana empurrará ao Pedro fora da cadeira apostólica, sobre tudo quando esta poltrona adota o aspecto burlesco de um assento de banho. Emprestemos agora atenção ao diálogo entre o Pedro e Juana durante estes anos decisivos do século XII. CAPITULO III As Papas entre duas sedes Resulta difícil identificar com claridade quais foram as reações da cidade de Roma ante a pujança do papado, com antecedência ao movimento comunal de 1144, dada a ausência quase total de fontes narrativas de caráter urbano para os primeiros séculos da Idade Média. Não obstante, dispomos de dois restos fragmentários em textos redigidos em meios da cúria, que sem dúvida nos põem sobre a pista de algumas respostas, um tanto festivas, à confisco da vida cívica e simbólica da cidade por parte do papado. Esta réplica se produz em términos rituais, para pôr em cena, ante o Letrán, um investimento dos fatores e dos papéis a modo de carnaval, desencadeando em seu desenvolvimento histórico toda uma série de interpretações bem malignas bem ingênuas da estranha forma das cadeiras curulas, que em última instância se mesclam com a rumorología sobre os costumes das Papas. A Cornomanía segundo Juan Diácono A primeira menção deste ritual paródico se encontra em um breve texto do Juan Himónido, mais conhecido como Juan Diácono, autor de uma importante biografia do Gregorio o Magno, e diácono do Letrán durante a segunda metade do século IX. Este texto, que em seu dia foi analisado minuciosamente pelo Arthur Lapôtre em um artigo já antigo, mas tão erudito como singular, apresenta uma nova versão de uma poesia paródica, de origem clerical, e atribuída a São Cipriano (século III), titulada o Jantar do Cipriano, em que se descreve um almoço em tom burlesco, onde os convidados são os principais personagens da História Sagrada. Tanto suas atitudes como suas preferências gastronômicas cobram sentido pelas referências aos textos bíblicos, dirigidos para a ocasião a modo de jogo de palavras ou de alusão sutil. A antigüidade e o atrevimento desta paródia demonstram bem às claras a importância do autoescarnio clerical na Idade Média, quando as instituições fortes e totalizadoras podem permitir-se semelhantes julgamentos, parciais e periódicos. Mas o contexto revisionista no que se produz este Jantar do Cipriano nos interessa mais que o próprio texto. Segundo as sólidas deduções do pai Lapôtre, organizou-se uma primeira audição do jantar com motivo dos festejos encarregados pelo Carlos o Calvo para celebrar sua coroação como imperador de mãos do Juan VIII, no Natal do ano 875, de maneira que o texto do jantar, adotado pelo grande teólogo carolingio Raban Maur, teria chegado a Roma na bagagem do próprio Carlos. O poema, escuro à força de sutilezas e torpemente adoçado pelo Maur, gostou em Roma, embora foi precisa sua correção a cargo de um espírito menos inflexível e mais penetrado de cultura antiga. Referimo-nos ao já chamado Juan Himónido, quem se entregou totalmente a sua tarefa corretora, finalizando-a rapidamente para que pudesse representar-se no festejo que nos importa aqui: a Cornomanía. Uma muito breve alusão do Juan Diácono em seu prólogo ao jantar indica que dita festa tinha lugar na sábado «in albis» depois de Páscoa, e que ridicularizava ao prior da «scola cantorum» do Letrán, quem ia à presença da Papa escarranchado sobre um asno e coroado com um formoso par de chifres: «A Papa romana se divertiu durante os «albis» / Quando chegou, coroado de chifres, o prior da «scola» / como um Sileno sobre um asno; mofado pelos cantores / Quem esclarece assim o mistério do jogo sacerdotal». Durante esse ano do 876, o velho prior do Letrán teve que acrescentar a seu habitual jogo burlesco a dicção arriscada do novo jantar. O testemunho do cônego Benito Graças a uma fonte mais tardia, o Políptico do cônego Benito, temos uma idéia mais clara do que era este rito do Letrán. Benito, cônego de São Pedro, redigiu o que com o tempo seria um texto de importância capital para o conhecimento da Roma papal por volta do 1140. trata-se de uma recopilação que compreende fragmentos litúrgicos, uma lista de bens papais (o que explica o título genérico do texto) e um detalhe dos elementos descritivos das maravilhas de Roma, entre outras coisas. Leiamos a seguir o capítulo no que Benito rememora a festa da Cornomanía, apresentada aqui como um verdadeiro rito de investimento das dignidades eclesiásticas, em presença da Papa e do povo romano, e diante do palácio do Letrán: «na sábado «in albis» se cantam as sentencie da Cornomanía ao Senhor Papa da seguinte maneira. Todos os arciprestes das dezoito diaconías tocam os sinos depois do café da manhã de dito dia, e então todos vão à igreja de sua paróquia. O sacristão («mansonarius»), vestido com alvorada e roquete, e luzindo uma coroa de flores, leva na mão o fímbolo próprio de sua função: trata-se de uma varinha oca e curva, do meio cotovelo de larga, e com campainhas em sua parte central e superior. O arcipreste, revestido a sua vez com capa pluvial, dirige-se em companhia do clero e do povo para o Letrán, onde todo mundo aguarda a chegada da Papa na praça diante do palácio. E, quando o senhor Papa sabe que todo mundo se encontra reunido, então baixa do palácio para o lugar preciso onde tem que escutar as sentencie da Cornomanía. Nesse momento, cada arcipreste, acompanhado de seus respectivos clérigos e fiéis, forma um círculo e começa a cantar «Eya preces de louco. Deus ad bonam horam», e os versículos gregos e latinos que seguem. E, no centro do círculo, o sacristão dança dando voltas, fazendo soar seu fímbolo, enquanto inclina para o chão sua cabeça cornuda. Uma vez concluídas as sentencie, um arcipreste se sai de um dos círculos e se monta contra a corrente sobre um asno que foi preparado antes pela cúria; um cubicular coloca sobre a cabeça do asno uma vasilha que contém vinte céntimos; o mesmo arcipreste, voltando-se por três vezes para trás, agarra as moedas, tantas como pode, em três punhados, e se as guarda. Continuando, outros arciprestes, com seus clérigos, depositam coroas a seus Pés. Mas o arcipreste da Santa María de Via Pulse oferece uma coroa e uma raposa pequena solta, que escapa; e a Papa, por sua parte, entrega ao arcipreste um lhe beijem e médio. O arcipreste da Santa María do Aquiro dá uma coroa e um galo e recebe um lhe beijem e quarto. O arcipreste de São Eustaquio dá uma coroa e um gamo e recebe a sua vez um lhe beijem e quarto. Cada um dos arciprestes das demais diaconías recebe também um lhe beijem. depois de ser bentos, partem todos. Quando se foram, o sacristão, vestido ainda da mesma guisa, junto com um sacerdote e dois companheiros que levam água bendita, doces e ramos de louro, visita as casas de sua paróquia dançando como ao princípio e fazendo soar seu fímbolo. O sacerdote saúda a casa, a rocia com água bendita, coloca os ramos de louro no lar e oferece doces aos meninos da casa. Enquanto isso, o sacristão canta com estilo bárbaro os versículos seguintes: «Iaritan, Iaritan. Iarariasti. Raphayn, Iercoyn. Iarariasti», e assim sucessivamente. Então o dono da casa lhes dá de presente um denario ou mais. Isto se tem feito até a época do Gregorio VII, quem, a causa do aumento dos gastos de guerra, renunciou a dito costume» . Uma contra-liturgia Esta preciosa evocação do Benito apresenta um autêntico rito de investimento e de compensação, gerador a sua vez de um equilíbrio efêmero entre os poderes papais, de uma parte, e o clero e o povo romano, de outra. A jocosidade do investimento se materializa nas posturas (o arcipreste montado contra a corrente sobre um asno), mas sobre tudo na ordem dos papéis: o último é o primeiro, e ao contrário; por isso, o sacristão luz as roupas litúrgicas próprias do arcipreste (alvorada e roquete) e dirige a «liturgia» festiva. Evidentemente, a descrição nos faz pensar na festa dos Inocentes [dos loucos], que se celebra anualmente a finais do mês de dezembro, e que, em Roma, tinha lugar depois das Saturnais, antigas festas de mascarada, já que durante dita festa de Inocentes, celebrada até finais da Idade Média, proclamava-se louco a um bispo e a um arcebispo. Cabe dentro do possível, pois, que logo que desapareceram as Cornomanías a finais do século XI, a sobrevivência incontrolada da festa radicalizasse as cenas de investimento clerical, e que uma mulher pudesse disfarçar-se de Papa, possibilidade mais verossímil ainda se se tiver em conta que detrás da aparente babeira da Cornomanía se adverte uma corrente vizinha na paródia, cujo objetivo não é outro que a pessoa do pontífice. Esta hipótese se sustenta no fato de que a localização cronológica do sábado «in albis» guarda relação simétrica com a da festa do Ramos em relação à Páscoa; além disso, a festa do Ramos (ridicularizada possivelmente com os ramos de louro que figuram na Corcomanía, à margem de seu caráter de elemento representativo da primavera presente em tantas festas da Europa) encenava o «adventus», quer dizer, a entrada de Cristo em Jerusalém montado sobre um asno. Durante a alta Idade Média, a recepção solene do «adventus» expressava uma sacralidad poderosa, dando assim lugar a uma verdadeira liturgia cerimoniosa, cujo ordo mais antigo de quantos se conservaram foi redigido na abadia da Farfa no século X. Como vimos a propósito do caso anterior de 1120, o povo entoa as sentencie no momento em que Calixto II efectúa sua entrada em Roma: «foi recebido pelas sentencie dos jovens e dos meninos que levavam ramos de distintas árvores». Do mesmo modo, o próprio cônego Benito nos proporciona o texto das sentencie dedicadas ao Alejandro II: «nos abra as portas. Vamos até o Senhor Alejandro. Vamos a lhe saudar e a lhe nomear e a elevar até ele os louvores, como os que acodem ao César. Senhor, abre sua janela. Olhe quem veio. Sol, vim; lua, vim; nuvem celestial carregada de maná, vim até nosso senhor a Papa Alejandro, vim com o ramo. Deus, lhe conceda vida, Cristo, concede vida». A alusão ao César indica sem lugar a dúvida a coincidência e a emulação que subjazem em torno da cerimônia de entrada a Roma o dia do Ramos: «o canto das sentencie constituía... uma parte importante do cerimonial ao uso em Roma para a recepção do imperador». São várias as fontes disponíveis sobre este ato, como, por exemplo, o testemunho dos Annales do Lorsch e da Fulda, o panegírico do imperador Berenguer, a Chronica do Benito do Mont-Soracte, e os poetas carolingios Notker do Saint-Gall e Walafrido Estrabón. As Papas, em seu afã por imitar simultaneamente a Cristo e ao Império, apropriam-se de um rito que é cristão e antigo de uma vez; no ano 1221, Honorio III conferiu estrutura teórica a este costume compartilhado, ao decretar que a recepção do adventus ficasse reservada aos ungidos (reis, imperadores, Papas, bispos). O papel que desempenha a figura da Papa no adventus, como destinatário das sentencie, passa, na Cornomanía, a dois personagens e a dois registros distintos. Em um registro bufão, o sacristão desempenha o papel do pontífice em sua dimensão clerical: embelezada com roupas litúrgicas, e coroado de chifres (com a palavra «chifres» se estava acostumado a indicar a mitra de duas pontas própria dos bispos e das Papas), coloca-se no centro do coro que entoa as sentencie, sujeitando na mão o fímbolo que recorda a um mesmo tempo o fortificação do louco (com suas campainhas), o bastão episcopal e a férula papal. Nesta ordem de coisas, terá que assinalar que em alguns textos tardios se chama philobolia ao ato de arrojar flores primaveris em direção da Papa. No registro satírico, o arcipreste também imita à Papa em sua dimensão cristo-imperial; mas neste caso se trata de menos de um investimento de papéis que de uma transposição, já que o arcipreste não é um personagem menor, jocosamente exaltado, e, ao igual à Papa, realça a solenidade da chegada utilizando uma cavalgadura (no momento do adventus a Papa usa primeiro um cavalo branco e logo uma mula). Seguindo com a imitação papal, o arcipreste toma umas moedas de uma vasilha durante o advento, enquanto está sentado na cadeira «estercolera»: toma por três vezes um punhado de dinheiro que lança o povo, ao tempo que declara que nada guarda para ele, exclamação que em boca do arcipreste se converte em uma negociação contrária, pois de fato ele sim conserva o dinheiro («habere» em ambos os casos). Do mesmo modo, o arcipreste imita ao pontífice quando se faz coroar; mas este personagem, quer dizer o arcipreste, sentado ao reverso sobre um asno, representa também um certo estado de desordem, atribuído possivelmente ao papado, e que teria investido a humildade crística do «adventus em orgulho imperial. A alusão roça a ameaça se recordarmos que o antipapa do Calixto II, Mauricio Bourdin, foi exibido, depois de ser capturado em 1122, montado do reverso sobre um camelo, pelas ruas de Roma. Um pouco parecido aconteceu a finais já do século X, no ano 967, ao prefeito Pedro, antipapa do Juan XIII, quem foi passeado em uma procissão infamante, encarapitado também do reverso sobre um asno, com a barba barbeada, e meio doido com um odre emplumado; o percurso terminou na praça do Letrán, onde lhe pendurou pelos cabelos do cavalo de Marco Aurelio, cuja estátua eqüestre decorava sorte praça, frente ao palácio. O bispo Juan da Calabria correu a mesma sorte no 998, por idênticas razões. Mais próximas no tempo do episódio cornomaníaco, e em um contexto ameaçador para as Papas, encontram-se as revoltas antipapales de 1184, durante as quais os rebeldes cegaram aos tabeliães do Lucio III antes de lhes obrigar a desfilar montados em burro contra a corrente. Na cerimônia da cornomanía se misturam o investimento jocoso e a alusão ameaçadora, com o transtorno satânico e cismático. Juana não anda longe. O investimento como revanche dos clérigos Não obstante, a paródia adquire tinturas ainda mais acidentados, se tivermos em conta que o ritual oficial constitui já, por si mesmo, um investimento (séria) apoiada nos textos evangélicos: o Senhor absoluto, Jesus, entra na Cidade (Jerusalém) montado na mais humilde das criaturas (o asno), e é o próprio Jesus quem declara que os primeiros serão os últimos. Na Cornomanía e seus derivados carnavalescos, o investimento, carregada de ironia, a letra tem o mesmo valor que o espírito. Assim, a paródia remoça o rito depois de consumar seriamente seu próprio modelo, como se o povo cristão, verdadeiro sujeito da liturgia, adotasse-se um direito de censura e de crítica: a Cornomanía tem lugar depois do «adventus» quase imperial do dia do Ramos, quer dizer depois das solenidades pascais, ao igual à festa dos Loucos (ou Inocentes) ou a festa dos asnos (o 1.° de janeiro) desenvolviam-se depois da celebração do Natal. Do piada até o comentário rigorista, existe uma ampla possibilidade de jogo no que cabem todos os graus do comentário ritual do rito: o asno da Festa dos Asnos ou da Cornomanía é honrado através da brincadeira cuasi pagã da humildade cristã, ou mediante a lembrança irônica do espírito evangélico, ou inclusive com a denúncia satírica do literalismo devoto; tanto é assim, que no ano 825, Claudio do Turín sugeria ironicamente em um irado requisitorio contra o fetichismo na Igreja, que se venerassem as roupas velhas, as barcos e os asnos já que tinham formado parte da vida do Jesus. Não devemos, pois, infravalorizar a subversão virtual que aflora em sortes festas de investimento, de cujo controle, por outra parte, não está nunca seguro nem o clero curial nem o local. Como vimos, as fronteiras entre o jogo burlesco, a paródia e a subversão se apresentam muito cambiantes, de maneira que, à margem do travestismo cornomaníaco, podemos assinalar que em um texto, que se remonta aos tempos do Gregorio VII, Bonizon do Sutri conta que os sacristães de São Pedro se disfarçavam de sacerdotes-cardenales para extrair esmolas aos peregrinos: «Todos estes, com a barba rapada e tocados com mitra, dizem ser sacerdotes e cardeais.» Neste caso, o elemento burlesco desapareceu para deixar passo à impostura interessada, o que demonstra claramente a natureza equívoca desses ritos jocosos, aptos para atacar qualquer empresa de alcance mais radical. O detalhe da barba barbeada para imitar o sacerdócio nos situa no contexto dessa neutralização sexual que analisamos no primeiro capítulo; e, uma vez mais, quando tentamos identificar um personagem, surge inequivocamente a figura da papisa. Em um momento determinado, a Cornomanía propõe, pois, uma compensação ou uma revanche frente ao poder dominante. O aspecto mais anódino desta revanche concerne ao elemento jovem, quer dizer, aos estudantes da «scola cantorum» que no século IX, e a tenor do relato do Juan Diácono, ridicularizam a seu velho professor, o subdiácono prior da scola. A coleta de casa em casa depois da Cornomanía, que aparece na versão do cônego Benito, recorda todas as festas juvenis que se desenvolvem entre a quaresma e maio, durante as que se submetem simbolicamente à juventude. O próprio Benito rememora no mesmo texto as sentencie que os «meninos» entoam em meados da quaresma: «A metade da quaresma, escolá-los hasteiam lanças com estandartes e campainhas; primeiro entoam sentenciem ante a igreja e logo percorrem as casas cantando e recebem ovos como recompensa por seus sentencie. Atuam desta maneira a muito tempo tempo» . A revanche dos clérigos e do povo parece mais própria do contexto romano, embora, como demonstrou Jacques Heers , a maioria das festas burlescas que se celebravam na Idade Média eram de origem clerical. A realeza da paródia do sacristão manifesta claramente essa revanche efêmera. Assinalemos a este propósito, embora sem insistir no momento, que nos encontramos aqui com uma das pistas quase apagadas da papisa: no inventário dos rastros rituais da Juana, pudemos registrar o jejum do Témporas, cuja maternidade corresponde a papisa, segundo Juan do Mailly, como havemos dito antes. Pensamos que se trata de uma pista, porque, de acordo com a liturgia romana, a ordenação dos sacerdotes tinha lugar um sábado (como a Cornomanía), de uma das quatro Témporas. Conforme veremos, a localização cronológica da Cornomanía em relação com as Témporas deve interpretar-se como uma festa das paróquias e do clero ordinário, quer dizer, como uma exaltação lúdica do sacerdócio. De fato, Juan Diácono indicava já que esta festa bem podia ser a explicação do «mistério (término de dobro significado para a gente do Medievo, pois equivalia também a "mistério") do jogo sacerdotal». Assim, em relação à alta jurisdição pontifícia, a Cornomanía, em seu sentido de investimento médio carnavalesco e médio sério, referiria-se a sua vez à primazia fundamental da ordenação; de ser este o caso, Juana figuraria como patrã de dito jogo. Examinemos a seguir esta dimensão paroquial da festa. O investimento como revanche comunitária: as diaconías Durante o ato da Cornomanía, o clero romano recupera, frente à estrutura curial e patriarcal, sua primitiva dimensão comunitária, sem que nenhum intermediário suprarromano se interponha entre a Papa e seus fiéis, entre o clero e o povo. A massa congregada ante o Letrán acode agrupada em função de suas dezoito paróquias. Essas dezoito «diaconías» contam a sua vez com uma história complexa, esclarecida recentemente graças aos trabalhos do Otorino Bertolini . Se trata de uma instituição estritamente cristã e urbana, sobre a que não se tem notícia alguma até as postrimerías do século VI, sob o papado do Gregorio o Magno; portanto, não guarda relação alguma com o grau litúrgico do diaconato, instituição por certo farto antiga, nem tampouco com a função administrativa do diaconato regional, que é a sua vez uma forma de inspeção pontifícia implantada em Roma oriental e em princípio de caráter monástico e foi levada a Roma por monges gregos; com esta instituição recém importada se tentava substituir os serviços imperiais da «annona» ou anuidade, quer dizer da cota de produção anual que garantia a provisão de mantimentos, e que desaparece, com a presença imperial na cidade. A implantação destas circunscrições de assistência caridosa tem lugar no século VIII, à margem das anteriores distribuições administrativas e religiosas, e as diaconías vão surgindo pouco a pouco, ao redor de uma igreja ou de um monastério, nas zonas realmente povoadas da Roma altomedieval. Os primeiros «ordene romani» distinguem às Iglesias diaconales das Iglesias titulares e das «demais» Iglesias, e ao parecer gozam de certa autonomia em relação com o papado; assim, enquanto que as Iglesias titulares, dispersas pelas colinas segundo a geografia antiga de Roma, estão administradas por um sacerdote (o futuro cardeal-sacerdote), e por «mordomos da Igreja romana» (majores domus Ecclesiae Romanae), as diaconías por sua parte estão dirigidas por um sacerdote («o dispensador») e por um «pai» (pater) laico, designado a sua vez, e conforme parece, pela comunidade. Estas características convertem as diaconías em verdadeiras paróquias populares de Roma, vigentes ainda no século XII (ou pelo menos no século XI, já que o testemunho do Benito se apóia em fontes de finais de dito século), como se desprende da Cornomanía, e mais concretamente dos estranhos animais, emblemáticos sem dúvida, que durante a mesma oferecem ao arcipreste coroado, que desempenha funções de Papa. No relato do cônego Benito se dá preeminencia a três destas diaconías (São Eustaquio, Santa María in Aquiro e Santa María in Via Pulse), das quais as dois primeiras som as de fundação mais antiga, embora é certo que a data institucional da terceira é menos segura; em qualquer caso, o destacável é que estas três diaconías representam o núcleo mais popular de entre as dezoito circunscrições. A convergência das comunidades diaconales para o Letrán toma, pois, o traçado da reconstrução simbólica do vínculo orgânico entre a Papa e seu povo, e portanto reproduz deste modo as ambigüidades que gera o hábil e tenaz esforço de jerarquización papal. O fato é que, no século XI, as Papas conseguem recuperar essa parcela popular para integrá-la dentro do esquema concêntrico do Letrán, e, por este motivo, o subcolegio dos cardeais diáconos, o último em formar-se (depois do dos cardeais sacerdotes), tem sua origem nas diaconías, que servem de justificação romana para a existência do título diaconal, isento, como vimos, de toda função litúrgica local. A direção efetiva da igreja diaconal continua submetida a um arcipreste e a sacerdotes. Examinemos, pois, a apresentação desta sutil separação do poder, em uma fonte de finais do século XI, A descrição do santuário da Santa Igreja do Letrán : «Deve estar presente aqui o archidiácono de Roma, com os seis diáconos do palácio que devem ler o evangelho no palácio e na igreja do Letrán, e os outros doze diáconos regionais encarregados de ler o evangelho habitualmente nas estações fixadas das Iglesias de Roma. Estes dezoito diáconos possuem outras tantas Iglesias dentro dos muros da cidade e portanto são cônegos da igreja patriarcal do Letrán». Esta disposição converte aos dezoito titulares das diaconías em dignatarios da igreja patriarcal, onde desfrutam da fila de canongía ao mesmo tempo que desempenham uma função litúrgica (a leitura do evangelho). O texto detalha a seguir o resto das figuras necessárias para a liturgia do Letrán: subdiáconos, coroinhas, leitores, exorcistas e portadores, quem, junto com os sacerdotes, conformam os sete graus litúrgicos da igreja. A aritmética papal conseguiu realizar assim uma extraordinária operação: (1 + 6) + 12 = 18! Em efeito, ao repassar a velha e popular divisão diaconal, o papado transforma os antigos sete diáconos regionais (século IIl), que correspondiam às sete regiões administrativas antigas com uma função central (e não local), em um grupo de seis diáconos palatinos, presidido por um archidiácono (antiga função eclesiástica recentemente promovida —século X— ao alta fila de vicepapa, encarregado do papado em caso de que a Sede de São Pedro ficasse vacante). A partir de então, os outros 12 diáconos (18 - 6 = 12) correspondem ao nova partilha administrativa e militar (mas não religioso) que divide a Roma em 12 regiões. A nova divisão se implanta durante a segunda metade do século X, quando o papado se faz com o senhorio-imperial da cidade; é então quando estes doze diáconos adotam a denominação de diáconos regionais, denominação que já não correspondia aos 6 ou 7 diáconos palatinos. A dúvida aritmética (6 + 1 = 6 ou 7?) traduz também neste âmbito o modelo papal de denominação corporativa, analisado no capítulo anterior (referimo-nos ao modelo denominado «no topo e por cima»). A festa que se celebra no Letrán se parece muito a uma jornada de néscios! Esta ambigüidade que rodeia a instituição diaconal possivelmente explique o papel desempenhado pelo «último dos diáconos» («ultimus diaconus») no rumor sobre o ritual da verificação do sexo das Papas. É certo que em dita narração terá que ter em conta o efeito do investimento carnavalesco ou cornomaníaca, já que no ritual oficial o archidiácono, agora convertido em primeira figura, ou prior (primus prior) dos diáconos cardeais, é quem faz entrega do pálio ao eleito; além disso, e como já indicamos, utilizava-se indistintamente a mesma palavra («attrectare») para indicar o tocamiento de verificação e o contato proibido do pálio. Mas também é possível que o diácono, o último dos diáconos, conservou-se na memória coletiva, noção do popular e do próximo, por contaminação com essa figura mais familiar do «pater» da diaconía popular. Desta maneira, entre esse «pai dos pais» longínquo e este pai antigo e próximo interviria o investimento jocoso e reivindicativo. A paródia no calendário litúrgico Apesar de todas as manipulações papais, entre os séculos X e XI a Cornomanía se apresenta como a pedra de toque de um frágil edifício de proporções simétricas, que confere solidez arquitetônica ao significado do Letrán. Por isso, é preciso seguir com atenção a descrição do cônego Benito quando fala da série de festas romanas, ou seja: janeiro, Carnaval, Témporas de Quaresma, Cornomanía, etc., para poder apreciar como se constrói uma contraliturgia ligeira, estreitamente unida ao ciclo pascal, e centrada no Letrán. Retomemos a misteriosa e frágil associação que se estabelece entre as Témporas e a figura lúdica da Juana. A origem das Témporas é incerto, e sua definição no calendário constitui uma das mais azedas polêmicas de quantas balizam a mudança secular, quer dizer entre o IX e o XI, já que durante essa centúria larga que separa ambos os séculos, o costume ornamento vai se impor ao costume romana. Para os francos, cuja posição, apresentada já no 813 durante o Concílio da Maguncia (cidade natal da Juana!), não deixa de reafirmar-se (primeiro com o Amalario, em uma carta dirigida ao Hilduino no 825, e logo com o Raban Maur, Reginou do Prüm e Burchard do Worms) até o Concílio do Seligenstadt, em 1022, as Témporas têm lugar na primeira semana do primeiro mês (março, pois então o ano começava em março), na segunda semana do quarto mês (junho), na terceira semana do sétimo mês (setembro) e na quarta semana do décimo mês (dezembro). Pelo contrário, o costume romana, a antiga, fixada explicitamente pelo Gregorio VII no sínodo pascal de 1078, e confirmada logo por Urbano II em 1095, assim como pelos Concílios do Quedlenburgo (1085) e da Constanza (1094), propõe que os dois primeiros tempos tenham lugar ao princípio da Quaresma («in initio quadragesimali») e durante a semana do Pentecostés, ou dito de outro modo, nos limites cronológicos do ciclo pascal. Desta maneira, o calendário romano conferia carta de natureza a uma triplo conjunção de momentos cristopontificales, de tempos de ordenação sacerdotal e de festas romanas. Este triplo ciclo se inauguraria a sua vez com o Carnaval, cuja primeira testemunha é, como veremos, o já chamado cônego Benito, e que tem lugar justo antes da Quaresma e da primeira das Témporas; logo vêm as Témporas de Quaresma (tempo festivo), a festa do Ramos (momento do «adventus» papal), Páscoa, na sábado «in Albis» (Cornomanía), o Encargo (precedida das Rogativas que dão lugar à procissão que resultaria fatal para a Juana), e por último, Pentecostés (tempo batismal no Letrán, e segunda das Témporas). Todo este ciclo gira em torno da Páscoa, momento de glória no Letrán, momento de ruptura do jejum, momento em definitiva de jogo; porque, de fato, e até o século XII, o dia de Quinta-feira Santa a Papa representava o último jantar rodeado dos 12 cardeais, e confiando o papel do Judas ao archidiácono! Embora Benito narra com excessivo laconismo a alegria comunitária desta festa pascal, encontramos, não obstante, em seu relato uma evocação mais concreta da mesma, que no relato do camerista Cencio (o futuro Honorio III), autor de um Ordo de grande importância a finais do século XII, onde se lê o que segue: «depois de celebradas as vésperas por triplicado, na basílica do Salvador, nas Fontanas (igual no batistério do Letrán) e na Santa Cruz, retorna-se ao pórtico de São Venancio (próximo ao batistério do Letrán); ali, a Papa, junto com os bispos, cardeais e demais ordens, assim como com o resto, tanto clérigos como laicos, toma assento no chão, sobre tapetes. Continuando, o archidiácono e o bodeguero lhe servem vinho clarete, a ele e a todos quantos estão ali. Enquanto isso, chega o primicio com os cantores e entoam esta prosa grega...» . A conjunção dos tempos litúrgicos de ordenação e dos momentos festivos se mantém até finais de ano: a terceira das Témporas (finais de setembro) coincide com a festividade de San Miguel, de uma parte, e com os «Ottobrate» (oito meses depois das Témporas quaresmais) de outra parte, rememoradas a sua vez, enigmática e rapidamente, pelo cônego Benito, mas cujo caráter militar romano se translada à celebração da coroa e do cavalo papais . O quarto tempo cai depois de Natal, no fim de dezembro, e coincide com a festa dos Inocentes, data para as que Benito assinala a celebração dos «jogos comunais das calendas de janeiro» (quer dizer, finais de dezembro). Não há dúvida de que estes jogos tomam a substituição das Saturnais antigas, ou festas de disfarces. Já (ou ainda) no século VIII, Bonifacio se queixava à Papa Zacarías de que se celebrassem ainda dance «ao estilo dos pagãos» («paganorum consuetudine») perto de São Pedro, de dia e de noite. Embora, como havemos dito, o relato do Benito é mais lacônico, tem a vantagem de dar testemunho de pervivencias curiosas no âmbito dos costumes: «A véspera das Calendas pela tarde, os jovens saem à rua levando um escudo. Um deles vai mascarado ("larvatus"), com um porrete ao pescoço. Tocam o assobio e o tamboril; visitam as casas e se colocam ao redor do escudo; ressona o tamboril e o mascarado toca o assobio; ao conduzir este jogo, recebem um presente do dono da casa, a vontade deste último. Esse dia comem toda classe de verduras. Pela manhã, dois jovens saem com ramos de olivo e sal; entram nas casas. Saúdam as casas: "Que a felicidade e a alegria sejam com esta morada". Jogam no fogo um punhado de ramos e de sal e dizem: "Que sejam tantos os filhos, os leitões e os cordeiros"; desejam toda sorte de venturas, e antes de que se levante o sol comem feijões com mel ou algo açucarada, para que o ano seja doce, sem conflito nem pena" . A coincidência das Témporas (tempos da papisa e dos sacerdotes) com as festas romanas é muito evidente para atribui-la ao azar do calendário. Em conseqüência, é preciso fixar-se na elaboração antiga dessa paraliturgia, para poder advertir um intento de adesão aos ritmos comunitários, inscritos a sua vez no ciclo pascal, e portanto no ciclo papal. O soberano das Témporas e do investimento alegre e compensatório bem poderia ser, sem dúvida, uma papisa. O espaço de compromisso no carnaval romano A série de festividades romanas comporta igualmente um espaço de compromisso (mas devemos falar de compromisso ou de indolência mútua?). O espaço papal compreende uma construção concêntrica ao redor do Letrán com uma extensão que se projeta deste ao oeste (orientação fundamentalmente cristã), desde o Letrán até o Vaticano, e que se materializa com a Via Sacra (ou, popularmente, rua da Papa), ocupada habitualmente pelas procissões de coroação e de coroação em São Pedro. Como já vimos, entre os séculos IX e XI, o espaço comunitário cai sob a atração irresistível do Letrán, mas projetando-se com uma orientação norte-sul que figura na descrição do Carnaval relatada pelo cônego Benito: «Sobre o jogo do Carnaval. no domingo de renúncia da carne, os cavalheiros e os soldados de infantaria ficam em caminho depois do café da manhã; saciam um pouco sua sede. Depois, os de infantaria depositam seus escudos e se dirigem ao Testaccio, enquanto que o prefeito, com os cavalheiros, dirige-se a sua vez ao Letrán. O senhor Papa baixa do palácio e cavalga com o prefeito e os cavalheiros até o Testaccio; ali, nesse lugar, onde se originou a cidade, e de maneira análoga, o prazer de nosso corpo conhece seu fim em dito dia. A gente participa de carreiras sob o olhar do pontífice, para que não se produza nenhum protesto entre a concorrência. sacrifica-se um urso, quer dizer a tentação de nossa carne; sacrificam-se touros para suprimir assim o orgulho de nosso deleite; sacrifica-se um galo, aniquilando assim a luxúria de nossas vísceras, para viver depois casta e sobriamente no combate de nossa alma, e para merecer dignamente a recepção do corpo do Senhor na Páscoa» . O monte Testaccio se encontra ao sul de Roma, fora do recinto antigo (e portanto mais afastado ainda da pequena cidade medieval), à beira do Tíber. Apesar da interessante precisão que nos oferece o cônego Benito («nesse lugar onde se originou a cidade»), dito lugar não tem nada que ver com a geografia antiga de Roma, pois a colina cresceu lenta e tardiamente, na convocação ocupada pelo «emporium» (porto-armazém de Roma), sobre escombros heteróclitos ali depositados, e concretamente sobre montões de cerâmicas rotas e de entulhos de ânforas (daí o nome do Testaccio). A denominação deste «monte» não aparece até finais do século VIII, em uma inscrição da Santa María in Cosmedin, uma das dezoito Iglesias diaconales; em dita inscrição figura a doação de uma vinha se localizada na colina, a favor da citada diaconía. Mas fora do Políptico do cônego Benito, nenhum outro texto indica a existência dessas festas do Testaccio com antecedência a 1256. Sobre este particular, existe um contrato de arrendamento da época, no que se menciona o «Mons de Pálio», a colina do Pálio, onde têm lugar as carreiras (de fato, o que sim se conhece é a carreira do Monte Palio, mas em Siena) . No festejo comunitário, o Testaccio ocupa o mesmo lugar que o Vaticano no sistema papal; isto é, em ambos os casos se concha um lugar que se encontra fora da cidade, e onde se originou a mesma (origem mítica da cidade em um caso, tumba do fundador da Igreja no outro), e que se converte na meta das grandes caminhadas de comemoração. O mito da fundação de Roma no Testaccio, freqüente nas memórias romanas e confirmado pelo Benito, aparece curiosamente associado à figura da Juana em um texto do século XVI, chamado pelo J. Wolf em 1600, quem o atribui a sua vez ao Gergithius e ao Pierus (autores ambos dos que nada sabemos): as moedas cunhadas com uma cabeça feminina com casco evocariam o nome antigo de Roma, «Cephalon» (tradução pseudogrega do Testaccio), ou aludiriam a Juana VII Papa» . A caminhada festiva (a cavalo, como o rodeio que discorre entre o Vaticano e Letrán) transcorre, pois, do norte ao sul, orientação que se confirma se se tem em conta a outra convocação festiva do Carnaval, testemunhado um pouco mais tarde e mencionado implicitamente pelo Benito em um trocadilho provável («in agone animae»: no combate da alma): no século XIII, o Carnaval romano se titula «festa do Agono e do Testaccio» . O Agono era o estádio do Domiciano, ou circo de carreiras («Agonale»), que ocupava o atual espaço da praça Navona (nomeie derivado da Agona com intervenção da Nagona), e onde se celebravam corridas de touros o dia de Quinta-feira Santa, quer dizer, três dias antes de que se iniciasse a Quaresma no Testaccio, no domingo. O caminho do Testaccio à a Agona atravessa perpendicularmente a Via Sacra, a via da Papa, precisamente pela praça do Pasquim, muito perto da própria Agona. depois de proibir o Carnaval, a nova fórmula que implanta Paulo II no século XV, dentro de um marco estritamente pontifício, risca seu percurso definitivo mais para o norte da cidade, mas sempre sobre o eixo norte-sul, da porta Flaminia até a atual Praça de São Marcos, quer dizer ao longo de Via Pulse (hoje chamada Via do Corso). O lugar simbólico onde se juntam estes dois eixos se encontra, pois, no Capitólio (Campidoglio), colina com ressaibos romanos, e centro da Comuna antipapal do século XII. Também aqui nos encontramos com o rastro liviana da papisa, já que a procissão das Rogativas (ou da Letanía menor) adota esse eixo norte-sul, ao longo da Via Pulse, desde São Lorenzo in Lucina até a Porta Flaminia, para alcançar, ao norte, a borda direita do Tíber e o Vaticano pela ponte Milvius. Ao igual ao Carnaval, a festa do Rogativas combina os dois eixos culturais de Roma; assim, Juana, figura eclesiástica e popular das Témporas e das Rogativas, situa-se comodamente no ponto exato do equilíbrio tão simbólico como frágil que existe entre a Papa e Roma. Esquematización dos dois eixos festivos romanos na Idade Média: eixo pontifício, do Vaticano ao Letrán, e eixo carnavalesco, desde o Testaccio à a Agona e à Via Pulse. Ou possivelmente caberia dizer que o lugar da Juana se prepara precisamente neste ponto de equilíbrio, lugar que Juana não ocupará sem dúvida até finais do século XII, quando a ruptura simbólica entre o pontífice e seu povo elimine a indolência do ritual festivo, e lhe confira essa forma mais secreta e selvagem da falação e do escândalo. Entre os séculos IX e XI, o diálogo cerimonioso alcança seu máximo apogeu, devido precisamente a que o «incastellamento» do Letrán fixou, no tempo e no espaço, o rosto visível do poder, provocando a cristalização da cultura dispersa dos costumes romanas. E se as fontes antigas são solventes para fundamentar os hábitos rituais assinalados até o momento, podemos dizer que a sistematização das festas comunais romanas não se produz até o momento em que o poder adverso começa a deixar-se sentir na cidade. Porque a que está acostumado a chamar-se cultura popular o que em realidade descreve é um combate de resistência mais que uma sobrevivência, propriamente dita. É verdade que, ao comparar as distintas fases de tensão que surgem entre dominantes e dominados, provavelmente se exagera o alcance do diálogo cerimonioso cercado entre o papado e a comunidade. Nesta ordem de coisas, a Cornomanía impede que se difunda uma fantasia coletiva desbocada, deixando que pareça que se trata mas bem de um «gesto» de confraternización por parte dos pontífices, e portanto estreitamente circunscrito e controlado por estes últimos (um inciso do cônego Benito indica que o asno do arcipreste o preparava a cúria de antemão). A festa ressurge no contexto do que poderíamos denominar um «folclore», lembrança dos «bons velhos tempos», atendendo a uma partilha desigual, que divide o rito entre a nostalgia exagerada e a diversão condescendente. Nesse rito, a simulação da partilha se distingue claramente do transação ilustrado com as cadeiras curulas do ano 1099. Em um caso se delega o acerto de uma tensão excessiva no que hoje chamaríamos contido «cultural» ou «social»; no outro caso se atua, promete-se e se negocia, de tal sorte que o rito ocupa o lugar do verbo, da decisão e da lei. Não obstante, esta cultura parásita, bem por si mesmo ou por suas separações radicais, devia resultar o bastante perigosa como para que, segundo Benito, Gregorio VII acabasse proibindo a festa da Cornomanía. Por volta do ano 1140 este cônego, tantas vezes chamado, faz exatamente quão mesmo muitos folcloristas de hoje: brinda-nos uma relação de lembranças. Os textos que dirige Benito se remontam ao antecessor do Gregorio VII, Alejandro II (1069-1073), cujo nome surge ocasionalmente nas Sentencie reproduzidas por nosso cônego em seu Políptico. Em conseqüência, pode dizer-se que o diálogo explícito desapareceu quando a dominação papal adotou um giro mais abstrato, menos identificável, isto é, quando se envolveu nos «mistérios do Estado» durante o processo de transição entre a fase de feudalización (Gregorio VII) e a fase estatal (Inocencio III). Fim do compromisso: o espaço abstrato da denominação papal A aspiração ao domínio universal que caracteriza ao papado do século XII fazia que o modelo imperial-central, que tinha prevalecido até então e que tinha exaltado o espaço do Letrán, resultasse caduco. O domínio feudo-vassalo, estendido por toda a Europa, apoiava-se na onipresença e na mobilidade a um mesmo tempo, passando então da administração de corte palatino à burocracia curial. A função prevalece sobre a convocação, e, conforme reza um adágio do direito romano, a Papa «leva os arquivos em seu coração» . Esta preocupação pela organização espacial, que transcende a primeira preocupação pela divisão, implicava necessariamente a revalorização de São Pedro, âmbito onde se define a noção transpersonal da «sede pontifícia» como tal. Durante todo o século X, e também a começos do século XI, a liturgia e o se vicio coral adscritos ao Vaticano conheceram uma considerável degeneração que contrastava llamativamente com o desenvolvimento registrado a sua vez pelo Letrán. A renovação abraçou, pois, efusivamente o movimento de reforma iniciado na segunda metade do século XI. No 1053, a primeira Papa reformista, Leão IX, impõe ao capítulo da basílica a direção de um arcipreste, e, pouco depois, São Pedro se beneficiaria dessa incardinación semanal que desde fazia três séculos se praticava no Letrán, de maneira que sete cardeais-sacerdotes se convertem nos cardeais de São Pedro, provendo o cargo mediante uma sucessão cuja ordenação, quer dizer a de cardeal «vaticano», tem lugar ante o altar da basílica. Algo mais tarde, em 1123, e com motivo do primeiro Concílio do Letrán, Calixto II procede a consagrar solenemente o altar maior de São Pedro. Por volta do 1140, um cônego de São Pedro que conhecemos bem, o muito célebre Benito, fixa a liturgia própria do Vaticano em seu Ordo Ecclesiasticus totius anni, obra que continuaria um pouco mais tarde Pedro Mallius. A partir de princípios do século XII, começa a celebrar-se solenemente em 22 de fevereiro a festa da Cadeira de São Pedro. A promoção que conhece São Pedro no século XII importa a nosso propósito, já que o poder papal vai deixar a cidade médio vazia, alterando assim essa complexa rede urbana que se cobriu em torno de Letrán. Do mesmo modo, dito deslocamento do poder, por um lado, confere maior vigor à consagração litúrgica em São Pedro, e, por outro, reduz a superfície do âmbito civil, comum à Papa e à cidade. Desde esta nova situação, consideremos agora os três ordene do advento papal a finais do século XII, já que sua cronologia e conteúdos respectivos apresentam grandes semelhanças. trata-se do Ordo da Basilea, redigido sem dúvida por um cônego de São Pedro; do Ordo do Cardeal Albino (1189), cujo texto figura nas Gestas do Pobre Estudante Albino, e do Ordo do camerista Cencio (1192), que constitui a sua vez um fragmento de seu Líber Censuum . Por nossa parte, referiremonos ao texto do Ordo da Basilea, pois é o que está melhor editado, indicando ao fio do comentário as variantes mais destacáveis de Albino e do Cencio. A composição mesma do Ordo põe de manifesto um processo evolutivo de capital importância, que tem lugar do 1099: enquanto que as duas primeiras partes, dedicadas, respectivamente, à eleição (e a tira de posse do Letrán) e à consagração no Vaticano, ajustam-se ao modelo estabelecido no século XI (e na alta Idade Média para a consagração), embora com maior abundância de detalhe, surge não obstante na narração uma cerimônia até então inédita: a coroação, ou melhor dizendo a procissão da coroação (parte III: «Como cada um fica em marcha para assistir à coroação da Papa»). Esta novidade poderia parecer relativa, já que desde o Nicolás II, em 1059, as Papas se Coroam; não obstante, até o século XII a coroa entrega diretamente ao final da missa de consagração, sem que isso suponha uma demonstração particular. Pelo contrário, o uso e a teorización do século XII estabelecem uma verdadeira procissão de coroação, que discorre desde São Pedro até o Letrán: «Uma vez celebrada a missa, o senhor Papa descende com todas as hierarquias da cúria romana para o lugar fixado, onde se encontra o cavalo da Papa arreada para a ocasião, e onde o archidiácono recebe das mãos do primeiro marechal o "regnum" (coroa), também chamado "frigium", com o que coroa ao senhor Papa. E assim, depois de atravessar o centro da cidade pela Via Sacra que chamam Via da Papa, descende já coroado para o palácio do Letrán» . A seu passo por esta via a Papa recebe a comemoração dos clérigos e das Iglesias, e no bairro do Perion é aclamado pelos judeus da cidade, enquanto o camerista e outros membros da cúria arrojam punhados de dinheiro à multidão para afrouxar seu cerco lhe aprisionem. No Letrán se detém escutar as sentencie dos cardeaissacerdotes de São Lorenzo, e dos juizes, antes de que lhe conduzam até seus aposentos. A terceira parte do Ordo da Basilea se refere à composição do rodeio (soldados, coroinhas, marechais e capelães, draconarios, bispos estrangeiros e prefeitos navais, advogados e arquivistas, subdiáconos regionais e da basílica, primicio e prior dos subdiáconos, diáconos, cardeais, archidiáconos, Papa acompanhada de um subdiácono regional e seguido, a certa distância, do prefeito). Esta procissão urbana, único momento verdadeiramente público da cerimônia, tem um caráter exclusivamente curial (com exceção do prefeito, a quem se mantém a distância), e a gestão policial está confiada ao archidiácono e ao prior da basílica. Com esta procissão da coroação, a cúria se vincula à via pública romana do trajeto urbano, e exclui à comunidade dos fiéis do desfile litúrgico, esse meio ativo e cíclico que lhe permite delimitar seu território. Nas cerimônias errantas das Papas dos séculos XIV e XV pode medir-se bem o alcance dessa mutação: a estrutura ortodoxa da procissão importa mais que seus pontos de partida e de chegada (Vaticano e Letrán). Quando Juan XXII se faz coroar no Lyon, em 1316, preocupa-se com encontrar dois pontos de partida e de chegada (neste caso a catedral de San Juan, lugar de consagração, e o convento dos dominicanos, na praça Bellecoeur), para seguir ao pé da letra o regulamento solene do desfile de coroação . Juana como última revanche Ante esta nova desposesión, a revanche carnavalesca já não pode adotar a via indireta institucional da procissão cornomaníaca, agora abolida, e deve conformar-se com a da interpretação indolente e paródica; daí o sentido burlesco de certos detalhes da procissão de coroação. Como vimos mais acima, a maioria dos historiógrafos da papisa apresentam como prova comemorativa da existência da Juana um desvio que se realizava perto de São Clemente para evitar passar pelo lugar onde Juana deu a luz. Cesare d'Onofrio conseguiu desembaraçar com solvência semelhante mistério, de maneira que nos limitaremos a segui-lo em seu relato. O desfile papal desde o Letrán até o Vaticano (advirtamos o investimento do sentido direcional, pois é necessário para a coerência do episódio) dirige-se primeiro para o Coliseu, tomando a atual rua de San Juan através das ruínas do Ludus Magnus (lugar onde se treinavam os gladiadores) não se levou a efeito até o século XVI; ali o desfile passa por um lance curto de ruela (atualmente a via do Querceti) antes de chegar até o Coliseu pela rua dos Quatro Santos Coroados. Terá que recordar, que o próprio cônego Benito assinalava já claramente este itinerário por volta do ano 1140 . Além disso, a partir de mediados do século XII, quando chega ante São Clemente, o cortejo papal se dirige para o outro lado da igreja, para a direita, para seguir pela atual via Labicana em direção ao Coliseu. Esta mudança, originado provavelmente pelo aumento do volume procesional, interpreta-se então como um desvio. O rumor se encarrega de dar um sentido coerente a vários detalhes: devido a sua própria estreiteza, a ruela dos Querceti provoca as circunstâncias que aceleraram o parto da Juana, e por isso lhe chama o beco da papisa. Por outro lado, há uma capela na esquina da rua dos Querceti, decorada com um afresco que representa a Virgem com o Menino, que acontece converter-se em um monumento dedicado à lembrança da Juana e de seu recém-nascido . A sistematização dos ritos de coroação no século XII Voltemos para ritual oficial. A procissão de coroação se converte em uma segunda tira de posse do Letrán, privando de sentido à primeira, que já não contribui nada ao acontecimento. O poder papal pertence ao eleito do momento mesmo em que os cardeais emitem seu voto, embora o compartimento litúrgico e cerimonioso não se desdobra de tudo até depois da consagração. Sobre este particular, existe uma divergência entre o Ordo da Basilea e os ordene de Albino e do Cencio, que põe de manifesto o extravagante da situação: por um lado, o autor do Ordo, sem dúvida cônego de São Pedro como já havemos dito, afirma rotundamente que o eleito não pode sentar-se no trono patriarcal antes da consagração: «Resulta falso dizer, como há quem há dito, que deve conduzir-se ao eleito até o assento maior ou ao altar da basílica do Constantino, porque não deve sentar-se na cadeira de São Pedro até que não tenha sido consagrado e provido com o pálio» . O que sem dúvida se desprende desta frase é uma manifestação do chauvinismo vaticano, mas o que sem dúvida também reflete é a debilitação da necessidade e do sentido que encerram os assentos do Letrán. Em conseqüência, o que nos dão os três ordene que é uma interpretação metafórica e adoçada do Letrán, cujo papel a partir de então é o de representar, o de significar, mas já não o de transformar. No ano 1099, os três assentos do Letrán ofereciam ao eleito um cabo cada vez mais forte. O primeiro assento, situado à entrada da igreja, materializava a tira de posse de um santuário (neste caso a igreja episcopal de Roma); o segundo assento, no triclinium ou a basílica, representava a sua vez ao patriarcado. A terceira cerimônia, já nas curulas, outorgava à Papa o domínio da cúria segundo a fórmula imperial-senhorial, mediatizada pela lembrança antiga do Senado. O itinerário papal desde o Letrán até o Coliseu. A flecha negra indica o caminho seguido até o século XII (a «via direta»). utilizamos os nomes contemporâneos das ruas. Nos ordene do século XII, o primeiro assento toma o nome de «assento estercolero» (assento de lama): «Dois dos magnatas (cardeais, segundo Albino e Cencío) conduzem ao eleito ao assento de mármore que se chama assento de lixo ("stercorata") para verificar o versículo: "Eleva ao miserável do pó, tira o pobre da lama para que se sente com os príncipes e ocupe o trono da glória". Quando se levanta deste assento, o eleito recebe do camerista três punhados de denarios que joga no povo dizendo: "Este dinheiro e este ouro não me são entregues para minha desfrute; o que eu tenho, eu lhe dou isso"» . Nesta descrição acreditam advertir o sentido original do ritual narrado aqui pela primeira vez, e que sem dúvida queria manifestar a transformação religiosa do eleito mediante a dominação, pára deste modo prolongar o rito imediatamente anterior, que se refere à mudança de nome: a intervenção divina faz que o pobre ocupe o trono de glória. Em sua transposição feudal, o rito estabelece deste modo que o eleito tome posse da Igreja com a entrega não teológica a não ser virtualmente, a esse povo que lhe escolheu que a oferenda simbólica do inquilino ao proprietário ou ao soberano; isto é, a Papa toma o dinheiro das mãos do camerista (encarregado das finanças papais) e proclama a posse («habeo»), mas não toma a propriedade («non est mihi»). Não obstante, nas ordene às que nos referimos aqui, perde-se esse sentido, de tal sorte que o Ordo da Basilea, por exemplo (ao contrário, é verdade, dos de Albino e Cencio), nem sequer menciona a localização do assento na soleira da basílica. Este silêncio, unido à denominação claramente popular de «assento estercolero», supõe uma leitura bem distinta dessa frase bíblica com a que se glosa o rito, de maneira que o único que fica é a humilhação preliminar do eleito, fase inicial a sua vez de uma glorificação litúrgica que já não tem político contido. O segundo assento, quer dizer, a cadeira patriarcal, desaparece explicitamente, como já vimos, do Ordo da Basilea. Em conseqüência, Letrán deixa de existir como lugar específico, e a cadeira patriarcal do palácio permanece ali como uma simples cópia da cadeira de São Pedro. As cadeiras curulas, que em 1124 se converteram em «assentos em forma de sigma», já não transmitem mais que um vago sentido teológico, circunscrito à basílica palatina de São Silvestre: «E quando o Senhor eleito vem à basílica de Silvestre, os juizes lhe abandonam e se sinta na primeira poltrona de pórfido, ao lado direito, onde o subdiácono prior da basílica (da basílica de São Lorenzo no palácio, segundo Albino e Cencio) entrega a férula ao eleito como símbolo da correção e do magistério. Também lhe entrega as chaves da basílica e do palácio sacro do Letrán, porque o Senhor deu a sua vez especialmente a São Pedro o poder de abrir e de fechar, de unir e desunir. E, provido da férula e das chaves, dirige-se ao outro assento que é igual e ali faz a sua vez entrega da férula e das chaves do prior. É neste assento onde o prior lhe rodeia um cinturão vermelho de que pendura uma bolsa com doze selos de pedras preciosas e almíscar... E o eleito deve sentar-se nestas duas cadeiras como se se deitasse entre dois leitos (inter duos lectos jacere), ao objeto de recostar-se entre a primazia do Pedro e a predicación permanente do Pablo incitando à ação. O cinturão representa a castidade e a continência, enquanto que a bolsa é o gazofilactum com o que se alimenta aos pobres de Cristo e às viúvas. Os doze selos significam o poder dos apóstolos. O almíscar se encontra aí depositado para que se possa perceber seu aroma, já que como diz o apóstolo: «Para Deus, somos um aroma bom» . A finais deste século XII, o ritual entra dentro do sistema da representação, e sai do âmbito da ação, como já tivemos ocasião de indicar a propósito da minuciosa organização do rodeio de coroação, protótipo dos desfiles que acompanhavam as entradas reais. Assim, os autores do cerimonial aplicam sua competência meticulosa em matéria litúrgica ao domínio da apresentação institucional. A procissão não cumpre nenhum encargo por si mesmo, só ensina. Também aqui os objetos e os gestos da cerimônia do Letrán representam um conteúdo teológico general, de tal sorte que o rito se converte em uma ilustração particular do dogma e deixa de ser uma ação de transformação ou de negociação. Hei aqui, pois, o mais impenetrável dos mistérios de Estado: não oculta nada, não diz nada, mas se representa perpetuamente. Precisamente, será o rumor, malicioso ou ingênuo, gracioso ou sério, que tente recuperar a ação no rito: se os assentos estiverem aí, e se a Papa tem que ocupá-los, não será para nada. Pois bem, sim, é para nada, já que as cadeiras e os tronos passaram à categoria de monumentos, e o rito se converteu em uma celebração ornamental. A férula e as sete chaves de 1099 formulavam uma proposta de regime: a Papa, antes de sentar-se consularmente, esgrimia a dominação imperial (a férula) e a colegialidad (as sete chaves e os sete selos multiplicavam por sete o poder jurisdicional de unir e de desunir). A finais do século XII, as chaves são nove e passam a formar parte de um batiburrillo simbólico no que tudo tem significado mas não representa nada; nesta ordem (ou desordem) de coisas, a férula só significava já que o magistério papal, sem nenhum contexto preciso. As chaves carecem deste modo de significado específico, enquanto que outros objetos referem a outras tantas virtudes (pureza, castidade, caridade) e funcionam como simples atributos da paródia papal. A interpretação fica, pois, aberta à gratuidade indefinida das metáforas; assim, a binaridad gemelar das curulas convoca a única dualidade disponível na imaginária papal, a do Pedro e Pablo. nos detenhamos por última vez ante estes assentos de tanta importância na história da Juana. A Papa se sinta aí, diz-se no século XII (e a fórmula se conserva inalterada até o século XVI) como se estivesse deitado entre duas camas. De que forma cabe entender este uso surpreendente das duas curulas, uso que tanto contribuiu na formação do rumor em torno dos assentos perfurados? Já descartamos a hipótese do Cesare d'Onofrio, segundo a qual a Papa representava o parto metafórico para assim ilustrar o conceito do Mater Ecclesia». Acrescentemos ao rechaço geral que essa indicação de postura intervém um século depois da menção das curulas e sem que exista antecedente algum a respeito; em conseqüência, o uso dos assentos deve explicar-se no contexto do século XII. Além disso, a Papa não se deita em cada assento, mas sim faz como se estivesse entre dois leitos. Por último, e a pesar do respeito que nos inspira a imensa erudição de monsenhor Maccarrone, tampouco encontramos satisfatória sua explicação, apoiada no recurso da expressão «estar sentado entre duas cadeiras», pois em realidade a proximidade do léxico não sugere nenhuma aproximação de sentido que seja verossímil. Novos sentidos das cadeiras curulas no século XII: 1. A metáfora teológica A impossibilidade de que a Papa adotasse semelhante postura aparece já na praxe exegética da redação cerimoniosa do século XII: o cerimonial já não descreve um ato, como em 1099, a não ser um cenário simbólico. O Ordo de 1273 se adapta a esta tendência do século XII, introduzindo as cores litúrgicas no ritual. Sem dúvida, os liturgistas de dito século quiseram ver nesses dois assentos sem função aparente (de fato assim o reconhecem) a representação dos dois apóstolos do Vaticano. Este surpreendente deslizamento do ritual para a metáfora teológica deve entenderse em relação com o desenvolvimento de uma «paixão pelas similitudes», analisada pelo David d'Avray a propósito da técnica do sermão, técnica que ao aparecer confere sua unidade ao pensamento de meios da Idade Média. Nesta ordem de coisas, o cardeal Lotario, futuro Inocencio III, escreveria no 1198, quer dizer pouco depois dos ordene que aqui nos interessam, um comentário simbólico sobre a missa, O do Misarum Mysteriis, no que atribui à liturgia do serviço divino a mesma função interpretativa que a que se aplica ao rito de advento nos textos de Albino, do Cencio e do autor do Ordo da Basilea. Desta maneira, a cerimônia, ritual ou litúrgica, entra no mundo dos textos e do conhecimento, o que supõe um alinhamento litúrgico, por empregar uma expressão do Cyril Vogel, para a cristandade do século XII. 2. A metáfora eclesiástica: a soleira dos apóstolos Terá que reconhecer em toda sua importância a exegese proposta pelos autores de nossos ordene de referência: os dois assentos de pórfido representam o «primado do Pedro» e «a predicación assídua do Pablo». Além disso, é precisamente a finais do século XII quando se começa a acreditar na presença do corpo do Pablo no Vaticano. Segundo uma lenda que se fez célebre no século XIII, graças a explicatio divinorum officiorum do Juan Beleth (1265), e que Jacobo de Voragem incorporou imediatamente a sua Lenda dourada (1625), depois da conversão do Constantino quis edificar uma igreja dedicada a cada um dos dois apóstolos, quer dizer Pedro e Pablo, que ao parecer tinham sido enterrados juntos; mas ao proceder à separação, não puderam distingui-los esqueletos misturados. Então, uma voz celestial indicou que os ossos maiores pertenciam ao Pablo, e São Silvestre ordenou que se tirassem os ossos para identificálos. Do mesmo modo, em 1192 (isto é, coincidindo de novo com o momento no que se redigem os ordene que nos ocupam), encontramos entre os comentários acrescentados por conta do cônego Romano à descrição da basílica do Vaticano, redigida pelo já chamado Pedro Mallius, a primeira notícia sobre um lugar «onde, por isso se conta, foram pesados seus preciosos ossos). E uma inscrição de finais do século XIV, que figura em uma laje de pórfido colocada na cripta do Vaticano, pretende indicar o lugar onde se realizou sorte operação. À medida que Letrán se converte na vertente romana urbana do Vaticano, tende-se a associar à correspondência das duas cadeiras patriarcais a analogia entre as tumbas mescladas e os assentos gêmeos. A postura, fisicamente impossível, que se propõe neste ritual, confere, então, caráter metafórico à entrada da basílica de São Silvestre, quer dizer a «soleira dos apóstolos» («limem apostolorum»). De fato, sabe-se que algumas Papas da alta Idade Média se fizeram enterrar na soleira mesmo de qualquer das Iglesias ou basílicas do Letrán, de maneira que a Papa, sentado analiticamente em dois assentos idênticos perto de uma porta basilical, converte-se, de forma sintética, na metáfora viva da soleira. Ao delimitar a soleira dos apóstolos, os dois assentos se inserem na larga cadeia metafórica, composta de altares, de cadeiras, de tumbas, etc., que em seu conjunto configura de maneira simbólica a sede apostólica. Será Inocencio III quem, a princípios do século XIII, encarregue-se de traduzir a términos concretos essa entretela figurada na suposta postura papal, construindo assim o palácio do Vaticano, toda vez que se mantém a posição destacada do Letrán (converte a basílica do Salvador em uma «catedral» pontifícia). Desta maneira estabelece uma simetria rigorosa entre o Letrán e o Vaticano, pois o Vaticano obtém o palácio que dava glória ao Letrán, e Letrán recupera a majestuosidad litúrgica que a sua vez tinha dignificado a São Pedro no século XI. Mas à margem das determinações imediatas (ao Inocencio III, antigo cônego do Vaticano, gostava de viver ali), o que em realidade se produz é uma mudança, uma mutação capital, porque a simetria que se estabelece entre ambos âmbitos nem restaura nem equilibra, mas sim disposta uma uniformidade abstrata ao espaço papal, configurado desde esse momento a base de células idênticas que só adquirem vida e sentido com a presença da Papa. O poder romano perde bairrismo e territorialidad, e por este motivo nos ordene do século XII se contempla a possibilidade de coroação e de consagração fora de Roma. É certo que as Papas do século XIII, antes da etapa do Aviñón, só passavam uma terceira parte de seu tempo em Roma, mas a eventualidade de uma coroação fora da cidade não se explica unicamente com as tribulações que afetam ao papado durante o século XII (episódio da Comuna de Roma e cismas); o verdadeiro lugar do poder papal se encontra no comprido percorrido que separa ao pontífice da cúria, ilustrado com essa expressão de que a Papa leva os arquivos em seu coração. Pascal II, por exemplo, «vel sedens vel transiens», delimitava assim seu território, e Eugenio III ou Inocencio III assinalaram deste modo seu passo pelo papado, abrindo desta maneira a via às grandes monarquias curiales da baixa Idade Média. Podemos medir o processo de marginalização da cerimônia do Letrán (e portanto da comunidade romana) analisando o cerimonial de 1273, redigido pelo Gregorio X, e sobre o que falamos mais acima. Por nossa parte, não vamos deter nos na cerimônia propriamente dita, transcrita fielmente a partir dos ordene do século XII, e cumpridas ao pé da letra, a não ser na composição de conjunto que oferece dito cerimonial. Em primeiro lugar, advertimos o desaparecimento da extravagante tira de posse do Letrán, que estava acostumado a ter lugar entre a eleição e a coroação. O cerimonial de 1273 descreve a eleição, depois da ordenação diaconal ou sacerdotal (eventual) do eleito, e a seguir a consagração em São Pedro (ou o que corresponda em caso de que o eleito já seja bispo), com a missa de celebração, para passar depois ao rodeio e a chegada ao Letrán. Em conseqüência, tira-a de posse do Letrán, depois da consagração e da coroação, conserva só um valor fóssil e sua primeira função parece ser a de proporcionar uma meta ao rodeio solene do eleito coroado. Quer dizer, Letrán se converte em uma sucursal pontifícia, e inclusive quando a Papa já foi eleito e coroado fora de Roma, passa primeiro por São Pedro, onde ouça um Lhe deum, antes de dirigir-se ao Letrán. Roma já não está em Roma. 3. A metáfora jurídica: o corpo da Papa A nosso entender, a postura da Papa recostada sobre os dois assentos de pórfido tem um claro significado mortuário. A Papa deve sentar-se como se se deitasse entre duas camas («inter duos lectos jacere»). A expressão «jacere in lecto» indica de uma forma bastante banal a posição funerária que apresenta o corpo das Papas (a propósito de Leão IX: «lectulos in quo jacebat») . Por outra parte, e como já vimos, a referência ao Pedro e ao Pablo implicava sem dúvida uma alusão aos corpos mesclados e às tumbas as gema. Por último, o aspecto sepulcral de ambos os assentos de pórfido se perfila com maior nitidez se tivermos em conta o testamento do Roger II da Sicilia, redigido em 1145, onde figuram as disposições funerárias do rei para seu enterro na catedral do Cefalú: «decidimos que a minha morte se coloquem em dita igreja dois formosos sarcófagos de pórfido, como monumento perpétuo; em um deles repousarei eu perto do coro dos cônegos, quem cantará as preces ao dia seguinte de meu falecimento; e colocaremos o outro como lembrança ilustre de meu nome e para a glória da própria igreja» . No século XV, o itinerário ritual do Letrán pode resumir-se na fórmula de um contemporâneo dos ordene, o cardeal Lotario: «O mesmo que imediatamente se sentava (sedebat) glorioso no trono [momento do assento estercar], jaz ("jacet") agora na tumba [momento dos assentos de pórfido]» . A Papa encena, pois, sua própria morte, só que imortalizando-se, já que ao jazer entre duas tumbas, a do Pedro e a do Pablo, transcende a soleira dos apóstolos, pedra viva sobre o Pedro. Por isso dizemos que nos encontramos ante uma verdadeira encenação da imortalidade papal, em meio de um debate capital sobre o corpo da Papa. Em um importante artigo, Reinahard Elze chama a atenção sobre uma série de curiosos ritos funerários muito antigos, entre os que cabe assinalar, por exemplo, o saque dos bens e dos restos mortais da Papa recém falecido por parte do povo romano. trata-se, como dizemos, de um estranho costume, cuja prática pode rastrear-se intermitentemente desde os primeiros séculos do cristianismo, sem poder por isso identificar com claridade nem seu significado nem seus fundamentos; entretanto, a repetição dos fatos e a passividade da Igreja ante uma pilhagem, que por esperado seria facilmente evitável, impõem a idéia do rito. Como explicar-se, se não, que o corpo do mais capitalista das Papas medievais, Inocencio III, fora totalmente despojado de suas vestimentas em 1216, ficando nu durante a vigília mortuária, conforme nos conta Jacobo do Vitry . É certo que do concílio da Calcedonia (461) até o Renascimento, a igreja multiplica suas condenações de dito costume, mas é igualmente certo que com idêntica regularidade tanto as crônicas como o mesmo Liber Pontificalis se referem a cenas de pilhagem que recordam o «costume dos romanos» («mos Romanorum»). Ao parecer, só as Papas germanas da época gregoriana, alheios à tradição romana, foram capazes de resistir à violência do rito. A única interpretação oficial e explícita do rito se encontra em um canon conciliar romano, decretado durante o papado do Gregorio o Magno, no 595 : A Igreja finge então organizar os mistérios que ficam fora de seu controle, atribuindo a pilhagem a um excesso de devoção pelos restos mortais das Papas, que a sua vez passam a ser considerados como relíquias. Pilhagem e poder Em realidade, o rito da pilhagem corresponde à interferência de duas lógicas, uma jurídicoreligiosa e outra política. A lógica jurídico-religiosa guarda relação com o direito de espólio («spolii jus»), definido tardiamente (século xV), mas implicitamente invocado com motivo da sucessão de um prelado, e em particular de um bispo. Os bens eclesiásticos não pertencem o prelado, a não ser à comunidade que o escolheu, pelo menos enquanto a Igreja não se insira na rede da feudalidad comum, ou enquanto não constitua uma entidade jurídica autônoma. De fato, F. do Saint-Palais d'Aussac, em sua tese sobre o direito de espólio , distingue três fases: na antigüidade cristã, os restos mortais e os bens do bispo revertem ao clero; logo, durante a alta Idade Média, passam ao suserano (ou prefeudal); e, por último, a partir do século XIII, o papado reclama os restos mortais dos bispos, ou em alguns casos são as Iglesias nacionais as que o fazem. Não obstante, este marco jurídico é insuficiente para explicar a pilhagem de objetos mobiliares, empregando para isso recursos brutais com risco físico que não guardam proporção com o bota de cano longo. Dito de outro modo, tudo parece indicar que a pilhagem ritual adota uma aparência mais simbólica e política que real e jurídico. Desta maneira, o povo e/ou o clero (já vimos que no contexto romano estas categorias são inseparáveis) manifesta que um poder cessou ao morrer, e que o outro poder, o novo, requer a sua vez um novo consenso. No caso do poder clerical, teológica e teoricamente eletivo, esta reivindicação tem uma força ainda maior que no caso dos poderes laicos, fortemente ancorados na afirmação da continuidade dinástica . Esta situação entra em crise quando, no epicentro da Idade Média, os poderes fortes elaboram a problemática da transpersonalidad de poder político. As soluções surgem ao longo dos séculos XIV e XV, dentro do marco do Estado, como assinalaram E. Kantorowicz e R. E. Giesey : «O rei não morre nunca», «O rei morreu. Viva o rei», «Dignitas non moritur». As investigações realizadas nesta linha pelo H. Beumann e C. Brühl permitem adiantar até o século XI a percepção clara deste problema político, tão vinculado à prática da pilhagem. De acordo com as Gesta Chuonradi II Imperatoris , à morte do Enrique II, em 1025, os habitantes da Pavía saquearam e arrasaram o palácio real da cidade (sabemos que Pavía foi a capital do reino da Itália dos imperadores germânicos), justificando sua conduta ante o Conrado II, sucessor do Enrique II, da seguinte maneira: «mantivemos nossa fidelidade e nossa veneração ao imperador até o final de sua vida; ao morrer ele já não tínhamos rei, e vai contra o direito que nos reprove a destruição da moradia de nosso rei.» Esta foi, pois, a assombrosa resposta que recebeu Conrado II, anunciando já os esforços posteriores dos juristas do Estado: «Eu se que não destruístes a moradia de seu rei, porque já não tinham monarca nesse momento; mas tampouco tinham direito a destruir a moradia real. Se o rei tiver morrido, o reino não obstante permanece, como permanece o navio quando morre seu piloto.» Ao separar o corpo do rei de seu pacote perecível, as monarquias o integram na imortalidade do reino, e em dita atuação sem dúvida está presente a teoria dos dois corpos do rei atualizada pelo E. Kantorowicz. Mas no caso do papado, a solução parece mais difícil porque, paradoxalmente, a teoria corporativa da Igreja, bastante antiga por certo, já prevê a continuidade do poder, e além sem necessidade de recorrer à mutação transpersonal do soberano. Por outra parte, a força da teoria laica se nutre precisamente da concomitância da gênese do Estado e da metamorfose do soberano, situação que no caso do rei louco, Carlos VI da França, aprecia-se com toda claridade . Segundo o sistema hierocrático implantado por Leão (I) o Grande, cada Papa herda diretamente do Pedro: a transmissão eletiva supõe que cada vez se funda a sede apostólica, de maneira que a incerteza do interregno não surge, pois, somente da ausência do princípio dinástico, mas sim da própria teoria corporativa. Por esta razão, um jurista de finais da Idade Média, Agustinus Triumphus, pode dizer que «o rei não morre; a Papa sim morre compreende então que os clérigos e o povo se precipitem ao vazio do interregno e manifestem com a pilhagem a devolução do poder a um nada e ao povo cristão. Mas ainda há outro grupo que tem poderosos interesses neste debate: os cardeais que, coletivamente, encarnam a perenidade da sede apostólica (a sede apostólica não morre, é a Papa quem morre), assumindo a totalidade dos poderes pontifícios durante o período de férias; daí a luta surda que enfrenta ao papado e ao colégio, e que se materializa no retrato da eleição do pontífice. A fórmula restritiva do conclave, com o recurso às pressões sobre os cardeais em caso de atraso, nasce com a decretal do Gregorio X, Ubi periculum, em 1274 . A Papa morre Todas estas circunstâncias e disputas, unidas a transformações mais amplas das mentalidades, explicam a obsessão pela morte que invade a corte papal dos séculos XII e XIII. Consideremos desde esta perspectiva o prólogo do Ordo de 1273, redigido para o Gregorio X, e vejamos como justifica a descrição da cerimônia: «O fato de que "todo o poder tem uma vida breve" afeta aos pontífices romanos, que detêm sua primazia na hierarquia subcelestial; concluem sua vida em muito pouco tempo e, depois de abandonar a prisão da carne, passam à liberdade que lhes oferece a pátria de seus maiores. E, dado que uma hierarquia de tanta consideração não deve permanecer acéfala como um monstro, os Santos pais decidiram providencialmente que o corpo do defunto chefe se deposite em uma sepultura eclesiástica, pois outro substituirá ao chefe defunto por via canônica para presidir "no cargo e na honra"» . As investigações que leva a cabo atualmente Agostino Paravicini Bagliani demonstram que a cúria romana de meios da Idade Média, valha a redundância, manifestava de distinta maneira esse temor à morte: por uma parte, os testamentos dos cardeais refletem uma preocupação extrema pelos detalhes funerários; por outro lado, os «intelectuais»* da cúria no século XIII (o que A. Paravicini Bagliani chama o «círculo do Viterbo») orientam suas investigações (centradas no âmbito da alquimia, da medicina e da física) na busca da prolongação da vida. Do ponto de vista ritual, ordene-os do século XII, fielmente recuperados no século XIII, tentam construir uma imagem da imortalidade corporal das Papas. A cadeira estercolera anuncia uma glória, de uma vez que recorda que a Papa também é pó. Este primeiro estádio, de caráter público (ante a basílica do Constantino), apresenta-se como uma concessão à espera da anulação corporal, assim como uma adesão formal à teologia mortuária (tão contrária às ambições papais) da Igreja. A Papa toma então a iniciativa do intercâmbio simbólico que transpõe a pilhagem . Precisamente, quando está sentado na cadeira estercolera é quando a Papa arroja o triplo punhado de dinheiro, exclamando: «Este dinheiro não é meu»; a permuta dos papéis (tomar ou saquear/distribuir ou conceder) é importante, posto que situa ao pontífice eleito em uma posição crítica, toda vez que pretende eliminar, mediante a antecipação do mesmo, o rito funerário da pilhagem que anula a pessoa e o corpo da Papa. Neste sentido podemos nos perguntar se o saque da casa do eleito, de que encontramos um testemunho de 1406 graças ao Jacobo do Angelo (capítulo I), não substitui após, ao menos no que se refere às disposições contempladas pela cúria, a pilhagem dos restos mortais. Assim, ao consentir o saque de sua antiga moradia de homem (e também sua cela de conclavista, se for cardeal), a Papa investe o sentido do rito: proclama, em términos quase paulinos, que se despoja do homem que foi, para acessar a uma suprapersonalidad. A segunda fase do ritual tem lugar nos assentos de pórfido, e mostra que o corpo da Papa viva, recentemente sustraído da corporeidad comum, está já misturado com as cinzas dos apóstolos, chão e soleira sólidos da Igreja. No ritual de coroação no Letrán, o corpo da Papa se desliza entre os corpos do Pedro e do Pablo: «Seu é Petrus.» O corpo da Papa entra na construção monumental da Igreja. Porque se sinta na poltrona apostólica a Papa não morre. Um século depois de sua aparição, o sentido e a função das cadeiras curulas trocou completamente, embora ainda representam a supremacia papal. Sejam qual forem os graus de compreensão do rito (certamente bastante diversos e parciais), o certo é que a importância secreta da cerimônia e a curiosidade gestual de sua realização serviram para reforçar a réplica burlesca ou selvagem desta encenação do poder papal. Abandonaremos definitivamente nossas cadeiras perfurada, nos situando no mesmo ano de seu desaparecimento, em 1513. Algumas semanas antes de sua morte, e antes também de que seu sucessor, Leão X, utilizasse por última vez as cadeiras, Julho II concede uma audiência a seu mestre de cerimônias, Paris do Grassis. Durante o encontro, essa gloriosa Papa do Renascimento lhe confia seus lúgubres angustia, pressentindo sua morte próxima: «Dizia que recordava ter visto numerosos pontífices abandonados no momento de sua morte por seus próximos, e despojados inclusive do mais estritamente imprescindível, até o ponto de jazer ("jacuerint") indecentemente, inclusive nus, com suas partes pudendas desentupidas ("detectis pudibundis"): tanta majestade deixava de existir em meio da vergonha» . Apesar de todas as argúcias empregadas na representação cerimoniosa, o rito de réplica, paciente e tenaz, continua sussurrando que a Papa está nua. O sexo das Papas, despido grosseiramente, exaltado gozosamente, ou apalpado imaginariamente, segue sendo objeto permanente de celebração em Roma, que nega obstinadamente o angelimo do poder e seus vãos triunfos sobre a morte. A Papa é um homem, a Papa morre. Conclusão: nascimento da Juana, da revanche ao rumor Resumamos. A partir de mediados do século XII, a comunidade romana se vê privada do contato intraurbano com seu pastor; o povo e o clero conservaram o hábito e o gosto pelo decifração cerimoniosa, herança de uma época (séculos IX-XI) em que o território romano, alimentado de cerimônias oficiais e de contrarritos lhes parodie, girava em torno de Letrán. Além disso, a revolução do rito de coroação papal no século XII só deixou subsistir conchas vazias de sentido, cujo vago rumor do amplo oceano exegético só é audível para alguns teólogos; as cadeiras curulas que se colocaram no Letrán a finais do século XI para abrir uma negociação de poder, aparecem então como relíquias ou como monumentos, e em seu innamovilidad adotam o sentido que lhes confere. Frente à engenhosidade teológica dos autores de ordene e dos peritos em liturgio, surge a malícia ou a candura dos laicos ou dos clérigos singelos que procuram uma função abolida e o fim dos rituais compensatórios, ricas reservas de investimentos carnavalescos e/ou sérias, que orienta sorte busca do sentido funcional. A revanche contra um conhecimento dominante e fechado passa por um contraconocimiento burlesco; nesta ordem de coisas, já não se lêem os escritos com a competência comum que tinha antigamente um clérigo romano: a partir de finais do século X, a letra minúscula curial, legível fora de Roma em todas as chancelarias, substitui as antigas escrituras romanas ; a volta solene e ornamental dos caracteres antigos nas cidades italianas do século XII, sensível na Roma papal, obscurecem ainda mais a intelección comunitária, como demonstrou recentemente Armando Petrucci : o decifração zombador com as seis P maiúsculas lhe atribui a função de comemorar a Juana. Exemplo excelente desta revanche sobre a alienação do significado! Mas calibremos quanta malícia se esconde detrás deste mecanismo de decifração burlesco dos gestos e das palavras. Nos anos trinta do presente século XX, quando a França desfrutava ainda com o anticlericalismo, um célebre cômico imitava a letra dos gestos litúrgicos próprios da missa, imaginando-se que o sacerdote procurava seu chapéu extraviado; ao parecer, a coincidência da imitação era admirável. Pois bem, um mecanismo idêntico é o que fica em jogo na Roma do século XII quando se finge dúvida ante uma inscrição incompreensível, ou ante um viraje estranho em uma ruela da cidade, ou ante um assento edil colocado nesse mesmo lugar, ou inclusive ante uma cerimônia escura que situa à Papa em duas cadeiras idênticas, profundamente decotadas e recordando aos sacristães barbeados e disfarçados, aos bispos dos loucos, e às Papas de carnaval, entretêm-se procurando o rastro de uma mulher. E o encontram. Aqui está Juana triunfante, gasta da mão pelo saber festivo dos clérigos e do povo romano. Em meio de seus amigos romanos, Juana tagarelava sem maiores conseqüências. Necessitou de um século completo para poder entrar, ela também, nos textos. Então, seu discurso resultou interminável. Ouçamo-lo. SEGUNDA PARTE Juana militante CAPITULO IV Juana a Católica (Séculos XIII-XV) «Para verificar. trataria-se de certa Papa, ou mas bem de uma papisa, já que era uma mulher; disfarçada de homem, e graças à honradez de seu caráter se converteu em notário da cúria, logo em cardeal e por último em Papa. Um dia que montava a cavalo engendrou um menino e imediatamente a justiça romana lhe atou os pés e a arrastou enganchada à cauda de um cavalo; a uma meia légua da cidade foi lapidada pelo povo e coveira ali, onde morreu; nesse lugar se escreveu: Pedro, Pai dos Pais, Publica o Parto da Papisa. Durante seu papado se implantou o Jejum no Témporas, que se chama Jejum da Papisa» . Primeira forma: um sucesso em uma crônica Esta primeira versão conhecida da história da Juana aparece em uma pequena Crônica Universal, que foi escrita em um convento do Metz por volta do ano de 1255. Se não fora por temor a incorrer em certo anacronismo, ao nos referir ao texto do Metz teríamos que falar de um sucesso, posto que, em efeito, pelo que se ecoa o autor da Crônica é de um encontro singular, chamativo, entre um indivíduo e um meio que se excluem mutuamente. O intruso fabrica a anedota sem perturbar a instituição, pois o sucesso varia de forma escandalosa (o que obriga a uma investigação), mas só ligeiramente, o curso da história papal. Aqui, quer dizer na Crônica, a variação se limita a uma retificação e à invenção de um novo vocábulo: «uma Papa ou mas bem uma papisa (vel potius papissa), já que era uma mulher.» A história papal dissimula a anedota, e inclui a singularidade na regularidade: a ação de nossa heroína nos propõe um sujeito masculino (ou, se o preferirmos, um neutro animado, quer dizer masculino): facvocês... tracvocês... lapidavocês. Em realidade, o sujeito só existe ao revelá-la engano («um dia que montava a cavalo»), já que nem tem nome nem história própria, pois só existe no tempo do escândalo. Desconhecemos por que ele ou ela se disfarça («disfarçando-se de homem se converteu em notário da cúria») e ignoramos a origem de sua maternidade: o parto não nos situa ante um comportamento imoral, mas sim permite o desvelamiento de um fato singular, de um sucesso. Em resumo, a história da papisa é uma história de Igreja: ele ou ela se faz notário papal e depois cardeal, seguindo uma ascensão clássica, que se justifica com uma qualidade reconhecida e pelo general desejada em um clérigo («a honradez de seu caráter»). Ao a tirar o chapéu transgressão, a «justiça romana» a sanciona imediatamente, enquanto que por sua parte o povo romano remata o castigo imposto com uma inscrição, cujo texto dá testemunho da serenidade da Igreja: «Pedro, Pai dos Pais, Publica o Parto da Papisa.» Como resultado deste singular papado, a instituição continua funcionando: «Durante seu papado se implantou o Jejum das Témporas», porque, como está acostumado a ocorrer nos casos estranhos, nos sucessos, o indivíduo, embora constitui como tal o grão de sal na narração e o grão de areia na máquina, não obstante, em realidade, não consegue alterar a instituição. Por volta do 1255, a história causa assombro no Metz e lança a curiosidade, mas não gera contidos: o conteúdo surgirá logo, como conseqüência de outro dispositivo narrativo distinto. Juana entra, pois, em uma nova existência: longe já dos festejos e dos ritos de Roma, abandona os limbos do rumor alegre ou lacrimoso para acessar ao resplendor textual e europeu. O enigma da Juana Até aqui, o enigma da Juana residia em seu mutismo, mas a partir deste momento, seu falatório adquire tinturas misteriosos. A história da Crônica do Metz passa, entre 1250 e 1450, a dezenas de textos clericais, que em nenhum momento põem em dúvida a existência da papisa: não se tenta sequer dissimulá-la, nem tampouco desvirtuá-la, e muito menos omiti-la. As próprias Papas, ao cumprir a observância do desvio durante sua procissão comemorativa, respeitam indiretamente à fábula. Até a Reforma (ou pelo menos até a revolução husita), a Igreja crie e faz acreditar na realidade de um acontecimento que em princípio parece comprometer sua reputação e que, em conseqüência, apresentará como uma vil e áspera patranha, com assina protestante ou anticlerical. Esta paradoxo, que sem dúvida requer uma explicação, possivelmente nos evite por outra parte cair na tentação determinista, o que induziria a sua vez a procurar quem se beneficiava com esta história. A noção implícita de «benefício ideológico», variante da débil teoria do reflexo, preside com farta freqüência a história cultural, e, neste sentido, é certo que a erudição contemporânea reduziu muito freqüentemente a redação das vidas da Juana com o exclusivo propósito de incomodar à a Santa Sede. Os fatos evidenciam um certo anacronismo sobre este particular, pois até o ano 1450 aproximadamente, Juana não pertence a nenhum partido e se advém a todos. Mas, por outro lado, a abundância de versões nos avoca a outro perigo distinto, o da falsa objetividade. Em efeito, corre-se o risco de deixar-se fascinar por toda essa série de relatos até o extremo de lhes conferir fila de pseudorrealidad e em definitiva de tratar o relato juanesco como se fora uma «lenda», isto é um «tema», esses ersatz* do fenômeno que aparece sempre no âmbito da narração. Mas, além disso, a existência mesma da série é tão duvidosa de fato como de direito. No âmbito dos fatos, um silêncio bem pode mascarar a perda de um manuscrito, da mesma maneira que o azar feliz da conservação pode gerar a sua vez uma densidade documentário particular. Do ponto de vista do direito, os textos sobre a Juana são, em princípio, só palavras, pois no discurso clerical da Idade Média o relato da Juana se recita com gravidade, seriamente, dramaticamente, e não se modula como um simples tema literário ou historiográfico. O caminho se apresenta, pois, estreito, já que discorre entre a análise «ad hoc» dos acontecidos particulares, e a descrição historio-gráfica de uma anedota repetida com freqüência e com grandes variantes. Entretanto, entre o caráter aleatório do acontecimento e a restrição dos hábitos culturais, Juana retém uma parte fundamental da verdade e da realidade sobre a Idade Média. nos aproximemos, pois, com prudência, à pessoa da Juana, considerando em primeiro lugar seu contexto, sua imagem e sua força ao longo desse caminho que lhe designa a Igreja medieval. Uma crônica em busca de autor Analisemos um pouco mais de perto o texto inaugural. Graças às deduções do L. Weiland em 1874, e logo do pai Dondaine em 1946 , a Crônica universal do Metz encontrou um autor: o dominicano Juan do Mailly. Em efeito, alguns anos depois, o também dominicano Esteban do Borbón retoma a história da Juana para incorporá-la a uma recopilação de anedotas exemplares, que fica inconclusa a sua morte, acontecida no 1260. Em seu prólogo, Esteban do Borbón cita entre suas fontes gerais «a crônica do Juan do Mailly da Ordem dos Pregadores» , e já no texto propriamente dito indica que a fonte da anedota em questão é «uma crônica». Esta indicação não deixa lugar a equívocos, pois Esteban não utiliza nenhuma outra crônica contemporânea, de maneira que a história da papisa só pode proceder do susodicho Juan do Mailly. impõe-se, pois, uma aproximação à figura deste pregador chamado Juan do Mailly, quem, por volta de 1243, conclui a sua vez o primeiro tratado universal de relatos legendários sobre os dominicanos, titulado o Abrégé dê Gere et Miracles dê Saints . Aqui, a lenda e a crônica contêm dois episódios comuns, pelo menos, que estranha vez aparece em outros contextos (a aparição de San Miguel no monte Gargano e a renúncia da Papa Ciríaco ao papado, para poder seguir a Úrsula e a seus 11.000 vírgenes); em ambos os textos detectamos a mesma confusão em torno da pessoa da Papa Gerberto (Silvestre II), e o antipapa Guiberto da Rávena. Desgraçadamente, nosso conhecimento sobre o Juan do Mailly se limita a essa dobro atribuição, e da mesma só pode inferir um dado biográfico que o justifique. À vista do santoral borgoñón que figura no chamado legendário, Abrégé dê Gere..., terá que escolher, como lugar de origem do Juan, entre os Mailly disponíveis, o povo deste nome que se encontra perto do Auxerre; assim, a fundação tardia do convento do Auxerre (em 1241) explicaria que Juan escolhesse o do Metz. Este fluxo de brumas lorenas e borgoñonas faz que resulte ainda mais enigmática a nota rápida sobre o episódio da papisa que aparece na Crônica, pois o exemplar manuscrito da mesma (Bibliothéque Nationale Latin) 14 593)* leva anexo uma espécie de rascunho junto com uma versão em limpo escritos com uma caligrafia idêntica. Na parte inferior de um dos fólios da versão preparatória, dedicado a finais do século XI, Juan do Mailly registra esta notícia, vaga e antiga, em uma anotação emocionante por quanto nos permite entrever ao historiador em plena tarefa: «Para verificar (Requer).» Por isso parece, com este manuscrito assistimos ao salto do rumor ao texto escrito: um autor medieval, sobre tudo quando está informando a respeito de um acontecimento desconhecido ou mau conhecido, não deixa de indicar sua fonte escrita (embora seja com um vago «legitur», como se lê em alguns casos) ou oral, quando esta constitui alguma garantia ou alguma venerabilidade para o que conta. No episódio da Juana, a ausência de fontes indica que esse rumor fica «por verificar». por que, como recolheu esse ruído Juan do Mailly? Sem dúvida não saberemos jamais, e tampouco há nenhum indício que nos permita atribuir ao Juan uma intenção em qualquer sentido: a menção de Papas «más» em sua Crônica (Gerberto, Leão) encontra-se também, e de forma habitual, em textos anteriores e posteriores, como teremos ocasião de ver. A rede a Dominica O quase anonimato do Juan do Mailly, a quem lhe conhece só por suas obras, ilustra à perfeição o eficaz sistema de difusão de relatos e dogmas cristãos estendido ao largo e comprido da Europa pela poderosa Ordem de Pregadores. Neste sentido, resulta gracioso constatar que Juan, este pregador desconhecido, fora a um mesmo tempo o iniciador da história da Juana e o primeiro compilador desses legendários dominicanos universais que difundiram por toda parte as vistas dos Santos a um ritmo rápido e sustenido. depois da recopilação do Juan do Mailly (1243), aparecem o Epílogo sobre a vida, do Bartolomé do Trento (1245) ; o Espelho histórico, do Vicente do Beauvais (por volta de 1260), e a famosa Lenda de ouro, do Jacobo de Voragem (por volta de 1265), o «best seller»* da Idade Média, e do que se conhecem mais de 1.000 manuscritos . A paixão recopiladora e divulgadora dos pregadores determinaria a rápida inclusão da lenda da papisa em suas crônicas (Crônica das Papas e dos Imperadores do Martín o Polonês; Crônica da Génova, do Jacobo de Voragem), e nas recopilações de exempla (Esteban do Borbón, Arnoldo da Lieja). Esta velocidade narrativa por parte dos dominicanos se explica, sem dúvida, mais em razão de uma lógica cultural que por desejo de projetar uma orientação político-religiosa. Os dominicanos do século XIII ofereceram um apoio constante e fiel ao papado. Como veremos mais adiante, a história da Juana pôde, e de fato pôde, encontrar outros leitos de difusão, embora a entrada da narração no corpus dominicano garantia uma difusão quase inevitável. Porque, enquanto que só o azar ou a decisão individual decidiam que um manuscrito monástico pudesse recopiarse e dar-se a conhecer, um texto dominicano se distribuía certeira e rapidamente. De fato, a Ordem de Pregadores se caracteriza por sua capilaridade, por sua mobilidade e pela produção de instrumentos intelectuais facilmente transportáveis. Segundo os estatutos de dita Ordem, um pregador se translada de convento em convento, trate-se bem de um pregador singelo ou de um pregador geral, deslocando-se assim por toda o amplia área que compreende cada província a Dominica. A província da França, por exemplo, abrangia a metade setentrional do país, incluindo Lyon e Metz. Esteban do Borbón leu provavelmente o manuscrito do Juan do Mailly no convento do Metz. Se um frade se convertia em leitor ou em prior, tarefas ambas de natureza mais estável, então a Ordem lhe deslocava com certa regularidade de um convento a outro . Do mesmo modo, a celebração periódica e freqüente de capítulos provinciais ou gerais facilitava que se reunissem grandes grupos de dominicanos. Por outro lado, a necessidade constitutiva da predição errante gerou a sua vez a produção de manuscritos transportáveis e de fato os citados legendários do Juan do Mailly e do Bartolomé do Trento estão em manuscritos de formato muito pequeno, e com caligrafia muito apertada. Por isso, o legendário confeccionado pelo obscuro Juan do Mailly alcançou em seu dia uma difusão farto respeitável (até a data se conhece uma dúzia de manuscritos), e foi recopiado na Itália, muito longe da Lorena. Por sua parte, o legendário do Bartolomé do Trento sobreviveu deste modo em trinta manuscritos, e foi utilizado pelo Jacobo de Voragem. Em conseqüência, se os primeiros veículos difusores da lenda da Juana nos parecem bastante modestos {Crónica universal do Metz, tratado dos sete dons do Espírito Santo), o certo é que também lhe garantiram um acesso seguro ao memento histórico mais estendido de meios da Idade Média: a Crônica do Martín o Polonês. Em menos de vinte e cinco anos (1255-1279) decidiu-se a sorte da Juana. Contá-lo tudo Se em algum momento nos parece inútil nos perguntar a respeito das motivações que animaram ao Juan do Mailly, como auditor e transmissor de um rumor, devemos nos responder que a atitude de amplitude de espírito que presidia todo o âmbito dominicano (e inclusive fora do mesmo) excluía qualquer classe de censura. Essa atitude se apoiava em uma confiança cega no poder da fé e do conhecimento, o que permitia que um recopilador se enfrentasse com qualquer asserção e com qualquer relato. portanto, e desde esta perspectiva, seria conveniente tomar-se a sério a citada indicação do Juan do Mailly («Para Verificar, Requer»), pois é muito possível que de ter vivido o tempo suficiente para concluir seu texto, o dominicano do Metz teria passado o relato pelo crivo de sua análise crítica, confiriéndole assim certo tom de veracidade. Também é verdade que dita crítica se teria feito com os recursos da época, quer dizer que se apóia acima de tudo nas autoridades, e muito accesoriamente na concordância cronológica general. Não obstante, esta circunstância particular permite contá-lo tudo ao amparo de um aparelho de avaliação. Jacobo de Voragem, introdutor da lenda de São Jorge no Ocidente, prefacia sua narração com uma advertência: «O concílio da Nicea situou sua lenda (a de São Jorge) entre os apócrifos, já que carecemos de relato seguro sobre seu martírio» . Se pode contar tudo, qualquer anedota, qualquer «sucesso estranho», ou qualquer lenda sem medo algum, porque o narrador dispõe de recursos para canalizar, neutralizar e suspender o tema da verdade. A revolução intelectual do século XII dotou à Igreja dos meios necessários para esta absorção universal do significado; assim, a exegese bíblica, as técnicas meditativas e o domínio do decifração alegórico e figurado permitem transformar tudo na verdade cristã. A Igreja à conquista do imaginário Se pode contar-se tudo, então deve contar-se tudo. A Igreja do século XIII, em pleno apogeu de seu monopólio cultural, detém uma postura lhe totalizem, englobadora, pois pretende dar conta de tudo. Esta vontade de dizer tudo explica sem dúvida a paradoxo da folklorización da cultura religiosa do século XIII, detectada pelo Jacques O Goff . Jacobo de Voragem descreve explicitamente este processo de captação do sentido alógeno que encerra a expressão «ad majoren Dei gloriam». Em seu capítulo sobre a purificação da Virgem (Lenda de ouro) expõe de maneira, como dizemos, explícita, a tática da Igreja ante o costume ancestral das luzes da Candelaria: «por que ordenou a Igreja que levemos nesse dia Candelas acesas? Podemos oferecer quatro razões. Em primeiro lugar, para erradicar um cacoete. Em efeito, antigamente os romanos iluminavam a cidade durante toda a noite com círios e tochas, cada cinco anos, coincidindo com as calendas de fevereiro, em honra da Februa, mãe de Marte, deus da guerra; desta maneira, esperavam obter um filho, a cuja mãe honrava com tanta solenidade, a vitória sobre seus inimigos. Este intervalo de tempo se chamava um lustro. Mas é difícil abandonar os costumes e os hábitos adquiridos, e aos cristãos custava muito convencer aos pagãos conversos de que deviam desterrar essas classes de ritos. À vista da situação, a Papa Sergio trocou o sentido de dito costume, lhe dando um significado bom: os cristãos deviam iluminar ao mundo inteiro com a Candelas acesas e círios benditos, cada ano, em honra da Santa Mãe de Deus. Desta forma, a cerimônia permanecia, mas a intenção da mesma era muito distinta» . Esta capacidade de absorção e de assimilação explica por que logo que está presente na Idade Média essa edulcoración que logo será uma constante da cultura religiosa postridentina. Por isso, quer dizer por essa razão, por volta do 1435, o dominicano Hermann Korner, do Lübeck, chamado anteriormente a propósito de seu testemunho sobre o rito de verificação de virilidade, dá notícia, como muitos da mesma Ordem, da história da Juana, seguindo a versão mais comum, a do Martín o Polonês, embora não oculta seu assombro ao não encontrar nada, nenhum rastro da mesma na crônica do também dominicano Enrique do Erfurt (por volta de 1350), que utiliza como fonte secundária, condenando implicitamente a atitude pacata de seu colega, a quem nega o precedente: «Entretanto, sobre esta mulher que ocupou o papado tão fraudulentamente, Enrique do Erfurt não faz menção alguma, sem dúvida por medo de escandalizar a quão laicos sabem ler, dando a conhecer que semelhante engano o tenha cometido uma Igreja de Deus que se assegura está regida pelo Espírito Santo, pelos clérigos e pelos sacerdotes» . O temor do Enrique, pouco compartilhado, já que a omissão da Juana nas crônicas universais é bastante incomum, dá testemunho de uma interessante conscientiza dos perigos de alfabetização. Entretanto, encontramos um temor mais acusado e freqüente a propósito da leitura individual da Bíblia , precisamente porque o relato legendário ou histórico admite a fachada da interpretação clerical, enquanto que o Verbo divino sempre pode atravessar com seu brilho o ornato eclesiástico com o que lhe revestem. Em 1472, quando Platina decide relatar a vida da papisa na crônica encarregada pelo Sixto IV, disposta a sua narração um sentido particular, um pouco perverso, sem saber que seu propósito coincide com o da Igreja do século XIII: contá-lo tudo. Para Platina, também se trata de contá-lo tudo, animado por uma preocupação de alcance comunitário: «Estes fatos (a verificação da virilidade das Papas) que assinalei, contam-se corrientemente, embora os garante dos mesmos sejam incertos e escuros; decidi oferecer os de forma nua e breve, para que não pareça que omito obstinada e tenazmente o que quase todo mundo afirma, exposto a me equivocar com o vulgo a respeito deste assunto, embora quão feitos relato pertencem à categoria do que pode acontecer» . O processo de assimilação dos temas legendários por parte da Igreja se produz de uma maneira gradual a partir do século XII, mas alcança seu apogeu na recopilação a Dominica do século XIII. Nada pode ilustrar melhor essa conquista a Dominica de quão imaginário a comparação entre os trabalhos do Juan do Mailly e os do Bartolomé do Trento. Felizmente para nós, segundo a análise, farto convincente do chamado pai Dondaine , Juan do Mailly redigiu uma primeira versão do Abrégé quando ainda era clérigo e não dominicano, possivelmente por volta do 1230. Nnaquele tempo, naquele tempo, Juan mantinha uma clara reticência em relação aos materiais legendários que dirigia, e por isso assinalava sua falsidade. Assim, e a título de exemplo, ao referir-se a certos aspectos maravilhosos da vida do Ciro e Julita, diz: «Se dermos conta destas coisas é para rechaçar os escritos apócrifos com obras que imponham autoridade, já que se fossem feitos certos, certamente os historiadores não os teriam silenciado» . Juan adota a mesma firmeza de critério ante outro episódio apócrifo, do que já falamos mais acima: «quando se ocupa do Natal do Senhor (Natal), Juan evoca uma antiga tradição cunhada por um texto apócrifo grego do século II, o Protoevangelio do Santiago, traduzido ao latim no século II sob o nome de «Pseudo Mateo». Segundo este texto, duas parteiras, Zébel e Salomé, ajudaram a María na iluminação; a primeira teria proclamado imediatamente a virgindade milagrosa da María, enquanto que a segunda, mais cética, teria se empenhado em verificar manualmente dita virgindade, recebendo um castigo por sua incredulidade, e viu como seu braço inquisidor ficava inerte. Jerónimo, autoridade patrística indiscutível no Ocidente, já condenou com solvência esta versão do natal, citando a sua vez ao Lucas, para quem a própria María, sem ajuda alguma, tinha envolto em fraldas o corpo do divino recém-nascido. Não obstante, esse relato tão suspeito circulou por todo Ocidente, como o demonstra sua presença na iconografia, mas sem chegar a ser admitido na categoria de dignidade textual, salvo na adaptação métrica da abadessa Hrotswitha do século x Juan do Mailly, com a segurança de seu domínio verificador, relata este episódio com o exclusivo propósito de refutá-lo: «Não houve nenhuma parteira para lhe ajudar, apesar do que dizem alguns livros e os contos de velha» . Bartolomé do Trento, mais experiente nas técnicas integradoras dos dominicanos, pôde oferecer alguns anos depois uma versão hábil de compromisso: «José, embora não ignorava que fora o Senhor quem devia nascer da Virgem, seguiu não obstante os costumes de seu país e saiu a procurar as parteiras» ; quer dizer, José recorre às parteiras, levado pelo costume humano. Uma vez que pôde justificar a eleição do José sem atentar contra o dogma da Encarnação (pois este, e não outro, era o ponto chave da censura do Jerónimo), Bartolomé pode contar tranqüilamente o episódio que sinta as bases do paradigma de numerosos milagres nos que, na hagiografia medieval, castiga-se aos céticos. Por sua parte, Jacobo de Voragem utilizará constantemente ambos os artifícios, exemplo de astúcia, que permitem conciliar o irreconciliável e favorecem a convergência de tradições dispersas, para maior benefício do relato cristão. O relato legendário aparece, pois, no século XIII como o elemento essencial de uma verdadeira mestria ideológica, que consiste em dar-se simultaneamente um objeto simbólico, sua valoração, seu uso e seu controle. dentro da Igreja se conta todo, mas fora dela não deve contar-se nada. Por outra parte, a narrativa permanente aparece como um dever doutrinal. A profunda originalidade do cristianismo reside precisamente no mistério da Encarnação: Deus se manifestou na terra, em meio dos homens, em meio de sua história, e não em um tempo original: retornou; anunciou um Julgamento Final como conclusão, ainda de caráter terrestre, da história do mundo. O sagrado, pois, não só se conta, mas também pelo contrário deve contar-se, já que se manifesta, ou pode manifestar-se de repente, muito perto dos nomes. O grande modelo evangélico é primeiro um relato: a lenda, a anedota histórica, o «sucesso estranho», podem ser portadores dos fragmentos ou dos meteoros do sagrado. Por isso, quando no mês de março de 1429 Juana de Arco chega ao Chinon para proclamar sua missão divina, uma comissão de clérigos presidida pelo arcebispo do Reims examina de perto a questão; a conclusão resultante goteja prudência, pois busca nos acontecimentos uma confirmação da inspiração divina da Juana. Mas esta última sublinha que seria um ato de impiedade desperdiçar a ocasião de assistir a uma manifestação celestial: «Porque duvidar dela é o mesmo que evitá-la, sem que exista aparência de mau, seria repudiar ao Espírito Santo e fazer-se indigno da ajuda de Deus, como disse Gamaliel em um conselho dos judeus a propósito dos apóstolos» . A narração confere, pois, um fundamento ontológico à narração, já que ao dispor de uma essência do sagrado reúne e descobre o que de sagrado tem o ser do mundo terrestre. Deve contar-se tudo dentro da Igreja, porque tudo comporta um significado. Em conseqüência, no século XIII, a Igreja aspira metodicamente à narração universal, e a tradição oral sobre a papisa, cujo rumor nos pareceu ouvir em Roma desde mediados do século XII, fica envolta nesse torvelinho centrípeto («vorago», término que se disposta a uma etimologia imaginária de voragem). Com sua entrada na rede de difusão a Dominica, a história da papisa conta já com todas as possibilidades de adquirir sentido, de desenvolver-se e de difundir-se. O meio formalizava a mensagem mediante uma articulação paradigmática do azar (no Metz se anota um rumor, um viajante que passava por ali, um peregrino o contava a sua vez em Roma. Quem sabe?) e da necessidade (o sistema dominicano convertia qualquer matéria prima em discurso reprodutível). Azar e necessidade: as versões Enikel e vão Maerlant A parte da necessidade no estabelecimento da história da Juana parece bastante importante, precisamente porque o verdadeiro começo dominicano não constitui por si mesmo uma origem. Não há dúvida alguma de que a anedota se contou em outros contextos, inclusive antes, isto é entre 1150 e 1250, no âmbito do contingente e à margem das meditações necessárias. É possível que nos encontremos com papisas abortadas em crônicas anteriores a do Juan do Mailly, que vão surgindo ao azar dos descobrimentos de textos esquecidos. É certo também que os «juanistas» (chamaremos assim aos partidários da existência real da papisa) esbanjaram seus esforços tentando que a narração coincida com o narrado depois do achado de alguns textos alusivos anteriores a 1250. Neste sentido, é preciso sublinhar que os «juanistas» quiseram ler a história da Juana no Liber pontificalis, antes da edição crítica de monsenhor Duchesne, quem demonstrou com claridade, apoiando-se em um fac-símile, que o manuscrito «Vaticanus latinus» 3762 (século XII), fonte utilizada pelos juanistas, só recolhe a história da papisa em uma addenda marginal do século XIV, que a sua vez recopia literalmente a versão do Martín o Polonês. O monge Mariano Decoto (†1086) tampouco soube nada da Juana, e a edição antiga (1583) do J. Pistorio, que tanto despistou aos eruditos até os trabalhos do Cesare d'Onofrio, publica de fato um manuscrito do século XIV. O mesmo mecanismo editorial (sem dúvida consertado) é aplicável ao Sigiberto do Gembloux († 1112), Otón do Freising († 1158), Ricardo do Poitiers († 1174), Godofredo do Viterbo († 1191) e Gervasio do Tilbury (1211). Mas esta barreira crítica, levantada por eruditos e filólogos desde finais do século XIX, não deve excluir a possível existência de certos cursos narrativos que tinham discorrido a sua vez rio acima, sem chegar a desembocar no empoce dominicano. Descobrimos assim uma corrente narrativa algo posterior a do Juan do Mailly, embora totalmente independente desta última, na enorme crônica rimada, e redigida em antigo alto alemão por volta do 1280, pelo burguês vem Jansen Enikel. Leiamos, pois, o episódio que aqui se narra, com toda sua carga de incerta rudeza: «Havia uma mulher em Roma que tinha um formoso corpo e que se disfarçava de homem. Ninguém podia adivinhar que se tratava de uma mulher. Um dia foi escolhida Papa, já que lhe considerava como um herói agradável a Deus. Era bastante versátil, já que, sendo mulher, quis ser homem; e assim se converteu em Papa. O que fizesse de extraordinário enquanto foi Papa não posso dizê-lo, e sobre esse particular devo permanecer mudo. Mas há uma coisa a respeito dela que devo dizer: a maltratou, e o que lhe fizeram, isso sim sei muito bem, pois teve que padecer um desprezo que atentou contra sua honra, por isso teve que abandonar Roma. Ofendeu às gente com o horrível dano que cometeu seu corpo» . Com o Jansen Enikel nos encontramos muito perto do rumor: o narrador não sabe nada, e assim o faz constar («dê kan ich niht gar gesagen / dâ von sô muoz ich stille dagen»). Tudo se reduz a isto: uma mulher conseguiu converter-se em Papa, mediante o disfarce e a aventura terminou que má maneira. No extremo oposto da Europa, e em uma data próxima (por volta de 1283), outro burguês, Jakob vão Maerlant, relata uma anedota parecida no marco de uma crônica, também rimada, mas esta vez em flamenco, o Spiegel Historical . Tampouco ele sabe grande coisa, mas ouviu falar de uma estátua comemorativa (cuja existência na tradição oral está confirmada) e diz ter procurado em vão a autentificación da história da papisa nas crônicas papais. Enikel e Vão Maerlant podem repetir e chamar a atenção sobre o rumor, mas não tiram nada em claro da anedota; a ambos os falta a máquina que possuem os domínios para achar significados. Forma 2: do sucesso ao exemplum Esteban do Borbón (por volta de 1260) Em efeito, alguns anos depois de que se desse a conhecer o relato do Juan do Mailly, Juana surge no horizonte do Esteban do Borbón: a anedota, extraída rapidamente da Crônica do Metz, moraliza-se e se converte em exemplum. Conhecemos algo melhor ao Esteban do Borbón que ao Juan do Mailly, mas não muito mais. Nasceu no Belleville-sul-Saône, não longe do Lyon, por volta de 1190-1195, assistiu à escola capitular do Maçon e logo à Universidade de Paris, antes de ingressar no convento dos dominicanos no Lyon em 1223, quer dizer nos primeiro anos de existência da Ordem de Pregadores. Durante perto de trinta anos levou a vida errante de pregador geral, percorrendo a ampla província a Dominica da França, desde a Saboya até a Lorena. Em 1226 o encontramos no Vézelay pregando a cruzada contra os albigenses; mais tarde recebe o cargo de inquisidor diocesano no Clermont, e logo no Lyon; esta tarefa estava acostumada recair em um dominicano. Ao final de larga e laboriosa vida se retira a um convento do Lyon, onde morre por volta de 1261. Esteban foi, em primeiro lugar, um pregador. A única obra que deixou, e por certo inconclusa, tinha uma função prática: durante seu retiro no Lyon, entre 1250 e 1261, redigiu um volumoso tratado sobre os distintos materiais a empregar em um sermão (Tractatus de diversis materiis praedicabilibus), usualmente conhecido como Tratado dos sete dons do espírito santo, dado que o autor dispõe os conteúdos de sua obra em sete livros, cada um dos quais está consagrado a uma das sete virtudes que o Espírito Santo insufla ao fiel. A recopilação proporcionava aos pregadores uma soma ordenada de entrevistas de autoridades («auctoritates»), de argumentos escolásticos («rationes») e de exempla, os três componentes do sermão medieval. Sabemos que o «exemplum» é um relato breve, destinado a ilustrar através do sermão uma verdade doutrinal ou moral . O prodigioso esforço de multiplicação da predicación realizado durante o século XIII, principalmente pelas ordens mendicantes, necessitou uma massa considerável de exempla, e portanto é presumível que um pregador hábil e ativo como Esteban do Borbón bebesse de todas as fontes a seu alcance, tanto nos textos como na experiência vivida ou relatada, a anedota registrada por seu irmão dominicano do Metz passou, pois, com toda naturalidade a formar parte da recopilação do Esteban. O relato que nos oferece este pregador se encontra agasalhado em um pequeno alvéolo, dentro de um dos muitos ocos que apresenta a construção maciça do Tratado, edificado sobre o plano das subdivisões; por esta razão de natureza quase arquitetônica achamos a referência a Juana no livro V (sobre o dom do conselho), título «Sobre a Prudência», divisão «Sobre as preocupações que devem tomar-se na eleição dos prelados», capítulo «Que a eleição deve ficar ao casaco de qualquer Este usurpação é o texto: «Um assombroso golpe de audácia, ou mais ainda de loucura, teve lugar por volta do ano 1100, conforme contam as Crônicas. Uma mulher ilustrada e sábia na arte de redigir se vestiu com roupas masculinas e se fez passar por homem; veio a Roma; recebeu-se bem sua energia e sua cultura; foi nomeada notário da cúria e logo, por mediação do diabo, cardeal e depois Papa. Grávida, iluminou durante um rodeio. Ao ter notícia dos fatos, a justiça romana lhe atou os pés enganchando-a aos cascos de um cavalo, que lhe arrastou fora da cidade e foi lapidada pelo povo a uma meia légua; foi enterrada no lugar mesmo de sua morte, e sobre a pedra que cobre seu corpo se escreveu o seguinte verso: "te cuide, Pai dos Pais, de Publicar o Parto da Papisa." Hei aqui a que detestável fim conduziu uma audácia tão temerária» . O tema do relato já não é um acontecimento que afeta só às interioridades da história papal (como no caso do Juan do Mailly), a não ser um delito cujas implicações aumentam sua própria gravidade e em definitiva ampliam seu alcance. Neste sentido, a lição moral do acontecimento aparece expressa com força antes e depois da narração: «Um assombroso golpe de audácia, ou mais ainda de loucura ...Hei aqui a que detestável fim conduziu uma audácia tão temerária.» Mas nesta ocasião, e ao contrário do que ocorre no texto do Juan do Mailly, encontramo-nos no centro da história com um sujeito de verdade, uma mulher (mulier, que, por oposição ao femina empregado por Do Mailly, designa uma categoria sócio-moral no contexto da literatura exemplar, freqüentemente misógina), que conduz a narração em feminino («facta est notarius... distracta). Assim aparece com toda claridade a responsabilidade pessoal da papisa, perceptível já nessa sua premeditação, prévia a sua chegada a Roma. A cúria e o papado, meras caixas de ressonância, já não estão implicados no acontecimento; nada se diz a respeito da obra da papisa, e, o que é mais, Esteban insiste em situar a preparação do crime e de seu castigo fora de Roma, quer dizer, ao contrário também do que faz Juan do Mailly: «Uma mulher, instruída e perita na arte de redigir, vestiu-se com roupas masculinas e se fez passar por homem; veio a Roma... ao ter conhecimento dos fatos a justiça romana... foi enganchada aos cascos de um cavalo que a arrastou fora da cidade (extra Urbem).» Em realidade, trata-se de uma interpretação do Esteban, já que não modifica as notas do Juan do Mailly; assim, por exemplo, em ambos os relatos se arrasta a papisa «a uma meia légua» do lugar do escândalo. Mas além disso, em seu desejo de proteger ao papado, Esteban investe o sentido da fórmula das seis P («Te cuide de Publicar», em vez de «Publica»). Voltaremos sobre este ponto. A astúcia desta mulher e a ajuda do diabo desculpam à cúria: «recebeu-se bem sua energia e sua cultura; foi nomeada notário da cúria, e logo, por mediação do diabo, cardeal e depois Papa.» Os recursos empregados (astúcia e intervenção do diabo), e a motivação do delito (a louca presunção) adicionam a nossa heroína à legião das mulheres sem escrúpulo que animam a literatura exemplar. A moral na história: Jacobo de Voragem (por volta de 1295) Os mesmos rasgo de exemplaridade destacados mais acima estão presentes na versão que nos oferece Jacobo de Voragem, dominicano e arcebispo da Génova, em sua Crônica da Génova, obra que termina por volta do ano 1297. A inserção da história da Juana nesta crônica nos interessa muito de perto, por quanto supõe a expressão de um uso ainda livre e indeterminável do episódio, antes de que adquira fixação particular no molde histórico-jurídico que impõem os leitores do Martín o Polonês de forma duradoura. Jacobo de Voragem nasceu na Liguria por volta do 1230, provavelmente no Varazzo*, localidade situada na Revisse ocidental da Génova. Ingressa muito em breve na Ordem de Pregadores, onde realizou uma carreira mais brilhante que Juan do Mailly ou que o próprio Esteban do Borbón. Desempenhou os cargos de pregador geral, de leitor e de prior, até alcançar depois os mais altos postos dentro da administração da Ordem: entre 1267-1277 e 1281-1286 foi prior geral da província da Lombardía, e inclusive chegou a desempenhar as funções de general da ordem durante um período no que dito cargo ficou vacante. Mas antes de assumir estas responsabilidades, por volta de 1265, tinha redigido a famosa Lenda de ouro*, com a que seu nome passaria à posteridade. Não obstante, jamais abandonou sua atividade literária, e compôs várias coleções de sermões modelo em 1270 e 1290. Quando se encontrava já nas postrimerías de sua vida, em 1292, ocupou o trono arzobispal da Génova, empreendendo imediatamente a tarefa de narrar a história de dita cidade, «para a instrução de seus leitores e para a edificação de seus ouvintes», mas também para fazer justiça a uma cidade descuidada injustamente pelos historiadores: «Surpreendemo-nos ante o pouco que se há dito a respeito desta cidade da Génova, tão ilustre, tão nobre e tão capitalista» . O dobro objetivo que se propõe Jacobo de Voragem não fica, pois, na mera retórica que caracteriza os prólogos, já que a estrutura mesma da obra a situa em um plano de atuação claramente distinto do dos anais sobre as cidades, tão ao uso na época. As cinco primeiras partes se ocupam da Génova como sujeito religioso coletivo, criado (partes 1 e 2), renomado (parte 3), convertido (parte 4), em um aperfeiçoamento moral constante (parte 5); as partes 6 a 9 constituem um verdadeiro pequeno tratado de moral política cristã, e é só nestas três últimas partes onde Voragem se ajusta cronologicamente à história da Génova, tomando como parâmetro a sucessão de bispos e de arcebispos que ocuparam a sede da cidade. Importava, pois, destacar esta construção de caráter doutrinal que distingue à Crônica da Génova, para poder apreciar melhor as razões que impulsionaram ao Jacobo de Voragem a tratar a história da papisa do ponto de vista da exemplaridade. A história da Juana se encontra na parte XI (Génova no tempo dos bispos), concretamente no capítulo 8.°, dedicado aos 8.° bispo da cidade, Sigiberto. Voragem se preocupa com apresentar a perfeita continuidade dos bispos, mas para os períodos compreendidos na alta Idade Média só dispõe de uma lista de titulares, sem conhecer nenhum acontecimento genovés contemporâneo dessas datas. Para cobrir este vazio documentário, Jacobo decide incluir episódios da época que vai escolhendo das crônicas universais, e que não guardam relação alguma com a Génova. Assim, por exemplo, o capítulo sobre o Sigiberto inclui: 1) a história da papisa; 2) uma evocação da Papa Sergio IV, iniciador da mudança de nome das Papas, por causa de seu desafortunado sobrenome (Vos Porchi: Cabeça de Porco); 3) o episódio da falsa acusação contra o bispo de Orleans, Teodulfo, durante o reinado do Luis o Piedoso, e 4) o relato de um prodígio acontecido na Brescia (uma chuva de sangue). Estes três últimos episódios já figuravam na pequena crônica universal, que o próprio Jacobo de Voragem tinha introduzido no capítulo dedicado à Papa Pelagio na Lenda de ouro, o que demonstra que em 1265 nosso autor ignorava ainda a existência da Juana, apesar de sua grande erudição como colecionador de histórias e de lendas. Ao seguir a composição lhe totalizem da Lenda de ouro, os relatos que a sua vez dão corpo à crônica garantem, um detrás de outro, um ensino histórico (sobre a instituição da mudança de nome das Papas; sobre a criação do responso litúrgico pelo Theodulfo, quem desde sua prisão estabelece comunicação com o exterior através de dito responso), escatológica (o prodígio da Brescia) ou moral (a história da papisa). Nesta versão da história da Juana, a narração vem precedida de um comentário moral tão largo como o próprio relato. Por temor a aborrecer ao leitor, não citaremos em sua integridade o texto da narração, pois entre outras coisas são poucos os elementos novos que contribui em relação ao texto do Martín o Polonês, de cuja tradução nos ocuparemos mais adiante. Embora não se pôde provar a dependência textual, dado que Jacobo de Voragem não reproduz nenhum dos matizes do Martín, copiados constantemente durante os séculos XIV e XV, o bispo genovés situa o papado da Juana no mesmo contexto cronológico que seu colega (864, leitura possivelmente defeituosa de 854); e, também como ele, registra a existência de um amante antes da eleição, além de indicar o desvio ritual nas procissões romanas. Por último, parece pouco provável que em 1297 um leitor tão bulímico como Voragem pudesse ignorar as versões do Martín, quando sabemos que desde 1280 estas se conheceram rapidamente. Entretanto, a versão de Voragem descuida a identidade da papisa (Juan o Inglês, oriundo da Maguncia) e a duração de seu pontificado, dados ambos mencionados por todos os que leram ao Martín o Polonês. Neste sentido, queremos pensar que a perspectiva moral e exemplar que preside a obra do Jacobo de Voragem induz a seu autor a decantar-se por uma nova referência genérica: «Uma mulher (quaedam mulier)...» Não obstante, apresenta dois detalhes inéditos: Voragem é o primeiro (depois do Jacobo vão Maerlant, quem fica fora da rede a Dominica) em recordar a existência de «uma efígie de mármore que assinala esse acontecimento». Em segundo término, segundo o arcebispo da Génova, a papisa, ao sentir os dores do parto, entra então «em uma casa pequena da rua, onde iluminou, morreu dos dores do parto e foi enterrada». Este último detalhe confirma plenamente a hipótese topográfica exposta pelo Cesare d'Onofrio. Como já vimos, este erudito romano identificou os lugares cuja peculiar configuração poderia ter albergado a lenda; e, d'Onofrio, quem desconhecia o texto de Voragem, só pôde haver-se apoiado em uma referência muito tardia do franciscano Mariano de Florência na obra-guía deste último, titulada Itinerário de Roma (1517). Nenhuma outra versão medieval registra dito detalhe, que por outra parte concorda perfeitamente com as lendas romanas recordadas a sua vez na primeira parte do presente livro, o qual nos permite supor que a inscrição clerical do episódio cristalizou brevemente as tradições orais difundidas de Roma. Seria a força da narração canônica a que, em última instância, conseguiu que passassem ao esquecimento as circunstâncias estritamente romanas. Voragem ilumina seu relato com um denso comentário moral, inspirado em uma fonte próxima à empregada pelo Esteban do Borbón para esboçar sua própria versão, com a diferença de que no trabalho do bispo da Génova está presente uma preocupação escolástica pela construção demonstrativa. Escutemos a seguir o ruído surdo do pesado martillear: «Esta mulher (está mulier) começou com presunção, prosseguiu com falsidade e estupidez e concluiu com vergonha. Tal é, em efeito, a natureza da mulher (natura mulieris) que, ante uma ação que quer empreender, mostra presunção e audácia ao princípio, estupidez na metade, e incorre finalmente em vergonha. A mulher, pois, começa a atuar com presunção e audácia, mas não toma em consideração o final de dita atuação nem suas conseqüências; pensa que realizou já costure importantes; se ainda pode começar algo grande, depois desse primeiro momento, e logo durante o curso de sua atuação, já não sabe continuar com sagacidade aquilo que iniciou, e isso se deve a uma falta de discernimento. Só fica então concluir em meio da vergonha e da ignonimia quanto empreendesse com presunção e audácia e continuasse com estupidez. E, deste modo, está perfeitamente claro que a mulher começa com presunção, continua com estupidez e conclui com ignomínia». Assinalemos a respeito que, à margem da sólida atitude misógina comum entre os autores da época, e da satisfação tipicamente escolástica sobre a triplo condição feminina (presunção, estupidez e ignonimia). Voragem parece demonstrar um ponto de vista curiosamente maquiavélico sobre a ação, já que a leitura de seu texto produz a impressão de quase lamentar a falta de firmeza por parte da papisa, quem, a seu julgamento, de ter procedido de outra maneira, tivesse podido ter êxito em sua empresa. Caberia ver nesta postura o surgimento de uma fascinação pela aventura da transgressão, perfeitamente visível já no Boccaccio, meio século depois? Trataremos este assunto no próximo capítulo. A papisa no alfabeto: Arnoldo da Lieja (1307) A história da Juana tivesse podido instalar-se no marco de um estilo narrativo de corte moral, de haver-se dado as circunstâncias adequadas; entretanto, essa forma de existência literária durou pouco tempo, apesar de que o corpus dos exempla continuou desenvolvendo-se, inclusive até o século XV, a base de cópias e de empréstimos, e a pesar também do êxito colhido pela recopilação do Esteban do Borbón, através de coleções muito difundidas. A única recuperação da história sob forma exemplar se encontra no Alphabetwn narrationum (o Alfabeto dos relatos), do dominicano Arnoldo da Lieja, redigido por volta de 1307. Esta volumosa recopilação de 819 exempla obteve deste modo um amplo êxito (conservam-se 98 manuscritos de dita obra), devido sem dúvida a que compreende uma classificação por ordem alfabética dos temas tratados, que se complementa com engenhosas referências de um epígrafe a outro. A obra conheceu traduções ao inglês e ao catalão, e nos importa assinalar de passagem que a adaptação catalã (a diferença da tradução inglesa, que é muito literal), o Recull de eximplis e miracles, gere et faules e altres ligendres ordenades per ABC, acrescenta um detalhe novo frente à versão canônica do Martín, resumida aqui pelo Arnoldo da Lieja: quando, em metade da procissão, a papisa chega ante uma imagem da Virgem, ouça que María lhe pergunta se prefere expiar sua falta na eternidade ou aqui embaixo; Juana escolhe purgá-la imediatamente e então expira a conseqüência dos dores do parto. O método do Martín Por volta de 1260 aparece uma forma bem distinta de contar o episódio da papisa, embora de maneira embrionária, na crônica franciscana anônima do Erfurt: «Ainda houve uma pseudo-Papa (pseudo-Papa), cujo nome e datas de pontificado ignoramos. Era uma mulher, conforme dizem os romanos...» De novo nos encontramos aqui à instituição papal como tema do relato, com o término «pseudo-Papa», enquanto que Juan do Mailly usava o pitoresco apelativo de «papissa» (papisa), e Esteban do Borbón e Jacobo de Voragem omitiam (salvo na fórmula das seis P) qualquer etiqueta institucional. Esta integração histórica, que já não é anedota, na instituição papal se perfila claramente na versão do Martín o Polonês (ou Martín do Troppau). Martín Strebski, natural do Troppau, em Boêmia, ingressou na Ordem do São Domingo no convento da Praga, que pertencia a grande província da Polônia, origem administrativa que não geográfico do apelido do Martín. Também ele conheceu uma carreira brilhante, posto que em 1264 chegou a capelão e penitenciário da Papa Clemente IV, conservando logo ambos os cargos com os sucessores deste último. Nicolás III lhe nomeou, em 1278, bispo do Gnessen (atualmente Gniezno) na Polônia e o consagrou ele mesmo. Martín morreu perto da cidade italiana de Bolonha quando se dirigia a sua sede episcopal. dentro da mais pura tradição de atualização a Dominica de instrumentos de divulgação da doutrina cristã, Martín compôs um pequeno índice alfabético do Decreto do Graciano, a Margarida Decreti, que citamos no primeiro capítulo a propósito de seu artigo «mulher». Com idêntico espírito redige uma breve crônica universal, a Crônica das Papas e dos imperadores, da que se conservaram vários centenares de manuscritos e de traduções ao inglês, armênio, tcheco, espanhol, francês, alemão, grego e italiano. Este êxito se explica, sem dúvida, pela concisão extrema do texto, e sobre tudo por uma construção muito hábil do mesmo que permitiria uma consulta extremamente rápida: cada página das edições realizadas segundo o manuscrito inicial representava cinqüenta anos de história, a razão de 50 linhas por página. A história da Juana não figura nos primeiros manuscritos da Crônica. Segundo L. Weiland , Martín editou três vezes sua crônica: primeiro baixo Clemente IV (1265-1268); logo em 1268, e por último por volta do 1277. A notícia da papisa se incluiria nesta terceira e última edição. Pode também que se acrescentasse depois de sua morte, bem em uma edição póstuma ou por conta de um continuador dele; mas, em qualquer caso, o episódio figura em todos os manuscritos posteriores a 1280 sob o nome e a autoridade do Martín. Importa aqui, pois, ler o texto em sua integridade (breve), texto com o que conclui uma fase da história da Juana, fixando-a e difundindo-a por toda parte, e a que portanto confere uma garantia solvente: «depois deste Leão (= Leão IV), Juan, inglês de nacionalidade e oriundo da Maguncia, ocupou a sede durante 2 anos, 7 meses e 4 dias. Morreu em Roma e o papado ficou vacante um mês. Conforme contam, foi uma mulher; durante sua adolescência foi levada a Atenas, vestida de homem pelo que era seu amante; progredia tanto nas distintas ciências que não havia ninguém que lhe igualasse; tanto é assim que se dedicou a ensinar em Roma o "trivium" (= as artes literárias), e teve entre seus discípulos e ouvintes a magistrados de alta fila. E, porque sua conduta e sua ciência gozavam de uma grande reputação na cidade, foi escolhida Papa por unanimidade. Mas durante seu pontificado, seu companheiro lhe deixou grávida. Mas ella/él ignorava a data da iluminação e quando ella/él se dirigia para o Letrán procedente de São Pedro, sentiu os dores do parto entre o Coliseu e a igreja de São Clemente; deu a luz, e logo morreu, precisamente ali onde recebeu sepultura. E como o senhor Papa efectúa sempre um desvio neste trajeto, crie-se usualmente que o faz assim porque detesta dito acontecimento. Não ficou inscrito no catálogo dos Santos pontífices dada a inconformidade que o sexo feminino implica neste assunto» . A partir de então, a história adquire reflexos de realidade, já que Martín proporciona indicações concretas sobre a data e a sucessão. De entrada, rechaça qualquer réplica erudita ao explicar porquê nenhuma lista de Papas menciona a Juana. Por outra parte, no texto do Martín, o episódio se apresenta com certa coerência: a conduta da Juana tem sua origem em uma primeira motivação (o amor). Sua carreira se explica por seu grande talento. Assim, ao encontrar uma identidade (nome, data, conduta), Juana tem, por fim, vida individual. Não podemos saber de onde tira Martín estas precisões, indispensáveis para que a vida da Juana perdure no âmbito do imaginário. Além disso, a novela em torno de Juana bem pôde fabricar-se a partir do simples acontecimento registrado pelo Juan do Mailly, respondendo às perguntas dos móveis e das modalidades que comporta a ação da papisa. Nesta ordem de coisas, diz-se que Juana inicia sua carreira com o ensino geral (o «trivium») e não já com a arte do notariado, o que sem dúvida sugere uma correção do verossímil, posto que naquela época o notariado acusava uma perda desse prestigio de que tinha desfrutado com antecedência (séculos XI-XII), quando se inventou o estilo pontifício de redação, isto é, o «cursus». Na autobiografia do Guido Faba, decifrada pelo Ernst Kantorowicz , compara-se ao notário (civil, é obvio) com o curtidor, cuja tarefa exigia a manipulação de excrementos caninos (para branquear o pergaminho) e da lezna (para costurar e esticar o suporte de seu trabalho). Mas, como hei dito, Martín é o primeiro em adiantar uma razão solvente ao disfarce eleito pela Juana: seguir a um amante. O que já parece mais difícil de estabelecer é a formação de sua identidade. Martín lhe chama Juan (e não Juana), nome eleito por numerosas Papas dos séculos IX e X, desde o Juan VIII († 882) até o Juan XVII († 1003). Os tumultos nos que se viu envolto então o papado (destituições e voltas de pontífices) embrulharam a numeração dos titulares deste mesmo nome. Por outra parte, é possível que a má reputação do Juan XI e do Juan XII, as Papas da «pornocracia», determinasse a eleição do Martín ou de sua fonte desconhecida. Mas o que resulta ainda mais difícil de explicar é a estranha indicação sobre sua origem («inglês de nacionalidade, oriundo da Maguncia»). Ao fio desta questão, queremos propor algumas associações sucintas que em modo algum pretendem resolver o dilema, já que nos cuidamos muito muito do demônio da analogia indefinida. Anglicus, o Inglês. A única Papa inglesa da história foi Adriano IV (1154-1159), com quem nos encontramos já, a propósito de seu conflito com o Federico Barbarroja. Se admitirmos o fato de uma difusão essencialmente germânica de lenda (incluindo no término «germânico» os domínios do Império, mais Lorena e Borgoña, culturalmente orientadas para a área germânica), podemos pensar (embora reconheçamos que se trata de uma hipótese débil) que a intensa produção germânica antipapal dos séculos XI e XII é responsável pelos mil pecados e raridades que se imputaram a esta Papa inglesa. De fato, a irrupção de uma Papa procedente das longínquas paragens nórdicas surpreendeu à cristandade, e na Crônica Pontifícia e Imperial Tiburcina (por volta de 1256) encontramos um relato de sua vida que guarda certa relação com a lembrança de outra carreira fulgurante, a da Juana: «Seu pai, inglês, transladou-se ao Aviñón onde ganhou a vida com suas próprias mãos, e, a sua morte, seu filho, ainda de curta idade, entrou em serviço do hospital de São Rufo; logo se fez cônego, depois abade e finalmente se converteu em Papa» . A lenda converte uma vida realmente assombrosa em matéria de promoção social: Nicolás Breakspear, filho de um humilde escrivão, quis entrar no monastério do Saint-Alban; impaciente por ser recebido, dirigiu-se a Paris, onde viveu das esmolas antes de colocar-se ao serviço do capítulo de São Rufo no Aviñón, onde se fez cônego e logo prior antes de que se fixassem nele com motivo de um processo com seus cônegos, o que fez que Eugenio III chamasse Roma, onde lhe nomeou bispo do Albano. Embora a vida do Adriano IV só apresenta uma relação longínqua com a elaboração do Martín, o certo é que induz a tematizar um aspecto importante da história da Juana: o papado, poder supremo sobre a terra, pode estar ao alcance de qualquer com o só concurso da graça e o mérito. Em um mundo tão hierarquizado, a possibilidade de que um marginalizado (um pobre, ou uma mulher) chegue à cúpula do sistema permite sonhar... Do Anglicus (o inglês) ao Angelicus (Angélica) há algo menos que uma vocal, embora os tabeliães medievais estavam acostumados a abreviar essa (e) entre as duas consonantes. Dizemos que há algo menos que uma vocal porque o jogo ao que se emprestam essas duas palavras tem brasões de antigüidade e de nobreza, já que se remonta aos tempos do Gregorio o Magno, quem, ao contemplar aos escravos ingleses, formosos e loiros, que se exibiam no mercado de Roma, ao parecer exclamou que lhes devia chamar «anjos» mais que «anglos», e tal foi a emoção que lhe causaram que despertou o desejo de converter às ilhas britânicas . Mas sigamos, porque uma vez levantada a vedação da casualidade, bem podemos nos permitir alguns parágrafos de associação livre. A idéia da chegada iminente de uma Papa angélica («angelicus Papa») não era precisamente alheia às consciências da segunda metade do século XIII, como veremos mais adiante a propósito da espera joaquinita e franciscana. Do mesmo modo, encontraremos mais rastros desta mesma preocupação nos meios heréticos milaneses. Mas deixemos esta questão para o capítulo seguinte, e assinalemos no momento que o trocadilho dispunha virtualmente de um espaço de espera, e de recepção. Inclusive poderíamos imaginar que, em sua lembrança da Juana, o discurso clerical está replicando à profecia joaquinita da seguinte maneira: nada anuncia uma Papa angélica; todo denúncia uma Papa inglesa e feminina. O fundamento deste reduccionismo zombador se encontra no evemerismo: em sua História Sagrada (século III A. J. C), Evhemero faz uma revisão racional dos mitos gregos, demonstrando que os deuses eram homens divinizados pelo medo ou pela admiração; por outro lado, a apologia cristã, em suas lutas contra o paganismo e a heresia, ridiculariza a sua vez o evemerismo de maneira constante. Na Maguncia, o mistério resulta mais opaco ainda. Imersos ainda no torvelinho analógico, caçamos ao vôo a Renania das 11.000 vírgenes, escoltadas pela Papa Ciríaco quem, segundo as visionária Isabel do Schönau (século XII), não figura no catálogo das Papas (ao igual a Juana) por abandonar seu posto na sede papal. O qual nos faz pensar também na Hildegarda do Bingen, ativa no século XII não longe da Maguncia, mulher de conhecimento inspirado e de grande esculpe espiritual, quase papal; como a tantos dos citados, voltaremos a encontrá-la no capítulo seguinte, embora nada de tudo isto resulta convincente. E se Martín procedia ao azar das associações, sem parar-se a calibrar seus significados? Nesse caso, veríamos o sábio dominicano olhando as crônicas de seu tempo e tentando encontrar a finais do reinado de Leão IV (854) os relatos que marcassem e mascarassem a presença da Juana; assim encontraria, por exemplo, no Liber do Temporibus (o Livro dos tempos), do Alberto Milioli, um notário do Reggio Emilia, que no 854, na paróquia da Maguncia, um espírito maligno que se apoderou dos sacerdotes e dos habitantes da cidade, quando foi expulso dali com água bendita se refugiou «debaixo da capa de um sacerdote, como se se tratasse de um familiar dele» (familiaris: é assim como Martín denomina ao amante clerical da Juana) . Mas esta data de 854, escolhida pelo Martín (?), de onde sai? Juan do Mailly anotou o rumor sobre a papisa na parte inferior do fólio que tratava das postrimerías do século XI, aproveitando possivelmente espaços livres, à espera de poder verificá-lo e datá-lo. Por sua parte, Esteban do Borbón registrou o sucesso ao pé da cifra «por volta de 1100», sem que isso implicasse nenhuma preocupação cronológica, dado que a forma exemplar não comportava sentido temporário algum. A facilidade mesma desta metodologia poderia nos induzir a acreditar que Martín, fiel a seu sistema de paginação, dispunha de 8 linhas para o papado de Leão IV, uma Papa sem história, do que nada sabia; seu cálculo cuidadoso fazia aparecer, além disso, uma vacante de mais de dois anos. Mas esta hipótese redutora e preguiçosa não justifica a intuição cronológica do pesudoPapa no século IX, sem maior precisão. Terei que imaginar que Juana, essa figura da desordem, teve-se que alojar na época interdinástica do Império, entre os carolingios e os otonienses, como sinal de decomposição e como uma chamada de retorno à ordem germânica? Detenhamos aqui e agora esta serie sem fim nem razão. O perigo é iminente de continuar nesta linha, pois corremos o risco de encontrar todas as razões do mundo para situar ao Juan o Inglês da Maguncia no ano 854, dada a proliferação cancerígena de células microcausales coaguladas e sem articulação. É neste ponto onde começa esse perigo da historiografia que é a casualidade contextual. Conhecemos sobradamente seus estragos quando estudamos, nos manuais escolar, as «causas» de 1789 ou de 1914: tudo converge e portanto nada se explica. O acontecimento desaparece sob as capas do contexto, que, entretanto, só existe por si mesmo. É preciso, pois, retornar a certezas mais racionais, examinando a realidade do texto do Martín o Polonês e o uso histórico que dito texto gerou. Porque, em honra à verdade, Martín não se contente proporcionando uma identidade e uma coerência à figura da papisa, mas sim atribui uma função ao relato de sua vida, neutralizando assim uma vez mais o veneno do rumor. Do exemplum ao caso jurídico-histórico: Martín o Polonês (por volta de 1279) (Forma 3) O episódio foi tratado como se fora um caso da história, e o jogo sutil dos gêneros assim o manifesta. Em tanto que pseudo-Papa (chamado sem número de ordem na sucessão do Pedro), o sujeito do relato atua em masculino (Iohannes Anglicus... mortuus est), e em sua condição de indivíduo particular se apresenta como feminino (ductA... sepulta). O relato, em soma, representa, dentro da história papal, um caso de não legitimidade, ressaltado aqui pela femeneidad do sujeito, e em outros contextos por motivos diversos. Esta orientação histórico-jurídica se adverte com identidade claridade na forma em que se desculpa a cúria. Para o Esteban do Borbón, tratava-se sobre tudo de proteger a pureza do âmbito romano, e neste sentido Martín parece esforçar-se por afirmar a preteridad da premeditação: Juana se deixa seduzir a uma idade temprana («in aetate puellari»: em sua adolescência), muito longe de Roma (seu amante lhe leva desde a Maguncia até Atenas), e depois da eleição romana, o pai da criatura era esse mesmo amante (e não um romano). Inclusive a própria eleição parece algo perfeitamente regular e sincero: «porque sua conduta e sua ciência gozavam de uma grande reputação na cidade, foi eleita Papa por unanimidade (concorditer).» A conclusão que se extrai da notícia não guarda já relação alguma com a moral (ao contrário do que acontece nos textos do Esteban do Borbón e do Jacobo de Voragem), a não ser com o tema da legitimidade papal: depois de assinalar o desvio das Papas durante as procissões (lição positiva e institucional), Martín conclui seu relato com uma referência à invalidez do reinado (lição de direito canônico aplicado): «Não lhe tem inscrito no catálogo dos Santos pontífices por causa da disconformidad que supõe o sexo feminino nesta matéria ("propter mulieris sexus quantum ad hoc deformitatem": o vocabulário é claramente jurídico)». Martín resolve um caso: um indivíduo ineligible, embora seja eleito legalmente, não goza de nenhuma legitimidade. A lição teria sua importância um século depois, no momento do Grande Cisma. Um dos primeiros cronistas em seguir o caminho esboçado pelo Martín o Polonês foi Godofredo do Courlon, quem, em sua Crônica da Abadia do Saint-Pierre-o-Vif, no Seus, concluída por volta de 1290, relata o episódio da papisa em términos muito parecidos, com um título indicativo de dita orientação jurídico-histórica: «Engano à Igreja romana (Deceptio Ecclesiae Romanae)» 38. Pela primeira vez, a exposição do caso aparece acompanhada da indicação da medida preventiva que se feito necessária pelo abuso de confiança, pois, em efeito, Godofredo menciona o uso da cadeira perfurada, destinada à verificação da virilidade das Papas, como vimos no primeiro capítulo. portanto, na soleira do século XIV, o estilo narrativo do caso orienta a história da Juana para um uso da mesma em sentido jurídico-histórico, que, contrariamente ao emprego exemplar, retém o relato dentro do âmbito eclesiástico, pelo menos enquanto os debates sobre a autoridade papal sigam sendo matéria interna da Igreja romana. Acreditar na Juana? A história da Juana dentro do discurso da Igreja bem poderia deter-se aqui, já que da narração do Martín até 1450, aproximadamente, o relato canônico se repete, parafraseia-se e se resume sem grandes mudanças ao longo de inumeráveis crônicas. Não se expõe tampouco nenhuma duvida a respeito da existência da papisa; a apresentação quase jurídica do caso Juana lança a nossa heroína às controvérsias dos séculos XIV e XV, sem que fique em dúvida seu estranho passado. Esta adesão geral parece singela e clara, porque se fundamenta em uma lógica cultural sólida; assim, o acontecimento inquietante e escuro atribuído aos laicos Jansen Enikel e Jacobo vão Maerlant dificilmente podia comportar nem sentido nem prestígio, do momento em que a anedota estava evocada a crescer e multiplicar-se graças à rede a Dominica de difusão, onde nada se perde e tudo tem sentido. Para que isto fora assim só bastava que o fluxo passasse por um grande transformador: em 1280 foi Martín o Polonês; 20 anos antes tivesse sido Jacobo de Voragem. Recordemos, por exemplo, que a lenda de São Cristóbal Cristóforo, procedente dos longínquos limites hispanos da liturgia mozárabe através de vias misteriosas, apareceu na Lenda Dourada, e invade após todo Ocidente, passando por verídica até nossos dias (concretamente até que Juan XXIII a eliminasse brutalmente do calendário cristão). Como vimos, este processo de difusão não se reduz a uma reprodução automática: no laboratório dominicano, a história já tinha sofrido uma primeira transformação de caráter exemplar, ao objeto de depurar a de seu conteúdo inquietante. Por sua parte, o trabalho do Martín o Polonês a sustrae de um contato possivelmente perigoso com o público de fiéis (o sermão que acolhe o exemplum), para lhe proporcionar um lugar na história eclesiástica, essencialmente reservada às gente da Igreja. Em soma, um sujeito coletivo, autor (origem e garantia, segundo o dobro sentido latino da palavra autor) do episódio, constituído pela ordem a Dominica, e localmente individualizado em sujeitos secundários eminentes (Juan, Esteban, Jacobo, Martín) fixou a anedota ao dirigir-se a um sujeito coletivo ouvinte (a Igreja) depois de receber uma forma adequada e propícia para a difusão. A adesão se perde por volta de 1450, com o desmoronamento progressivo dos dois sujeitos coletivos sob os assaltos prereformistas (a revolução husita). De todos os modos, não podemos evitar uma questão essencial: acreditaram as gente do medievo (quer dizer, os homens da Igreja entre 1280 e 1450) na história da Juana? No momento, nossa análise não pode abandonar a ambigüidade: — Por um lado, não expõe o tema da crença: Juan do Mailly registra o rumor e discrepa sobre sua veracidade («Requer», «para verificar»). Esteban do Borbón situa a história em um âmbito moral onde o sentido importa mais que a verdade: ao lado de anedotas que apresenta como autênticas, relata numerosas fábulas esópicas; quando narra a história do leão, do lobo e da raposa , sabe que a fábula não é certa do ponto de vista referencial, a não ser metafórico. É farto provável que, para o Esteban, a vida da Juana a presunçosa revista mais reflexos de realidade que a do leão abusivo, mas também é certo que neste amplo espectro da veracidade exemplar, sua crença, ou a de seu leitor, não é pertinente. No caso do Martín, já havemos dito que o aspecto jurisprudencial da narração induz à neutralização do tema da crença. — Por outra parte, a história eclesiástica pretende dizer o que é verdade; a precisão da notícia do Martín (nome, data, inserção na série exata das Papas, lugares de nascimento e de escândalo, razões da ausência da Juana nos catálogos) gera um «efeito de realidade». Mas, além disso, encontramos aqui de novo a forte binaridad da que tentamos fugir: no 854, Juana-Juan reinou ou não reinou! Por outro lado, até 1450, ninguém tinha pretendido que não tivesse reinado. A neutralização da crença traduziria simplesmente um esforço de aclimatação, quer dizer uma certa argúcia com a crença. Mas em realidade, o tema apresenta mais complexidades ainda. Sem dúvida, nunca saberemos o que na verdade se acreditava entre 1280 e 1350, pois apenas se conseguimos apreciar mais que aquilo que se oferecia como crença. Sabemos acaso nós o que nós mesmos acreditam? Que parte corresponde à crença, entre o que é conhecimento direto ou o indireto («O gato está no felpudo», ou «A água ferve a 100 graus centígrados»), os gostos ou as certezas estéticas, as conivências morais ou sociais, os costumes de pensamento ou de linguagem, tão fáceis de sacudir, tão fáceis de reconstruir? Esse alcatrão móvel, que rapidamente se incrusta no postigo do real, atua com freqüência como morteiro da crença. Não obstante, tentemos discernir qual é o tema objeto da crença medieval. Excursus comprido, mas necessário, sobre a fé na Idade Média O pretender a estas alturas atribuir à história (neste caso à crônica das Papas e imperadores composta pelo Martín o Polonês) um estrito caráter de veredicto parece anacrônico. A história, ao igual à anedota ou a lenda, diz uma verdade possível, facultativa e permutável. Na história papal temos um exemplo singelo. A Papa do ano mil, Silvestre II (Gerberto do Aurillac) tem uma existência histórica bem estabelecida. As crônicas medievais (sem maior precisão cronológica, já que a data de redação não é pertinente aqui) alternam regularmente duas versões opostas de sua vida: Silvestre foi uma boa Papa, sábio e cuidadoso com os bens da Igreja; formou a dois grandes monarcas (Roberto da França, chamado o Piedoso, e Otón da Alemanha), a quem ensinou a respeitar a sua Santa mãe a Igreja. Ou, Silvestre foi uma Papa diabólica, que assinou um pacto com Satã, entregando sua alma ao Maligno em troca do domínio das artes maléficas, e que além disso tentou rachar a venerável instituição da Igreja. Seu castigo ilustra a derrota do diabo: ao Gerberto lhe predisse que morreria em Jerusalém, e em conseqüência o ímpio pontífice se guardou muito muito de realizar a santa peregrinação, embora morreu esmagado sob as ruínas de San Juan de Jerusalém, uma igreja romana que se desmoronou sob os golpes da divina providência. É importante destacar que ambas as versões se referem a feitos e não a julgamentos ou valorações, de maneira que nos encontramos novamente ante a binaridad do verdadeiro e do falso. Aqui, quer dizer nesta partilha, a polêmica não intervém para nada, ao contrário do que ocorre no caso do Gregorio VII (Hildebrando, também conhecido como Brandellus ou Merdellus), a quem seus adversários da corte imperial acusaram de toda sorte de pecados. Porque a partilha das versões se produz de uma maneira quase aleatória, inclusive quando o cronista dispõe de duas versões. Nada o prova melhor que a crônica papal do dominicano Leão do Orvieto, escrita por volta de 1315. O próprio Leão afirma que Martín o Polonês é sua fonte principal, e de fato, o capítulo que dedica a Juana é uma cópia textual da notícia do Martín. Nesta mesma ordem de coisas, o que segue do Martín (1278-1315) parece-se bastante a uma crítica em relação ao papado, já que, como veremos mais adiante, o capítulo que escreve sobre o Bonifacio VIII está redigido em términos verdadeiramente ferozes. portanto, sobram-lhe razões para recopiar ou resumir o texto do Martín quem, depois de muitos outros, transcreve deste modo a versão malvada da vida de Silvestre II. Para isso escolhe a versão mais elogiosa das existentes, mas sem explicar as razões de sua eleição. Nunca poderemos conseguir penetrar na consciência de Leão do Orvieto, dominicano cuja personalidade permanece escura e do que só conhecemos algo de sua carreira dentro da Ordem e uma única obra, que chegou até nós também em um solo manuscrito, sem dúvida autógrafo . Mas o que sim parece certo é que Leão, como tantos outros autores, concebia a história como um recipiente narrativo, alheio a toda verdade dada ou comportada. A tradição narrativa (histórica ou legendária) não constitui o corpus fechado e delimitado do verdadeiro, nem sequer do provável; o que a história oferece é um material indeterminável que adquire tinturas de verdade mediante uma série de operações significativas que são, a sua vez, contratos de vericidad. Como vimos, a forma mais singela destas operações vincula ao redator da narração com seu leitor ou com seu ouvinte, quem recebe uns elementos que ele deve avaliar a sua vez. Jacobo de Voragem não duvidava na hora de relatar um episódio fabuloso ou apócrifo, e assim o indicava a seu leitor. Um século mais tarde, por volta de 1340, quando o dominicano Pedro Impregno se refere a um Natal de São Esteban, que não figura nos textos canônicos, diz: «quis mencionar aqui esta história apócrifa, deixando ao leitor a tarefa de julgar» . Por outro lado, o recopilador se autoconfiere um índice de verdade, situando assim o relato em uma escala dobro de valoração: em relação com sua fonte (escala de garantia) e em relação com o uso que faz de seu texto (escala de implicação). Percorramos a primeira escala. Na cúspide encontramos o revelado, reduzido a um texto escritural, embora a questão exposta pelos apócrifos contribui com limites incertos a dito domínio. A seguir se encontra o que chamaremos o autorizado, quer dizer, aqueles relatos narrados pelos pais da Igreja beneficiários de uma autoridade indisputável, mas onde também parece difícil estabelecer os limites com claridade. Segundo uma antiga tradição, confirmada posteriormente pelo Migne, a patrología termina com São Bernardo; mas se tivermos em conta que não se pode rechaçar totalmente a um pai, então o último seria o Venerável Beda. Logo passamos ao autentificado, em cujo caso a autenticidade do episódio procede de um contrato de crença que se negocia cada vez. Isto é, quem oferece a garantia é o próprio narrador, que arrisca sua própria credibilidade (ao dizer: «vi», «constatei») ou a da testemunha, vivo ou textual, que interroga. Quando Guiberto do Nogente autentifica em De Veta Sua (1115) a lenda do rei Quilio, está confirmando uma tradição oral (uma «história») com inscrições da igreja do Nogent . O valor moral e religioso do testemunho equivale, pelo menos, ao da confirmação apoiada nos textos, paridade destacada já a princípios do século XIV pelo franciscano inglês Juan Lathbury quando informou sobre um milagre da Virgem: «Porque o ouvi que um homem digno de fé, em cuja palavra acredito (ouadhereo") tanto como em um caderno ("quaterno"). Em outro momento, e a propósito de outra lenda, o mesmo John Lathbury diz: «Um cavalheiro venerável, cuja Santa vida dá autenticidade a suas palavras, contou-me isso com espírito devoto» . Resulta significativo que em ambos os casos a anedota mencionada seja, em realidade, muito antiga (mas sabia o franciscano?). O meio importa mais que a tradição. Não obstante, terá que destacar deste modo um término essencial do contrato de crença: o significado, já que também ele confere autenticidade; quer dizer, a intenção do cavalheiro («devote»: com espírito devoto) importa tanto como os bons costumes. Pela mesma razão que, na história do rei Quilio, esse pagão que, só e sem apoio algum (como pretende Guiberto), encontra a fé incluso antes da Paixão de Cristo, o significado no que se projeta o próprio Guiberto confere autenticidade ao relato, e portanto terá que respeitar a ambivalência que se desprende da frase do Guiberto quando afirma que os textos das inscrições «roborant fidem»: a um mesmo tempo, confirmam a confiança («fidem») que terá que outorgar, e fortificam a fé («fidem»). Este mediante contrato entre a testemunha e o recopilador (ou o redator), o autentificado se destaca sobre a massa imensa e instável do alegado («dicitur», «fertur»), em cujo caso nos encontramos com a postura do Pedro Impregno ou do Jacobo de Voragem, assinantes ambos de um contrato com o leitor. Alegado-o que se oferece, embora seja sem garantias, não fica excluído do âmbito legendário como ocorre com o fabuloso, posto que determina uma zona escura e forte de crença, a da história verdadeira no fundo (além da veridicción formal, que todo o comporta, no trasfondo). Aproxima-se então ao rumor, uma forma oral e instável do alegado, e onde as garantias se esfumam («certamente, naturalmente», diz-se com uma piscada) e portanto mais fortes: aqui o contrato beneficia nitidamente ao «bom entendedor»; a lenda do Judas do século XII, por exemplo, é um exemplo perfeito da proximidade que existe entre o rumor, alegadoo e o autentificado. E quando a Igreja quer dissipar um rumor se vê obrigada a recorrer a uma contra-autentificación. Tal é o caso da Papa Inocencio IV, quando, em 1247, dirige aos bispos da Renania a bula Lacrimabilem ludaeorum ao objeto de afirmar que a história da partilha ritual do coração de um menino cristão pelos judeus é uma fábula . Paralelamente, uma segunda graduação compreende o índice dos relatos segundo a natureza de seu uso; assim, e seguindo uma ordem descendente, distingue-se a liturgia ou a paraliturgia (referimos às colações monásticas ou às leituras de refeitório), a leitura devota transcrita (quero dizer o que se julga digno de ser recolhido por escrito, e que portanto goza de um prestígio importante), os sermões (onde cabe distinguir entre a forma oral, mais livre, e seu trasposición ou reescritura), a celebração institucional (a que cabe integrar as crônicas eclesiásticas), e, por último, a controvérsia ou a discussão moral (a que se referem os exempla não teológicos). Os últimos graus do uso narrativo neutralizam a questão da autenticidade e da significação da lenda. Além disso, a história da papisa se inserida em categorias que se encontram na parte inferior dessa dobro escala de verdade, dentro do relato histórico alegado. Não se rechaça porque não se apresenta como irrechazable. No contexto do discurso clerical da Idade Média, o relato vale tanto por seus efeitos como por suas causas: verdadeiro a momentos, significativo ou ilustrativo, o certo é que roça os limites do psicanálise; mas, inclusive nesse caso, o relato retomado e reinterpretado sem cessar, encerra uma verdade que não é nem literal nem original, a não ser secundária e construída; assim, o relato transitivo e transicional tem mais atividade que representação. Esta plasticidade da verdade não guarda relação alguma com uma inconsistência que redundaria em um relativismo generalizado; como havemos dito já, ressurge à luz das condições particulares da Revelação no cristianismo: a verdade não está cristalizada em um texto porque Deus veio ao mundo para revisar o antigo pacto. Tal é o drama e tal é a grandeza da Encarnação cristã: a verdade se mescla com a história no tempo, sem precedê-los nem dominá-los. Durante a época de Cristo se manifestou com a celeridade de um meteoro, sem que pudesse determinar-se com exatidão que fragmentos e que traços luminosos lhe pertenciam; terei que esperar ao século VI para que o decreto pseudogelasio tente fixar o corpus da Revelação. É verdade que a herança mística e espiritual arrasta às Papas e aos doutores da Igreja pela singladura do meteoro, mas não há nada seguro neste sentido, como se desprende dos debates sobre a infalibilidade papal, que começam no século XIII e concluem em 1870! É possível que alguém nos reprove que neste ponto nos deslizamos da verdade narrativa para a verdade doutrinal, mas não é fácil distinguir entre estes dois âmbitos dentro de um universo cujo texto institucional é nada menos que um relato de vida. O mistério da Encarnação multiplica, pois, as possíveis fontes de verdade, de maneira que a incerteza e a intolerância que encontramos na Igreja medieval (um florilegio narrativo e doutrinal dos doutores ortodoxos confirmaria esta qualificação aparentemente provocadora) são também conseqüência dessa superprodução de verdade. Por isso, em não poucas ocasiões se confundiu com excessivo ardor (às vezes violento e literalmente incandescente) a convicção e a teimosia doutrinal, pois a verdadeira teimosia ao espírito da verdade se encontraria mas bem nessa atitude de indiferença que aconteceu ao dogmatismo postridentino. Em conseqüência, e à vista do exposto, devemos entender a crença, ou melhor dizendo a fé, medieval como uma série de contratos assinados entre um sujeito (individual ou coletivo) e um fiador extraordinariamente variável pela amplitude de sua projeção (Deus autor), cujo único constituinte indispensável é a Sagrada Escritura, em que podem incluir-se os pais, a tradição, o Papado e o Espírito Santo (que sopra onde ele deseja). A verdade da Juana não é, pois, uma verdade deposta, mas sim está constantemente incluída, ajustada, modulada, mas em nenhum caso rechaçada. Assim, esta verdade passa a um discurso clerical indefinidamente flexível e conjuntivo, muito modalizado (a maioria dos narradores resenham a história servindo-se de «dicitur»... «fatentur», «conforme se diz»), e ao mesmo tempo segmentado: a anedota se fragmenta e se recompõe conforme o requeira o sentido que lhe queira dar. Desde esta perspectiva, o melhor exemplo do dito seria a segunda versão atribuída ao Martín o Polonês: a papisa não morre sob o maço da justiça romana, mas sim, uma vez deposta, arrepende-se, e seu filho chega a ocupar o bispado da Ostia. depois da morte piedosa da Juana se produzem numerosos milagres em sua tumba. Nesta versão, o caso da Juana se inserida na grande tradição hagiográfica das pecadores arrependidas , pois dito discurso clerical pode englobá-lo tudo e assimilá-lo também tudo. Em términos hegelianos diríamos que se trata de um discurso sem negatividad, sem reversos, enquanto não se encontre o discurso oposto de uma oposição forte e competitiva, e até que dito discurso não se choca com a Reforma. O século XIII multiplicaria ainda mais as virtualidades de manifestação nova da verdade, com um movimento alternativo de expansão e de contração. Desde finais do século XII, o Espírito Santo sopra com expirações redobradas. Mas não é este o lugar mais adequado para confeccionar o inventário amplo e impressionante dos diferentes profetismos que afloram em plena Idade Média, esses autênticos «poderes informais», por empregar a sagaz expressão do André Vauchez . Por isso, mencionaremos somente a enorme ressonância que em seu dia obteve a obra profética do Joaquín do Fiore (por volta de 1140-1202), esse cisterciense calabrês que obcecou as consciências medievais. Joaquín anunciou para o ano 1260 a chegada do fim do mundo e da última revelação: depois do livro do Pai (Antigo Testamento) e do livro do Filho (Novo Testamento) devia escrever o livro do Espírito Santo, esse Eterno Evangelho que em 1254 acreditou redigir o franciscano Gerardo do Borgo São Donnino. Com o profetismo, a verdade cristã se difundia mediante engaste sucessivos, sistema expansivo no que, como veremos, a papisa encontrou seu sítio. Pelo contrário, o âmbito da verdade garantida podia contrair-se, no sentido de que, como demonstrou o pai Chenu , do século XII a teologia se configura como ciência. Nesta ordem de coisas, podemos dizer que ali onde o espírito profético acrescenta, a ciência teológica recorta, chegando inclusive a ameaçar o venerável texto da Revelação, como assinala por sua parte Bernard Guenée a propósito do Bacon e do Pedro do Ailly. O franciscano Rogerio Bacon (12101292) «tinha estabelecido com numerosas provas que em sua tradução latina da Bíblia, constituída pela Igreja em versão oficial da Santa Escritura, que era a Vulgata, o ilustre doutor (Jerónimo) equivocou-se ou não havia dito tudo ou tinha acrescentado ao texto» . O contrário do Rogerio Bacon, em sua condição de leitor, só lhe vinculava ao autor do texto hebraico ou grego, e excluía à venerável tradutor. Evidentemente, seria absurdo por nossa parte transformar ao ilustre e sutil Bacon em um integrista reformado, pois embora seu grande conhecimento constituía uma honra para os doutores da Igreja, o certo é que seu desejo de aprofundar em dito conhecimento tinha que ver com a vontade de fortalecer sua própria fé com novas ataduras. B. Guenée conseguiu identificar a resposta que recebeu Rogerio Bacon, um século mais tarde, do prudente e ortodoxo teólogo Pedro do Ailly (1351-1420), em sua Carta aos novos hebreus: «A obrigação de acreditar em uma autoridade humana não é absoluta: com isso não arriscamos nossa salvação (nulla auctoritas humana firmiter est credenda de necessitate salutis)... Para salvar-se, o que terá que acreditar de forma absoluta é a autoridade da Igreja cristã (auctoritas ecclesiae christianae a quolibet firmiter credenda est de necessitate salutis)» . A postura que adota Pedro do Ailly permite salvar a figura do Jerónimo, cuja tradução conta com a garantia da Igreja, embora logo que delimita o campo da verdade: onde?, em que textos reside a autoridade da Igreja? (nos concílios antigos? nos concílios atuais? na Papa? na cúria? nos pais da Igreja?). A questão que aqui se expõe não é fútil, e de fato rasgará à Igreja do século XIV. A formulação do Pedro do Ailly confima nosso modelo de escalas e sistêmico, da veracidade na Idade Média: segundo este teólogo, a verdade do Jerónimo é provável por si mesmo, embora resulta uma verdade absoluta dentro do sistema da verdade eclesiástica. A crença medieval não se centra analiticamente em tal ou qual objeto, daí que a adesão a Juana apareça em sistemas de verdade tão exclusivos como os do Ockam, Wyclif, Juan Hus ou Dietrich do Niheim. Mas, além disso, Pedro do Ailly chega a definir a fé vigorosa como componente necessário para alcançar a salvação: não há salvação sem uma fé justa e boa. A originalidade de semelhante concepção radica em conjuntar o possível e o necessário; dando a volta a uma formosa fórmula do Daniel Melo, poderíamos dizer que a fé religiosa medieval se estabelece quando «o possível aspira ao necessário para escapar do aleatório» . Fortuna da Juana Esta excursão larga pelos domínios das crenças medievais nos permitiu apreciar em suas justas proporções o imenso êxito alcançado pela história da Juana, história situada pelo Martín o Polonês no nível mais desço da escala da fé, mas entre um conjunto setorial manipulado sem cessar (a história eclesiástica) para fundar sistemas de salvação. A versão do Martín se difunde, pois, ampliamente nos discursos da Igreja até o 1450 aproximadamente; como veremos, esta soleira coincide com uma quebra profunda no seio da organização católica. Juana nos ajudará a avaliar o significado deste giro. Mas a força dos hábitos mentais tinha ainda fôlego suficiente para seguir contando a vida da papisa para cá e acolá, dentro da própria Igreja católica, até finais do século XVI, inclusive quando se multiplicavam os rechaços, e inclusive quando os reformistas se apropriavam da história a modo de argumento antirromano. Por volta do 1550, o dominicano Bartolomé da Carranza († 1576) cita a Juana em seu Summa omnium concilorum («Soma de todos os concílios»), embora é certo que seu comentário desvaloriza o relato: «fala-se deste assunto corrientemente mas com a só garantia de autores incertos e escuros» (a fórmula pertence a Platina, mas foi deslocada do rito de verificação incluso em vida da Juana) , embora se mantém o relato. Em 1576, Juan Rioche, franciscano do convento do Saint-Brieuc, em Bretanha, menciona o episódio dando crédito a sua veracidade: «Embora Platina e a Soma dos Concílios (a obra do Bartolomé da Carranza) afirma que não terá que acreditar nele, a Igreja universal dá testemunho deste acontecimento . Acertos Resultaria tedioso analisar todas as aparições clericais da vida da Juana entre 1280 e 1450 (ou 1500) que formam um corpus representativo de extensão indefinida. Por isso, contentaremo-nos assinalando rapidamente as grandes linhas da difusão alcançada pelo texto do Martín o Polonês. Às vezes, os cronistas se contentam a sua vez com recopiar literalmente o texto canônico. Tal é o caso do dominicano Leão do Orvieto (por volta de 1315), do beneditino inglês Ranulfo do Higden em seu Polychronicon (por volta de 1330) , dos interpoladores anônimos do Liber Pontificalis (principio século XIV) e da crônica do Ricardo do Poitiers. Por outro lado, os autores se limitam freqüentemente a oferecer uma menção breve da história, em que resumem com traços enérgicos os supostos do relato do Martín. De fato, este é precisamente o procedimento empregado pelos interpoladores do século XIV, que copiavam crônicas antigas (Mariano Decoto, Sigiberto do Gembloux, Otón do Freising, Godofredo do Viterbo, Gervasio do Tilbury, etc.). Este tipo de resúmenes, inumeráveis, produz-se até o século XVI (Chronica do monastério do Hirsau do beneditino alemão Juan Tritemo (1462-1516) ou as Eneadas do veneziano Marco-antonio Sabelico (1436-1506)). Também caberia citar as muito numerosos adaptações vernáculas que surgem especialmente nos países germânicos. Dado que a relação deste material é tediosa por sua aridez, remetemos a crono-bibliografia sobre a Juana que apresentamos ao final do livro a modo de anexo. Por último, estão os cronistas que parafraseiam ao Martín, sem modificar os conteúdos essenciais de seu relato. Do trabalho destes parafraseadores só referiremos a algumas variantes significativas, passando deste modo pelas deformações que introduzem os copistas, por enganos em ocasiões importantes (o dominicano Jacobo do Acqui, por volta de 1370, fala de 19 anos de papado da Juana!), ou por acertos estilísticos (a versão de Platina, de 1472, não contribui nenhum dado novo, exceto a elegância de seu latim de humanista). Considerando o conjunto destas fontes, podemos advertir certa preocupação comum por racionalizar quanto se refere à identidade da Juana. Os leitores do Martín se interrogaram a respeito da dobro denominação da Juana (o Inglês da Maguncia), que encerra uma contradição geográfica. O ilustre dominicano Bernardo GUI (1261-1331), no catálogo das Papas que publicou na margem de seus volumosos Floresça Chronicarum, por volta do 1315, copia ao Martín, mas substituindo o «Anglicus» (o inglês) pelo «Teutonicus» (o alemão). Não obstante, os intentos de racionalização não obtiveram nenhum êxito, dado o arraigo e a autoridade do Martín o Polonês (a menos que se sospechara/temiera uma excessiva germanización de dita papisa!) . Depois, numerosos autores resolveram a contradição sem modificar o apelativo, mas omitindo um dos dois elementos; assim, Juana é o inglês para o Tolomeo da Lucca, Antonio de Florência, Juan Rioche, etc., ou o «maguncino» no Eulogium historiarum ou para o Dietrich do Niheim. A previsão cronológica que propõe Martín sugere a inserção numérica e nominal da Juana no catálogo papal, embora o dominicano se apressa a indicar que a papisa não figurava em dito catálogo (o que justificaria sua ausência em documentos anteriores). A papisa foi batizada pelo Martín com o nome do Johannes» (Juan), nome que se corresponde a sua vez com a face institucional e masculina-neutra do personagem. Toda a tradição católica conservou este nome, e só aparece em sua versão feminina da Juana nos textos laicos e novelescos dos que nos ocuparemos no capítulo seguinte. As únicas exceções são Wyclif e Juan Hus, quem se refere em suas obras a Ana e ao Inés, respectivamente. Ambas as exceções, a do inglês e a do boêmio, têm que ver com um movimento prerreformista do método católico, sobre o que voltaremos mais tarde. Baste citar no momento o comentário que nos fez Robert-Henri Bautier sobre o particular: «o fato de que em alguns textos lhe chame (a papisa) Ana ou inclusive Inés terá que atribui-lo à deformação que intervém nas mesmas condições que rodeiam o caso da rainha da França, Ana do Kiev: para alguns cronistas do século XI, Ana se converte no Inés e para outros na Juana» . Mas para nossos cronistas católicos, Juana segue sendo Juan, a Papa-mulher. A promoção nominal da Juana se produz rapidamente, já que o dominicano Tolomeo da Lucca, discípulo tardio e continuador de Santo Tiram do Aquino, erudito respeitado, em sua História Eclesiástica (por volta de 1312), confere-lhe o título do Juan VIII, e lhe atribui o lugar 107° na linha de sucessão papal, antes de parafrasear quase textualmente o texto do também dominicano Martín . Por sua parte, Bartolomé da Carranza e Juan Rioche mantêm sorte titulación, enquanto que em outra tradição aparece com o nome do Juan VII; tal é o caso do Eulogium Historiarum (1362-1366), crônica inglesa, ou a já citada História das Papas de Platina (1472). Em realidade, a atribuição de um sítio entre os Juanes não expor nenhum problema historiográfico, pois bastava condensando a dois Juanes anteriores em um só (afirmando de passagem que a volta de uma Papa exilada tinha criado sorte confusão), ou eliminar a um Juan duvidoso ou cismático. Inclusive hoje, a erudição contemporânea, embora por um lado se mostra categórica no tema dos Juanes, por outro alberga dúvidas no que se refere aos Esteban, aludindo neste sentido a uma numeração dobro (Esteban III/Esteban IV). Mas sorte integração não obteve o reconhecimento universal, e muitos autores rechaçaram ambas as atribuições, ou pelo menos uma delas, a numeral ou a nominal. Em 1340, o franciscano Juan do Winterthur apresenta em sua Crônica uma lista de 197 Papas, até o Gregorio X: «excetuando a Linho e ao Cleto, assim como a uma mulher que não foi computada» . A esta aspiração por conseguir certa coerência histórica, veio a acrescentar uma busca da confirmação referencial. Martín já tinha indicado a via (?), ao assinalar como testemunho permanente da história da Juana o desvio romano que realizavam as Papas, e do que nos ocupamos abundantemente na primeira parte. Os cronistas repetiram constantemente esta menção, verificada por outra parte pelo próprio ritual, até o reordenamiento das ruas que conduziam ao Letrán. Como resultado de sua volta fracassada a Roma, no 1368, Urbano V se negou a efetuar dito desvio, embora sua atitude implicava menos um rechaço da realidade da Juana, que o desejo, quase necessidade, íntimo de comemorar sua própria figura na lembrança de uma cidade, Roma, que ansiava reencontrar com toda sua pureza primitiva, depois de tantos anos no Aviñón: «De ali (desde o Letrán), retornou ao palácio (do Vaticano) pacífica e tranqüilamente, cavalgando através da cidade e seguindo o caminho mais direto, sem trocar de direção em lugar algum, embora este tivesse que ver com essa mulher louca da que se diz que um dia ocupou o pontificado e iluminou a seu feto nessa mesma rua; conta-se que alguns de seus predecessores (de Urbano V) sim efetuaram dito desvio». O certo é que tanto o texto do Martín como a disposição material das ruelas que rodeiam São Clemente fixam o começo do desvio; assim, em 1486, e pelo que conta em seu Jornal, o mestre de cerimônias papais Juan Burchard quis suprimir o desvio comemorativo com ocasião de uma procissão encabeçada pelo Inocencio III; a pesar do apoio que lhe emprestou o bispo da Pienza, Burchard não pôde evitar que caísse sobre ele a cólera violenta do Rinaldo Orsini, arcebispo de Florência. Os leitores do Martín completaram sua informação assinalando a sua vez a existência da estátua de mármore (Jacobo de Voragem, por volta de 1295; Sigfrido do Balhusen, por volta de 1304; etc). O anteriormente chamado Dietrich do Niheim aponta que dita estátua existia ainda em sua época («adhuc»), enquanto que Martín Lutero pretende havê-la visto durante sua viagem a Roma em 1510, e assim o faz constar em seus Bate-papos de sobremesa (tischreden). Mas Dietrich do Niheim ainda acrescentaria outra prova de caráter referencial, já que, em sua Crônica dos imperadores alemães, a história da Juana constitui uma glosa da escola grega de Roma, onde exerceram o magistério São Agustín e Juana. A fórmula das 6 P e o esquecimento da tradição franciscana. Não obstante, em um momento cedo desaparece da literatura juanista um parâmetro referencial. Este esquecimento merece que nos detenhamos avaliá-lo ampliamente, já que nos põe sobre a pista de uma reinterpretación total da história clerical da Juana. Recordemos que Juan do Mailly, e logo seu leitor Esteban do Borbón mencionam uma inscrição lapidária com seis P iniciais, que comemorava a iluminação da papisa. Martín, leitor a sua vez do Esteban, descartou essa comemoração de seu próprio relato; portanto, era muito possível que o detalhe desaparecesse, do momento em que Martín «substituía» e aperfeiçoava a versão do Esteban no âmbito da rede a Dominica de difusão. Não obstante, e como já vimos, por volta de 1260, aparece uma versão franciscana da história da papisa, completamente independente da tradição a Dominica, em uma crônica composta no Erfurt: «Houve ainda outra pseudo-Papa, cujo nome e data de papado ignoramos. Em efeito, era uma mulher, e pelo que contam os romanos de uma grande beleza, de uma ciência considerável, e, sob uma aparência enganosa, de conduta perfeita. ocultou-se sob um disfarce masculino até que foi escolhida Papa. No curso de seu pontificado, concebeu e, quando ficou grávida, o demônio revelou o fato a todos publicamente em um consistório, lançando à Papa o seguinte versículo: "Papa, Pai dos Pais, Publica o Parto da Papisa" (Papa, Pater Patrum, Papisse Pandito Partum)». Esta versão do episódio contava com menos possibilidades de difusão, apesar de apresentar um grau de elaboração quase idêntico ao do Juan do Mailly: a rede a Dominica, através do Esteban do Borbón e do Martín o Polonês (1260, e logo 1280) deixou atrás aos franciscanos, ordem muito pior equipada para a difusão dos textos. A única referência conhecida da versão do Erfurt se encontra no Compendium historiarum (compêndio de histórias) do Sigfrido do Balhusen (ou do Meisnen), quem por volta de 1304 recopia a notícia do Erfurt, contentando-se acrescentando uma menção da estátua de mármore, mais precisa que a do Jacobo de Voragem: «Após, em Roma se acostuma, em uma praça da cidade, uma figura (symulacrum) vestida com roupas papais, esculpida sobre uma parede de mármore, com uma imagem de menino». Sigfrido, clérigo que não franciscano, e autor bastante escuro, tomou esta notícia devido sem dúvida a seu desconhecimento da obra do Martín o Polonês, e também à proximidade geográfica entre a Turingia (lugar originário da Crônica do Erfurt) e seu Misnia natal, que no século XIII se achavam reunidas sob o margraviato dos Wettin. Entretanto, a obliteração a Dominica da tradição franciscana não foi total. Em 1290, uma crônica franciscana, muito estendida pela Alemanha e continuada em várias ocasiões, as Flores Temporum (as flores dos tempos), reproduz quase textualmente o relato do Martín. Dez anos antes, as Flores tivessem podido desempenhar o papel do Martín assim que se refere à história da Juana; mas depois da atuação do Polonês terei que ajustar-se à tradição canônica. Não obstante, o autor anônimo acrescenta a esta notícia a entrevista da fórmula das seis P, segundo a versão do Erfurt, completada e perfilada; retoma o texto e o anunciado satânicos, mas com uma encenação diferente: «Ficou grávida do amante de que falamos; então se dirigiu ao maligno lhe suplicando que dissesse quando quereria o demônio retirar-se dela. O diabo lhe respondeu com os seguintes versículos: "Papa, Pai dos Pais, Publica o Parto da Papisa / E eu te anunciarei quando me retirarei de seu corpo"». O episódio em questão nos interessa à margem do problema que expõe a filiação dos textos, pois nos devolve o misterioso texto das seis P que acompanhava a Juana desde sua entrada no mundo do documento escrito. nos detenhamos um instante neste texto, nos servindo da definição dos três níveis da existência textual proposta pelo Jean Moinho e Jean-Jacques Nattiez: nível neutro (nível da existência imanente do texto); nível poiético (nível da fabricação do texto); e nível estésico (nível da recepção do texto). O texto da fórmula O texto em si mesmo se apresenta como uma fórmula mnemotécnica: retém-se o potente patrão fônico (seis P) e a narração associada (uma Papa deu a luz). Encontramo-nos muito perto do modelo analisado pelo A. B. Lorde e J. Rychner a propósito da narração épica oral: transmite-se uma matriz rítmico-fônica sem fixar o detalhe léxico e semântico. Por outra parte, os autores que aqui nos importam se mostram sensíveis a este aspecto rítmico: falam de versos, de versículos ou de versificação («versiculus», «versus», «versifique»). Do mesmo modo, produzem-se duas aparições concomitantes (1255-1260) no Metz e no Erfurt, que disfarçam de maneira distinta (Petre/Papa, Prodito/Pandito) o mesmo patrão fonético-temático, difundido provavelmente de Roma até os limites da Europa. A fórmula se associa então ao grito de alarme («Requer», «Para verificar»; «Fuit et alius pseudo-Papa», «Houve ainda outra pseudo-Papa»). Mas os continuadores transbordam a fase do estupor moralizando a fórmula, encarregada em um caso de conjurar e já não de denunciar (Esteban), e no segundo caso (Flores) de romper um pacto implícito assinado com o diabo. Em um terceiro caso, o do Martín, a fórmula desaparece, dado que a integração histórica suprime o pânico sonoro da própria fórmula. O grito se converte em texto, e, em conseqüência, a memória se aferra à cronologia e já não à estrutura fonético-temática. A fabricação da fórmula Tentemos agora (análise poiético) nos remontar à fabricação do texto repartido em qualquer parte na Lorena e na Turingia. Não dispomos de testemunhos que nos permitam apresentar diretamente dita produção. Em um alarde de engenhosidade filológica, Ignaz von Döllinger propôs em seu dia a reconstrução de um processo, tomando como referência um modelo contrastado com uma crônica medieval. trata-se de uma inscrição achada em Roma, com a seguinte lenda: R.R.R.F.F.F. Segundo os métodos de decifração epigráfico atuais essas iniciais significariam: Ruderibus Rejectis Rufus Festus Fieri Fecit («depois de limpar as ruínas, Rufo Festo mandou levantar esta construção»). Ao parecer, os habitantes da Roma medieval, à espreita sempre de sinais proféticos, interpretaram sorte inscrição como um terrível aviso da Sibila: «Roma Ruet Romuli Ferro Flammaque Famique» («Roma se derrubará sob a espada do Rómulo, o fogo e a fome»). Este modelo, aplicado a uma inscrição com seis P, permite reconstruir um texto primitivo possível, asociable cronologicamente à antigüidade tardia; trata-se de uma inscrição também lapidária em que se comemora um donativo devotado por um devoto da Mitra: «Propria Dinheiro Posuit (ofereceu seus próprios denarios) Patri Patrum (ao Pai dos Pais, título com o que se designa, em várias inscrições bem conhecidas, ao ministro dos mistérios da Mitra) P (inicial do autor desconhecido do donativo). O esquema proposto pelo Döllinger parece bastante convincente, embora lhe poderiam reprovar que designasse como «autor» da fórmula de 1250 (?) a um sujeito (o povo?) que, além de ser cúmplice, resulta incompetente na hora de decifrar um texto autêntico. Não obstante, Döllinger se adiantou ao Cesare d'Onofrio, quem, a propósito do rito, suspeita a existência de um «texto» primitivo (a Papa é a mãe da comunidade de fiéis) e de descifrador ignorante e literalista (a Papa deu a luz). Em conseqüência, o espírito filológico implica uma entropia geral do sentido, e portanto a progressiva degradação do mesmo. A explicação proposta no capítulo anterior sem dúvida não difere muito da do Döllinger» pois sugeria uma leitura satírica da inscrição antiga, que participava dessa crítica carnavalesca do Papado atacando a um veículo de opacidade dominante: a reutilización solene de materiais e caligrafias antigas. Mas em um esquema binário (texto primitivo e auténtico/desciframiento ingênuo) e atemporal, dita explicação tentava contrastar o modelo Jouhaud com um espectro de leituras contemporâneas, parciais e hierarquizadas embora convergentes (texto inicial/reutilización erudita/reutilización autoritária não erudita/desciframiento satírico não erudito/lectura cúmplice); todas estas leituras concorrentes construíam conjuntamente um sistema simbólico, representado pela papisa. Mas se em vez de nos fixar na forma epigráfica nos centramos em seu conteúdo narrativo, então podemos aspirar a reconstruir outros âmbitos possíveis de produção. assinalamos já que as versões franciscanas põem a fórmula em boca do diabo: tanto na crônica do Erfurt como nas crônicas mais tardias (crônica do Saint-Gilles, crônica do Engelhusius), o texto transcrevia um grito de triunfo do diabo. Este detalhe aparece com maior claridade ainda na crônica da abadia do Kempten, na Baviera, onde a fórmula se traduz ao alemão, sem nenhuma preocupação pelo fonetismo das seis P: «OH você, Papa, que devia ser um pai por cima dos outros pais, te vais desvelar com sua iluminação («Ou du papst der du solt senn ein Vater unter aliem andern Vatern hie du wirst offenbahren in deiner Geburt dass...») que você é uma papisa e que por isso te vou levar em alma e corpo comigo e a minha sociedade» . Por outro lado, esta glosa sobrenatural do acontecimento aparece associada à Virgem na crônica do Enrique do Munich: Juana, ao passar diante de São Clemente, dirige um Ave María à imagem da María que está grafite no muro exterior da igreja. E a pintura responde a Juana que, porque foi elevada por cima das mulheres, seu corpo e seu fruto serão malditos («du pist gesegen ueber allens weib de sprach daz püd sou sei dein Leib verfluocht under aliem weiben die suend solt seu niht mer treiben»). Enrique do Munich, autor por desgraça desconhecido, ao tempo que utiliza as flores franciscanas (como se desprende de sua referência à duração do passado: 3 anos, 5 meses e 2 dias, como nas Flores) introduz a um novo ator da sanção (a Virgem), assim como uma qualificação também nova do crime (elevar-se por cima da condição feminina). Este tipo de sanção sobrenatural, indicada mediante um discurso breve milagroso, poderia estar indicando a aparição de fragmentos de uma cultura «popular» no discurso clerical, de tal sorte que o tratamento franciscano do relato, menos «romano» que o tratamento dominicano, leva esta estampagem, reveladora por outra parte da implantação realmente popular da Ordem de São Francisco. Dita hipótese se confirma à vista do desenvolvimento mesmo do relato; nas Flores de 1290, a fórmula adquire sentido no contexto de um pacto implícito entre a Juana e Satã: Juana tem que trocar sua salvação em troca de publicar sua maldade, de maneira que a iluminação significa a um mesmo tempo o triunfo do diabo (a publicação da maldade) e seu desprezo pela Juana. Na versão catalã do Alfabeto dos relatos, do Arnoldo da Lieja (é sabido o grau de penetração dos franciscanos na Cataluña), a imagem da Virgem deixa que Juana escolha entre a sanção imediata (publicação do pecado e morte) e a sanção celestial (condenação). No universo dos contos acham constantemente esse esquema da alternativa entre o sofrimento imediato, mas temporário, e a condenação tardia, mas irreversível, o que em realidade representa uma transcrição narrativa das eleições disponíveis entre as grandes categorias de investimentos existenciais. Desde esta perspectiva, compreenderiam-se as razões do êxito excepcional registrado pelo relato no mundo sud-germânico, onde o episódio eclesiástico encontrou e assumiu uma forma corrente da narrativa popular, caracterizada pelo tema da ambição desenfreada das mulheres (Enrique do Munich) e pelo esquema de eleição entre a inmediatez perigosa e o futuro prometedor. Esta hipótese, que não podemos excluir de tudo, tem seus limites. O folklorismo, como lhe ocorre à filologia, postula um sujeito coletivo e atemporal (o povo já não é ignorante, a não ser narrador), simplesmente invirtiendo o mecanismo de difusão, de maneira que é a Igreja a que se converte em espelho inconsciente e deformador do texto autêntico e primitivo. Mas a estranha particularidade que distingue à tradição franciscana nos convida, ao passar da produção à recepção da fórmula, a renunciar à busca insegura do sentido «original», em troca do sentido adventício, mas historicamente identificável. Desviando a análise metódica da fórmula das seis P, reintroducimos aqui aquele princípio do benefício ideológico que rechaçávamos ao começo do presente capítulo, porque estávamos constrangidos pelos limites da análise estritamente imanente e cultural da difusão do relato. Análise que nos indica como, baixo que formas narrativas e mediante que combinação de azar e de necessidade podia difundir uma lenda no discurso clerical, mas que não nos dizia por que esta lenda era precisamente isso, uma lenda. Os franciscanos e a pseudo-Papa Releiamos a notícia da crônica franciscana do Erfurt. O autor dispõe de tão pouca informação como o próprio Juan do Mailly na mesma época (1255-1260); mas para este último, prevalece a curiosidade («Requer», «para verificar»). Entretanto, ao franciscano lhe invade o temor: o diabo enunciador da fórmula se manifestou dentro da própria cúria, dirigindo-se à Papa. A estrutura fonética da fórmula evidencia o caráter satânico da mensagem: pensamos nessas cinco /R/ que, segundo São Luis, esfolam a garganta do cristão e «representam os restelos do diabo». O cronista, ao contrário do que acontece ao Juan do Mailly, tem uma certeza: «Houve ainda outra pseudo-Papa». A expressão assombra: para o Martín o Polonês, Juana não é uma pseudo-Papa, a não ser uma Papa eleita ilegitimamente; os juristas devem determinar qual é seu estatuto, problema este farto delicado que, como vimos, não conseguiu resolver o cardeal Giacobazzi a finais da Idade Média. Mas os cronistas, e sobre tudo depois do Tolomeo da Lucca, que chamavam a papisa pelo nome do Juan VII ou Juan VIII, tinham resolvido a questão: para eles, Juana tinha sido uma Papa de verdade. Para um franciscano de 1260, a palavra pseudo-Papa encerrava um significado tão denso como preciso, que era necessário esclarecer ao preço de um último desvio (mas Juana é a patrã romana do desvio). A princípios do sigloXIII, Francisco não quis criar uma instituição nova, a não ser converter a toda a sociedade à mensagem autêntica do Cristo pobre. Seu testamento mantém integralmente seu propósito inicial: exigia dos irmãos (franciscanos) a obediência absoluta à Regra, a observância estrita da pobreza e o rechaço de qualquer privilégio. Até sua queda em 1239, o irmão Elías fez que se respeitasse o espírito do Testamento. Mas o Papado, desde o Gregorio XI até o Juan XXII, tentou de maneira cíclica que esta ordem anônima se integrasse na estrutura eclesiástica, apoiando-se nas tendências de dita ordem que se emprestavam ao compromisso, e que mais tarde se chamariam inclinações «conventuales». É preciso calibrar bem o alcance extremo da fascinação que exerceu sobre o conjunto da cristandade a fração «integrista» (os «zelanti», os «espirituais», como se diria mais tarde): ao afirmar sua fidelidade ao Francisco, e à pobreza de Cristo, dita fração cristalizou as imensas aspirações escatológicas e reformistas dos fiéis. A política papal, de 1230 a 1330, mostra-se flutuante com em relação à Ordem, em parte porque a política como tal dependia em grande medida das opções espirituais de cada pontífice, mas em parte também porque o jogo político e eclesialógico, dentro da própria Igreja, dependia de outros grupos, ao tempo que riscava configurações em troca permanente. Os «zelanti» franciscanos representavam por um lado uma ameaça para a instituição da Igreja, dado que propiciavam o fermento dos sucos da heresia urbana; e, por outro lado, com sua disciplina, sua centralização, sua dependência direta de Roma (reforçada com a bula Ordinem vestrum do Inocencio IV em 1245, e a bula Quanto Studiosius do Alejandro IV em 1247), a Ordem oferecia uma aliança muito valiosa contra as pretensões centrífugas das Iglesias nacionais, dos bispos, dos professores universitários ou dos próprios cardeais da cúria. Desde esta perspectiva, resulta compreensível, pois, que essas oscilações papais suscitassem verdadeira perplexidade nos espirituais, dispostos a ver sopro sobre esse Papado cambiante ou ao Espírito Santo ou ao espírito maligno. Por outra parte, a defesa do Estatuto (ou do Testamento do Francisco) constituía uma obsessão para eles, já que procedia da certeza de que a salvação da Igreja dependia desse texto onde se recolhia a perfeição cristã. Em um elogio da perfeição do estatuto dos irmãos menores, um espiritual afirmava que «este estatuto... requer obras mais perfeitas e mais difíceis que o estatuto papal; é mais perfeito e meritório que o estatuto papal». Entre 1254 e 1260 (momento preciso da elaboração da história da Juana no contexto do discurso clerical), dita tensão alcança seu ponto culminante. Enquanto que, até a data, o Papado tinha apoiado constantemente a independência das ordens mendicantes frente aos bispos, tanto na predicación como na confissão (fontes ambas de considerável prestígio e autoridade, e também de ganhos), em 1254, e apressado pela pressão dos bispos, Inocencio IV se viu obrigado a restringir sorte liberdade em sua bula etsi animarum. A Papa morreu poucos dias depois de que se promulgasse a bula, e alguns franciscanos quiseram interpretar o sucesso como um justo corretivo celestial, assim como uma prova do satanismo do pontífice falecido. O sucessor do Inocencio IV, Alejandro IV, anulou a bula, mas a ameaça seguiu planejando sobre a ordem. Recordemos que o concílio do Lyon, celebrado em 1274, chegou a suprimir todas as ordens novas, salvo a dos franciscanos e a dos dominicanos, enquanto que carmelitas e agustinos só obtinham um apoio provisório. O perigo papal era, pois, permanente. O mesmo ano da bula, quer dizer em 1254, as ordens mendicantes (dominicanos e franciscanos) tiveram que sofrer ainda outro ataque, o dos professores seculares da Universidade de Paris, quem tolerava mal a posição privilegiada que desfrutavam dos professores mendicantes. Ao parecer, estes últimos se beneficiavam a um mesmo tempo da liberdade dos regulares, dos privilégios próprios dos universitários -e do prestígio associado aos grandes doutores do momento (Tiram do Aquino, Sorte e Alberto Magno). O detalhe desta ofensiva careceria de interesse aqui se não fora porque Guillermo do SaintAmour, o professor parisino que dirigiu o ataque, arremeteu então contra o franciscano espiritual Gerardo do Borgo São Donnino, quem em 1254 (ano decididamente decisivo para as ordens menores) tinha publicado uma Introdução ao Evangelho eterno. Em dita obra, o franciscano acossado retomava e sistematizava as profecias do Joaquín do Fiore, quem, como havemos dito antes, anunciava o fim do mundo para 1260. É certo que a Idade Média conheceu numerosos fracassos escatológicos75, antes e depois do século XIII, mas não houve nenhum outro autor profético que causasse uma impressão tão forte entre os fiéis como Joaquín. De fato, sua obra, remoçada, difundida, completada e comentada abundantemente pelos franciscanos, inseria-se em um sistema exegético complexo e coerente, que se apoiava a sua vez na grande cultura teológica do abate calabrês. Por outro lado, sua percepção da chegada do fim do mundo adquiria um sentido muito particular em uma época em que até os espíritos mais elevados estavam penetrados dos princípios da economia histórica da salvação, cujas bases, como demonstrou o pai P. Chenu, sentaram-se no século XII. Nesta ordem de coisas, Brian Tierney sublinhou a sua vez o fato de que, por volta de 1250 precisamente, a eclesiología histórica adquire carta de natureza no âmbito da teologia. Além disso, o tratado do Gerardo do Borgo São Donnino apresentava aos franciscanos como apóstolos do iminente reino do Espírito Santo, dado que os escritos e a regra do Francisco constituíam o Terceiro Testamento, o do Espírito Santo. Assim, Francisco assumia o papel do Anjo do sexto selo do Apocalipse. O mesmo ano da publicação do tratado do Gerardo, em 1254, Guillermo do Saint-Amour replicou com o texto De periculis novis simorum temporum («Dos perigos nos tempos recentes»), no que ridicularizava o medo e o entusiasmo escatológico dos franciscanos, atitudes ambas que em opinião do professor parisino constituíam os verdadeiros perigos da época. Mas o assalto dos professores de Paris fracassou em 1257 obrigado, ao enérgico apoio que Alejandro IV emprestou aos irmãos menores, reforçando inclusive sua posição na Universidade com a bula Quasi lignum vitae. Não obstante, o ano 1254 tinha demonstrado a quão espirituais a Igreja exterior podia estar encabeçada por uma Papa maléfica (Inocencio IV) e também por uma Papa espiritual (Alejandro IV); distinção que, por outra parte, guardava estreita relação com as profecias joaquinofranciscanas, segundo os quais a chegada do fim do mundo estaria precedida pelos reinados de uma pseudo-Papa e de uma Papa angélica. Um dos três grandes inspiradores do movimento espiritual (junto com Anjo Clareno e Hubertino de lhe Case), foi Pedro do Juan Olivi (1248-1298), quem, um pouco mais tarde, vincularia da seguinte maneira o anúncio escatológico com a atualidade eclesiológica: «O (= o Anticristo) estabelecerá como pseudo-Papa a um falso religioso quem dogmatizará contra a regra evangélica e imporá uma dispensa enganosa (a dispensa se aplica ao voto de pobreza absoluta, constantemente minado pelas Papas depois da bula Quam elongati, publicada em 1321 pelo Gregorio IX). A crônica do Erfurt, datada por volta de 1260, parece, pois, refletir o medo real que existia ante a possibilidade de que uma pseudo-Papa usurpasse a Santa Sede. O narrador não põe em dúvida a existência da pseudo-Papa feminina e se limita a perguntar-se a respeito da precisão de data e de duração de papado, precisão de importância capital para o cômputo escatológico. A breve nota franciscana insiste sobre a oposição das aparências e da realidade («latuit»: se ocultou us «publique»: publicamente; «in ypocrisi magne vete»: e sob a aparência enganosa de uma conduta perfeita). A fórmula das seis P cristaliza esta oposição, exigindo à Papa («Papa») (forma neutra institucional) que descubra o parto da papisa («papessa»: o mesmo indivíduo em sua realidade satânica feminina). Nesta versão aterradora, o diabo mais que denunciar provoca, já que ao desdobrar ao pseudo-Papa em uma Papa e em uma papisa, consegue que ambas as figuras se poluam reciprocamente melhor. A versão das Flores temporum, interpretada mais acima como folclórica, também (e sobre tudo) desenvolve o sentido do triunfo satânico na Igreja: a posse diabólica do corpo da Juana forma parte do plano diabólico, pois o Maligno ocupou esse corpo para publicar seu triunfo. O anunciado dominicano se apresenta então com um significado bem distinto: a inscrição lapidária (não satânica) dirige-se ao Pedro, em sua condição de figura matricia e eterna da Igreja que um mero embora deplorável incidente não pode sacudir; por isso, a inscrição, cujo valor preventivo sublinha Esteban do Borbón, inca à vigilância. O texto da fórmula, inscrito sobre pedra e no Pedro (como diz o jogo de palavras institucional do Jesus), afirma a solidez do Papado, além do contingente. Para a neutralização a Dominica, apesar da poderosa rede de pregadores, não podia eliminar do todo um aspecto capital da vida secreta da papisa; a aventura da Juana, que se relata por volta de 1260, servia de ensaio general para o grande drama dos franciscanos, avocados a um grande futuro até o ano 1330. A Papa angélica e pseudo-Papa: a junta de 1294 No ano 1294 tem lugar um acontecimento capital que contribuiria um sentido novo ao caso da Juana —tal e como o tinha definido Martín o Polonês em sua qualidade de jurista—, ao dar uma nova forma ao casal pseudo-papa/papa angélico. Em efeito, em 1294, e depois de 27 meses de sede vacante por falta de acordo na eleição de uma Papa, o conclave decide levar a cadeira pontifícia a um ancião de 85 anos de idade, Pedro do Morrone, beneditino dos Abruzzos e fundador de uma comunidade eremítica, que vivia retirado do mundo desde fazia oito anos, a cristandade, depois de tantos debates sobre a pobreza, punha como sua cabeça visível ao Celestino V, o homem que melhor encarnava a volta à letra de Cristo, mas também o administrador menos hábil que caiba imaginar. O tortuoso e ardiloso cardeal Benito Cayetano conseguiu que abdicasse rapidamente, para lhe acontecer, em 13 de dezembro do mesmo ano, com o nome do Bonifacio VIII. O acontecimento despertou grande inquietação no seio da cristandade, que se perguntava: pode abdicar uma Papa que foi designado pelo Espírito Santo?, ou, o que fazer com uma Papa inadequada, mas eleito canonicamente (caso da Juana)? Logo se chamou o Celestino V a Papa angélica, e em função de uma aproximação inevitável, Bonifacio VIII bem podia passar pela «pseudo-Papa» que desaloja com artimanhas à Papa angélica. De fato, Jacobo do Todi lhe chamou «pseudopresul» (pseudo-prelado). A sucessão tumultuosa de duas Papas tão opostas, constitutiva por si mesmo de um paradigma concreto (o prelado vs. o eremita; a autoridade vs. a humildade, etc.), provocou posicionamentos cortantes, embora seja verdade que numerosos fiéis se mantiveram à margem dessa busca da Papa «má» (Celestino ou Bonifacio). Jacobo de Voragem, por exemplo, em sua Crônica da Genova, redigida pouco tempo depois do acontecimento, adota uma postura institucional reconhecendo a um tempo os méritos e as incapacidades do Celestino V. Por sua parte, o bispo Bohemundo do Tréves, em sua gesta episcopais, ilustra sorte postura comparando o casal Celestino/Bonifacio à formada pela María e Marta, e depois com o Raquel e Leoa. A comparação não é casual, pois durante a Idade Média esses casais bíblicos de mulheres freqüentemente ilustravam o complemento necessário de uma atividade industriosa e ingrata mas necessária (Marta, Leoa), e da meditação iluminada mas a sua vez inativa. Neste sentido, não podemos por menos que admirar o uso sutil e retorcido que faz Bohemundo da narração bíblica: na Gênese, Jacob quer desposar-se com a formosa Raquel e não com sua irmã Leia; mas Labán, pai das duas irmãs, substitui a uma por outra mediante engano. Vemos, pois, que o papel de Bonifacioleia (servidor fecundo e desgracioso) justifica-se, ao tempo que sugere o emprego do engano em detrimento do Celestino-Raquel. Por um lado, a substituição forma parte dos planos divinos, e, por outro, não impede o matrimônio ulterior do Jacob com o Raquel, matrimônio fecundo tardiamente e portador de novas esperanças. A virtuosidad «dialógica» do Bohemundo de vertigem e deve nos dissuadir de qualquer consideração sobre a pretendida esterilidade do lugar comum na Idade Média. A idéia franciscana da pseudo-Papa tinha penetrado o suficiente na Igreja como para que não se adotou o costume de classificar às Papas em bons e maus. Arnoldo da Lieja, em seu estilo compacto de autor da Exempla, antes de evocar um episódio da vida do Gregorio o Magno, anota «bonus Papa» («boa Papa»); a avaliação dos pontífices formava já parte dos costumes eclesiásticos. Mas, por uma dessas raridades que tanto abundam na história, o mais destacado dos franciscanos espirituais, Pedro do Juan Olivi, apoiou ao Bonifacio VIII. Este apoio que o enfrentou com os principais espirituais, tem sem dúvida sua explicação em uma concepção radical da infalibilidade papal, cuja análise nos ocupará mais adiante. A esta circunstância terá que acrescentar considerações de caráter tático, já que ao início de seu pontificado Bonifacio VIII se erigiu em defensor dos espirituais, e, quatro anos antes, em 1290, foi delegado pela Papa franciscano Nicolás IV para apoiar a causa dos irmãos menores em Paris. Como revanche, a maioria dos dominicanos tomaram partido contra Bonifacio VIII. Pregadores influentes, como Juan Quidort (Juan de Paris), autor de um temível tratado contra Bonifacio VIII e as pretensões hierocráticas que dita Papa propugnaba contra o rei da França, Felipe o Belo, inclinavam-se por uma restrição do crescente poder de um Papado, de que tinham menos necessidade que os próprios franciscanos. Os pregadores do convento do Saint-Jacques de Paris assinaram as condenações fulminantes que Felipe o Belo lançou contra Bonifacio VIII. As tendências fioespirituais (ou pelo menos reformadoras) de alguns dominicanos, menos cimentadas que as da Ordem de São Francisco, não tinham sofrido os ataques papais, de maneira que bem podiam, ditos pregadores, mostrar sensibilidade ante a imagem eremita e austera do pontífice abruzzés. Tal é o caso do Roberto do Uzès, um dos primeiros em dar testemunho do rito de verificação da virilidade das Papas, quem, como vimos, associa suas terríveis visões ao acontecimento de 1294; em sua visão XXXIIa («Sobre a usurpação e o furto de uma Papa soberana») interpreta da seguinte maneira as escuras cenas de violência: «Depois, e ao cabo de vários dias, soubemos que o senhor Papa Celestino tinha renunciado ao Papado e tinha retornado a sua vida de eremita; vários dias depois, soubemos que Benito era eleita Papa». O possível paralelo esboçado entre a Juana e Bonifacio, estes dois usurpadores ardilosos, está presente no texto de Leão do Orvieto. Este dominicano, do que só se conhece sua modesta carreira na ordem (leitor e viceprior no Orvieto, entre 1287 e 1295; visitador dos conventos da Toscana em 1304; prior do Tivoli, Curtinha e Arezzo, onde morreu por volta de 1315), sem dúvida logo que tomou parte nas lutas italianas entre o Bonifacio e os cardeais Colonna, mas em sua Crônica sobre os tempos e as gestas das Papas romanas, onde, como vimos, reproduz a notícia do Martín sobre a Juana, relata o Papado do Celestino nos seguintes términos: «Quis reconduzir aos cardeais a seu antigo estatuto; todos os cardeais deviam cavalgar em singelos asnos. Por esta razão, um dos cardeais, que se chamava professor Benito Cayetano, homem ardiloso em todos os âmbitos e cheio de malícia, enviou, durante a noite, a uns meninos ao telhado da mansão onde repousava o pontífice; estes chamavam o pontífice e lhe diziam que se encontrava em um estado perigoso, a ponto de perder sua alma, e que só poderia salvá-la abdicando. Então o pontífice, para ouvir essas vozes que ele acreditava procediam dos anjos, e depois de consultar aos cardeais, abdicou, e o professor Benito Cayetano, inventor deste engano, foi eleito para o pontificado supremo». A anedota conjuga o aspecto angélico e inocente da boa Papa Celestino com a astúcia ambiciosa e enganosa do que, mediante o disfarce angélico, obteve o pontificado. Mas, mais à frente do antagonismo entre franciscanos e dominicanos, e além das lutas entre o sacerdócio e a realeza, o atentado do Anagni (1303) que põe fim violentamente ao Papado do Bonifacio VIII e as pressões sobre o Celestino V, sacudiram gravemente a instituição papal. Os partidários de uma e outra Papa apelavam, respectivamente e cada um por sua parte, à necessidade da salvação da Igreja como justificação ao feito de que pudesse ficar fim a um pontificado. Juana, protótipo de uma Papa ilegítima por servir-se da astúcia ambiciosa ou por exemplificar a uma Papa prejudicial para a boa conduta da Igreja, servia a todas as causas. Esta brecha pela que passava Juana se converteria, três quartos de século mais tarde, em um cisma. Juana, patrã da infalibilidade papal A carreira da Juana não se detém aí e, graças a uma paradoxo prodigiosa, a papisa contribuiu à colocação da noção da infalibilidade papal. Brian Tierney desmontou com brilhantismo o mecanismo desta construção ideológica, processo que seguiremos sem perder de vista a Juana. O primeiro ponto do estatuto para os franciscanos espirituais era o da pobreza absoluta prescrita pelo Francisco, e chave de seu papel escatológico. Desde 1231 tiveram que opor resistência aos paulatinos acertos introduzidos pelo Papado e pelo ramo «conventual» da ordem. São Sorte (1221-1274) tentou uma reconciliação entre os «zelanti» e os conventuales, redigindo uma vida adoçada do Francisco, glosando livremente a Regra e fazendo que no capítulo da Narbona (1260) aprovasse-se o «uso pobre», o emprego moderado («usus pauper») dos bens; esta via intermédia («via medeia») não pôde manter-se depois da morte de Sorte em 1274, e os franciscanos conventuales atacaram a doutrina mesma da pobreza. Como reação, Nicolás III (1227-1280) promulgou em 1279 a bula Exuit qui seminat com a que impunha a volta ao espírito e à letra do testamento do Francisco. Os espirituais se sentiram muito agradecidos, interpretando a decisão papal como resultado da inspiração divina. Pedro do Juan Olivi tentou então situar o texto do Nicolás no âmbito de uma tradição intocável, sagrada, afirmando que a Papa, herdeiro do Jesus e do Pedro, não podia errar em matéria de fé. Desta maneira, contribuía uma solução radical ao velho problema da delimitação em assuntos de fé, motivo permanente de debate (devia o cristão considerar como matéria de fé unicamente as Escrituras, ou as Escrituras e a Tradição? Dos escritos dos Pais e/ou dos primeiros textos conciliar? E/ou da doutrina papal?). Os espirituais se somaram resolutamente à obra doutrinal das Papas, afirmando assim, por primeira vez, a infalibilidade papal. A bula Exuit qui seminat não era simplesmente um texto louvável, mas sim se tratava de um texto absolutamente santificado pela infalibilidade. Mas então, como condenar as posturas dos sucessores do Nicolás III que duvidavam ou duvidariam da bula ou do estatuto da ordem? Simplesmente retornando à escatologia dos anos 1250: qualquer Papa hostil ao estatuto se autodesignaba como pseudoPapa, «ipso dito». Por direito divino, a Igreja universal e sua cabeça, a Papa, não podiam equivocar-se nunca; mas de fato, uma pseudo-Papa, um pseudo-concilio, uma pseudo-cúria, uma pseudo-igreja, podem obliterar a vida santificada da verdadeira igreja, que então pode, a sua vez, e sem chegar a desaparecer jamais, reduzir-se, a julgamento do Pedro do Juan Olivi, a alguns fiéis e a algumas mulheres e meninos. Esta assombrosa construção teológico-eclesiológica (que não deve reduzir-se a uma argúcia argumental) aparece claramente, em relação a Juana, na obra do Guillermo do Ockam. Ockam, sem dúvida o maior filósofo do século XIV, nasceu a finais do século XII no condado do Surrey, na Inglaterra. Ingressou muito em breve na ordem franciscana e realizou seus estudos na Universidade de Oxford entre 1312 e 1318. Seu comentário sobre as Sentenças do Pedro Lombardo em Oxford (1318-1320) conduziu-lhe uma série de complicações que dariam um giro definitivo a sua carreira. Em efeito, a cúria convocou ao Aviñón para que se explicasse a propósito de determinadas posturas teológicas que pareciam suspeitas. Ockam chegou ao Aviñón em 1324 onde permaneceu quatro anos. Ali conheceu o Miguel da Cesana, general da ordem, igualmente convocado como suspeito de heresia, já que, desgraçadamente, o tema da pobreza tinha ricocheteado de maneira dramática. Clemente V (1305-1314), ao tempo que apoiava ao Ubertino de lhe Case, tentava renovar a reconciliação de São Sorte, justificando o emprego moderado dos bens, em sua bula Exui de paradisio (1312). Por sua parte, Juan XXII, eleito em 1316, canonista estrito e pouco místico, mostrou-se em principio a favor dos espirituais, mas logo lhe irritaram com seu extremismo: em 1317, exigiu a submissão aos conventuales (bula Quorumdam exigit), e em 1318 foram queimados quatro espirituais. Hubertino de lhe Case abandonou a ordem, e Anjo Clareno se refugiou com seus discípulos, os «fraticelli», nas montanhas da Itália central. Não obstante, a resistência se mantinha viva, já que o ministro geral da ordem, Miguel da Cesana, em um princípio conventual, aconteceu com a corrente espiritual. Juan XXII tomou a decisão de terminar com esse ciclo de compromissos e de condenações, e de esvaziar o debate com uma decisão de fundo: em 1322 publica a bula Quia Nonnumquam, em que demonstrava que tanto Cristo como os Apóstolos tinham desfrutado de posses. O capítulo geral franciscano, reunido na Perugia esse mesmo ano, contradisse explicitamente ao Juan XXII quem, como bom administrador, replicou a sua vez com a bula Ad conditorem canonnum (1322); desta maneira suprimia a ficção jurídica da posse papal dos bens franciscanos: definitivamente aos fundamentos teológicos do debate com a bula Cum inter nonnullos (1323). Miguel da Cesana, que tinha chegado Aviñón para explicar-se, fugiu em companhia do Guillermo do Ockam em 26 de março de 1328, acusando à Papa de heresia. Ambos os franciscanos se instalaram então na corte do Luis da Baviera, no Munich, onde se encontraram ao Marsilio da Pádua, resolvido opositor do pontífice do Aviñón. Na corte bávara, Ockam redigiu uma série de libelos contra Juan XXII, antes de morrer no Munich em 1350 . Em 1322, Ockam tinha redigido a Opus Nonaginta dierum («A obra de 90 dias», chamada assim pela duração de sua redação). Este tratado consiste em um imenso comentário (mais de mil páginas impressas nas edições atuais) da bula Quia vir reprobus, lançada fulminantemente em 1329 contra Miguel da Cesana e seus companheiros. No capítulo 124 e último, Ockam chega ao lance final da bula, onde se declara hereges aos espirituais; neste ponto, o franciscano volta a acusação contra a Papa, estabelecendo cuidadosamente o crime de heresia como um engano explícito, manifesto e renovado. A falta da Papa coincide precisamente com todos esses critérios, de maneira que se faz necessário apelar à cristandade e evitar qualquer contato com a Papa, já que o cristão que trate ao Juan XXII como a pontífice não poderá escapar a sua vez da acusação de heresia: «E de quanto precede os acusadores (= impugnatores, os assaltantes, os verdadeiros cristãos, os espirituais) concluem que o acusado («impugnatus», Juan XXII, a quem não lhe chama de outro modo em nenhum momento ao longo de todo o tratado) deve ser evitado («vitandus»), por necessidade da salvação, por todos os que sabem que ele é herege. Mas aqueles que ignoram que ele é herege, não porque amassem uma ignorância crassa e preguiçosa estão em modo algum desculpados do pecado mortal mais grave. Aqueles que ignoram que ele é herege, se amassarem uma ignorância verossímil e invencível por razão da ignorância do fato parecem desculpados de comunicar com o acusado e de lhe obedecer. Quanto a esta questão de evitar ou não, vale o mesmo a propósito do acusado e da mulher que se acreditou era um homem e que foi elevada ao pontificado. Em efeito, aqueles que, logo, souberam que eram uma mulher, não deviam lhe considerar Papa. Mas aqueles que ignoravam e amassavam uma ignorância invencível, que a faziam passar por Papa, ficavam desculpados, por sua ignorância, de lhe haver considerada Papa. O mesmo vale para o acusado, já que não tem maior autoridade verdadeira que a que tinha essa mulher que, como dizem as crônicas, foi venerada como Papa pela Igreja universal durante dois anos, sete meses e três dias» . Hei aqui, pois, a Juana, arrolada pelo Ockam como protótipo do Juan XXII, como imagem da pseudo-Papa que pode criar uma ilusão. A inexistência do Juan na Igreja (a verdadeira Igreja) é tão real e está tão dissimulada como a da própria Juana. Mas esta ilusão factual, esta confusão dos sentidos, não empana para nada a certeza de que a Igreja universal e a Papa (o verdadeiro) não podem equivocar-se jamais: «E se alguém diz que a coisa (= a inexistência real do Juan XXII) não pode existir porque a Igreja universal não pode equivocar-se, a isto os acusadores respondem que no âmbito da fé e dos costumes, a Igreja não pode equivocar-se; mas, que no âmbito do fato, a Igreja militante pode errar e ser enganada. É assim que se equivocou venerando a uma mulher como Papa» . Ockam continua com outros exemplos: Anastasio II, Silvestre II, e em total 27 Papas teriam enganado à Igreja. Juana constitui a primeira referência e principal porque, nesse caso, a ignorância do fato se comprova claramente, sem necessidade de referir-se a uma escala de delitos ou de faltas. Ockam retomaria este tema dez anos mais tarde, em seus Octo quaestiones de potestate pape («Oito questões sobre o poder da Papa») (1340-1342). No capítulo 17 de dita obra demonstra que é lícito levar a Papa até a justiça e apelar suas decisões em caso de heresia, porque a «Papa» já não pertence ao corpo da Igreja: «portanto, nenhum herege é a verdadeira cabeça da Igreja, inclusive se se pensa que o é; ao igual à mulher que se acreditou era o pontífice durante dois anos tampouco era a verdadeira cabeça da Igreja, apesar de que todos o tenham pensado» . A argumentação franciscana transcendeu ampliamente os limites da mera subversão espiritual. O esquema institucional que articulava a infalibilidade e a impostura, e que nos encontramos em um contexto completamente distinto —a Rússia zarista dos séculos XVI ao XVIII—, brilhantemente analisado pelo Claudio Sergio Ingerflom , teve no carmelita Guido Terreni uma aplicação protopontificia e absolutista imediata. Do mesmo modo, um século mais tarde, e a pesar do grande trauma do Cisma, os dois grandes pilares da monarquia papal no século XV, Tiram da Torquemada e Antonino de Florência, recuperaram a argumentação franciscana e sua ilustração juanista. O ilustre cardeal dominicano, Tiram da Torquemada (1420-1498), em seu Summa da Ecclesia («Suam sobre a Igreja» utiliza términos muito próximos aos que empregasse Ockam em suas Oito questões: «Posto que está estabelecido que um dia o conjunto dos católicos teve por Papa a uma mulher, não resulta incrível que um dia um herege possa ser considerada Papa, embora não seja a verdadeira Papa ("verus Papa")» . um pouco antes, a princípios do século XV, o arcebispo dominicano de Florência, São Antonino, tinha incluído a história da papisa (segundo a versão do Martín o Polonês) em sua Crônica, e a comentava utilizando a distinção ockamista entre o fato e a fé, distinção de importância capital para a difusão da história da Juana: «Mas se a história é certa, não é prejudicial para a salvação, já que durante esse tempo a Igreja não ficou privada de sua cabeça, que é o Cristo; Ele a sustentou na corrente da graça; e os efeitos últimos dos sacramentos que ela ( a papisa) administrava tiveram efeito para quem os aceitou dela com devoção, porque os receberam da graça. É certo que esta mulher, como de fato nenhuma outra mulher, não podia levar o estigma de nenhuma ordem sagrada, nem de distinguir a eucaristia; também é certo que não podia praticar "de facto" a ordenação nem absolver os pecados; e portanto os fiéis nada receberam que ela. Não obstante, Cristo supria com sua graça os sacramentos de quem os recebia dignamente; e a ignorância do fato ("ignorantia facti") desculpava-lhes da falta» . Esta distinção entre o fato e a fé podia conduzir a separar a obra (inspirada pelo Espírito Santo) de seu autor (um indivíduo usurpador presente fisicamente, mas cuja falta de graça a supre o Espírito Santo ou o mesmo Cristo). Nesta ordem de coisas, Leão do Orvieto, depois de chamar usurpador ao Bonifacio VIII, e depois de assinalar que gotejava maldade e astúcia, orgulho, avareza e avidez, declara que «compôs o sexto livro das lhes Decrete que contém numerosas coisas boas e úteis» . Em conseqüência, poderíamos nos perguntar se a referência do Juan do Mailly ao Jejum do Témporas (instituído pela papisa, e conservado pela liturgia católica) não ilustraria esse desdobramento. Há autores que inclusive atribuem a Juana a composição dos prefácios da missa; Martín Lefranc, por exemplo, preboste da Lausana por volta de 1450, e secretário das Papas Félix V (o antipapa Amadeo VIII da Saboya) e do Nicolás V, menciona em términos elogiosos a susodicha atividade litúrgica da Juana, isto é os prefácios, em seu poema francês O campeão das damas: «Mas deixemos os pecados, diciendo/Que era clériga ilustrada/Cuando ante os mais cualificados/De Roma teve a saída e a entrada/Todavía te pode mostrar/Numerosos prefácios que dictó/Hermosa e santamente engalanados/De os que jamais duvidou a fé» . Juana nas fronteiras A construção do Ockam e dos espirituais não determinava uma partilha entre a ortodoxia e a heresia, mas sim alimentava, ou em qualquer caso desenvolvia, um espectro permanente no processo de avaliação: os pontificalistas mais ardentes reduziam o engano do fato a alguns acidentes isolados; para os espirituais, entretanto, ditos enganos eram cada vez mais freqüentes à medida que se aproximava o fim do mundo; e, por último, só bastava vinculando entre si as imposturas para que se convertessem em história, e chegar assim à conclusão herética de que a Igreja aparente constituía uma mentira permanente, e, em definitiva, um impedimento para a verdadeira Igreja. Do cisma bávaro à secessão herética não havia mais que um passo, e foi Wyclif quem franqueou a barreira, tomando à desgraçada Juana como refém. Trinta anos depois do Ockam, Wyclif (1330-1384) conheceu um destino bastante análogo ao do franciscano inglês, mas com a diferença capital de que ele, Wyclif, não ingressou na ordem de São Francisco. Pelo resto, também se educou em Oxford, também contou com o amparo de um monarca antipapal, neste caso o rei da Inglaterra, e também foi condenado. Suas respectivas eclesiologías apresentam rasgos comuns e ambas se apóiam em uma oposição entre a Igreja aparente («visível» segundo Wyclif) e a Igreja real. Mas enquanto que para o Ockam dita oposição é contingente e pode reduzir-se no momento em que à cabeça da Igreja se encontre um pontífice como Nicolás III, para o Wyclif se trata de um problema permanente que reforça o desdobramento eclesiástico. Mas, o que é mais, Wyclif entende que a predestinação faz que o papel da instituição, quer dizer da Igreja, seja por completo secundário. De maneira que, enquanto que o nominalismo do Ockam lhe permitia essa bela construção católica que fazia que se deslizassem um sobre outro os planos da realidade eclesiástica, integrando assim todos os dogmas cristãos, o rude e sumário realismo do Wyclif lhe conduzia sem duvidá-lo à separação, à secessão, ao rechaço da transubstanciación, e, em definitiva, à dura tautologia reformada (escolhido-los são os Escolhidos). A partir de então, o papel da papisa, que Wyclif chama Ana, consiste em provar a decadência progressiva da Igreja romana. Em 1382, e em um opúsculo contra a cruzada (Cruciata) organizada por Urbano VI o iniciar o Grande Cisma, Wyclif relata o episódio da papisa para negar todo poder espiritual à cúria: «Nas crônicas apócrifas se destaca freqüentemente que a assembléia dos cardeais foi enganada a propósito do sexo de uma Papa, escolhendo como Papa a Ana, quem estava grávida; seja como for, o certo é que se pode enganar à assembléia de cardeais até o ponto de escolher Papa a um demônio que odeie a memória de Cristo e transtorne a Igreja» . depois de recordar o precedente do Judas, Wyclif concluía afirmando que só os atos de um homem autorizam uma «hipótese provável» sobre seu poder espiritual; em conseqüência, a Igreja não goza já de nenhuma graça. A Juana do Ockam flutuava sobre o plugue de cortiça do «fato», e o feliz nadador franciscano, levado pela corrente da graça crística e eclesiástico pôde evitá-la, como de fato «evitou» ao Juan XXII; mas a Ana do Wyclif amarra seu lastro satânico à Igreja e lhe faz sombra. Juan Hus (1369-1415) radicaliza ainda mais a postura do Wyclif e termina de comprometer a nossa papisa. Utilizou a história da Juana, a quem chama Inés, em sucessivas .ocasiões; tomemos a última, a mais dramática, a que figura em sua defesa a raiz do processo que se seguiu contra ele na Constanza em 1415, e que pudemos conhecer graças ao relato emocionante de seu discípulo Pedro do Mladonovic : em 8 de junho de 1415, o tribunal verifica a autenticidade de certas proposições extraídas do tratado do Hus, Da Eclesia («Sobre a Igreja»); de acordo com o capítulo 14.° da acusação, que se refere a sua vez ao capítulo XIII, ao parecer Hus tinha pretendido que o pontífice só era o chefe de uma igreja particular, salvo no caso de que estivesse destinado Por Deus. Hus se reafirma no dito com o seguinte argumento: «É evidente, de outro modo a fé cristã seria embusteira, como quando a Igreja foi enganada pelo Inés.» O mesmo dia, Hus repetiria seu argumento quando se estava examinando o primeiro artigo de seu tratado contra Estanislao do Znojmo. Mais tarde, e a propósito de artigo 4.°, o acusado acrescentaria: «Graças a seus discípulos repartidos por todo mundo, Cristo governa melhor a Igreja sem essas cabeças monstruosas (= a Papa e os cardeais). De outro modo, como teria podido a Igreja, em tempos do Inés, ver-se privada de cabeça, se não tivesse sido porque vivia de seus membros, que são quem goza da graça de Cristo?» Repete a mesma formulação no curso da audiência celebrada em 18 de junho. Em 6 de julho de 1415, Juan Hus morria devorado pelas chamas da fogueira. O perigoso desenvolvimento da maquinaria franciscana, que contribuía a um mesmo tempo à instauração da infalibilidade papal e ao rechaço radical da legitimidade sagrada de Roma, tem-nos feito cruzar, quase sem nos dar conta, o momento crucial do Grande Cisma (1378-1415). Entretanto, foi então quando Juana desempenhou seu último papel católico; era um papel mais modesto que o que tinha desempenhado na grande dramaturgia franciscana, já que Juana teve que contentar-se com o emprego jurídico (e já não eclesiológico) criado para ela pelo Polonês. Durante este período no que os juristas enfrentados rivalizavam em virtuosidad demonstrativa, o caso da Juana só tinha o valor de uma ilustração. Os professores de Oxford, a quem em 1399 a universidade de Paris sugeria que se sustrajeran da obediência, apoiando-se em casos precedentes (Anastasio II, Calixto II), replicavam que o direito diz o que deve ser, não o que é . Sigamos, pois, essa última etapa da carreira clerical da Juana. Juana no Cisma Em 7 de abril de 1378, Bartolomé Prignano é eleita Papa com o nome de Urbano VI. O conclave, detento de suas divisões internas, debate-se em muito dúvidas; por sua parte, o povo romano se impacienta e inquieto ante uma possível marcha ao Aviñón exige uma Papa italiana e ameaça. Estalam as revoltas, e o conclave treme até o ponto de disfarçar de Papa ao velho cardeal Tebaldesqui para aplacar a exigência popular. Mas Urbano VI, eleito em um clima de divisão e de obrigação, e, o que é mais, em ausência do poderoso cardeal francês, Juan da Grange, logo desagrada à cúria por sua baixeza, que deseja livrar-se dele e lhe ameaça a demitir; Urbano se nega. Mas Juan da Grange, de volta já a Roma, promove a eleição de uma nova Papa na pessoa do Roberto da Génova, quem toma o nome de Clemente VII. Ao não poder ocupar a sede de Roma, Clemente teve que instalar-se no Aviñón, dando assim lugar ao Cisma. As nações cristãs se dividiram entre as duas obediências (urbanistas e clementista, romana e aviñona), mas o rasgo tem raízes mais profundas, posto que está instalado no coração mesmo das consciências cristãs. Entre 1378 e 1415, toda a cristandade discutirá sobre a legitimidade e o poder papal em um debate sem fim, e Juana aparecerá nos argumentos mais variados. Porque, de fato, a papisa se disposta a todas as soluções que contemplem a conclusão do insuportável cisma, conclusão que, segundo os contemporâneos, poderia alcançar-se através de três vias: a Via factis, a Via cessionis e a Via conventionis. — Via facti (Via de fato). Em um princípio se pensou que cada partido podia esmagar ao outro. Esta denominação bélica (o «fato») citava implicitamente a aventura da Juana em sua versão ockamista: uma Papa ilegítima refletia o fato, e não a fé ou os costumes. antes de que Martín o Polonês fizesse morrer a Juana nos dores do parto, Juan do Mailly e Esteban do Borbón apresentavam como um fato normal sua lapidação sem julgamento de mãos do povo e da Igreja de Roma. — Via cessionis (Via do retrato). Em 1395, a corte da França, que em seu dia impor a obediência clementista à Universidade de Paris, deixou-se convencer por esta última de que a solução da crise passava por retirar sua adesão às Papas do Aviñón (Clemente VII, e logo seu sucessor Benito XIII). Esta «sustracción de obediência» (que segundo Bernard Guenée deve traduzir-se por «negativa de obediência» o que permite medir melhor seu terrível alcance) , levava, de fato, à deposição da ou das Papas, em caso de que não se obtivera sua abdicação; mas esta via pertencia ao âmbito jurídico. A história da papisa sugeria que a cautela era necessária por partida dobro. Por um lado, podia anular uma eleição pontuada de ilegalidade; e, por outro, devia sobressair o interesse da Igreja e autorizar a destituição em caso de escândalo. O primeiro argumento se remontava a 137, quando os cardeais franceses fizeram prevalecer seu critério sobre a eleição de Urbano VI: uma eleição imposta pela pressão popular, e obtida sob o império do temor («timor»: caso canônico de nulidade de decisão), carecia de valor. Vários anos mais tarde (e antes de que a França abandonasse às Papas do Aviñón), Felipe do Mézières recorria precisamente à lembrança da Juana para sustentar idêntico argumento no Sonho do velho peregrino (por volta de 1386). Felipe, antigo conselheiro do Carlos V da França, e antigo chanceler do Chipre, consagrou os últimos anos de sua vida à devoção e à redação desta magna obra, onde pregava a necessidade de uma reforma geral da cristandade, incitando não só a volta às cruzadas, mas também também à resolução do cisma. No primeiro livro da obra, o Velho Peregrino, por nome Ardente Desejo, escoltado pela Boa Esperança, parte em busca da Rainha Verdade até o fundo do deserto egípcio, para convencer a de que retorne a viver entre os homens e ficar com eles. Reina-a aceita pôr a prova à Cristandade percorrendo o mundo, para encontrar um lugar digno de sua estadia. A busca do assentamento ideal, tão imensa como vã, desenvolve-se, pois, da Índia até os Países Baixos, e o passo por Roma oferece a nossos viajantes o espetáculo de um desfile de homens com cabeças de animais. Verdade não pode suportar por muito tempo a presença das três deidades que ali se veneram: a Ambição, a Simonía e a Avareza. Pouco depois, chegam ao Aviñón, onde se encontra um consistório dominado à maturação pelo Orgulho, a Avareza e a Luxúria. Esta última, Luxúria, ao lhe descrever a Verdade seu ascendente sobre a corte papal, diz-lhe: «Senhora reyna, como lugar-tenente de nosso Pai [Deus] em aquesta corte da Rorama, eu fize reynar a uma mulher, quem era vinda da Inglaterra» . Pouco depois, Ardente Desejo se serve desta alusão para sugerir a sua vez um programa que resolva o cisma: «para que finalizem portanto as grandes duvida e perigos da sorte divisão e dos argumentos sutis dos Ytalianos e até de outros da parte contrária.» Em efeito, os cardeais podem desfazer uma eleição papal em caso de engano ou de pressão física: «Aqueles têm um poder tal que se ao escolher ao soberano pastor são enganados de algum modo, já que são homens, por ignorância, como o foram pela mulher que foi Papa, ou por razoável medo e manifesta opressão, como em nosso caso aconteceu, ou por simonía e outros casos vários escriptos em decretos e divina escriptura, os ditos cardeais têm pleno poder para retratar suas dificuldades sem autoridade de outro, e facer nova ou novas eleições válidas segundo o direito divino e positivo» . Em um contexto diferente, e longe dos assuntos próprios da França e do Aviñón, encontramos de novo este tipo de argumento, quando se tratar de rechaçar a outra Papa supernumerário. Dietrich do Niheim, algo dignatario da Igreja, e que já tinha dado conta da história da Juana em sua História das gestas dos imperadores romanos , apresentava assim o direito a desfazer uma eleição papal, ao dirigir-se ao Juan XXIII (1410-1415), quem tinha acontecido ao Alejandro V como «terceira Papa» eleita a abdicar depois do fracasso da operação: «E se o senhor Papa diz: "celebrou-se em Pisa em um concílio verdadeiro, santo e justo; o que ali se decidiu é santo e justo e os dois que foram rechaçados (Gregorio XII o romano e Benito XIII o aviñonés) não devem ser escutados". (Resposta) "O concílio pode ser santo e justo, mas a eleição que do mesmo resulta pode ser nula por numerosas razões, por um defeito na pessoa ou na forma, se o eleito é inepto, ou insuficiente em seu saber, ou criminal" ». A fórmula final do Dietrich corresponde exatamente à desqualificação jurídica da Juana por parte do Martín o Polonês. É mais, uma das versões da Juana pelo próprio Martín mencionava o fato da destituição da Juana. Por sua parte, o Eulogium Historiarum (por volta de 1366) confirmava este fim jurídico («ipsa deposita est») . Mas inclusive neste debate jurídico, a Juana franciscana conservava suas posições. Quando os professores da Universidade de Cambridge se negaram, em 1399, a sustracción da obediência, empregaram, a propósito de Urbano VI, a linguagem eclesiológico dos espirituais, e não o vocabulário jurídico dos canonistas: «Não podemos supor que homens de tanta autoridade (= os cardeais) tenham proposto a toda a cristandade um falso (fabum) vigário de Cristo...». A segunda justificação do retrato, que contempla a primazia da paz da Igreja em caso de escândalo, foi desenvolvida a sua vez pelo Juan do Gerson (1363-1429), essa figura capital da Igreja francesa de finais do século XIV. O dia da festividade da Circuncisão de 1403, Gerson prega no Tarascón ante o Benito XIII, sucessor de Clemente VII, seqüestrado desde 1398 pelo poder francês, sob a influência da Universidade de Paris e de seus dois grandes doutores: o próprio Gerson e Pedro do Ailly, com dito sermão, Gerson tenta, uma vez mais, induzir à Papa à abdicação: «Segunda consideração. Tudo poder, dentro da hierarquia eclesiástica, está orientado para a paz salvadora... Conforme parece, a paz salvadora pode romper-se com a persistência de um poder eclesiástico, no caso do Juan, por exemplo, enquanto que a destituição de dito poder devolveria a paz; nesse caso, rechaçar dito poder é fazer bom uso do mesmo: conservá-lo-se converte em um abuso. Por outra parte, não se encontra nenhum poder que não se submeta à lei divina e natural, que não seja suscetível de pecado, de supressão, de suspensão e de abdicação» . Tradicionalmente, viu-se neste Juan, ao que se refere Gerson em seu sermão, a nossa papisa, embora dita interpretação não parece tão clara, pois Gerson podia estar pensando igualmente no Juan XII, expulso pelo Otón no 964, embora esta identificação tampouco nos convence de tudo. Seja como for, o certo é que a brevidade da alusão tinha que incluir, embora fora de forma adventícia, a lembrança da Juana . Em outro momento posterior deste mesmo sermão, a referência a Juana está presente de maneira explícita a modo de exemplo perfeito de uma situação, na qual a Igreja, em seu conjunto, equivoca-se, a risco de condenar-se. O fiel («todo homem capaz de raciocinar», segundo o próprio Gerson) tem, pois, o dever de fazer sua a salvação da Igreja: «E estas circunstâncias, que contribuem a dissensão à presente cisma, são tais que o objeto essencial do conflito implica não só o engano de tal ou qual pessoa a risco de sua própria salvação, mas também o engano ou o engano no seio mesmo da Igreja, como quando, faz muito tempo, honrou como Papa a uma mulher» . Mas Juana, com sua perpétua agilidade, também servia para combater o fideísmo anti hierárquico do Gerson, o que contribuía a uma debilitação do Papado, inclusive se Gerson não tinha as perspectivas «pre-gálicas» exibidas pelo prelado francês Simón do Cramaud em seu tratado Sobre a sustracción de obediência (1396) . Em efeito, o franciscano Juan do Rocha, que tinha vindo ao concílio da Constanza em qualidade de vigário do ministro geral dos franciscanos da Observância (herdeiros longínquos dos Espirituais), lançou contra Gerson, durante a sessão de 25 de outubro de 1415, a idéia da necessidade absoluta da hierarquia eclesiástica, com independência da qualidade pessoal das Papas. Neste caso, Juana já não apresenta o engano ou o engano, a não ser outro mal, de maior envergadura, qual é o da suspensão da ordem: «Primeiro, o estatuto hierárquico da Igreja perde toda sua certeza e toda sua segurança se não haver nenhuma Papa; e este estatuto também foi incerto quando Juan da Maguncia reinou como Papa» . — Via conventionis (a via do acordo conciliar). Desde o começo do cisma, teólogos de ambas as partes tinham proposto uma solução ao cisma pela via do concílio geral (Vicente Ferrer e Nicolás Eymeric por parte dos clementistas, e Conrado do Gelnhausen e Enrique do Langenstein por parte dos urbanistas). Por volta de 1408, fartos já da situação, numerosos cardeais e prelados se reuniram em uma terceira partida conciliarista que, em 1415, colheu o fruto de seus esforços convocando o concílio da Constanza. A idéia conciliarista não era nova no século XV, mas o cisma fez que acontecesse primeira fila das teorias que limitavam o poder das Papas, ocupando o lugar da ideologia oligárquica desenvolvida entre os séculos XI e XIII pelos grandes canonistas, em torno do sacro colégio cardenalicio. Embora Ockam nada tinha de conciliarista, o certo é que sua dialética eclesiológica influiu nos teóricos do concílio do período cismático. Porque, em efeito, distinguiam entre a potestas habitualis (o poder habitual, substituam-lhe) e a potestas actualis (poder atual); só a comunidade dos fiéis ou a Igreja mesma detêm o primeiro poder: a Papa só dispunha do poder «atual», e portanto podia ser desposeído pela Igreja, representada a sua vez pelo concílio. Encontramos aqui a distinção do Ockam entre o fato (terá que aproximar o «factum» e o «actus», quer dizer, o ato ao que se reduz o poder papal) e a fé, entre o indivíduo investido (às vezes travestido) e a instituição sagrada, de acordo com um esquema que, por uma nova ironia da história, investe com exatidão a teoria dos dois corpos do soberano (como que uma teoria, indefinidamente reversível, não é uma coisa, a não ser um vocabulário atualizado permanentemente no discurso). Juana, mulher e Papa, representava muito bem a dualidade desse poder, e Dietrich do Niheim, o conciliarista mais resolvido de seu tempo, foi também o biógrafo mais prolixo e mais convencido da papisa. Juana e os cães de Deus Entre 1250 e 1450, Juana foi uma fiel sirva da Igreja, a que serve e seguiu com sua ágil dialética pelos desvios sinuosos do discursos católico, detento a sua vez das garras do tempo e também da urgência. A papisa, mãe das paradoxos e dos investimentos, recebeu toda sorte de mímicos por parte dos dominicanos (Juan, Esteban, Martín, Jacobo, Arnoldo, Bernardo, Tolomeo, etc.); mas foram seus velhos rivais, os franciscanos, iniciadores farto balbucientes em comparação com os hábitos pregadores, quem proporcionaria a Juana o fio de um argumento e o agudo de uma suspeita. A hipótese da rivalidade poderia, possivelmente, superar o âmbito específico da habilidade dialética, para nos situar ante uma dramática orquestração dos temas dominicanos por parte dos franciscanos. Mas possivelmente também fora preciso matizar esse enfrentamento, destruindo parte do que havemos descrito mais acima como a rede a Dominica, seu instrumentalidad, pois a continuidade cultural sem dúvida mascara quão vazios de fato existem. Não há nenhuma medida entre a transcrição de um rumor, que se produz em um convento do Metz ou do Lyon, e sua inscrição em uma história das Papas redigida a sua vez por um capelão pontifício. Neste sentido, descuidamos um detalhe importante: a Papa que protegeu ao Martín o Polonês, e o mesmo que lhe consagrou bispo em 1278, no momento preciso da redação da terceira (?) edição da Crônica (em que figura Juana), chama-se Nicolás III, quer dizer a Papa mais autêntica aos olhos dos franciscanos, como já vimos. Dizemos que é importante porque o pontífice e o dominicano representavam, respectivamente e ao mesmo tempo, a regra da autenticidade (Exuit qui seminat) e a narração original da impostura. Dita proximidade faz vacilar a imagem dos dominicanos como mediadores prudentes, se aceitamos magnificar o significado dessa junta que se produz em 1278. Martín conta à Papa angélica, perto da Papa angélica, até que ponto a dignidade suprema está próxima de sua subversão total. Desde esta perspectiva, desempenha o papel de um louco pela Papa, que alude ao investimento possível (de fato, como diria Ockam, a Papa é uma mulher) para assim realçar melhor o investimento que se faz necessária (investimento de fé, diria aqui Ockam: a loucura em Cristo; uma mulher também pode, em caso de que a Igreja desfaleça, constituir-se em última depositaria da graça, como dizia a sua vez Pedro do Juan Olivi). Nesta ordem de coisas, vem a nossa mente a figura do louco Ramón na novela Blaquerna, do franciscano Ramón Llull (12331315), ou Raimundo Lulio, como se prefiro: «Chega a corte papal um homem com os cabelos rapados, com um gavião e um cão»..., que diz: «Para elogiar a Deus e condenar os vícios da corte de Roma, Ramón o Prudente (o Sábio) tomou estado de louco.» O cão do Ramón, atributo tradicional do louco Por Deus nos recorda que os franciscanos não foram em modo algum os únicos em reivindicar o estatuto dos loucos, dos «bufões de Deus» («Joculatores Dei»); já que, além disso, os dominicanos conservaram cuidadosamente a lembrança da etimologia que davam no nome de seu fundador: «Domini Canis» («o cão de Deus»). O acontecimento capital desta crônica da Juana a católica adquire neste ponto um caráter mas bem opaco, posto que nos propõe o seguinte interrogante: a narração de 1278, procede da necessidade cultural da transmissão a Dominica, quantitativamente estabelecida, ou da eleição ideológica de uma história «espiritual» (dominicano-franciscana) qualitativamente significativa? A apresentação seriada dos relatos, no cabeçalho do capítulo, prima a primeira hipótese, enquanto que a contextualización das juntas de 1254,1278,1294 e 1378, que opera em torno das sucessivas variantes que constituem a série narrativa, sugere-nos a segunda hipótese. De maneira que nos encontramos de novo ante o dilema exposto inicialmente e que não resolvemos. E, entretanto, todo o sentido da Juana depende da solução a dito dilema. Só o final da carreira católica da Juana, a partir de 1450, pode deter estes ciclos recorrentes de aparições e de hipótese. Mas antes de que a expulsassem fora do discursos clerical, tenso e cansativo, no que Juana, mulher apaixonada, sempre encontrou desfrute pessoal, a papisa soube escapulir-se fora da igreja para afirmar que ela era, acima de tudo, mulher e não somente pseudoPapa... CAPITULO V A papisa e suas irmãs Desde 1450, Juana passaria pelas mãos de centenas de milhares de homens que além de conhecê-la desfrutaram com ela. No curso de seu desenvolvimento cósmico, fora já do recinto romano e da oficina clerical, a papisa entra no âmbito do jogo e se converte em uma figura do Tarot, esse jogo de naipes inventado em meados do século xV, entre a Ferrara e Melam. É então quando a papisa invade o mundo, pois se chegou a estimar que só na França se fabricou mais de um milhão de jogos no século XVII. Atualmente, a venerável casa Grimaud segue imprimindo a figura da Juana...* A papisa recuperava assim sua carnavalesca existência inicial, embora o horizonte, ao ampliar-se, tinha trocado de tonalidade. Já não refletia a púrpura romana, mas sim surgia prenhe de matizes variados e contrastados. No carnaval se substitui e se investe, enquanto que no jogo se dispõe e se compõe. A mutação da Juana, convertida agora em figura de naipes, coroava e propiciava seu passo ao âmbito da alegoria. Juana como alegoria No Tarot, a papisa, quarto dos «triunfos», significa, pois, um triunfo, um lucro. distribui-se e se disposta ao jogo de maneira decisiva. Sua figura representa uma dominação feminina fingida ou construída vitoriosa ou perdedora, combinada com outras figuras em uma série indefinida de ações (as «mãos» ou as «vazas»), variadas e recomeçadas sem cessar. Vejamos o que significa para nós o Tarot, em si mesmo alegórico: trata-se de uma particular construção do papel feminino, em relação com o saber, com a ambição, com o amor, e com o sagrado, no espaço distributivo da ficção lúdica, fantasmagórica ou literária, que se toma como ocasião e ocorrência de uma alegoria existencial. A data indicada ao princípio deste capítulo pode despistar ao leitor, pois 1450 não proporciona uma sucessão lúdica ao discurso clerical, suspenso provisoriamente nessa mesma data, a finais do capítulo anterior. A leitura alegórica da Juana duplica sua leitura eclesiológica, mas não a substitui, pois uma e outra se separam insensivelmente. Por volta de 1360, Boccaccio tinha desviado à «verdadeira» papisa da Igreja para a literatura, mediante pequenas transformações. Acrescentava alguns detalhes mais aos que proporcionavam os cronistas eclesiásticos, e seu relato podia passar perfeitamente por uma singela amplificação. De fato, a construção mesma que faz Boccaccio da vida da Juana reflete um tratamento muito distinto da história, «literária», que tentaremos definir mais adiante. No momento, assinalemos somente que da papisa de igreja a papisa «laica» se aprecia uma dobro mutação: na tematización da figura e na forma de adesão que registra sua história. Em primeiro lugar, Juana se introduz em um sistema de oposição de papéis (sexuais, sociais, morais) e abandona a galeria papal, onde só serve já de elemento diferencial e anormal do pontificado. Com o Boccaccio passa a formar parte de uma série de 106 «mulheres brilhantes», e no Tarot entra na também serie reduzida dos «triunfos», dos lucros, representados por condições ou cenas que simbolizam a vida humana, bem longe do círculo clerical. Em segundo término, [o que pretende] o jogo literário ou lúdico não quer dizer a verdade (ou uma verdade), como a crônica, a não ser significar (pelo menos antes de que o jogo caia no estereótipo do «gênero», ou no automatismo da regra). Como se produz este passo, ou melhor dizendo, este trânsito? Deve descartar-se qualquer resposta singela e falsa. Poderia pensar-se que foi suficiente transpondo a soleira, bordando», como de fato se passou da vaga lembrança de um conde carolingio morto pelos bascos, à figura do Rolando. Mas nem Rolando nasce tampouco de semelhante deslize, nem Juana encontra em dita trasposición sua conversão «laica». Este espaço de acolhida (algo assim como a «literatura» ou a «ficção») não existe como tal na Idade Média. A imaginação lúdica medieval nem imita o real nem rompe com ele, de maneira que a presença da Juana no Boccaccio ou no Tarot não significa o desalojamento da papisa histórica, a não ser justamente o contrário, quer dizer, que se tomou notícia de seu sentido multiplicando-o. A papisa, extraída de seu contexto eclesiológico, contempla como se desenvolvem seus rasgos individuais: seu femineidad disfarçada, sua sabedoria, sua sexualidade, sua ambição obtida e logo fracassada. Assim, pouco a pouco, converte-se em uma figura livre, ambivalente (inclusive embora seu sentido fique circunscrito a tal ou qual contingência particular), em um tipo simbólico aberto a distintos graus de adesão. Juana se converteu, pois, em uma imagem poderosa e turbadora, e é significativo que fora precisamente a produção alegórica a que gerasse a sua vez uma criação iconográfica, ausente da tradição clerical. dentro da representação figurada da Juana, e antes de que nos invada a maré luterana que nos ocupará no capítulo seguinte, é preciso deter-se em duas fontes: as imagens do Tarot e as miniaturas que iluminam os manuscritos do Boccaccio. Para não nos extraviar pela série contingente das narrações laicas (ou simplesmente não eclesiológicas) sobre a figura da Juana, tomemos como estas pontos de partida duas séries de imagens, pois são como pontos de emergência das leituras alegóricas da história da papisa. O acesso a Juana se faz difícil. Até o momento, limitamo-nos a seguir certas lógicas rituais ou textuales que nos guiavam por um caminho historicamente balizado com referências sucessivas, inclusive quando o desvio às vezes parecia mais seguro que o caminho reto. Aqui, ao abandonar a poderosa estrutura eclesiástica, vemo-nos obrigados a errar de uma imagem a outra, sem garantia alguma, e durante um período de tempo no que se alternam a lentidão do processo simbólico (produtor do tipo) e a instantaneidad da figura (produtora da presença). Em primeiro término tomaremos o Tarot, baralharemos as cartas e as distribuiremos para observar as configurações que revelam, tentando a um tempo indicar as regras do jogo. [Parece-nos preferível] a incerteza de semelhante procedimento às aproximações arbitrárias da cartomancia, que glosa cada figura por separado. A invenção do Tarot Examinaremos em primeiro término (e sem preocupações cronológicas) a aparição figurativa da papisa no jogo do Tarot. Para isso, serviremo-nos do tratado enorme, erudito e singular que o grande lógico de Oxford, Michael Dummett consagrou, como passatempo intelectual, ao Tarot . Os jogos de naipes aparecem tardiamente no Ocidente, e os primeiros testemunhos estão datados por volta do 1375. A origem do jogo de naipes, embora tão incerto ainda como discutido, situa-se ao parecer no mundo islâmico. Por sua parte Ocidente, ao receber o suporte material do jogo (as cartas) confere-lhe duas características essenciais: a jerarquización das «honras» (rei, dama e pajem) e o princípio da vaza (do turno de jogo). A invenção do Tarot, datada entre o 1430 e o 1450 aproximadamente, apresenta-se como um desenvolvimento particular do jogo ordinário. Neste sentido, Michael Dummett demonstrou sobradamente que até o século XVIII (até o calvinista ginebrino Court do Gébelin, precisamente), o Tarot não comportava nenhuma dimensão ocultista ou astrológica. Ao igual ao jogo ordinário, o Tarot se compõe de quatro cores, cada um dos quais consta a sua vez de dez cartas numerais (do 10 ao ás, em ordem descendente) e de quatro «honras» (em lugar de três como no jogo ordinário): o rei, reina-a, o cavalheiro e o pajem. Mas a especifidad do Tarot (onde intervém Juana) reside na existência de 22 cartas suplementares que constituem triunfos permanentes, enquanto que em um jogo ordinário se erige em triunfo a uma das cores, bem por efeito do azar, bem por acordo prévio; em conseqüência, essas 22 cartas suplementares recebem o nome de «triunfos», quer dizer, o que na linguagem corrente contemporânea se conhece como «tarots», ou «ocultos» nas derivações astrológicas tardias. Os 22 triunfos (que em realidade são 21 triunfos mais o louco) do Tarot estão representados por figuras humanas ou alegóricas, cujo tema variou no transcurso da história, mas cuja estrutura essencial permaneceu inalterada. podem-se classificar em três séries aproximativas segundo o tema figurado: as filas (Papa, papisa, imperador, imperatriz e bufão); alegorias morais (amante, carro, roda da fortura, ermitão, enforcado, justiça, moderação e força), e símbolos cosmológicos (morte, diabo, casa-dios, estrela, sol, lua, mundo e julgamento). Estas figuras hierarquizadas não recebem sua correspondente numeração (de 1 a 21) e lenda até o século XVII; mas se nos negamos a confiar na grande estabilidade do jogo desde sua criação, então temos que considerar um texto de finais do século XV, escrito na Ferrara (lugar de nascimento do Tarot), que proporciona, em italiano, uma lista numerada dos triunfos . Juana no Tarot A papisa se inscreve na quarta fila, na ordem ascendente, entre o imperador e a Papa. Tecnicamente, os triunfos forçam até o extremo uma tendência estrutural do jogo de naipes, que introduz o desequilíbrio hierárquico (os lucros) no equilíbrio aleatório (partilha simétrica das cores e distribuição igual das cartas). Desde este ponto de vista, a eleição e a classificação hierárquica de tal ou qual figura é tão arbitrária como a presença do Montesquieu em um bilhete de 200 francos, já que poderia ser substituída pelo Diderot, ou iluminar bilhetes de 10 ou de 500 francos. Não obstante, posto que de quem se trata aqui é da papisa e não do Montesquieu, a presença da Juana sugere um exame dos temas representados pelas figuras dos triunfos. No século xV, os triunfos não constituem um sistema legível; em efeito, não conhecemos nenhum uso antes do século XVIII que nos permita considerá-los nem em sua totalidade nem em sua ordenação de conjunto. Entretanto, as figuras tampouco nos parecem arbitrárias; quer dizer, que pela mesma razão, se Montesquieu tiver um valor convencional de 200 francos, é porque sua eleição procede de uma norma cultural implícita, definida a sua vez por uma série de determinações: lhe escolhe entre os «grandes homens», e a conotação de gravidade, de herança cívica, faz que lhe confira precedência frente a Diderot, para um uso estranho e lento (distinto do que se faz do selo postal, por exemplo). Nesta ordem de coisas, a eleição das 21 figuras no século XV responde igualmente a vagas constrições de seleção; assim, pode advertir uma dialética da ordem (social, moral, cósmico) e de sua transgressão (a distribuição, fonte de lacunas e de transtornos), intimamente vinculada ao tema da roda da fortuna, de tanta importância nesse «outono da Idade Média» sumido na melancolia . Reconhecemos também esse gosto pelas imagens de caráter simbólico que se desenvolve ao mesmo tempo que a moda pelas «divisas», isto é as imagens falantes que comportam o significado do que a heráldica clássica se limitava a assinalar e classificar . Mas, além disso, podemos incluir deste modo neste pacote elástico do «contexto» a tendência humanista a mesclar as referências culturais (alegorias, cristãs e antigas, personagens reais e imaginários). Por último, a princípios do século XV se multiplicam os jogos didáticos com imagem: «"Os deuses e seus atributos" do príncipe adolescente Felipe María Visconti, duque de Melam; "Nosso Senhor e os Apóstolos", "as sete virtudes", "os triunfos da Petrarca", "os planetas"... o jogo de "Governo do mundo" [que] tinha sido inventado pela Papa Pio II e os cardeais Nicolás da Cusa e Juan Bessarion quando se reuniram na Mantua por volta de 1459» . dentro de um contexto temático e cronológico muito próximo a nossos tarots se encontram os famosos «tarots da Mantegna» (que não são nem tarots nem da Mantegna). Trata-se de 50 vinhetas dispostas em 5 séries de 10, que se identificam com letras, da E à, invirtiendo assim (posto que se segue uma ordem alfabética ao reverso) o sentido da numeração geral do 1 aos 50. A partilha das figuras parece mais sistemático que o do Tarot (hierarquia das filas: E, as Musas; D, as artes e as ciências; C, os princípios morais e cósmicos; B, os planetas e as esferas; A), embora compreenda quase todos os triunfos do próprio Tarot, pelo menos aproximadamente. A série dos triunfos não tem um sentido, a não ser sentido, por empregar a expressão do Merleau-Ponty ao referir-se à história; de maneira que provavelmente seja esta indeterminação —sentido, sem mais— o que constitua o objetivo mesmo da série como metáfora do mundo. A papisa adquire uma fila dentro da microjerarquía humana reduzida em abstrato a um esboço das três ordens (guerreiros, sacerdotes e produtores: o «bufão» recebe freqüentemente o nome de «mercado» ou o «artesão»). Uma Papa, bom, mas uma papisa? A resposta não se encontra em uma suposta comodidade dos pares, dos casais, posto que «o bufão» permanece solteiro; por outro lado, a presença de uma abadessa (com fila quase episcopal na Idade Média) tivesse resultado possivelmente mais decente. Em conseqüência, a eleição da papisa pode explicar-se só em função de duas razões, muito contraditória: uma cultura e outra contextual. Por uma parte, a femenización da Papa procederia do investimento malicioso que se desdobra em um jogo (a papisa é a única figura irredutível a qualquer das vinhetas sérias do pseudoMantegna). O investimento se produz ao longo de todo o jogo, de maneira que as cores do coração e do ouro (ou suas equivalentes) investem os valores numéricos habituais (ordem descendente do 1 aos 10, e não do 10 ao ás); o bufão, o mais fraco de todos os triunfos, permite conseguir uma prima de pontos se vontade a última vaza, em cujo caso o vendedor (o mercado) é quem pagamento («ultimo pagat», dizia-se na Alemanha jogando com o nome do bufão «bagatto»). Neste lote benigno de investimentos lúdicos, a presença da papisa tampouco tem por que surpreender. O grande conservadorismo das tradições de jogo, que conservou até nossos dias as regras e as figuras do século XV, ajudou à manutenção da papisa, apesar de que no século XVIII o gosto clássico a substituiu pelo Juno no Tarot do Besançon, e a pesar também de que desaparecesse, junto com seus companheiros de representação, nos jogos fantasistas ou ocultistas que se produziram com o passar do século XIX. Mas o contexto de produção dos primeiros tarots proporciona um sentido particular à eleição temática que teve lugar na Ferrara entre 1430 e 1450, aproximadamente. O jogo Visconti-Sforza Os três primeiros jogos que se conservaram estão formados por magníficas cartas iluminadas, pintadas sobre um fundo estampado de ouro e de prata, e especialmente confeccionada para a família Visconti-Sforza. O jogo mais antigo, sem dúvida prototípico, e que atualmente se conserva na coleção Cary da biblioteca do Yale, foi encarregado pelo Felipe María Visconti (t 1447), como se desprende dos brasões e divisas («A bom direito») que figuram nos naipes . O sétimo triunfo, «o amante», apresenta além disso as armas da casa da Saboya, o que poderia implicar que o matrimônio do Felipe Visconti com a María da Saboya, celebrado em 1426, pôde ser motivo do encargo e da invenção. O estudo mais recente realizado sobre este particular atribui a fatura de sortes cartas ao pintor Francisco Zavattari. Por desgraça, do maço de cartas que se conserva do primeiro jogo (67 de um total de 89) falta precisamente a papisa, cuja figura encontraremos em um segundo jogo, conservado a sua vez parcialmente em três lugares distintos: a biblioteca Pierpoint Morgan de Nova Iorque, a Academia Carrara do Bérgamo e a coleção particular Colleoni. Este segundo jogo foi pintado entre 1451 e 1453, aproximadamente, pelo Bonifacio Bembo (segundo Roberto Longhi) ou pelo Francisco Zavattari (segundo Giuliana Algeri) . O decifração dos brasões e divisas permitiu identificar ao personagem que o encarregou: trata-se do Francisco Sforza, duque de Melam como resultado de seu matrimônio com Branca María Visconti em 1450. Como havemos dito, neste segundo jogo Visconti-Sforza sim há uma papisa, representada da seguinte maneira: está sentada em um trono e leva na mão direita o bastão papal rematado com uma cruz estilizada, enquanto que com a esquerda sustenta um livro fechado. Luz tiara papal de triplo coroa e viu um hábito marrom, muito singelo, apertado na cintura por uma franciscana de nós; sobre os ombros, uma capa da mesma cor marrom. O rosto, voltado ligeiramente para a esquerda, surpreende por sua doce gravidade. Não há, pois, nenhum elemento que conote nem zombaria nem investimento. Por outro lado, a peculiaridade do hábito, quase franciscano, entre signos papais, permitiu que Gertrude Moakley proponha uma hipótese interessante sobre ditos naipes. Em um estudo iconológico bem documentado , esta investigadora norte-americana pôde encontrar os modelos de certas figuras antropomórficas deste jogo na própria família SforzaVisconti. Assim, a papisa recordaria a memória da Manfreda do Pirovano, prima irmã do Mateo Visconti, vigário imperial em Melam a princípios do século XIV. A papisa Manfreda Manfreda pertencia aos humilhados (Umiliati), esses laicos constituídos em ordens religiosas de caráter urbano, muito ativos no norte da Itália, reconhecidos e respirados pela Igreja, mas sempre ao bordo da heresia. De maneira que o hábito marrom de quão humilhados viu Manfreda, a imitação do dos franciscanos, ficaria justificado. Mas, por que apresenta Manfreda com fila de papisa? O fato se explica à vista de sua surpreendente carreira de herege, pois Manfreda foi queimada pouco depois de 1300, por ser discípula direta da heresiarca Guillerma. Entre 1260 e 1271, chega a Melam uma mulher com um menino de curta idade, que se chama a si mesmo Guillerma (ou Guillermita, Guillermina, etc.), e se faz passar por oriunda de Boêmia . Seu discípulo, Andrés Sararita, morto na fogueira ao mesmo tempo que Manfreda, tinha afirmado no curso de seu processo ante a Santa Inquisição que sua professora era a filha do rei de Boêmia, Przémisl, e de sua mulher Constanza. Sua mensagem messiânica advertia da chegada do fim do mundo, que estaria precedida pela chegada dela, da Guillerma, encarnação do Espírito Santo. Guillerma colheu certo êxito nos ambientes aristocráticos de Melam, e entre os humilhados, constituindo uma associação de fiéis que vestiam o hábito marrom dos humilhados. Guillerma exibia estigmas e possuía o dom de curar; morreu em 1282, e foi enterrada no cemitério cisterciense do Claraval (o que demonstra a ambigüidade de sua situação). ao redor de sua tumba se levantou uma capela com um altar, presidido por uma imagem da Guillerma, e se iniciou um culto: os dias de aniversário de sua morte e do traslado de seu corpo, e o dia do Pentecostés (festa do Espírito Santo) acendiam-se lamparinas, cantavam-se hinos e se recitavam letanías. Ao ter notícia deste culto heterodoxo, a Inquisição se inquietou e mandou abrir um processo em 1300: 30 discípulos foram achados culpados, o que dá uma idéia do êxito da Guillerma, êxito confirmado por outra parte no mesmo processo, onde se menciona um banquete da seita ao que acudiram 129 fiéis, recrutados entre as melhores famílias de Melam. Entre estes fiéis encontramos ao Francisco Garbagnate, futuro professor de direito da Pádua e membro de uma família aliada dos Visconti. A Inquisição ordenou queimar os ossos da Guillerma e enviou à fogueira aos três discípulos mais destacados: Manfreda do Pirovano, Andrés Saramita e Jacoba dei Bassani (outra humilhada). O processo de 1300 permite precisar com bastante exatidão o estatuto pontifício da Manfreda, sobre tudo se completarmos essa informação com a que nos proporciona a bula Dudum ad nostri apostolatus, editada em 23 de março de 1324 pelo Juan XXII (decididamente casal decisivo de nossa papisa) e as indicações do Reinaldi em seus Anais eclesiásticos. Juan XXII interveio muito pouco depois do processo, sem dúvida porque a seita vivia ainda no rescaldo da fogueira, e a Papa aproveitou esta ocasião para atacar a seus inimigos gibelinos do milanesado. Acusou ao Mateo Visconti de ter protegido a sua prima Manfreda, e a seu filho Galeazzo de herege, assim como a seu aliado Francisco Garbagnate. Digamos de passagem que tampouco nos surpreende o fato, muito possível, de que os Visconti-Sforza do século XV, em todo momento resolutamente antipapales, alimentassem a lembrança da Manfreda. «Manfreda afirmava que o Espírito Santo se encarnou na pessoa de uma tal Guillerma, e que esta Guillerma se beneficiou do encargo divino» . O corpo da Guillerma se confundia com o de Cristo, mediante uma dobro e sucessiva encarnação: primeiro a do Verbo e logo a do Espírito. Guillerma, morta e ressuscitada, apareceu-se antes de sua ascensão aos céus e tinha designado a Manfreda como seu vigário, quer dizer como a verdadeira Papa. De fato, Guillerma tinha abolido à Papa e aos cardeais, pois, segundo ela, Bonifacio VIII não tinha nenhum direito «porque não tinha sido criado justamente» (uma vez mais, Manfreda pisa nos rastros da Juana). Esta nova encarnação feminiza radicalmente o cristianismo: Manfreda nomeou cardeaismujeres, entre as que se encontrava sua faxineira Taria. A papisa assegurava a totalidade do serviço divino na capela da Guillerma e na igreja da María Madalena de Melam; pregava, distribuía a comunhão e se fazia beijar as mãos e os pés. Do mesmo modo, Manfreda redigiu, ou mandou redigir, um novo Evangelho: «Ao igual aos discípulos de Cristo, escreviam evangelhos, epístolas, profecias... Andrés (Saramita), ao trocar as chamadas, tinha escrito seus evangelhos, epístolas e profecias assim: "Naquele tempo, o Espírito Santo disse a seus discípulos..."» . Não podemos por menos que admirar as paradoxos farto irônicas que nos oferece a história: a aventura da Juana, com toda probabilidade produto da imaginação, engendrou a sua vez uma crença «verídica», enquanto que um episódio real e comprovado como o da Manfreda só perdura em um jogo de naipes... O assunto revestiria uma importância limitada (neste caso à aristocracia milanesa dos séculos XIV e XV), se não deixasse entrever inferências de major impregnado. Advirtamos em primeiro lugar que a chegada da Guillerma teve um eco bastante longínquo em terras e em términos muito próximos aos de nossa Juana. Nos Anais de Encher, encontramos registrada no ano 1301 o rastro do «passo» da herege pelo Bingen: «O ano precedente, veio da Inglaterra (nossa orelha juanista fica rígida) uma virgem muito bela e muito eloqüente que dizia que ela era o Espírito Santo encarnado para a redenção das mulheres; e ela batizou às mulheres no nome do Pai, do Filho e do Seu próprio. Ao morrer, foi levada a Melam e incinerada ali. O irmão Juan do Wissburgo, da ordem dos irmãos pregadores, contava a alguns que ele tinha visto suas cinzas». impõe-se, pois, a necessidade de cruzar a história eclesiástica da Juana com o episódio místico da Manfreda e Guillerma, com independência de seu tema comum (veio uma papisa), e sem nos deter em questões de influências mútuas, farto difíceis de estabelecer. Neste sentido, parece muito provável que o autor anônimo de Encher tivesse ouvido falar da Juana quando registra nos anais o «passo» da Guillerma; pelo contrário, a aventura das pontífices milanesas desempenhou sem dúvida um papel importante na reabilitação «novelesca» da Juana, da que nos ocuparemos mais adiante. Mas o que é mais fundamental é o triunfo obtido na Ferrara no século XV, posto que supõe a coroação da carreira inspirada Por Deus de uma papisa: aqui os signos se investem, e a impostura deixa o sítio à autenticidade. Deixaremos, pois, o triunfo a sua posteridade lúdica, já que, por si mesmo, o triunfo tem que ver com a moda estética, e com o orgulho de ser Visconti, no sentido de que a prima Manfreda passa a ocupar um lugar na galeria gloriosa de homens eminentes. Manfreda representa a inspiração celeste ali onde outras figuras evocam o triunfo das artes, das armas e das leis. A posteridade da papisa no Tarot a deixava reduzida às dimensões plainas de um naipe. Mudança de escala Mas, entretanto, o historiador pode optar aqui por radicalizar a situação juanista dos hereges de Melam. Se Guillerma for, em efeito, a filha do rei de Boêmia, nascida em 1210 e chegada a Melam por volta do 1260, então podemos reconstruir seu itinerário: portadora de sua identidade divinopontifícia, teria contornado o arco alpino por volta do 1250 pela Turingia, Renania, Alsacia, Lorena e Borgoña. Se admitirmos a transposição, este trajeto explicaria a precoce vivacidade que adquire a lenda da papisa na Turingia, sua aparição textual por volta de 1260 no Metz e na Borgoña, a lembrança depositada nos Anais de Encher e a origem maguncino de nossa heroína. A longínqua Praga se confunde com o horizonte da Inglaterra. perfila-se uma nova configuração. A papisa teria nascido ao mesmo tempo de uma triplo matriz: da paródia romana dos séculos XII-XIII, da construção dominicano-franciscana do falso Papado (1260-1280), e, por último, da transposição de uma heresia inspirada feminina (1250-1300). Esta triplo espera impede a identificação de uma origem única, permanentemente nublado pela interferência de outras possíveis gênese, dando assim uma forma irônica à revanche do fato sobre a hipótese. Dita incerteza nos empurra, pois, neste capítulo a desenvolver essa terceira hipótese. A história da Juana, à margem de seu embargo eclesiológico, também narra a história da aspiração feminina a desempenhar um papel central no universo cristão. Mas então nos vemos obrigados a modificar os princípios que presidem nossa investigação. Até aqui, ambas as hipótese se apoiavam em vestígios que a análise utilizava a sua vez para reconstruções documentadas (partindo de cadeiras e de ritos, partindo de textos dominicano-franciscanos). Mas aqui nos falha o rastro, pois a partir do Guillermo terá que salvar o vazio de dois séculos para encontrar de novo o eco débil da papisa milanera. Só alguns textos tardios nos proporcionam uma versão «feminista» da história da Juana. Mas, neste sentido, terá que recordar também essa evidência que é a dominação cultural da Igreja medieval: as versões eclesiológicas puderam afogar qualquer evocação laudatória de uma encarnação feminina de Deus ou de uma Santa papisa. Em altares de uma razão de método, abandonaremos as diligências em busca de indícios, para englobar o acontecimento de 1300 no quadro das aspirações femininas à supremacia religiosa. Dito de outro modo, procederemos a efetuar uma mudança de escala histórica, de tal sorte que Juana se converterá no detalhe de um afresco onde cobra sentido (um sentido). Perderemos em rigor, mas na verdade possivelmente não, e, em qualquer caso, a oscilação entre a pertinência dos indícios e a contingência do quadro favorecerá, esperemo-lo, uma focalización variada e um olhar estereoscópica sobre a Juana. mantém-se a iluminação indireta do quadro ante a resistência de uma profunda e original tendência do cristianismo: a conversão de uma ordem masculina em uma ordem virtualmente feminina. Assinalemos, com o Jack Goody , a violência com a que o cristianismo sacudiu a uma sociedade romana profundamente masculina e agnática. A proibição da adoção e do concubinato efeminou as estruturas jurídicas da sociedade, situando a origem do homem em sua mãe, e já não em seu pai. Nesta ordem de coisas, convém evidentemente evocar a poderosa presença da Virgem, único ser humano que na verdade participa do divino. Os canonistas se referem com certa regularidade a esse momento do Pentecostés no que a Mãe de Deus dirigia, de fato e de direito, a Igreja, como papisa original. Uma intensa devoção Mariana, isenta de toda vulgaridade sulpicista, é a que sustentou o extraordinário renascimento do século XII. Ao longo de toda a Idade Média, a teologia Mariana, centrada na aparição progressiva do dogma da Imaculada Concepção da Virgem, tendia a construir, frente aos princípios renovados da transmissão masculina, uma genealogia partenogenética do divino. Não se trata, pois, de identificar mediante uma paradoxo fácil um pretendido «feminismo» eclesiástico, desmentido por muitos dados, mas sim de tomar notícia da força de uma metáfora maternal, a de um matriarcado imaginário, no que se apóia a imagem que a própria Igreja se dá a si mesmo. falamos que uma resistência porque a ordem masculina soube resistir; basta nos referindo à interpretação paulina do Evangelho, ou ao rechaço do feminino, tal como adiantamos no primeiro capítulo. portanto, o que desejamos apresentar neste segundo capítulo são as difíceis aparições da noção do matriarcado espiritual, dentro e fora da Igreja, assim como o desenvolvimento da cortina de fundo sobre o que pôde destacar-se Juana, como figura da volta da Mãe das Mães cristãs. Penetraremos nesse amplo quadro realçando o dobro jogo que, por volta de 1280-1300, proporcionam-nos a história romana e milanesa. Porque de fato, Juana a impostora e Manfreda a inspirada esboçam, fora do discurso eclesiológico, duas figuras opostas e fundamentais: a da bruxa e a da profetisa. A papisa como bruxa De acordo com as versões franciscanas, Juana atuava por conta do diabo, com esse mimetismo perverso de quão sagrado caracteriza as obras de Satã; neste sentido, a teorización do Pedro do Juan Olivi e do Guillermo do Ockam conferia uma forma institucional a dita ameaça diabólica. Por outro lado, o primeiro intérprete da história da Guillerma, a Papa Bonifacio VIII (a quem encontramos já como dobro da Juana, e ele mesmo acusado de bruxaria pelo Nogaret, o conselheiro do Felipe o Belo) , em sua bula Nuper ad audientiam de 1 de agosto de 1296, fala das práticas guillermitas nos seguintes términos: «Têm pequenas reuniões noturnas ("conventicula") e afirmam que as orações são mais eficazes quando quem as oferece são pessoas com seu corpo nu; as mulheres se despem, assim como os homens desta seita maldita» . Pouco depois do processo inquisitorial, uma lenda, sem dúvida de origem clerical, recolhimento na crônica (perdida) do Antonio do Retanate (1302), recuperada em 1503 pelo cronista milanés Bernardino Faço coro, apresentava as reuniões da seita, na «sinagoga» do Andrés Saramita, como orgias sexuais. Entre 1371 e 1375, o pregador Gabriel do Zamorei da Parma reitera esta versão em seu sermão Do Fide . Esta interpretação papal e clerical do episódio reveste uma importância capital, pois recorda as formas prototípicas do sabat noturno (em opinião do Norman Cohn, rebatida neste ponto por Cario Ginzburg; voltaremos logo para este importante debate) . Para o N. Cohn, o sabat das bruxas, elemento essencial na grande perseguição dos séculos XV e XVI, nasce da diabolización progressiva dos hereges. No Ocidente, o protótipo se encontraria nos hereges de Orleans pelo Adhémar do Chabannes (século XI); tratava-se de um grupo formado em torno de alguns cônegos de Orleans, quem, como tantas outras seitas extremistas, propugnaban uma piedade e um ascetismo radicais, ao tempo que rechaçavam certos dogmas essenciais que eles consideravam arrivistas (a virgindade da María, a eucaristia, o batismo e a intercessão dos Santos); diziam estar habitados pelo Espírito Santo quem lhes guiava (observemos o parentesco com os guillermistas). Foram queimados em 1022. O episódio teria permanecido na marginalidad polimorfa e repetitiva da heresia, se Adhémar do Chabannes não tivesse informado a respeito de suas práticas diabólicas ; consumiam as cinzas de um menino morto e se entregavam a toda sorte de vícios depois de unir-se a Satã, sem deixar de imitar a verdadeira fé. Por volta de 1090, o monge Pablo do Chartres acrescenta o tema da promiscuidade sexual à descrição das reuniões canibalescas . um pouco mais tarde, por volta de 1115, Guiberto do Nogent aplica a mesma descrição a grupos sectários camponeses da região do Soissons, complicando-a com destreza: os hereges consomem a modo de eucaristia o fruto mesmo de suas libertinagens incestuosas . Para Cario Ginzburg , a tradição da reunião profanadora não pode, por si mesmo, explicar a presença da bruxa agressiva e dotada com poderes sobrenaturais, tal como aparece nas cordilheiras alpina e apenina por volta de 1350, e sugere, a sua vez, que esta forma específica é o resultado de um «compromisso histórico» entre uma imagem clerical (seita hostil, diabólica, profanadora) e uma imagem folclórica, a que conduz a seus famosos «Benandanti», e que tira cena a indivíduos capazes de transladar-se ao mundo dos mortos e de retornar do mesmo para contribuir com prosperidade à comunidade . A bula do Bonifacio VIII permite, possivelmente conciliar ao N. Cohn e C. Ginzburg, acrescentando um terceiro término aos dois agentes do sabat propostos pelo Ginzburg, mas também é certo que dita cena se inscreve na tradição Adhémar-Pablo-Guiberto onde se efemina: Guillerma e suas irmãs tomam a iniciativa e a direção da conduta lúbrica. Do mesmo modo, o pacto diabólico adquire uma amplitude de majores proporcione: ali onde os de Orleans e os do Soissons cediam à profanação em troca de um pouco de dinheiro ou de ilusão, Guillerma construiu uma Igreja universal apoiada no investimento dos sexos. Por nossa parte, sugerimos considerar a conduta guillermita como um dos pontos de origem da bruxaria feminina. Sabemos que até o século XIII a Igreja não acreditou na realidade da bruxa, e a tratou como se fora uma criatura imaginária fruto das superstições populares. Mas, do momento (coincidência ou causa?) no que, sob o impulso dominicano-franciscano, acredita-se na ofensiva satânica que se abate sobre a Igreja por mediação da mulher (Juana), então a usurpadora diabólica se converte em uma realidade tanto para Roma como para Melam. Uma das primeiras intervenções judiciais no tratamento do sabat «objetivo» (quer dizer, que existe realmente para os juizes) teve lugar entre 1384 e 1390, em Melam: «duas mulheres reconheceram ter rendido culto, duas vezes por semana, a Madonna Oriente» (também chamada Diana ou Herodías), ao render-se à «sociedade» ou ao «jogo» . As sectárias da Guillerma (e as adoradoras da Dama Oriente) dizem estar inspiradas; e, ao igual aos Beneandanti do Friol e seus antepassados europeus, negam airadamente ter trato diabólico, pretendendo pelo contrário ser portadoras do autêntico caminho da salvação. Neste contexto, encontraríamos um terceiro agente do sabat, surto nos meios «feministas» (é preciso empregar este término, até a risco de incorrer em um anacronismo que por outro lado é mais léxico que real) radicais do cristianismo urbano, à margem da mística feminina e profética que se desenvolve desde finais do século XII no Flandes, no norte da Itália e na Renania. Voltaremos mais tarde sobre este assunto. No lado oposto, a Igreja começa a acreditar nas bruxas. trata-se de um fato conhecido e descrito abundantemente. Por isso, repitamos somente que a história da Juana, tão importante em torno dos anos 1278, 1294 e 1330-1335, encarnou um temor cuja análise nos ocupou no primeiro capítulo: o da subversão feminina do sagrado. O século XIII descobre, em condições dramáticas, que o temido atentado feminino se produz na cúspide do sagrado terrestre, no pontificado. A ameaça de uma invasão do poder pôde, pois, contribuir à elaboração vigorosa e objetiva da figura da bruxa. Mas é preciso deter-se brevemente, se acaso como confirmação, por desgraça tardia, no caso de uma prima da papisa: Juana de Arco. As duas figuras da Juana de Arco Não insistiremos no farto fácil (desconfiemos, uma vez mais, das sereias da analogia) paralelismo que oferecem as duas Juanas: duas mulheres que, saídas de um nada, chegam, mediante seu verbo fascinante e um disfarce masculino, à cúpula do poder, morrendo a causa do mesmo. Mas o que importa aqui sobremaneira é a dobro imagem que projeta Juana de Arco. É certo que os documentos disponíveis parecem bastante enviesados: as atas de ambos os processos (o de condena em 1431 e o de reabilitação em 1456) refletem duas submissões opostas e sucessivas; a primeira ao rei da Inglaterra e da França Enrique VI, e a segunda ao filho do rei da França Carlos VII . Não obstante, e ao fio de deposições, pode detectar o transtorno de fundo provocado pela Juana de Arco, ou em tudo caso por sua figura (a verdadeira Juana permanecia tão inacessível como a papisa). O processo de 1431 deixa entrever, detrás das táticas e os servilismos, o temor da bruxa. Recordemos que este processo ocorreu exclusivamente a cargo da Igreja, sob a autoridade do Pedro Cauchon, bispo do Beauvais, com assistência do viceinquisidor da França, o dominicano Juan O Maistre. Podemos distinguir dois planos de percepção da Juana, referidos a sua vez a duas fases cronológicas: no momento do interrogatório (9 de janeiro 1431-15 de março 1431) e durante a posta a ponto dos 70 artigos da acusação, redigidos pelo promotor Juan do Estivet (17-31 de março 1431), prepondera a tendência «objetiva»; quer dizer, parece que efetivamente se acredita na Juana bruxa. Depois, quando o tribunal (essencialmente Pedro Cauchon), com a ajuda dos teólogos, determina sua postura, para submeter a seguir à universidade de Paris, e à vista da redação definitiva dos 12 artigos de acusação, então desaparece a idéia de bruxaria, chegando-se à conclusão da idolatria (por superstição), o cisma (rechaço da Igreja), a apostasia e a heresia. Quando o professor Pedro Mauricio, doutor em teologia, comenta as conclusões dos universitários parisinos, o término de presunção (tão importante nas versões clericais da história da papisa) reitera-se sem cessar: «existe superstição e adivinhação, asserção presunçosa e vã jactância» . As duas Juanas compartilham o mesmo trato esotérico da presunção: uma mulher pretende, contra a lei e dos cánones, dominar a Igreja; encontramos aí um desses escassos pontos sobre os quais o tribunal pretende convencer a Juana, empregando para isso uma distinção cuidadosamente explicada à acusada, entre a Igreja triunfante (Deus, os Santos e os bemaventurados) e a Igreja militante «nosso Santo Pai a Papa, vigário de Deus na terra, os cardeais, os prelados da Igreja e o clero e todos os bons cristãos e católicos; esta Igreja, bem reunida, não pode errar e está governada pelo Espírito Santo» . Mas Juana declara que ela só obedece a Deus. detrás desta lógica judicial e eclesiológica, suficiente para satisfazer aos ingleses, e necessária para a declaração da culpabilidade, adivinha-se o terror, o rapto esotérico da Juana (das Juanas), como impostor agressivo, como substituto satânico da Igreja. O impostor toma o lugar do ocupante legítimo, enquanto que o cismático ou o herético pretende ocupar um lugar distinto (melhor, mais autêntico ou saudável); o impostor é o mesmo mas investido, enquanto que o herege é o dobro. Com este esquema tentamos explicar a gênese do anti-semitismo no século XII, momento no que o judeu começa a ocupar no âmbito das narrações legendárias e dos rumores, o lugar do cristão, concretamente em matérias de sexualidade e de economia, lugar que tinha ficado estreito dadas as constrições eclesiásticas no terreno matrimonial e agiota . As figuras geme as da papisa (versão franciscana) e da bruxa («objetiva») variam o esquema sem modificar sua estrutura. Este esquema induz a um tipo de crença autônoma que chamaremos, por oposição à crença verídica (analisada no capítulo precedente), a crença fantástica. Esta crença não repousa em nenhuma gradação nem em nenhuma suspensão, mas sim vincula constantemente o real e seus signos a um tipo, a uma imagem (o judeu, a bruxa, o impostor), encontrando invariavelmente em dito vínculo confirmação. Nada ilustra melhor este mecanismo que os 70 artigos contra Juana redigidos pelo Juan do Estivet: sem ter em conta as negociações da Juana, constróem o retrato perfeito da bruxa. Em 27 de fevereiro de 1431, Juana diz claramente que jamais há poseído mandrágora (essa raiz convertida em mágica pelo esperma de um enforcado, e muito utilizada em bruxaria) e que não acredita em seus poderes. Vejamos a seguir o que escreve Juan do Estivet (parte que não conservaria a sua vez Pedro Cauchon): «Artigo VII. A sorte Juana às vezes tinha o costume de levar uma mandrágora em seu seio, esperando desta maneira obter próspera fortuna em riquezas e em coisas temporárias, afirmando que uma mandrágora desta classe tinha vigor e efeito» . É verdade que Juan do Estivet, promotor da ação, desempenhava o papel de um procurador e portanto se inclinava a inculpar à acusada. Pelo contrário, a tarefa própria do Pedro Cauchon, e de maneira acessória a da Universidade de Paris, consistia em achar términos aceitáveis, serenos e racionais de perseguição. Mas o temor da bruxaria supera a partilha dos papéis judiciais, de forma que aqui a fronteira passa entre uma racionalidade atenta e graduada (a da Igreja, representada pelo Pedro Cauchon, recentemente reabilitado pelo Franqois Neveux com toda justiça) , e uma fascinação horrorizada e brutal, perceptível no Guiberto do Nogent no século XII, ou no Roberto do Uzès no século XIII. O medo fantástico que inspira Juana de Arco é perfeitamente perceptível no próprio duque do Bedford, durante o assédio de Orleans, pois segundo ele o êxito da Juana era «produzido em grande medida pela mescla de falsas crenças e de louco terror que eles (os soldados ingleses) receberam de um discípulo e espião do Inimigo (Satã), chamado a Donzela que tem feito uso de falsos encantamentos e de feitiçaria» . O anônimo universitário que redige o Jornal de um burguês de Paris, em seu comentário da derrota sofrida ante Paris em 8 de setembro de 1429, depois de uma ação empreendida pela Juana o dia do Natal da Virgem (contra os costumes religiosas), fala de «uma criatura que tinha forma de mulher... que chamavam a Donzela. Quem era? Só Deus sabe» . E em 30 de maio de 1431, no momento do suplício da Juana, o verdugo levantou seu vestido para que todos vissem que esta criatura era na verdade uma mulher. As implicações do esquema fantástico explicam sem dúvida a obsessão que preside todo o interrogatório: virtualmente cada dia se interroga a Juana sobre o vestido masculino que se empenha em conservar; e também cada dia lhe pede que desvele seu segredo. Os juizes, ante este mistério do disfarce e ante o segredo que a mantém, interrogaram minuciosamente os signos, que tentam identificar no estandarte da Juana (onde se encontram as inscrições, acima ou abaixo?, etc.), nos anéis da Juana e em suas cartas. A defesa da acusada corrobora as suspeitas, pois não diz ela mesma que, às vezes, põe a seguir do «Jesus-María», com que inicia suas cartas, uma cruz para indicar que deve entender-se o contrário do sentido literal da missiva? O inocente código de uma jaqueta improvisada se converte na prova e na manifestação do investimento blasfemo generalizado. A articulação entre a imagem da bruxa jaqueta e a da papisa (Juana-Manfreda) está presente em dois momentos do processo. Em 1 de março de 1431, o tribunal lhe pergunta «o que há dito de nosso senhor a Papa e do que ela acredita que é a verdadeira Papa» . A pergunta dos juizes demonstra até que ponto o traumatismo do cisma (reabsorvido em 1415-1417), prolongando as colocações franciscanas de 1278-1335, afetava às consciências cristãs. Embora o processo coincidisse com um período de vacante papal (Martín V tinha morrido em 20 de fevereiro de 1431 e Eugenio IV não seria eleito até em 3 de março), a situação não justificava a inquietação do tribunal. É verdade que a eleição do Martín V em 1417 durante o concílio da Constanza, reconhecida universalmente, não tinha evitado que alguns elementos irredutíveis dessem por sua conta um sucessor ao Benito XIII, na pessoa de «Clemente VII», e que havia uma terceira Papa que se fazia chamar «Benito XIV», mas nenhum destes dois pretendentes podia já rasgar Ocidente. Também neste terreno Juana tinha semeado suspeitas, pois o conde do Armañac, chefe da partida do Carlos VII, tinha ideado, em união do rei da Castilla, uma tortuosa manobra de apoio a «Clemente VII», e tinha procurado a aprovação da Juana de Arco. Esta última cometeu a imprudência ou teve a vaidade de dizer que refletiria sobre o particular, apresentando-se assim como fiador virtual da autenticidade papal, em nome de Deus: «No momento estou muito ocupada no assunto da guerra. Mas quando você (= o conde do Armañac) saibam que eu estarei em Paris, enviem uma mensagem até mim e lhes farei saber tudo sobre o verdadeiro em quem (= a Papa) devem acreditar e isto, eu saberei pelo conselho de meu legítimo e soberano senhor» . Achamos outro indício, mais grave ainda, dessa vontade manfredina de ser Igreja no lugar da Igreja que animava a Juana, segundo a visão fantástica da jaqueta bruxa. De acordo com o artigo XI do Juan do Estivet (igualmente ignorado pelo Pedro Cauchon), Juana tinha presumido ante o Baudricourt, que depois de sua missão teria três filhos: a gente seria Papa, o segundo imperador, e o terceiro rei. «Ao que o capitão disse: "Eu, com gosto te faria um; já que esse homem seria de tanto valor, que não quisesse melhor" Ao que ela respondeu: "Gentil Roberto, nada de nada, não é o momento, o Espírito Santo se encarregará"» . Em 1431, Juana, virgem papogéneta, fecundada pelo Espírito Santo, ilumina retrospectivamente o espanto milanés de 1300. Juana como feiticeira Desta maneira, a própria virgindade da Juana de Arco, ao igual à castidade aparente da papisa, oculta seu reverso, quer dizer seu desejo de conceber prole mediante o estupro e de povoar o mundo com pequenos demônios. Mas esta temática só aparece nas frestas do processo, em uma história escura de processo com promessa de matrimônio, nas suspeitas de que Juana se alojou em casa da Vermelha», em um bordel do Neuchatel, ou nas injúrias do Juan do Estivet («Esta puta excomungada»). Mas dispomos de um testemunho eloqüente sobre a imagem da Juana de Arco como falsa virgem semeadora de bastardos satânicos, na primeira peça escrita pelo William Shakespeare: Enrique VI. Não há dúvida de que a obra foi composta em 1592, um século e médio depois do processo, mas põe claramente de manifesto uma percepção insular de quem fez soar o sino das esperanças inglesas na França. Por isso, precisamente, este texto testemunha a permanência fantástica da imagem da mulher que se disfarçou com o propósito de transtornar o mundo, porque o drama do Shakespeare, escrito em pleno apogeu da caça de bruxas, e apoiado nas crônicas do Holinshed, Hall, Fabyan, Grafton e Stowe, põe claramente de manifesto o medo que existia ante a falsa virgem e seus excessos subversivos. A Donzela (Shakespeare nunca a nomeia de outro modo) apresenta-se ao golfinho da França, Carlos, como uma filha de pastor iluminada pela desgraça da Virgem. Mas esta versão clássica da história da Juana logo adquire o colorido dos matizes, inquietantes, sedutores e provocadores. A Donzela se alegra da beleza que lhe outorgou instantaneamente a Virgem (?): «Enquanto que com antecedência eu era negruzca, curtida / Esta beleza que pode ver em mim me foi concedida»; e, imediatamente, propõe ao golfinho, a modo de prova de sua missão, um combate singular no que ela vence a seu adversário, quem a sua vez se submete amorosamente: «Por ti, eu ardo em um desejo impaciente / conquistaste que um só golpe meu coração e meu braço» . Juana investe os ordens; o golfinho oferece seus serviços a pastora, e a Donzela as rechaça em términos que nos recordam o «testemunho» do Roberto do Baudricourt sobre suas elevadas aspirações prolíficas: «Devo me negar aos ritos do amor /.. .Quando tiver expulso a todos os inimigos / Então pensarei em alguma recompensa» . Ao igual à papisa, Juana de Arco investe a atitude ascética: passa do celestial ao terrestre mediante a exaltação da carne. A Donzela prossegue sua carreira empregando a astúcia: tenta retomar Ruán disfarçando a seus homens de comerciantes. Lorde Talbot, chefe dos exércitos ingleses, vê nesta traição («treason», «trichery», «hellisch mischief») a obra de uma feiticeira («Pucelle, that witch, that damned sorceress»* . Ao fracassar sua artimanha, Juana prova de novo com sua arma favorita, a sedução carnal, e consegue enganar ao duque da Borgoña, aliado da Inglaterra. Instantaneamente, o duque se confessa vencido: «Ou ela me enfeitiçou («bewitchen») com suas palavras / Ou o amor natural («nature») aguardava-me bruscamente»* . Mas a valentia jaqueta dos ingleses lhe arrasta, e Juana, em última instância, recorre ao demônio: «O Regente é o vencedor e os franceses fogem /Socorredme, pois, encantos mágicos, periaptos / E vós, espíritos seletos que me aconselham / E me indicam o que deve ocorrer»; os demônios comparecem para grande satisfação da Juana: «Esta pronta e rápida aparição testemunha / Seu habitual diligencia para comigo» . Mas os demônios silenciosos se esparramam sem aceitar a eucaristia satânica que lhes oferece Juana: «O sacrifício de meu corpo e de meu sangue («Cannot my body nor blood-sacrifique»** /No me é de tanto valor como sua ajuda habitual» . Então os ingleses capturaram à Donzela, quem revelou publicamente sua natureza carnal, lhe proliferem e agressiva de bruxa, ante o duque dos York. Compareceu seguida de seu pai, quem se ofereceu a acompanhá-la na morte; mas Juana renegou violentamente dessa paternidade: «te largue, decrépito! Vilão, ignóbil mendigo / É de sangue mais nobre da que eu descendo. Não mais do que é meu amigo é você meu pai.» Este renego conduz à Donzela a afirmar uma santidade apoiada na linhagem e na eleição: «Saibam, em primeiro lugar, a quem condenastes / Não é de um rústico pastor de quem descendo / Já que minha ascendência está em uma linhagem de reis / Fui virtuosa e Santa, escolhida do alto / Para obrar os maiores milagres na terra / Por inspiração da graça celestial.» Esta proclamação não fez racho nem no duque dos York nem no conde do Warwick; então, a Donzela, cambiante como todas as bruxas, declara-se grávida: «Juana, revela então a debilidade que débito / Te garantir o privilégio da lei. / Estou grávida, que são uns assassinos» . Imediatamente, Warwick pensa, com horror, que um bastardo do Carlos VII, mas a Donzela lhe desengana nomeando ao duque do Alençon e o horror não diminui («Esse conhecido Maquiavelo»); então Juana implica ao Renato do Anjou. Mas esta multiplicação das vítimas da Juana termina por escandalizar aos rústicos ingleses, quem ordena o suplício antes de receber a maldição da Donzela. Juana de Arco é, pois, como a papisa ou como Manfreda-Guillerma, uma variante do tipo da feiticeira, cópia investida da virgem, destruidora da ordem natural e divina. Nada exemplifica melhor essa tendência da crença fantástica a oscilar do positivo ao negativo, do mal ao bem, e à inversa, que esse embargo carnal da Juana de Arco. Frente à imagem da feiticeira, falsa virgem que desencadeia o desejo generalizado, encontra-se a da profetisa, da Santa diretora, virgem «virginante», indutora da castidade. Dunois, companheiro de armas da Juana de Arco, atesta em 1456 em Orleans, em vista do processo de reabilitação: ele acredita na inspiração divina da Donzela por três razões milagrosas. Em primeiro lugar, lhe reconheceu sem lhe haver visto jamais (ao contrário da feiticeira que produz bastardos, a Donzela legitima assim ao Dunois, o bastardo de Orleans, integrando-o no plano de ação divino); aqui, o milagre tem que ver com a ciência infusa. Em segundo lugar, quando a própria Juana caía ferida, curava-se imediatamente (dom de força). E, por último, o que resulta mais assombroso e milagroso para o Dunois, é que Juana faz que os guerreiros sejam castos: «O e outros, quando estavam em companhia da Donzela, não sentiam nem vontade nem desejo de ter comércio ou trato com uma mulher, o que lhe parece coisa quase divina» . O duque do Alençon, pai suposto do bastardo da Juana segundo Shakespeare, reitera a sua vez a impressão milagrosa criada por esse raciocínio casto; diz que em várias ocasiões dormiu ao lado da Donzela, sobre a palha, e que «às vezes viu a Juana preparar-se e às vezes ele via seus seios que eram formosos; entretanto, nunca teve com ela concupiscência carnal» . Não devemos desvalorizar esta ambivalência da imagem sobre a oposição dos usos (inglês vs. francês, clérigos vs. laicos, etc.); quer dizer, que um mesmo arquétipo (no sentido literal, e não no sentido astro-lógico-jungiano), o da mulher «assombrosa» (indutora de transtornos sexuais e políticos, dotada de um conhecimento chamativo, dominadora), distribui-se em dois tipos (a feiticeira e a profetisa), que a sua vez orientam os temas arquetípicos. É evidente que no caso da Juana a polarização nacional intervém na oscilação ou a concorrência entre ambas as interpretações; mas, em última instância, o apoio que os cistercienses emprestaram em um princípio a Guillerma demonstra claramente a realidade da ambivalência, que por outro lado, está presente em outros muitos assuntos de feitiçaria. Neste sentido, é provável que a profetisa cristã produzira tanta fascinação como seu reverso, a bruxa. A profetisa cristã O tipo benéfico da profetisa desempenhou um certo papel no desenvolvimento biográfico da Juana a papisa, já que encontramos seu rastro na figura do Tarot (fora do contexto Visconti, a papisa conserva o livro como atributo) e no episódio milanés da Manfreda, que ricocheteia sobre a Juana. E, além disso, Juana deve sua carreira a um conhecimento vizinho no milagroso. Recordemos que Martín o Polonês sublinhava que nenhum homem podia lhe igualar em sapiência; e este saber, que por si mesmo não constitui uma impostura, desvia-se não obstante de sua Santa função para servir à conseqüência de fins ambiciosos e fraudulentos. Entretanto, a forma em que se adquire dito conhecimento distingue a papisa da profetisa: Juana aprendeu, enquanto que a profetisa recebe o conhecimento como um dom divino. O tipo da profetisa importa como o conhecimento da Juana, já que a «alegoria» (o tipo, a imagem) forma parte de uma linguagem simbólica, articulado, e formado a base de oposições binárias. A leitura clerical do episódio juanista ajudou a acantonar a papisa dentro do tipo maléfico (se excetuarmos as alusões à obra benéfica da papisa no texto do Juan do Mailly —o jejum do Témporas— e no do Martín Lefranc —os prefácios da missa—), mas a falsidade imputada a Juana só é perceptível com referência ao que desfigurou. O profetismo feminino gozou de grande predicamento em todo o âmbito do Mediterrâneo clássico, tanto por parte do judaismo como das religiões chamadas «orientais» e do mundo grego e latino. Conhecemos as figuras famosas da Pythia* do Delfos e das Sibilas, e pelo que se sabe a mais antiga oficiava no Eritrea da Ásia Menor. A erudição romana tardia (Varrón, Lactancio) enumera até dez sibilas, desde a Persia até a Itália. Os oráculos sibilinos desempenharam um papel importante em Roma, desde que, segundo Plinio e Dionisio do Halicarnaso, Tarquinio o Velho compara o texto de suas profecias à Sibila do Cumas. Um colégio de sacerdotes tinha como tarefa específica as conservar e organizaria para sua consulta, a última das quais teve lugar a instâncias do Juliano o Apóstata, no ano 363, antes de que Estilicón destruíra os Livros Sibilinos por volta do 408 . O passado do profetismo feminino, pagão ou judeu, ao cristianismo pôde realizar-se com bastante facilidade; de fato, e até finais da Idade Média, honrou-se às Sibilas, ao tempo que se venerava a inspiração divina de algumas grandes místicas. O fato tem sua explicação em uma série de razões de caráter geral, que expomos a seguir a grandes rasgos, antes de lhes dar uma forma mais concreta: 1) o modelo grego de profecia feminina resultava muito conveniente para o cristianismo, dado seu dobro condição inspirada e textual: a profetisa, à maneira do Juan Evangelista, autor do Apocalipse, recebe um sopro divino (pneuma) e produz um texto enigmático de fixação duradoura e propício para a glosa; 2) o cristianismo, religião da revelação revisão, tinha tendência a incluir e inserir as tradições antigas na nova doutrina, como pudemos constatar a propósito das tradições narrativas: Cristo não veio para abolir a não ser para cumprir; 3) em seus começos, a religião cristã apresenta um aspecto feminino muito acusado em sua composição sociológica. O lugar comum hagiográfico da esposa ou da filha cristã de um notável pagão tem um fundamento real. Durante as perseguições, a virgem mártir constitui a figura mais obtida do cristianismo; 4) a mensagem cristã de investimento celestial das hierarquias terrestres privilegia às mulheres, os meninos e os pobres; 5) A Virgem María, mulher comum entre os humanos, oferece a mais alta mediação entre o céu e a terra; ela é o receptáculo da encarnação e do saber (a Anunciação) que a prepara. depois da Paixão e da Ascensão, é ela quem garante, perto do Juan, a autenticidade da tradição comemorativa do Novo Testamento. Uma má profetisa, a Pythia Mas nos encontramos aqui, uma vez mais, a grande ambivalência que subjaze na produção de tipos metafóricos, se considerarmos a diferença de trato que recebem a Pythia e a Sibila por parte cristã, essas geme as da profecia feminina grega, apanhadas no torniquete que, desde tempos remotos, separa à profetisa da feiticeira (conservemos esse anacronismo para designar ao personagem, ainda virtual, da mulher que oculta sob uma aparência enganosa um grande poder demoníaco). O caso da Pythia foi objeto de uma admirável análise por parte da Giulia Sissa, em seu recente livro sobre o Corps Virginal . Esta autora demonstrou como o oráculo do Delfos tirava cena a uma virgem que devia receber em um corpo intacto e disponível a palavra apolínea recebida modo de embaraço casto. À metáfora banal de uma «inspiração divina» (sopro, pneuma), acrescenta-se ou se substitui a menção de uma emanação divina surta da terra e aparentada às fumigações ginecológicas que, na medicina grega, colocam em seu lugar correto os órgãos de reprodução. compreende-se que a proximidade com o tema Mariano do cristianismo (virgindade, embaraço divino, saber sobrenatural) resultasse muito forte como para não albergar certa suspeita demonológica. De fato, dois Pais da Igreja, Orígenes e Juan Crisóstomo, escandalizaram-se da ação profética da Pythia, sem lhe dar a explicação evhemerista (que consiste em explicar os milagres pagãos com o engano), tão freqüente no âmbito da apologética cristã, da antigüidade até meios da Idade Média. A Pythia é uma excelente manifestação da posse demoníaca obscena (como a feiticeira «objetiva»), e sobre este particular dispomos do comentário do Orígenes a respeito da atitude da Pythia que se oferece ao pneuma telúrico em seu trípode: «Não está aí a prova do caráter impuro e viciado deste espírito? Se insinúa na alma da adivinha, não mediante os poros disseminados e imperceptíveis, muito mais puros que os órgãos femininos, a não ser através do que ao homem casto não lhe está permitido olhar e ainda menos tocar.» A femineidad do meio prova o satanismo da mensagem: «Se Apolo do Delfos era o deus no que acreditavam os gregos, a quem devia escolher ele, a sua vez, como profeta, se não ser a um sábio ou, em seu defeito, a um homem que progredisse pelo caminho da ciência? por que não escolheria para profetizar a um homem antes que a uma mulher? E, admitindo que preferisse o sexo feminino, dado que provavelmente só desfrutava de poder e de agradar no seio das mulheres, como não escolheu a uma virgem antes que a qualquer outra mulher como intérprete de sua vontade?» . O comentário do Juan Crisóstomo é mais impressionante até: «A Pythia está sentada no trípode do Apolo, com as coxas separadas. Um espírito maligno ("pneuma poneron") sobe de abaixo, penetra em sua vagina e a cheia de loucura. Com os cabelos pulverizados, e expulsando espuma pela boca, comporta-se como uma bacante. E é tal seu estado que fala! Eu sei que sentastes vergonha e avermelhastes ao escutar este relato», «desculpa-se o Pai da Igreja. Já que sabe quão eficaz é visualizar umas coxas, uma boca, um cabelo, para que a possessa notificação a seu professor» . Giulia Sissa identificou nesta interpretação da Pythia do Delfos uma ruptura essencial. Orígenes se indigna porque não se escolheu a uma virgem, quando a virgindade parece constitutiva da atuação oracular. Mas em realidade não se trata da mesma virgindade pois, segundo o descobrimento magistral do G. Sissa, os gregos não acreditavam na virgindade material, isto é na existência do hímen. portanto, a Pythia pode abrir-se ao pneuma divino. Sua virgindade garante sua capacidade sucessiva de recepção e de oclusão, e em conseqüência de receptividade e de secretismo, nesse contexto da analogia grega da palavra e da sexualidade. Pelo contrário, para os Pais da Igreja, a possibilidade de comunicação sexual representa precisamente a prova da impostura e do demonismo. O personagem da Pythia e as relações assombrosas que põe em jogo entre virgindade, procriação e profecia ficaram provavelmente no esquecimento muito rapidamente, fora da patrística grega. Mas no pensamento cristão se acusou o impacto da produção virginal. O rude espírito jurídico dos romanos e dos germanos teve dificuldade em assumir que uma virgem tivesse engendrado a boa nova, até o ponto de que no século IX alguns hereges da Germania estavam convencidos de que María tinha concebido a Cristo pela orelha. A Igreja soube reconduzir esta ansiedade estendendo constantemente a divinização da María, ela mesma concebida imaculada segundo o dogma anunciado por Pio IX em 1854. O terrível Oskar Panizza levou esta lógica até suas últimas conseqüências, propondo com ânimo de brincadeira que dita bula se chamasse a Imaculada Concepção das Papas (1892) . A sacralidad profética da María, virgem e mãe, fonte de inquietação e de desequilíbrio, exigia um contrapeso. Este papel de contraponto o desempenhou a Pythia e passou logo a papisa (e às bruxas), em sua condição de falsa virgem, de mãe por estupro, e cujo saber oculta em vez de desvelar. O paralelo entre ambas pode parecer forçado; entretanto, quão romanos fingiram tomar a imagem da Virgem com o Menino por um retrato da Juana fizeram gostosamente uso do mesmo. Assim, no século XIV encontramos a um Dietrich do Niheim falando do menino da Juana como seu «promogenitus», término evangélico aplicado tradicionalmente ao Filho da Virgem. Volta da Sibila Enquanto que a Pythia cristalizava o fantasma da virgindade sábia e demoníaca, as Sibilas, entretanto, foram totalmente aceitas no universo cristão, como o demonstram os trabalhos do Bernard NcGinn . A diferença de trato tem que ver sem dúvida com o estatuto textual e não sexual da revelação sibilina, pois esse estatuto se refere mais ao azar das tradições que à realidade grega da profecia. Nesta ordem de coisas, a evocação da Sibila do Cumas pelo Virgilio no sexto livro da Eneida oferecia uma garantia de autenticidade, já que o cristianismo antigo e medieval considerava o Virgilio como um precursor pagão da Boa Nova, inclusive se, por essa eterna ambivalência que rodeia a todas as grandes figura fantasmáticas, outra tradição queira ver nesse quase profeta a um necromántico satânico . Mas, por cima de tudo, e apesar das destruições ordenadas pelo Estilicón, dispunha-se de vários livros de oráculos sibilinos que anunciavam com bastante precisão a chegada de Cristo. Esta preciencia não tem em realidade nada de surpreendente, já que a erudição contemporânea estabeleceu que ditos textos, embora incorporavam textos antigos, eram não obstante fruto da pluma de autores judeus e cristãos, entre o 150 A. J. C. e o 300 d. J. C. Para os apologistas judeus e cristãos, tratava-se de desviar, animados por um desejo missionário, uma tradição prestigiosa do mundo grego ou romano. A partir de então, os primeiros Pais da Igreja (Juatino, Atenágoras, Hipólito, Tertuliano, Clemente da Alejandría, Teófilo da Antioquía, Eusebio) salpicaram seus escritos com entrevistas sibilinas. A implantação da Sibila no Ocidente passou pela via indireta, tão necessária como suficiente, do Agustín, embora ele mesmo desconfiasse de qualquer profetismo. A tradição sibilina não se interrompeu jamais no Ocidente, ficando assegurada pela vigorosa substituição dos enciclopedistas cristãos, desde o Isidoro de Sevilha (século VII) até o Vicente do Beauvais (século xIII), passando pelo Raban Maur (século IX). Este êxito, cujo apogeu se registra no século XIII, momento, como vimos, de recuperação e de ordenação da herança históricolegendária, pôde conseguir-se ao preço da edulcoración que permitia a integração do profetismo feminino no saber cristão. Atendendo à terminologia proposta mais acima, a adesão às Sibilas revelava então a presença da crença verídica mais que a crença fantástica. A Sibila entrava na medida e na avaliação relativa; assim, por exemplo, Pedro Lombardo em suas Sentenças, e a propósito da Sibila, dedica-se a julgar o grau de fé necessário para a salvação: acaso uma preciencia confusa da vinda de Cristo é suficiente para a eleição? Tiram do Aquino se beneficiou de uma verdadeira revelação . Estes interrogantes teriam capacidade no esforço por acomodar o mais à frente (entre paraíso, inferno, purgatório e limbos), cuja amplitude desde finais do século XII teve ocasião de demonstrar Jacques O Goff . Esta integração adquiria os traçados de uma disposição arquitectonica onde la/las Sibila(s) faziam casal com os profetas masculinos. A iconografia favoreceu primeiro a uma Sibila única, a do Eritrea da que falava Agustín; então acompanha ao profeta por excelência, ao David, como no famoso texto do Dies Irae escrito por Tiram do Celano, o companheiro de São Francisco: «Dia de cólera, esse dia / Que reduzirá ao mundo a cinzas / Como o testemunham David e a Sibila ("Teste David cum Sibylla"») . Depois se compuseram galerias de Sibilas em relação com os profetas do Israel, como a que realizou Miguel Anjo a modo de arremate para os afrescos da Capela Sixtina. Um autor de finais do século xV, Felipe Barbieri, aumentou seu número de dez (lista do Lactancio) a doze, para assentar melhor o paralelo entre os profetas e os apóstolos, nessa triangulación (antigüidade pagã, Antigo Testamento, Novo Testamento) que substitui a «tipología medieval» (devolução do Antigo ao Novo Testamento). Esta sábia integração, tão oposta à loucura amorosa da profetisa grega, permitia a assimilação de tradições locais e folclóricas, como por exemplo a que se contava em Roma: a Sibila tiburcina tinha mostrado a Augusto, a noite de Natal, a Virgem com o Menino, Aparecida em «ara caeli» (altar do céu). Esta lenda institucional da igreja romana do Araceli sobre o Capitólio, antigamente documentada (século VIII), foi legitimada a sua vez pelo Inocencio III em seu segundo sermão sobre o Natal, retomado pelo Bartolomé do Trento e logo pelo Jacobo de Voragem . A companheira pagã dos romanos assumia, em relação à Virgem, o papel do João Batista em relação a Cristo. Não obstante, a imagem da profetisa, da mulher inspirada, era muito forte para não suscitar outras versões, fora do edifício eclesiástico ou em sua soleira. Loucuras da virgem prudente Por um lado, a Sibila recuperou o aspecto ambicioso e encantador que tinha desqualificado às papisas e às pitonisas. Esta orientação aparece tardiamente no século XIV no centro da Itália, com a Sibila do Apenino encerrada em uma gruta sobre o lago Pilato no Piceno; segundo a crença popular, tratava-se da Sibila do Cumas, encerrada ali até o dia do julgamento final por ter declarado (sempre a presunção das papisas) que seria ela e não María quem engendraria ao Filho de Deus. Na novela Guerrin Maschino, do Andrés do Barberino (principio século XV), a Sibila apenina se transforma em profetisa tentadora, e logo no Paraíso da Rainha Sibila, do Antonio da Sai (1430), apresenta-se como reina do reino subterrâneo e sedutora de cavalheiros . Por último, a Sibila, espelho limpo da revelação na tradição clerical, desde o Agustín até Tiram do Celano, retomou seu poder ativo de profecia a partir do século XI. Dois corpus distintos, de origem incerta, confirmam este novo papel. As profecias da Sibila tiburcina, ampliamente difundidas, encontram-se por primeira vez em manuscritos do século XI. De maneira significativa, a Sibila recubre sua própria biografia, da qual lhe tinha liberado a tradição puramente clerical: filha do Príamo e da Hécuba, é bela e jovem; este último detalhe é importante, posto que a tradição clerical projetava a imagem de uma mulher de idade. Porque é precisamente a neutralização da sedução juvenil da Pythia do Delfos a que tinha extraviado ao Orígenes, proporcionando à Igreja, por uma curiosa paradoxo, o modelo de uma Sibila maior: segundo Diodoro da Sicilia, a Pythia era, na antigüidade, uma virgem jovem; depois, Echecrato o Tesaliense, que tinha vindo para consultar o oráculo, apaixonou-se por ela por causa de sua beleza (como Carlos VII ante a Juana de Arco, segundo Shakespeare), raptou-a e a violou: «os do Delfos, a conseqüência desse escândalo decretaram que, a partir de então, a profetisa já não seria uma virgem, a não ser uma mulher de mais de cinqüenta anos, embora leve roupas de jovencita para recordar a memória da antiga profetisa» . Esta «descorporación» da profetisa nos devolve possivelmente, no mundo grego, à origem da inspiração oracular, comum ao Dafne, à a Pythia e a Casandra: o deus Apolo persegue vírgenes jovens e belas que resistem, mas a quem ele dá, em troca de uma posse não carnal, o poder oracular e a imortalidade (sem a juventude perpétua). Vemos, pois, do paganismo até o cristianismo, a conexão de temas estreitamente vinculados ao redor da profetisa: a perigosa sedução virginal, o conhecimento em troca da juventude. Pela mesma razão que, desde muito cedo, a Igreja impõe limites mínimos de idade (inaplicáveis na Idade Média por razões sociais) para os escassos ordens que confere às mulheres (diaconisas, cônegas, abadessas), empenha-se em apresentar às sibilas como mulheres de idade, correspondendo assim às figuras grisalhas e barbudas dos profetas do Israel. Mas o resplendor da sedução juvenil associada ao saber feminino subsiste, como o testemunha também com resplendor a Sibila do Delfos grafite pelo Miguel Anjo. A Sibila tiburcina surge, pois, adornada com sua beleza, ante o Senado romano durante o mandato do Trajano, para explicar aos senadores o sentido dos nove sóis com os que todos eles sonharam: «Professora e Senhora ("Magistra et Domina", que nos recorda irresistivelmente ao atributo da Igreja, "Mater et Magistra", com uma conotação de dominação, além disso), já que seu corpo é grande e muito formoso, tão formoso que não vimos nunca igual nas mulheres, nós lhe rogamos que descubra o que o sonho que todos tivemos a mesma noite revela sobre o futuro» . Segundo a Sibila, os nove sóis indicam as nove gerações que precedem ao Fim do Mundo; a menção das duas últimas gerações, profundamente crípticas, reescritas e glosadas constantemente ocuparam um primeiro plano entre os grandes textos proféticos da Idade Média. redigiu-se um segundo grupo de textos, a Profecia da Sibila do Eritrea, no século XIII sobre estopas antigas, e se distribuiu sob a forma que lhe deram os meios joaquino-franciscanos, por volta de 1250; o adaptador poderia ter sido Juan da Parma, ministro geral dos franciscanos. Os principais autores proféticos dos séculos XIII-XIV (Arnoldo do Villeneuve, Anjo Clareno, Juan do Roquetaillade) glosaram dito texto. Em conseqüência, encontramos de novo ao redor da Sibila «livre» às mesmas pessoas que se ocuparam da Juana nos mesmos márgenes da Igreja. Quatro configurações Façamos agora um breve esquema com as disposições de imagens femininas enumeradas até o momento. Para isso terá que partir do assombro ingênuo do Orígenes escutando sua consideração sobre a estranha figura da Virgem María. por que Deus não confiou sua mensagem exclusivamente a homens prudentes? Que pinta a mulher na Revelação? Ou, simplesmente, por que as mulheres? Nicole Loraux demonstrou que já Hesíodo se interrogava em términos análogos sobre o episódio da criação da mulher , expondo então uma pergunta que nos devolve ao eterno masculino. A Igreja proporcionou uma resposta ao acantonar a María em seu papel maternal e à Sibila (e em conseqüência às santas e às devotas) em sua função de espelho da revelação. Mas a terrível pressão que a Igreja exerceu sobre a sociedade dos séculos XI e XII em matéria de sexualidade (celibato dos sacerdotes, proibição de matrimônios consangüíneos) engendra tensões que rompem essa barreira masculina, fazendo surgir o tipo da Senhora (Domina) onipresente, forte e protetora, próxima e inacessível: a Virgem monástica do século XII, a Dama da literatura galante, a Sibila da espera escatológica, inspirada-a dos grupos místicos. Este tipo, que cristaliza as esperanças e os temores, oscila amplamente sobre seu contrário, a Feiticeira, a Virgem louca, a Sedutora. A papisa desempenha seu papel nesta parte: fruto do discurso clerical, ilustra a impostura da falsa virgem, os perigos do saber autêntico utilizado perversamente. No marco seguro da história eclesiástica, Juana diz que o saber disfarça tanto como o próprio disfarce, e lhe encarrega de acautelar contra a tentação inspirada que revolta às mulheres de meios da Idade Média. Graças a ela, devemos saber igualmente que a sedução desdobrada pela iluminada, satânica ou não, pode vir da carne. Flanqueada por duas imagens, a da Virgem Santa e a da Virgem louca, Juana monta guarda no recinto das inspiradas. Entretanto, os ardores do Sopro e da Carne não deixam de minar esta construção. O tipo reversível da mulher inspirada não podia dissolver-se pelo mero efeito de um discurso eclesiológico, que além se mantinha a um nível débil e graduado de crença (o que chamamos crença verídica); sobre a silhueta da Juana, desenhada com firmes traços negros, a heresia feminina e inspirada ilumina com seu colorido a miniatura da papisa do Santo Espírito. E do século XII as profetisas não deixaram de pulular. O discurso religioso de meios da Idade Média teve que fazer um sítio, entre a «feiticeira» e a Escolhida, à mulher inspirada, domesticada como Juana, mas orientada para o bem. Em resumo, a polarização sexual do sagrado oferecia quatro configurações possíveis: uma dominação masculina (ilustrada pela história papal ortodoxa), uma dominação feminina (brevemente ilustrada pelo episódio milanés da papisa), uma subversão ou um excesso femininos do modelo masculino (conjurados com a aventura da Juana) e uma subversão ou um excesso masculinos do modelo femininos (a profetisa da Igreja). Dado que o esquema e a partilha sexual dos papéis sofreu o controle masculino e clerical (só pôde surgir por um período breve a postura de dominação feminina durante o parêntese herético de Melam), as contrafiguras se orientam para a dominação varonil: a subversão feminina (Juana) só perdurou na memória como fracasso e como perigo (cujo temor se prolonga na imagem da feiticeira); quão única teve êxito, como veremos, foi a subversão masculina do prestígio sagrado feminino que dobra a imagem vigorosa da profetisa para a instituição masculina (neste caso a Igreja). portanto, o que convém explorar é esta quarta configuração, mas não pelo simples (e autêntico) prazer da exhaustividad combinatoria, mas sim porque sorte configuração constitui uma réplica a Manfreda e a Juana. Frente ao contra-Papa mulher, é preciso tentar identificar a figura de uma contra-profetisa, de uma profetisa contradictoriamente integrada no modelo masculino. Para a Igreja, a tarefa não resultava singela, dada a grande força com que se manifestava o misticismo feminino no Ocidente a partir do século XII. Os márgenes de manobra eram, pois, bem estreitos, pois como assinalou Peter Dronke , Angela do Foligno e Margarida Porrete, essas dois amantes de Cristo do século XIII, geraram uma mística comparável. A primeira teve uma acolhida fervente por parte dos franciscanos, enquanto que a segunda morreu na fogueira em 1310. Uma profetisa na soleira da Igreja: María Robine María Robine oferece outro exemplo dessa posição feminina no extremo do que aceita a Igreja. Entre as profetisas que se multiplicam durante o Grande Cisma (Brígida da Suécia, Catalina de Siena), María Robine pode aparecer como uma dobro da Juana de Arco um quarto de século antes. Chegou ao Aviñón nos anos 1330, portanto ao princípio do Cisma; esta camponesa analfabeta e enfermo, oriunda da Gascuña, chegou em peregrinação à tumba do jovem cardeal Pedro do Luxemburgo, morto em aroma de santidade. Experimentava com regularidade visões de tipo apocalíptico, e Clemente VII, a Papa da obediência aviñona, recebeu-a favoravelmente. Em 1387-1389, a Papa participa das orações sobre a tumba do Pedro do Luxemburgo que provocam a cura da María. O favor papal continuou com o sucessor de Clemente VII, Benito XIII, quem, mediante uma bula de 1395, concedeu-lhe uma renda, e portanto um estatuto quase oficial de profetisa. As revelações feitas a María Robine, que foram cotadas e reunidas, tomaram cada vez uma aparência mais política e escatológica, e em 1398, María mandou escrever uma carta dirigida ao Carlos VI para opor-se, em nome do céu, a sustración de obediência projetada pelo governo real, e também para promover a reforma religiosa e moral do reino. Seguindo um modelo duradouro, presente do visionário que contribuiu à primeira crise de loucura do Carlos VI em 1382, até «o Martín o Arcanjo», o iluminado que apostrofou ao Luis XVIII , passando pela Juana de Arco, María chega a Paris em junho de 1398 para visitar soberano. Na capital francesa encontrou a hostilidade dos professores da Universidade de Paris (o que explica o processo da Juana em 1431) e não pôde ver o rei. De retorno ao Aviñón, teve outras revelações que a induziram a lançar uma crítica virulenta contra a corte papal, e concretamente contra os prelados, ante os que exaltava a Igreja verdadeira como uma congregação dos justos. Este tema da Igreja verdadeira, alheia às influências diretas, próprio do Wyclif e logo depois de Hus, gozava, como vemos, de uma grande popularidade no momento no que o Cisma tinha reavivado os interrogantes sobre a verdade da Igreja abertos a finais do século XIII. María Robine encarnava perfeitamente a ambivalência da visionária: Clemente VII e Benito XIII a utilizaram como fiador místico da autenticidade aviñona, insuficientemente defendida pelos argumentos eclesiológicos; mas ao mesmo tempo, e pela porta aberta à escatologia, soprava o vento violento da reforma antipapal. Graças a sua morte rápida, acontecida em 1399, María Robine se livrou provavelmente de terminar na fogueira, como Margarida Porrete ou Juana de Arco. O Grande Cisma punha de manifesto o fracasso de uma Igreja hierárquica e masculina. portanto, o Espírito Santo devia sopro aos fiéis singelos, e entre eles aos mais singelos, às mulheres. Ao estudar a espiritualidade das profetisas, muito numerosas neste período religioso conturbado. André Vauchez destacou que esta expansão do papel religioso feminino reativava, como reação, o temor masculino e clerical, tal e como se desprende do Formicarius do Juan Nider (escrito entre 1430 e 1435). Neste primeiro grande tratado de demonologia da Idade Média «se evoca em particular o caso das mulheres "que sob a aparência de homens dizem ter sido enviadas Por Deus", formulação que basta já para provar que se trata de uma categoria de pessoas bem definida e não de um caso isolado» . Para encontrar um caso mais «puro» (menos político, melhor aceito) de profetisa de Igreja, terá que retornar a um período mais antigo. O caso no que se observa a maior tensão entre os pólos masculinos e femininos do sagrado medieval é o da Santa Hildegarda. Deteremo-nos brevemente no mesmo, já que evidência a máxima projeção dos direitos proféticos da mulher dentro da Igreja. Em certo sentido, Hildegarda foi uma quase papisa, e em nosso comentário nos serviremos da formosa antologia editada, composta e também comentada pelo Peter Dronke . Hildegarda do Bingen, profetisa maior da Igreja A vida da Hildegarda do Bingen (1098-1178) coincide com um momento de renovação teológica e clerical (digamos o século de São Bernardo, para abreviar), que sem dúvida lhe evitou um enfrentamento com a Igreja. Hildegarda desfrutou de um estatuto extraordinário de profetisa uma vez cumpridos os quarenta anos, momento no que dá a conhecer suas revelações, coincidindo com sua eleição como abadessa do Disibodenberg em 1136. Soube conquistar a estima e a admiração do poderosos arcebispo da Maguncia, e o sínodo do Tréveris (novembro 1147fevereiro 1148), presidido pela Papa Eugenio III, aprovou a redação e a publicação de suas revelações; o próprio São Bernardo, presente no Tréveris, tinha elogiado a tarefa da Hildegarda. Em 1150, Odón de Paris escrevia a Hildegarda para lhe manifestar sua admiração e lhe pedir que se pronunciasse sobre o tema da «deidade» de Deus, objeto de violentas disputas durante o concílio do Reims entre São Bernardo e Gilberto da Porrée. Este enfrentamento deu lugar a um debate capital, pois se tratava de decidir sobre a possibilidade de elaborar uma teologia lógica, «científica» . Desta maneira, quer dizer com a petição do Odón de Paris, Hildegarda se convertia em uma muito alta autoridade da Igreja, um pouco análoga a do próprio São Bernardo. Sem ostentar nenhum título em particular, o abade do Claraval foi, durante a primeira metade do século XII, o fiador ao que sempre se consultava em matéria de fé; de fato, sabemos que, em uma de suas cartas, Bernardo assinala que diziam dele que era a verdadeira Papa. Este paralelo entre o Bernardo e Hildegarda reforça a hipótese vagamente formulada no capítulo anterior: a implantação maguncina da Juana, obra do Martín o Polonês, pôde transcrever uma reputação de «papisa», difundida em torno de Hildegarda, como ênfase ingênua ou por puro assobio. Mas ainda há outro indício perturbador; por volta de 1260, os sacerdotes, cônegos e abades de Colônia (seguimos, pois, na Renania) pediram a seu arcebispo que expulsasse aos dominicanos da cidade, amparando-se em uma profecia da Hildegarda que anunciava, para o seguinte século, a chegada a Colônia de falsos pregadores. O assunto não era absolutamente de tom menor (se é que pode chamar-se assim!), já que Colônia constituía o assentamento central da imensa província germânica dos pregadores; neste sentido, é possível que os pregadores sentissem uma animadversión póstuma pela Santa Hildegarda. Podemos, pois, imaginar ao Martín o Polonês, de caráter claramente criativo e zombador, criticando a Hildegarda sob o nome da Juana. Nesta ordem de coisas, devemos dizer que se descuidou em demasia o «te prive joke»* na cultura clerical da Idade Média, pois o certo é que a Igreja medieval ri com mais freqüência do que se diz. Acrescentemos a isto que os pregadores tiveram que enfrentar-se duramente com os herdeiros (legítimos ou não) da Hildegarda, quer dizer com esses grupos compactos de místicos e de beatos que abundavam à maturação na Renania, e que se encontravam sempre nos limites da heterodoxia e da insubmissão . Hildegarda aconselhava aos principais dignatarios do mundo cristão, e manteve correspondência com as Papas Eugenio III, Anastasio IV e Adriano IV, assim como com vários monarcas (Conrado III, Federico Barbarroja, Enrique II da Inglaterra, Leonor da Aquitania e Irene, imperatriz de Constantinopla). Inclusive se permitiu repreender duramente ao imperador Federico. Por outro lado, Hildegarda desenvolveu uma atividade pastoral (predicación itinerante, sermões aos monges, bispos e laicos) reservada aos clérigos masculinos. Este aura da «sibila do Rin», como a chamou, não se reduziu só ao prestígio da virtude ou da santidade individual, já que as mais destacadas personalidades lhe consultavam não por simples deferência, mas sim porque sabia. Deus lhe revelou uma mensagem com valor de salvação universal, de maneira que Hildegarda se converteu em uma profetisa de muito diferente corte ao das pequenas amantes do Jesus, quem, desde a Angela do Foligno até a Teresa da Avila, só oferecem ao mundo ao jornal íntimo de sua particular relação amorosa. Entretanto, Hildegarda persegue a redação dos contratos humanos com Deus e porá bom cuidado em publicar tudo, e inclusive se seu considerável obrar não é do todo fruto da escrita revelação, seu conhecimento de Deus lhe abre não obstante o universo inteiro. Estranha vez encontramos na Idade Média semelhante enciclopedismo ativo: o campo que percorre Hildegarda cobre a cosmologia, a medicina, a poesia mística, a física, a ética, a dramaturgia e a música. Mas o estatuto preeminente da Hildegarda surpreende ainda mais se tivermos em conta que, em seu caso, não está acompanhado de uma renúncia de sua condição de mulher, a não ser justamente o contrário. O certo é que, em sua relação privilegiada com o divino, Hildegarda alcança uma espécie de neutralidade sexual, de «omnisexualidad», por retomar o feliz neologismo cunhado pelo Fernando Camón . Assim, por exemplo, em uma de suas visões, a Sabedoria («Sapientia» se dirige a ela com o término de «criatura humana» («homo» em latim comporta um significado genérico, por oposição a «vir»); e quando Hildegarda se vê como Moisés ou como Daniel se está refiriendo a um papel inspirado que não implica nem sua própria virilización nenhuma investimento dos empregos, do masculino ao feminino (a diferença do que ocorre com a Guillerma ou Manfreda). A feminilidade e o sagrado na Hildegarda Entretanto, o profetismo da Hildegarda tem raízes profunda e especificamente femininas; a recepção das visões, até que faz quarenta anos (idade da neutralidade sexual) situa-se em um meio de mulheres. Nos fragmentos que se conservam de sua autobiografia, Hildegarda afirma que Deus «fixou» seu olhar nela quando ainda se encontrava no seio de sua mãe; teremos que voltar logo sobre esta concepção quase apolínea de dom da Pythia. Da idade de três anos, Hildegarda experimenta, pois, visões divinas, e sua única interlocutora é seu nodriza, quem a informa negativamente (pois ela mesma não vê nada) sobre sua eleição. Hildegarda, conduzida ao convento aos oito anos de idade, silencia durante muito tempo suas visões, antes de lhe falar das mesmas à abadessa, quem a sua vez faz que as anote um monge. A feminilidade da atividade visionária da Hildegarda não se limita a estas circunstâncias, pois procede de uma necessidade na história da salvação. Quando informa a respeito de seu nascimento e de sua eleição —sua eleição Por Deus, entende-se—, Hildegarda indica o contexto de ambos os acontecimentos: «Em efeito, no ano 1100 da Encarnação de Cristo, a doutrina dos apóstolos e a ardente justiça que Ele tinha instalado entre os cristãos e os espirituais começavam a embotar-se e cediam frente à indeterminação. Neste tempo nasci eu e meus pais suspirando ofereceram a Deus» ; o dom da Hildegarda tende a suprir o desfalecimento dos homens (homines et viri), afundados no torpor institucional. Em sua autobiografia, Hildegarda põe de manifesto essa abulia do povo cristão que só pode romper-se com o choque da palavra nova, feminina-divina; esses cristãos adormecidos dizem: «De onde vêm e quais são estes propósitos que sustenta essa mulher como se viessem de Deus? Resulta-nos bem duro viver de forma distinta a como o fizeram nossos pais ou nossos contemporâneos» . Segundo o esquema cristão do investimento dos valores, corresponde a uma mulher sem saber algum o receber a Sabedoria; sem humildade nem vaidade, Hildegarda proclama o aspecto divino desta herança feminina dos fracos: «compreendi os escritos dos profetas, dos evangelistas e dos outros Santos, e de certos filósofos, sem nenhum ensino humano («sine ulla humana doutrina») e comentei alguns destes textos, quando logo que conhecia as letras, eu que só tinha recebido a instrução de uma mulher ignorante («indocta mulier») . Hildegarda parece ter consciência clara dessa oposição entre a ciência masculina embotada e o saber feminino ativo, que lhe expõe à suspeita da impostura, e descreve da seguinte maneira o escândalo masculino que provoca, em uns términos que recordam bastante o assombro do Orígenes antes o saber inspirado da Pythia: «Então o antigo equívoco me perseguiu com numerosas brincadeiras, de maneira que muitos ("multi", masculino) disseram: "Mas o que é isto? Que semelhantes mistérios sejam revelados a esta mulher tola e inculta ('stulte et indocte femine'), quando há tantos homens inteligentes e cultivados? Isto vai resolver na fumaça". Já que muitos ("multi") perguntavam-se, sobre o tema da revelação, se procedia de Deus ou da secura (inaquositate) dos espíritos aéreos que enganam a tantas pessoas». Uma sexualidade feminina mística Esta última referência física nos situa na via da feminilidade essencial que inspira a Hildegarda. Já observamos que Deus tinha «fixado» de maneira apolínea a revelação no feto mesmo que se desenvolvia no ventre da mãe da Hildegarda, e esta forma oracular de relação com Deus aparece claramente quando o visionário descreve o processo das revelações: «Um homem muito formoso e muito tenro me apareceu em visão de verdade. Contribuiu-me tanto consolo que seu visto se pulverizou por meu ventre como um aroma de bálsamo» . Hildegarda desenvolve uma verdadeira erótica do conhecimento, uma erótica que, antes da queda, consuma a penetração: «E Deus lhe deu (ao Adão) todas as criaturas para que as penetrata com sua força viril ('virili vi eas penetret’); teve conhecimento disso e as conheceu». Para a Hildegarda, a metáfora bíblica («conhecer») adquire valor literal, posto que o ato do conhecimento consiste em uma boa correlação dos elementos internos do homem: «E o homem (a criatura humana, ''homo", e não "vir"») extrai do fogo a sensibilidade (e/ou a sensualidade: "sensualitatem") e o desejo, do ar os pensamentos e a meditação, da água a ciência e o movimento» . O saber é o resultado da boa circulação do fogo na água através do desejo e da sexualidade: «Quando Adão viu a Eva, ficou cheio de sabedoria» . A física medieval da separação (o homem quente e seco, a mulher fria e úmida) transforma-se aqui em uma biologia da mescla harmoniosa. Mas, depois da queda, esta mescla não pode efetuar-se, dado que se dispersa o fluxo vital do conhecimento: «Deus criou ao homem para que todos os seres animados se submetessem a ele. Mas quando o homem transgrediu o preceito de Deus, trocou tanto seu corpo como seu espírito. Em efeito, a pureza de seu sangue trocou de curso, e em lugar desta pureza expulsou a espuma da semente. Se o homem tivesse permanecido no paraíso tivesse conservado esse estatuto permamente e perfeito. Mas todo isso, depois da transgressão, trocou em um sentido bem distinto e amargo. O esperma. Em efeito, o sangue do homem, quando bole no ardor e no calor do prazer expulsa uma espuma que chamamos semente, como a panela que colocamos perto do fogo faz bulir, sob o efeito do calor do fogo, a espuma da água». O calor seco do homem quão único produz já é a espuma da reprodução; mas para a Hildegarda, a natureza do prazer feminino e sua orientação para a procriação permite que a mulher conserve no ato amoroso esse gosto do paraíso que assegura uma comunicação com Deus e com o mundo; a mulher retém solidamente em seu ventre a semente, o fruto, a imagem desse vaso que era Pythia segundo as recentes análise da Giulia Sissa. No ato sexual, a mulher sabe captar através do fogo de seu próprio desejo o fluxo do desfrute e do conhecimento, e o aprende; concebe: «Mas quando a mulher se une ao homem (advirtamos que a mulher é o sujeito da ação), então o calor de seu cérebro, que implica o prazer, faz circular o gosto de dito prazer ("gustum ejusdem delectationis") durante o acoplamento e provoca a efusão de semente. E depois de que a semente tenha cansado em seu sítio, o susodicho calor do cérebro retém com ele e conserva a semente e imediatamente os órgãos sexuais da mulher se contraem e todas as partes dispostas a abrir-se durante o tempo da menstruação se fecham então, da mesma maneira que um homem robusto fecha sua mão sobre um objeto» . Frente à imagem do calor contínuo, sem fim, do desejo viril, do fluxo espumoso e disperso do esperma masculino ou das menstruações femininas (que, segundo ela, eram responsáveis por numerosos males quando se antecipam ao ciclo normal), Hildegarda propõe o calor benéfico do desejo feminino, breve, mas orientado para a criação e a criatura: «Mas o prazer do homem, comparado com o prazer da mulher no calor do desejo, é como o fogo dos vulcões, que dificilmente pode extinguir-se, comparado com o fogo de lenha que se extingue facilmente. O prazer da mulher, comparado com o prazer do homem, é como o calor suave do sol que produz frutos; é como o fogo alegre da lenha, já que produz docemente o fruto da procriação» . depois da queda, o desejo do homem lhe propulsa, errante, pelo universo que lhe escapa, enquanto que a mulher permanece no recinto feliz e paradisíaco do celeiro (outra aproximação à sexualidade feminina segundo os gregos): «O grande prazer que habitou no Adão quando Eva saiu dele [aqui é o homem quem procria na felicidade] e a doçura do sonho que então lhe envolvia, investem-se no momento da transgressão, de forma contrária a esta doçura. Hei aí por que o homem sente ainda dentro dele essa grande doçura; corre para a mulher como o cervo à fonte [imagem danaidiana do desejo sem fim], enquanto que a mulher vem a ele como se ela fora a era do celeiro, que recebe numerosos golpes e entra em calor quando se golpeiam nela os grãos» . A sexualidade feminina, real e metafórica (a virgindade não distingue à religiosa de suas irmãs laicas), é uma acolhida e também um embargo do mundo e de Deus (concepçãoconceptualización), enquanto que a sexualidade masculina se dispersa na perseguição (desejo sem fim, ciência vã). Admiremos, pois, esta bela exaltação da sexualidade feminina, cujo equivalente não voltaremos a encontrar antes da Idade Contemporânea, e que teve um alcance difícil de determinar, mas indiscutível, no âmbito das místicas da baixa Idade Média. Mas a exaltação que fez Santa Hildegarda da mulher não se limitou à especulação místicobiológica. As tiaras da Hildegarda Hildegarda, dotada de uma personalidade altiva e vigorosa, empunhou o leme de sua própria comunidade monacal e decidiu abandonar o convento dobro do Disibodenberg, para instalar-se em um lugar a escassa distância (o Rupertsberg sobre o Rin), mas tão desolado que o primeiro assentamento resultava risível. Hildegarda se comportava como uma «mãe do deserto», o que em modo algum supunha uma humilhação do papel da mulher na Igreja; tanto é assim, que uma visão recolhimento em sua primeira recopilação, o Scivias, animou-lhe a destacar a honra da mulher na história da salvação através de uma vestimenta tão chamativa como a dos sacerdotes. Vejamos a seguir de que maneira descreve Hildegarda esse traje das monjas, para conhecimento do monge Guiberto do Gembloux: «Sobre o tema das coroas, vi que todos os ordens eclesiásticos exibem símbolos deslumbrantes em relação com o brilho celestial, mas que a virgindade [como ordem eclesiástica] não exibia nenhum sinal deslumbrante, a não ser um véu negro e a imagem da cruz. Também vi o que devia ser o emblema da virgindade: a cabeça da virgem se cobrirá com um véu branco, em lembrança do branco vestido que a criatura humana ("homo") levou e perdeu no paraíso. Sobre sua cabeça se colocaria um aro ("rota": roda, figura do universo natural e divino na cosmologia da Hildegarda) de três aros juntados em um sozinho, imagem da Trindade; a este aro se acrescentam outros quadros: o primeiro leva a frente o cordeiro de Deus, o segundo leva a direita uma querubim, o terceiro à esquerda um anjo, e o último, por detrás, uma criatura humana; todos estes aros giram para a figura da trindade» . O hábito das monjas da Hildegarda, com esta espécie de triplo tiara e essa ornamentação simbólica, recorda irresistivelmente o traje papal: desta maneira, Hildegarda coroa papalmente sua apologia do papel sagrado da mulher. A presença da Hildegarda neste capítulo tem por objeto ilustrar, dentro do esquema da partilha sexual dos papéis sagrados, o perfil masculino da figura da profetisa. No que se submete Hildegarda à ordem masculina? Pelo contrário, o que é o que distingue a Hildegarda da Manfreda ou da Guillerma? Possivelmente muito pouco, sobre tudo se tivermos em conta o provável giro esquerdista que sofreu a teologia da Manfreda do Pirovano durante o processo inquisitorial, nossa única fonte de informação. Mas a diferença capital estriba em que Hildegarda optou por permanecer dentro da Igreja romana: sua carreira de mulher de Igreja se acomodou por completo às tradições canônicas; não falou em público nem escreveu até a idade de quarenta anos, idade, precisamente, da «neutralização sexual» da mulher na Igreja. Este passo a palestra pública se realiza de forma gradual e com um requerimento constante e escrupuloso da aprovação eclesiástica, primeiro por parte do arcebispo da Maguncia, e logo da Papa, a raiz do sínodo do Tréveris. Sua marcha ao Rupertsberg está precedida de uma petição de autorização episcopal. Por outra parte, Hildegarda não questiona em nenhum momento a ordem social; neste sentido, a uma cara da cônega Tengswindis, quem lhe perguntava por que só admitia em seu convento a mulheres de alta fila, Hildegarda lhe respondeu que a hierarquia terrestre respondia a um desejo de Deus, e que o granjeiro perito não mesclava no mesmo curral aos bois com os asnos, os cordeiros e as cabras. dentro destes limites institucionais respeitados, Hildegarda podia, pois, exaltar à mulher dentro da Igreja; a domesticação masculina da força profética feminina se limitava a essa consideração do respeito da Igreja romana . O caso da Hildegarda, personalidade de exceção, exemplifica o grau máximo ao que podia aspirar a figura da profetisa no marco masculino da Igreja. Mas a esta forma autêntica de participação, encontram-se outras formas oblíquas e metafóricas de promoção controlada da mulher, entre elas a economia da salvação. Este aspecto retórico aparece claramente no século XII, com a devoção cisterciense ao Jesus ou ao abade como mãe, segundo a análise da Carolina Bynum. Esse recurso verbal permite expressar «um desejo de afetividade no exercício da autoridade e na criação de uma comunidade, e um ritmo complexo que associa a renúncia do mundo com o fortalecimento dos vínculos dentro da comunidade e entre a alma e Deus» . Do mesmo modo, São Francisco, em seu tratado De religiosa habitatione in eremo, aconselha a seus irmãos que se estabeleçam em grupos de quatro no deserto: duas «mães Martas» se ocupavam das atividades necessárias, enquanto que os dois «filhos» se entregavam à contemplação. O fato de que se invistam os papéis ao cabo de certo tempo demonstra perfeitamente que a referência materna em realidade não concede nada à mulher, pois só se trata de um trocadilho . Um parecido de profetisa: a mulher no sistema do Roberto do Arbrissel Inclusive quando a feminización afeta à realidade, e não só à linguagem, refugia-se no parecido: um caso ambíguo e interessante é o que nos proporciona a ação fundadora do Roberto do Arbrissel (por volta de 1045-1116), criador da ordem do Fontevrault. Conhecemos a famosa fórmula do Michelet a propósito do Roberto do Arbrissel: «Abriu de novo às mulheres o seio de Cristo.» Uma das originalidades do Fontevrault consistia no investimento dos papéis sexuais: ao longo de sua vida e em seu testamento, Roberto impôs uma direção feminina a dobro ordem (masculina e feminina) do Fontevrault. Por outra parte, quem se beneficia da atenção do Roberto é a própria mulher como tal, já que se preocupou de aceitar ao mesmo tempo a cortesãs (meretrizes) e a aristocratas de alta fila (Petronila do Chemillé, primeira abadessa da ordem; Hersenda do Montsoreau, primeira prioresa; Ermengarda, mulher do Guillermo VII do Poitou; Inés do Chateaumeillant; Filipa, ex-mulher do Guillermo, logo Guillermo IX da Aquitania; Bertrada do Anjou, segunda esposa do Felipe I, rei da França). Mas Jacques Dalarun demonstrou que essa promoção procede de uma instrumentalidad ascética masculina: Roberto, filho de sacerdote, cresceu na atmosfera áspera da reforma gregoriana e quis combater o «incesto dos sacerdotes»; assim, a coabitação com as mulheres revelava um desejo de expiação e servia de prova, quer dizer, de ordalía da castidade mais sublime. Esta orientação aparece com toda nitidez nos escritos do Roberto: «É pelo que, pensem bem, tanto como vi, que se desejam permanecer em seu dever, obedeçam ao mandato das sirva de Deus, para a salvação de suas almas» . Na Vida do Roberto, composta pelo Andrés, um de seus companheiros, há uma formulação muito parecida que acentúa esse aspecto de serviço galante (desenvolvido na mesma época em términos profanos pelo trovador Guillermo da Aquitania, marido da Ermengarda, precisamente), e que se refere à obediência masculina: «Ordenei-lhes obedecer todo o tempo de sua vida às sirva do Jesucristo, para a salvação de suas almas, e lhes servir por amor de seu marido Jesus» . Um milagre, localizado pelo J. Dalarun, permite ilustrar a mutação do papel feminino dentro da Igreja durante esse começo do século XII: observamos o trânsito da exclusão horrorizada do sagrado (quão mesma perdura no direito canônico e que se endurece, por pura reação, em um certo profetismo masculino, como vimos no primeiro capítulo) à integração raciocinada no universo clerical. No curso de seu predicación itinerante, Roberto chega com sua tropa mista de discípulos à igreja do Menelao (Menat, no atual Puy-do Dóme), por volta do ano 1114. A tradição local proibiu o acesso às mulheres, sou pena de uma morte imediata enviada pelo céu. Roberto entrou apesar da ameaça, e o castigo não se produziu; então os habitantes clamaram vingança a São Menelao, mas Roberto lhes dirigiu um sermão que apagou o engano: «Deixem, boa gente, não façam em vão rogativas tão néscias! Saibam, pelo contrário, que os Santos não são inimigos das esposas do Jesucristo. Porque o que dizem é uma coisa absurda e a pureza da fé católica conhece justamente o contrário; como ficou dito no Evangelho dessa piedosa pecador, a que beijou os pés do Redentor, e os lavou com suas lágrimas, e com seus cabelos os secou, e com ungüentos perfumou a seu muito digno professor . Este conceito expiatório e um tanto especulativo da mulher é bem distinto da atitude de separação que advertimos na anedota que dá pé à proibição e em que figura um dos avatares primitivos e prototípicos da Juana a disfarçada, em uma atmosfera próxima à dura misoginia dos Pais do deserto. A anedota é a seguinte: em uma vida antiga de São Calais proibiu que as mulheres visitassem seu monastério, ao objeto de que seu rosto permanecesse oculto à tentadora. Ao parecer, no desejo que tinha expresso uma rainha por ver seu rosto, Calais tinha reconhecido uma tentação do diabo para lhe perder: «depois de sua morte, uma impudica, uma filha da Eva, emudecida pela serpente da lubricidade, tenta entrar, apesar da proibição, no santuário onde repousa o corpo de São Calais. Para conseguir seu propósito, barbeia-se os cabelos e se disfarça de homem. Logo que penetrou no santo lugar, perde a vista e é traída por uma perda de sangue que alaga o chão» . No Menelao, depois de exorcisar a imagem satânica da tentadora disfarçada mas traída por seu ventre (Juana, sempre Juana), a pecador entra na igreja, mas esta vez para honrar ao Marido e sob a direção espiritual do homem. Esta integração vigiada, ao tempo que nos afasta da profetisa, situa-nos ante uma forma mais precisa e mais general de recuperação do profetismo feminino, que se exerce na direção das visionárias a partir do século XII. Isto é, um modelo estável e duradouro associa a uma mulher inspirada, freqüentemente analfabeta, com um diretor de consciência que lhe serve de guia, de promotor e de exegeta, toda vez que se oculte detrás dela. A profetisa domesticada O modelo alcança sua máxima expressão no século XIII, concretamente nas ordens mendicantes, que, mediante sua inserção urbana e sua independência frente à instituição paroquial e episcopal, podia escutar vozes populares inspiradas. O esquema de investimento crística, reativado pelos franciscanos, induziu, como vimos, aos espirituais a afirmar que a verdade de Cristo podia refugiar-se, em última instância, entre os pobres, os doentes, os meninos e as mulheres. A partir do século XIII, e inclusive fora da dramaturgia escatológica dos espirituais franciscanos, circula «a convicção de que o intermediário privilegiado da revelação divina era jovem, pobre e feminino» . Um exemplo tão chamativo como extremo de dita convicção, assim como do marco masculino e clerical a que aquela faz referência, é o que nos brinda a pequena profetisa da Santa María no Cigoli, a finais do século XIV, e que foi estudado pelo Daniel Borstein : se trata do caso de uma menina de dez anos, quem, oculta e separada dos fiéis, fala por boca de um sacerdote. Desde a Hildegarda até esta jovencísima visionária, a profetisa, órgão de Deus, converte-se em uma simples peça do instrumento clerical e masculino. Mas em vez de multiplicar os exemplos fáceis que ilustram dito modelo (uma mulher profetisa aparente está acompanhada de um homem douto e dono de sua voz) passaremos diretamente ao extremo do período que nos ocupa no presente capítulo, quer dizer ao século XVI, fora já da Igreja, para atender essa situação da que surge uma nova Juana. Guillermo Postel e seu papisa Juana Guillermo Postel (1510-1581) foi um desses grandes iluminados do Renascimento que mesclaram a mais ampla erudição com o hermetismo mais sincrético. O êxito de sua reputação e de sua carreira impede que lhe reduza à loucura comum, atribuível aos inventores de sistemas teosóficos, tão abundantes no século XVI. depois de realizar sólidos estudos (adquiriu o grau de professor em artes em 1530), acompanhou em 1535 ao embaixador Juan da Forest a Constantinopla, de onde se trouxe numerosos manuscritos assim como um conhecimento fluido das línguas orientais. A sua volta, compôs a primeira gramática da língua árabe em francês, e chegou a ser leitor de matemática e de «línguas peregrina» no Colégio Real. Obteve o benefício de um decanato no Anjou. Depois se transladou a Roma, onde ingressou na Companhia do Jesus da que logo foi expulso, dado que se dedicava já a expor seu sistema político-religioso, proclamando em voz alta os dois princípios que sustentam sua obra: a primazia do concílio sobre a Papa, e o direito de primogenitura do rei da França sobre a monarquia universal. Em 1547, instala-se em Veneza, onde se entrega a uma tradução glosada do Zohar, ao tempo que proporciona, no hospital de San Juan e São Pablo, direção espiritual a uma «devota» analfabeta, a Mãe Juana. Esta mulher, da que só temos notícia pelo próprio Postel, dizia ser Papa e esposa do Jesus, como nos conta o que se converteria em sua exegeta: «Disse-me, me enchendo de maravilha, que ela, até sendo mulher, era a Papa angélica e Reformador do mundo. O que, considerando eu que ela era mulher e que não estava cheia do Espírito Santo e da substância do Jesus, duque soberano da Igreja, escandalizou-me. Mas quando ela me disse: "Vou sarete IL mijo figliovolo da minha substanzia e dava quella do mijo sposo Jesu generato"*, então compreendi bem o que ela tinha querido dizer por si mesmo, já que era para mim» . Convencido por esta mensagem de que o eleito era ele mesmo, Postel parte de novo para o Oriente, para Terra Santa, e retorna a França em 1551. Em 1552 se proclama Papa com o nome do Pedro II; apesar de suas extravagâncias, Postel não conseguiu interessar à Igreja: a Inquisição o declarou louco («amens»), e foi preciso que escrevesse contra Paulo IV em Roma em 1559 para que lhe metessem no cárcere durante um tempo. Catalina do Médicis lhe ofereceu o posto de preceptor do Hércules-Francisco do Valois. Morreu apaciblemente em 1581. Por volta de 1550, Juana, que fazia chamar-se também Jechochannah («Graça do Senhor» em hebreu), havia falecido não sem antes delegar sua imortalidade ao Postel, quem se proclamou, de acordo com o indicado por seu papisa, primogênito da Mãe Juana e de seu marido Jesus, quer dizer Caín, filho do novo Adão e da nova Eva. A partir de então, e em numerosas publicações, parece retomar a mensagem da Manfreda do Pirovano; como se desprende, por exemplo, do título de sua obra mais famosa, editada em Paris em 1553: Três merveilleuses Victoires dê Femmes du Mouveau Pode et comment elles doivent À tout lhe pode commander et mesme À ceulx qui auront a monarchie du pode vieil. Mas esse «feminismo» manfredino aparente oculta, de fato, o modelo ao que nos referimos mais acima, o da manipulação masculina da iluminação. Para o Postel a Mãe Juana representa uma fonte de humilhação («Estando o Espírito de Deus oculto sob a mais abjeta criatura do mundo, como quis aparecer minha Mãe ante o mundo») . Em seus Rétractations do Guillaume Postel touchant os propos do Mere Jeanne (onde, a pesar do título, Postel não renega absolutamente de seu sistema), o autor decifra o sentido de seu elogio das mulheres: «Pois não querendo escutar pelas sortes mulheres (o que São Agustín chama a Razão Inferior da mulher tanto em um como em outro sexo) mais que a razão natural» . O acontecimento de 1547 se decifra da seguinte maneira: Jesus, figura feminina e masculina, veio por duas vezes: primeiro sob aspecto masculino (que designa a forma, a inteligência, a autoridade, o «animus») para recuperar aos humanos através da Paixão; depois, em 1547, Ele veio para manifestar, através de uma delegação feminina, a «restauração» do ser humano, de sua parte inferior, «feminina» (o princípio feminino tem que ver aqui com a matéria, com a razão natural e inferior, com a execução, com o «anima»). Quão único faz a Mãe Juana em 1547 é iluminar ao Postel: «A Mãe do Mundo pôs seu espírito em mim para esse fim, para que, como o novo Adão, seu Marido criou na Judea o Papado segundo a ordem do Melquisedec chamado Sem, filho do Noé, também ela em mim (dado que a mulher não deve na Igreja, pela autoridade que durou até aqui, ensinar) criasse o Império ou Monarquia do direito do Jafet, irmão do dito Sem, como se instituiu no século de ouro. E quem não me cria se arrependerá mais tarde» . Inclusive no texto das Victoires dê Femmes, Guillermo Postel propõe, com uma mescla de cinismo e de ingenuidade, o princípio que regula esta conduta masculina na direção das mulheres, cuja inspiração interpreta como um esforço vão por alcançar a razão do varão: «E quanto a elas, que por causa de sua imperfeição, sentem o desejo de querer unir-se a uma natureza superior, formal e mais perfeita, não devem ser por isso tão recriminadas como o são os homens, já que os homens, contra a natureza da perfeição, e ao obedecer às mulheres, tendem para o que é imperfeito, enquanto que elas, elas se inclinam para o que é perfeito, que é o homem» . A Mãe Juana e Santa Hildegarda se situam nos dois extremos da integração da profetisa no discurso masculino. Mas além disso, e isto é o importante, advertimos que ambos os extremos se tocam em muitos aspectos, já que as figuras respectivas da profetisa, da feiticeira, da usurpadora e da inspirada se mesclam e se sobrepõem, todas elas expressam, desde distintos pontos de vista, e desde situações diferentes, uma das grandes aporías do cristianismo medieval: Como dar uma forma masculina (legal, legítima) a uma palavra que foi anunciada e concebida por uma mulher e transmitida por um discurso coloque-sexual? A menos que esse contínuo assalto feminino das instituições masculinas não seja uma forma essencial do sagrado cristão. Em nossa busca de uma Juana, sábia e dominadora, encontramo-nos com uma verdadeira legião (Manfreda, Juana de Arco, Hildegarda, Petronila, Gunda, Mãe Juana e todas suas primas), variantes elogiadas ou desprezadas, temidas ou respeitadas, livres ou encadeadas, a mercê de projeções e de rechaços, de compromissos e de condenações. A imagem do Tarot que comentamos até aqui se acomodava muito bem a esta presença cíclica, ameaçador e desejada; a papisa, necessária e virtualmente distribuída, toma ou se deixa tomar no momento desejado ou temido. A história só pode comentar e classificar suas aparições decisivas sem as elevar a fila de lei, e a errabundez da Juana, fora do discurso cronográfico, só se deixa guiar covardemente por algumas regra institucionais. A imagem do Tarot permitia que funcionasse uma simulação do real; mas se afastarmos um pouco mais a papisa do acontecido (real ou fantástico), então poderemos construir esse simulacro que chamamos literatura, e que obteremos pela via indireta da segunda representação iconográfica da papisa na Idade Média. Juana entre as damas deslumbrantes Há dois manuscritos prestigiosos, datados em torno do 1400, executados para a corte borgoñona e ricamente iluminados, que têm cada um deles uma miniatura onde se representa ao parto da Juana durante a procissão romana; trata-se de duas exemplares da tradução francesa do Du Mulieribus claris do Boccaccio. Sobre o Tarot (com um retrato grave ou alegre), Juana perde a ambivalência de sua representação; mas aqui a imagem já não pinta o oculto de um enigma, a não ser sua resolução: as roupas deslumbrantes dos personagens (cardeais, bispos, monges) indicam a publicidade da cena. O menino da Juana atravessa seu hábito pontifício e salta para baixo, como símbolo anunciador e denunciador da queda de sua mãe, de cuja presença nos informa a silhueta vacilante e ainda pesada da Juana. Os miniaturistas optaram por descrever o acontecimento e o brilho . Neste sentido, não traem o espírito do Boccaccio. Em 1361, Boccaccio redige em latim, em seu retiro do Certaldo, uma galeria de retratos femininos, seguindo o modelo antigo de homens ilustres, gênero que nesse mesmo momento renovava seu amigo Petrarca, como indica o próprio Boccaccio em sua introdução. Boccaccio se ocupa de mulheres mais deslumbrantes («claris») que ilustres, de maneira que conservaremos a tradução literal do título, contra o que se feito tradicionalmente. Em efeito, seu panteão de 106 mulheres extrai sua unidade da energia feminina mais que da grandeza moral ou social. O fato de que se sirva do latim (em vez do italiano como no Decamerón) e a eleição das escolhidas corroboram plenamente esta impressão. Porque quando em 1361 Boccaccio renuncia à língua italiana, seu propósito é exaltar a herança antiga e mediterránea da força da alma; assim é que as mulheres cristãs ocupam um lugar pouco importante nas Mulheres deslumbrantes: depois da vida inicial da Eva, há nada menos que 39 capítulos (II-EXTRA GRANDE) dedicados às heroínas da mitologia e da poesia antigas; e, continuando, outros 60 capítulos (XLI-C) ocupam-se de mulheres notáveis da história profana antiga, às que se unem três mulheres tiradas da Bíblia (Atalía, Nicola e Mariana). Só os seis últimos capítulos apresentam a mulheres da Idade Média cristã, embora dois destes capítulos foram acrescentados posteriormente, durante o verão de 1362, a conseqüência de um desejo galante. Boccaccio tinha sido convidado a Nápoles pelo senescal Nicolás Acciaivoli, e então quis dedicar Mulheres deslumbrantes à irmã de seu anfitrião, Andreola, algema a sua vez do conde Bartolomé II da Capua; foi então quando escreveu o capítulo CV sobre a Cammiola, uma sienesa que se ilustrou na Mesina (delicada alusão a Andreola, outra toscana que vivia no sul). Redige deste modo um novo capítulo sobre a rainha Juana de Nápoles, soberana do reino ao que se dirigia Boccaccio. Estes detalhes demonstram que a inclusão da papisa nesta série a projeta em um universo incomum para ela; assim, em 1361, Juana sai da Igreja para entrar na literatura e na feminilidade. Neste novo contexto, Juana tem que medir suas forças com outras mulheres de exceção; quer dizer, que a questão eclesiológica ou a preocupação do sagrado carecem já de importância, pois os temas religiosos ou morais ficam neutralizados com essa lembrança da façanha feminina que põe sobre a cena tanto a jaquetas como a cortesãs. O novo estatuto da Juana resulta difícil de definir. Boccaccio não pretende passar por historiador, de maneira que ao tempo que se serve com uma desenvoltura consciente de suas fontes, às que às vezes não reconhece nenhuma veracidade, outorga-se a si mesmo o direito de inventar. Terei que falar então de uma existência literária da Juana? Não tentaremos justificar a «literaridad» de Mulheres deslumbrantes, já que sorte tarefa seria muito infeliz; basta para nosso propósito indicar que neste texto Boccaccio não pretende fazer acreditar, a não ser significar. fazse, pois, necessário, imaginar um terceiro tipo de crença na Juana, e colocar, ao lado da crença verídica e da crença fantástica, um acordo de leitura: o leitor advertido (e só ele, já que pode lerse qualquer texto literário segundo formas de crença não previstas) disposta sua adesão ao acordar ao texto uma exemplaridade significante e metafórica: não acreditam na existência histórica do vice-cônsul de Margarida Duras, mas aderimos a sua existência enquanto dura uma leitura, e sobre tudo enquanto estimemos que representa a verdade do homem fulminado pelo amor. Todas estas considerações, um tanto plainas e antihistóricas, parecem-nos entretanto necessárias para situar o novo estatuto da Juana no Boccaccio, e em conseqüência para medir a complexidade de sua situação a partir de 1360: nas consciências medievais, Juana é de uma vez uma Papa inauténtico (crença 1), uma verdadeira feiticeira ou uma verdadeira profetisa (crença 2) e uma heroína verossímil e exemplar (crença 3). É hora de ler o texto do Boccaccio; a glória de seu autor, a importância da ocasião e o encanto da narração justificam uma tradução integral deste curto capítulo de Mulheres deslumbrantes. A papisa Juana do Boccaccio «Juana a inglesa, Papa. Juan, homem por seu nome, foi, entretanto, uma mulher por seu sexo. Sua temeridade inaudita a fez célebre no mundo inteiro e lhe deu a conhecer na posteridade. Alguns dizem que sua pátria de origem foi Maguncia; mas desconhecemos seu nome de pilha, embora para alguns se chama Gilberto antes de seu pontificado. O que para muitos parece seguro é que esta virgem foi amada por um jovem estudante e se diz que lhe amou até o ponto de abandonar o pudor virginal e o temor feminino fugindo secretamente da morada paterna para seguir a seu amante depois de trocar de roupa e de nome; a seu lado, durante seus estudos na Inglaterra, fez-se passar por clérigo aos olhos de todos e se entregou a Vênus e aos estudos. Depois o jovem foi arrebatado pela morte; e como lhe tinha reconhecido talento e a doçura da ciência lhe atraía, conservou seu hábito e não quis ficar outros vestidos nem apresentar-se como mulher; assim, prosseguiu seus estudos com interesse e perseverança, e progrediu tanto nas artes liberais e na teologia que a estimava muito por cima de todos outros. Então, dotada de uma ciência extraordinária, que aumentava com a idade, deixou a Inglaterra por Roma; ali, ensinou durante alguns anos o trivium e teve insignes ouvintes. E como brilhava, além de por sua ciência, pelo resplendor de seus costumes e por uma piedade notável, todos acreditaram que eram um homem. Era, pois, ilustre e, quando a Papa Leão V pagou a dívida de sua carne, os muito veneráveis Pais a escolheram com um acordo unânime para o Papado, inclusive antes da morte da Papa; tomou o nome do Juan. Se tivesse sido um homem, teria sido Juan VIII. E, entretanto, não teve medo de subir à cadeira do Pescador de homens, nem de tocar, manipular e mostrar todos os objetos sagrados do mistério, o qual não está permitido a nenhuma mulher na religião cristã; durante alguns anos uma mulher ocupou o topo do apostolado e dirigiu o vicariado de Cristo na terra. »No céu, Deus teve piedade de seu povo, e não suportando que uma fila tão insigne estivesse ocupada por uma mulher, nem que presidisse a uma nação tão considerável, nem que a manchasse com semelhante engano, abandonou a que ousava com seus atos ilegítimos e que não tinha permanecido entre Suas mãos. É pelo que, a instigação do diabo que lhe tinha empurrado a semelhante falta e lhe insuflava audácia, aconteceu que ela, que, em sua vida privada, tinha conservado grande honestidade de costumes, caiu no ardor do prazer, uma vez elevada ao supremo pontificado. A que durante tanto tempo tinha sabido dissimular seu sexo não carecia de recursos para satisfazer sua lascívia. E, de fato, quando foi encontrado o que secretamente conheceu sucessor do Pedro e aliviou o ardor de seu desejo, ocorreu que a Papa concebeu. »OH crime indigno, OH paciência invicta de Deus! O que, pois? A que tinha sabido durante tão comprido tempo fascinar os olhos dos homens, faltou-lhe o talento para ocultar sua iluminação incestuosa. Em efeito, estava muito próxima do término; vindo do Janículo, celebrava uma procissão sagrada; dirigia-se para o Letrán e se encontrava entre o Coliseu e a igreja da Papa Clemente quando, sem ter chamado a uma parteira, iluminou publicamente e revelou com que astúcia tinha enganado durante tanto tempo a todos os homens, exceto a seu amante. E então, rechaçada pelos Pais às trevas exteriores, morreu com seu miserável fruto. Detestando sua impureza e em memória de seu nome, até nossos dias, os pontífices supremos, ao conduzir a procissão das Rogativas com o clero e o povo, amaldiçoam o lugar da iluminação, situado a metade do trajeto e, para evitar dito lugar, desviam-se por vias transversais e por ruelas e, depois de deixar atrás esse lugar detestável, retornam a seu caminho e concluem o que empreenderam» . O trabalho do Boccaccio Boccaccio se ajusta bastante ao esquema narrativo do Martín o Polonês, desenvolvendo-o segundo uma técnica de ampliação que poderia nos incitar a entender o esforço literário em términos de ornamentação. Consideremos, por exemplo, a alusão ao desvio, onde a retórica do quadro (do ekphrasis) só acrescenta seu virtuosidad. Por nossa parte, poderíamos acrescentar uma retórica do comentário moral, da glosa da ação («Ou scelus indignum»). Entretanto, a atmosfera narrativa é bem distinta; não nos deteremos nas divergências menores que se explicam tanto pela liberdade que se outorga Boccaccio a si mesmo, como pelas aproximações da transmissão manuscrita do texto do Polonês, constantemente copiado e emendado, como já havemos dito. A transformação de Leão IV em Leão V, de Vaticano do Janículo, pode indicar uma leitura defeituosa por parte de um copista ou do próprio Boccaccio, pois em realidade essas alterações não significam nada. O conhecimento prehumanista do Boccaccio pôde substituir deste modo a estadia de estudos em Atenas por uma fuga na Inglaterra, resolvendo assim de repente o mistério do Juan inglês; porque Boccaccio conhecia muito bem a cultura grego-romana e sua sobrevivência medieval para ignorar que a Atenas do século IX não podia oferecer ensino alguma a Juana. Por outro lado, este detalhe desempenhará seu papel na refutação da história da Juana durante a Idade Moderna. Mas há outro detalhe que nos parece misterioso; trata-se do nome do Gilberto com o que Boccaccio batiza a Juana em seu estado masculino pre-papal; é possível que constitua um testemunho da existência de versões desaparecidas, a menos que um copista-glosista tenha misturado as histórias das Papas más, assinalados com o sufixo «-bertus», às vezes satânico na Idade Média (pensemos no Roberto o diabo). Nesta ordem de coisas, vimos, por exemplo, como Juan do Mailly investiu os nomes e as atuações do Gerbertus (Silvestre II o necromántico) e do Guibertus (Guiberto da Rávena, o antipapa de Pascal II); assim, pois, Gilbertus se encontra muito perto, gráfica e connotativamente. A transformação do Juan (Johannes) na Juana (Johanna) no título do capítulo, de capital importância para o desenvolvimento da história, é sem dúvida responsabilidade direta do Boccaccio: nas Mulheres deslumbrantes, Juana devia apresentar-se com nome de mulher, posto que é mulher entre mulheres. Paixões da Juana Mas todas estas transformações e apliques em modo algum alteram o relato de" Martín o Polonês mais do que o fazem as adaptações cronográficas clericais, citadas no capítulo anterior. Não obstante, a narração do Boccaccio sim introduz uma inovação considerável ao compor a história com duas tendências, algo assim como «Grandeza e queda da Juana». Enquanto Juana não aceitou o Papado, Boccaccio a considera com a mesma simpatia que sente por todas as mulheres que, fazendo ornamento de uma nobre energia, superam sua própria condição (até o ponto de abandonar o pudor virginal e o temor feminino); aqui, o amor (a predileção) recíproca justifica a audácia («a scolastico juvene dilectam quem adeo dilexisse ferunt»). O amor e a paixão do saber constróem a força desta mulher, e o golpe fatal que lhe arrasta à perdição só pode produzir-se por causa da morte do amado (inventada pelo Boccaccio). O fato de que prossiga com seus estudos e conserve seu disfarce expressa uma espécie de fidelidade por parte da Juana: a ambição durante o celibato (Boccaccio sublinha a castidade inconsolável da Juana) deriva o amor perdido para seu elemento complementar, a paixão do saber. Boccaccio, grande admirador da cultura feminina, reconhece a Juana um campo de conhecimento mais amplo que o próprio Martín o Polonês, quem limitava as competências da papisa ao «trivium» (gramática, lógica e dialética) das artes liberais; Boccaccio acrescenta por sua conta a disciplina reina: a teologia. Graças aos trabalhos do Jacques Verger , sabemos que as faculdades de artes (o que corresponderia mais ou menos a um segundo ciclo de nossos liceus) registraram uma perda constante de prestigio ao longo da Idade Média, frente às faculdades superiores (teologia, direito e medicina). Mas, inclusive neste âmbito, a malícia do Martín o Polonês proporcionava uma inflexão significativa: os dominicanos não seguiam pelo general o ciclo de artes que tinha perdido seu valor propedeútico, e que eles substituíam com sua formação geral, nos «studia» de sua ordem; é possível, pois, que a intenção do Martín seja lançar um invectiva contra essas faculdades de clérigos que oferecem um saber superficial de sedução e de engano, e não fundamentos sólidos de conhecimento. Mas esse alto grau de conhecimento que Boccaccio atribui a Juana, repartido para o exterior, investe os valores, pois arrasta a Juana à usurpação e o estupro. Frente à «predileção» recíproca dos estudantes, Boccaccio propõe o ardor do prazer («in ardorem libidinis»), e o desejo abrasador (literalmente, o comichão: «exurientem pruriginem») que induz a Juana a encontrar um amante famoso pelo Boccaccio como um mero objeto sexual («adinvento qui... exurientem pruriginem defricaret»). Há uma palavra que importa aqui por quanto indica a aparição de um valor em meio deste século XIV: «privata»: «ela, que em sua vida privada tinha conservado sua honestidade de costumes»: «privata», que se refere ao estatuto da Juana antes de seu Papado. Mas a palavra comporta uma conotação tão moral como social: o amor da Juana e sua fome de saber só podiam e deviam cultivar-se na esfera privada. Resulta difícil avaliar o sentido que Boccaccio dá à segunda vertente ou tendência da vida da Juana: ou nos encontramos ante uma adesão necessária por parte do autor à versão clerical da história (Juana se serviu que uma argúcia imperdoável e profanou o trono do Pedro), ou ante a limitação que o próprio Boccaccio confere à ação de uma mulher (a superação da condição feminina não requer uma substituição de papéis). O terceiro capítulo de Mulheres deslumbrantes, dedicado ao Semíramis, reina de Agarraria, convida-nos a nos inclinar pela segunda hipótese: Semíramis perde a seu marido Nino, quando seu filho Ninia é ainda muito jovem para assumir a direção do reino. Semíramis recorre então à astúcia e ao disfarce (e neste texto encontramos o lote completo das expressões já conhecidas que descrevem a atuação da Juana: «astu quodam muliebri», «mentita sexum»): aproveitando seu grande parecido com seu filho, ainda imberbe, fazse passar por ele. Boccaccio elogia a empresa, tanto por suas motivações como por seus resultados: Semíramis se disfarçou para salvar a dinastia e o reino; quando julgar que o perigo passou, restabelecerá a verdade, seu êxito como monarca feminino é deslumbrante e canta a glória do sexo feminino: «como se queria demonstrar que não é o sexo, a não ser o caráter o que destina ao poder», leva mais longe que seu defunto algemo as conquistas de Agarraria, até Etiópia e a Índia. Mas, ao igual a Juana, provoca sua queda entregando-se à licença, cosi fã tutte*: «Em efeito, arde, como as demais mulheres, no comichão contínuo do desejo» («assidua lubidinis prurigine», a palavra é quão mesma para a Juana), e acrescenta a seu próprio filho à lista de seus numerosos amantes . Mas esta debilidade libidinosa da mulher não nos devolve à figura da feiticeira, e neste sentido terá que sublinhar a distância extraordinária que separa ao Boccaccio das versões religiosas da história da Juana: o saber e o disfarce pertencem à vida laica, amorosa e boa da Juana, isenta de todo satanismo mediante contrato diabólico) e a sedução (a beleza do diabo que troca de repente a Juana de Arco segundo Shakespeare) para dominar e investir o bem. A falta da Juana é conseqüência de sua passividade (deixa-se coroar, abandona-se ao estupro), como se a morte do amante amado tivesse matado a mola que enfaixava sua energia. Se tivermos em conta (preocupação vã) as receitas do «feminismo», duvidaríamos a propósito do Boccaccio entre duas avaliações: alguém elogiaria a quem elogia a energia feminina que sabe superar as condições naturais e sociais, e que só se perde pela fascinação que sente pelo modelo masculino; e a outra assinalaria um elogio muito moderado da femineidad que só alcança a excelência dentro do âmbito estritamente feminino e da relação com o homem. A transformação da Juana em heroína da literatura tem pelo menos a mesma importância que sua reabilitação «feminista» (ou pseudo-feminista). Como havemos dito, este trânsito se efectúa mediante uma neutralização das implicações ideológicas do personagem: já não se trata de conhecer o grau de pontificalidad que representa Juana, nem tampouco o alcance de seu satanismo; a galeria feminina do Boccaccio, apesar da exegese que lhe possa aplicar, tampouco problema-giz seja o tema da mulher, seja que, conforme confessa ele mesmo, Boccaccio mescla o verdadeiro com o fictício de um capítulo a outro. A composição de conjunto trata os relatos como elementos de um paradigma, como variações sobre um mesmo tema (como se converte a mulher em deslumbrante?). Boccaccio desenha caracteres, e, como vimos a propósito da Juana e do Semíramis, a construção de cada relato se apóia no princípio aristotélico da tragédia: uma lenta ascensão para a catástrofe. Na história da Juana, o elemento papal marca a maior distancia possível entre a queda e o êxito, entre a aparência e a realidade; em resumo, a papisa representa uma figura literária (trágica ou romântica) ideal. Posteridade do Boccaccio A versão profundamente laica do Boccaccio teve um êxito considerável, como se desprende dos numerosos manuscritos que da mesma se conservaram, e das traduções a diversas línguas (entre elas a tradução francesa do Femmes éclatantes, ilustrada com as miniaturas às que nos referimos mais acima). Os humanistas europeus citaram abundantemente o texto do Boccaccio (Godofredo Chaucer, Lorenzo do Primierfait, Juan Sachs, Alvaro de Lua, Alfonso da Cartagena). Numerosos adaptadores e continuadores redigiram Mulheres Ilustres, como é o caso do carmelita Felipe do Bérgamo (Giacomo Filippo Foresti), quem em 1497 publicou na Ferrara um De plurimis claris selectisque mulieribus, onde figura um capítulo dedicado a papisa, redigido em um espírito muito boccacciano. Não obstante, terá que assinalar que o feminismo anterior à carta da Cristina do Pizan, de princípios do século XV, obrigou-lhe a que excluíra a Juana de sua Cidade das mulheres apesar de que em dito texto Felipe do Bérgamo toma bastante emprestado do Boccaccio . Por sua parte, Juan Texier do Ravisy (ou Ravisius Textor) leva, em 1501, a laicización até uma espécie de neutralidade antropológica, ao enumerar em seu Officinae prima pares às mulheres disfarçadas, com independência de suas motivações: Semíramis, as santas cristãs (Teodora, Marinha, Eufrosina e Pelagia), Juana de Arco, e por último Juana a papisa (enfrentadas entre si como «Johanna gallica» e «Johanna anglica»). A narração do Boccaccio tinha difundido uma nova colocação no que Juana já não se combinava nem com as Papas, nem com as feiticeiras, nem com as profetisas: enfrentava-se ao mundo e aos homens como uma heroína forte e desgraçada, e entrava em uma existência literária que só seguiremos mais adiante, quando a censura das Reformas despoje a Juana da ambigüidade que arrastava no texto do Boccaccio, para deixá-la na fronteira incerta que separa a novela da história. Esbocemos simplesmente as direções que, a finais da Idade Média, ofereciamse a seu passo feminino, direções todas elas balizadas com textos ainda escassos. A partir da narração do Boccaccio, o biógrafo da Juana pode já confeccionar a novela da revanche feminina. A princípios do século XVI, Mario Equicola do Alveto afirmava em seu tratado Mulheres que a Providência tinha querido que Juana ocupasse a cadeira de São Pedro para demonstrar que as mulheres não são inferiores aos homens. Um romance de finais do século XIII, o Romance de Silêncio, escrito pelo Heldris do Cornualles , poderia servir de modelo. O rei da Inglaterra deseja proibir a transmissão das heranças às mulheres. O barão Cador, herdeiro do Cornualles, que só tem uma filha, disfarça-a e a educa como se fora um menino, e lhe chama Silêncio. Natureza e Cultura cercam uma disputa a propósito de dita educação, mas Razão a sarjeta a favor de Cultura: uma mulher pode acessar às mesmas competências e aos mesmos direitos que os homens graças à educação. As subseqüentes aventuras de Silêncio assim o demonstram: abandona o domicílio paterno, converte-se em um histrião ilustre no continente, para retornar logo a corte da Inglaterra onde leva a cabo uma difícil tarefa (a captura do Merlín), e desmascara ao amante da rainha disfarçado de monja. Apesar de seu trágico final, é possível que a narração do Boccaccio sugerisse esta orientação, retomada, como se verá, por algumas cria novelas contemporâneas. Uma segunda leitura da história da Juana, obstinada a seus conteúdos novelescos e trágicos, preparava a novela da ambição amorosa travada pelo destino ou pela lei do mundo. Ao nos referir à vida legendária e real da Papa Adriano IV, já assinalamos que a Igreja era quão única oferecia uma possibilidade de ascensão social por méritos na Idade Média; em conseqüência, o percurso clerical da Juana não era absolutamente impossível e permitia albergar sonhos. A Juana que nos apresenta um manuscrito anônimo do século XIV, conservado na abadia do Tegernsee (nessa Baviera que tão bem acolheu a papisa) não é de origem modesta, embora sua decisão de romper com sua família para viver com seu amante a situa no grau mais desço da escala social, que ela subirá de novo por seus próprios meios, com a energia de uma conquistadora. traduzimos aqui esse curioso texto que acentúa as tendências do texto do Boccaccio, inclusive embora pareça impossível provar que exista uma dependência entre os dois textos. Aqui não se condena a Juana absolutamente, e o fato de que o amante da papisa, Pircio, acompanhe-lhe constantemente em seu percurso e de que ele mesmo chegue a cardeal elimina os aspectos de degradação moral. Este casal de bons gestores da Igreja, de não ter sido pelo desconhecimento dos ciclos da gestação, tivesse podido concluir em paz e em prosperidade sua carreira eclesiástica e amorosa. As morais versificadas ao final do texto tematizan esse poderio do saber ou da prudência que permite subir os degraus da sociedade humana. O único engano desta Juana (chamada Jutta, embora tanto na Baviera como em outros contextos esse nome alterna com o da Juana) reside em sua falta de legitimidade social. O final versificado conclui com uma variante da fórmula das seis P em que, significativamente, o «Pater Patrum» se converte no Pater Pauperum» (o Pai dos Pobres); desta maneira, o autor nos recorda ironicamente que a usurpação por parte da Jutta, uma pobre voluntária, não é a mais grave, e que, inclusive escondida, só é aparente. Leiamos a seguir a reabilitação social e novelesca da Juana. A papisa do Tegernsee «trata-se da Papa Jutta que não foi alemão, como pretende equívocamente a crônica do Martín. A jovem Glancia foi a filha de um muito rico cidadão da Tesalia; toda sua atenção se concentrava na sabedoria. Gozava de um espírito agudo e de um caráter dócil. As freqüentes leituras desenvolveram essas qualidades e em pouco tempo alcançou uma grande reputação. E a realidade superava os louvores. Havia, nas escolas, um jovem chamado Pircio, que tinha sua idade; conheceu as grandes condicione para o estudo da jovem, as riquezas de seu pai, sua simplicidade e sua sabedoria. O amor aproximou dos que pela idade se uniam; falaram de matrimônio, mas os pais se negaram. O amor e o desejo mútuo aumentaram entre ambos, e com o progresso dos dias e da idade chegaram aos beijos e aos abraços impaciente. Por fim, um dia, foram-se a um refúgio e se uniram ardentemente. depois de entregar-se ao jogo de Vênus, falaram de fugir. Ela, entre as mulheres, ele, entre os homens, queriam sobressair na virtude e no estudo; decidiram, pois, partir a Atenas. Um e outro se proveram de todas as riquezas que puderam; ela adotou as roupas e as maneiras de um homem; o traje, mas também o espírito os fazia extraordinariamente parecidos o um ao outro. Sem tardança, dirigiram-se a Atenas onde estudaram durante compridos anos; ela adquiria cada vez mais sabedoria tanto em teologia como na ciência das artes; do mesmo modo, ele se iluminou com toda a sabedoria. foram-se a Roma; ali ensinaram em todas as faculdades; iam a lhes escutar não só estudantes, mas também também doutore em todas as ciências, e quanto mais se afundavam estes ouvintes nas profundidades de seu saber, mais riquezas abundantes extraíam. Todos, incluídos os doutores de todas as faculdades, adoram-lhes; todos os cidadãos lhes veneram. Roma inteira elogia seus méritos, sua modéstia, sua virtude e sua sabedoria, cuja glória se difunde por toda a terra. Finalmente, à morte da Papa, a mulher é designada por uma eleição unânime, sem exceção; ante a súplica dos romanos, é elevada até a cúspide do apostolado. Seu amante Pircio é renomado cardeal; levaram uma vida prudente e, sob seu governo, toda a Igreja se regozijou. Mas porque as sementes do adultério estranha vez se fixam, ou se elas germinarem não se desenvolvem, ou inclusive, se elas se desenvolverem, não duram, aconteceu que a mulher que não tinha concebido nunca até então, uma vez papisa, achou-se grávida; ignorando os ritmos acostumados da gestação, dirigiu-se à igreja de San Juan do Letrán com todo o clero para celebrar uma missa solene. Mas entre o Coliseu e a Igreja de São Clemente, assaltada pelos dores, caiu, iluminou a um menino e morreu em seguida. As Papas evitam sempre esta via e antes da coroação se verifica sempre manualmente os órgãos viris de uma Papa. »Olhe a que graus elevam a virtude e a sabedoria / Os pequenos, altivos se convertem, protegidos pela sabedoria; mas de nada / Serve toda nossa sagacidade ou nosso artifício contra Deus / Olhe o poema que segue. »Para aprender todas as leis, a jovem peregrina / Glancia a deslumbrante trasgredió as leis dos homens partindo a Atenas / Com um jovem homem ela se fez homem e Cupido, mas este Cupido / Revolta às massas e insígnia aos doutores da Cidade / Em Papa se converte e ao engendrar a um menino, morreu perto do clero /. «Moral. Nada cresce mais que quão prudente goza do direito / Nada rebaixa tanto como o homem que não goza de nenhum direito. Papa. Pai dos Pobres, a Papisa Produziu um Papaizinho» . A história deste casal de Igreja, prefigurada pela do Abelardo e Eloísa, anuncia a aventura de um monge e de uma monja que, muito mais ao norte da Alemanha, e contra os poderes estabelecidos, governaram uma Igreja. E é precisamente o êxito deste monge, Martín Lutero, que, por uma nova ironia da história, reintegraria à força a papisa dentro da Igreja católica: o jogo existencial que oscilava entre o sério e a diversão, retornaria ao âmbito da polêmica para, em última instância, levar a Juana, denunciada ou renegada, à fogueira da história, da que só sairia pela fumata do imaginário. TERCEIRA PARTE Morte e transfiguración da papisa CAPITULO VI Juana na fogueira (Séculos xV-xVII) Em 1411 começa na Praga o Apocalipse segundo Juana: em meio de uma procissão circula pelas ruas da cidade um jovem disfarçado de prostituta e meio doido com os ornamentos papais. A cerimônia a tinha organizado Voksa do Valdstejn, um favorito do rei de Boêmia Wenceslao IV, para testemunhar assim o furor do povo e do rei contra a Igreja romana que acabava de condenar ao Juan Hus, por instigação do Dietrich do Niheim . A cena entra na história da Juana, já que anuncia, com um século de adiantamento, a assimilação polêmica dos luteranos entre o Papado e a Grande Prostituta do Apocalipse (Apoc. 17), com o concurso narrativo do episódio da papisa. Quatro anos depois, durante o concílio da Constanza, Juan Hus esgrimiria contra Roma a história da Juana : pela primeira vez, a papisa passava publicamente ao arsenal argumental de um herético (Ockam só era cismático, enquanto que Wyclif só citava a Juana em um pequeno tratado polêmico mas sem trascendencia). A dúvida de Ns Silvio Piccolomini (1451) Pela primeira vez, e nesta mesma Boêmia hussita, a Igreja duvida sobre a existência da Juana. Em 1451, o bispo de Siena, Ns Silvio Piccolomini (quem acessaria ao Papado sete anos depois com o nome de Pio II), encarregado de uma embaixada em Boêmia por conta do imperador Federico III, relata ao Juan Carvajal, cardeal de Santo Anjo, antigo legado pontifício em Boêmia, a missão que tinha realizado na república herética do Tabor (ao sul do país), em uma carta larga e apaixonada. Na missiva, o bispo reproduz (ou transcreve) o debate que sustentou com três dos chefes da república, «Nicolás, que eles chamam seu bispo, de vida ignominiosa; Juan Galechus, quem acabava de fugir da Polônia, por medo ao fogo, e Wenceslao Coranda, antigo servidor do diabo, quem afirma que o sacramento do altar não é mais que uma figura e uma metáfora» . depois de uma larga exortação em que glosa a angústia dos taboritas, Ns lhes propõe a única via de salvação e de paz: «Isto é o que eu lhes ameaço fazer, taboritas: "lhes apresentar com sua doutrina ante o romano pontífice; façam o que ele lhes ordene, sem lhes desviar a consolação do espírito, a paz e a salvação da alma". Nicolás: "Obedeceríamos à majestade apostólica e nos submeteríamos com toda devoção se não mandasse coisas contrárias à lei divina." Ns: "No que concerne à fé, jamais se viu que a sede apostólica errasse ou aprovasse dogmas perversos." Galechus: "Mas houve um engano manifesto no Inés." Ns: "De que Inés fala você?" Galechus: " Dessa mulher que a sede romana honrou como a um homem e colocou no topo do apostolado." Ns: "Mas nesse caso não houve engano nem de fé nem de direito, a não ser ignorância de um fato. E além disso a história não é segura." Nicolás: "Mas houve vários pontífices romanos criminosos, que agora purgam sua pena nos infernos." Ns: «Ignoro-o. Não obstante, se um deles pôde pecar, é porque, desviado por nossa fragilidade, como ocorre aos humanos, tem cansado. Mas o que eu pretendo afirmar é: a um pontífice romano incuestionado nunca lhe ouviu afirmar publicamente uma doutrina falsa"» . O debate, muito gorduroso, continua em torno da infalibilidade papal, e depois sobre as divergências em matéria de sacramentos entre católicos e taboritas. Este diálogo aplica a Juana-Inés o tratamento eclesiástico estabelecido pelo Guillermo do Ockam (distinção entre o fato e a lei), reiterado quase ao mesmo tempo do episódio taborita pela Torquemada. Não obstante, a postura católica pivota ligeiramente sobre este eixo fixo: quando Antonino de Florência ou Torquemada se referem a Juana, também eles esgrimem o argumento factual e modalizan a crença («conforme se diz»); mas sua atitude reflete certa tendência a aceitar a existência da papisa. Por sua parte, Ns parece inclinar-se para a revogação da dúvida {«neque certa historia est... quam Agnetem... nescio...»). Nada trocou: a papisa continua no coração mesmo do debate sobre a infalibilidade papal, e entretanto se produziu uma mutação decisiva entre, por um lado, Dietrich do Niheim, quem, como vimos, é a um tempo historiógrafo da Juana e perseguidor do Juan Hus, e por outro lado, Ns Silvio Piccolomini, primeiro juanoclasta (ainda indeciso, é certo) e adversário dos taboritas; o certo é que neste debate eclesiológico são os adversários da Igreja romana os que pronunciam o nome do Inés. Dito de outro modo, a história da papisa passa do estatuto de caso, de exemplo, ao de prova. Juana, presente sempre na primeira fila da batalha eclesiológica, indica a distância considerável que produz a revolução hussita, e que se traduz em uma «territorialización espiritual», por empregar a feliz expressão aplicada pelo Lucien Febvre ao luteranismo . Em 1411, Juan Hus passava ainda por ser um herético ordinário; mas em 1451 aparece já como o chefe póstumo de outra igreja, em outro território. A partir de então, o discurso eclesiástico já não pode nem englobar nem neutralizar. A totalidade católica se desfaz: os argumentos e os casos já não são compartilhados por todos, repartidos entre dois campos. O efeito desta mutação só se deixará sentir de uma maneira lenta e gradual, depois de que apareça o movimento luterano, e em conseqüência terá que esperar a 1562 para poder ler o primeiro rechaço sistemático da história da Juana por parte dos católicos, o que, por outra parte, não impedirá, como vimos, que o franciscano bretão Juan Rioche se refira de novo ao episódio da papisa a finais do século XVI. Mas a dúvida estava descartada, e este rechaço expulsará a Juana fora da Igreja, abandonando-a à mãos dos luteranos. Roma e a Germania: da invectiva à paródia Retornemos a muito importante procissão que tem lugar na Praga em 1411, pois não constitui um mero expoente tcheco do carnaval romano. O carnaval, ou sua forma mais social e política da Cornomanía, seguem sendo ritos inclusivos que investem os valores e as filas em um tempo limitado e cíclico, e modalizan uma integração, enquanto que a procissão da Praga se apresenta como uma manifestação de exclusão, que utiliza o investimento como uma figura exacerbada de rechaço e de condenação. Na Alemanha do século XV encontramos formas intermédias, que utilizam os ritos carnavalescos de forma violenta e profanatoria, a risco de ser condenados por parte das autoridades: em 1441 se passeia por Colônia um relicário paródico, com fantoches de carnaval, um hisopo e banderolas; em 1467 foram condenados 17 cidadãos em Frankfurt por representar uma paródia análoga. Em 1503, um grupo de jovens passearam pelo Habsburgo a uma cabra sobre uma almofada, decorado com cintas, e um sacerdote de paródia a batizou. Só se precisava um conteúdo mais forte e agressivo para que na Praga ou na Sajonia acontecesse com verdadeiros ritos de protesto. R. W. Scribner encontrou o rastro de uns vinte carnavais antipapistas celebrados na Alemanha, entre 1320 e 1540 . A representação da Igreja na figura de uma prostituta («meretrix») tem raízes muito antigas, bastante diferentes da sátira romana e comunal analisada na primeira parte; a partir já do século IX encontramos o gênero da Invectiva contra Roma, esplendidamente estudado pelo Josef Benzinger . Esta invectiva, que se serve de um vocabulário mais religioso que sócio-político (a diferença do anticlericalismo romano), tomou um auge considerável a finais do século XI como resultado das Lutas de Investiduras, que inaugura o grande enfrentamento entre o Papado e o Império, um enfrentamento que se prolonga quase ininterrumpidamente até o Carlos V e concretamente até o terrível saque de Roma em 1527 . A persistência do conflito gerou uma espécie de ódio vizinho no étnico entre Roma e a nação alemã, de que encontramos abundantes pisa no luteranismo. Na continuação da crônica imperial do Ekkehard de Aura a cargo do Frutolfo do Michelsburgo (por volta de 1130), este ódio recíproco se cita de forma explícita: «Este fato (= o fracasso das cruzadas) confirmou que os romanos nos tratavam como a inimigos, tanto como nós lhes odiamos» . Os três enormes volúmenes que compõem O de lite das Monumenta Germaniae Historica, consagrados às polêmicas entre Roma e o Império, conduzem uma enchente de libelos e opúsculos mutuamente insultantes, onde deságua todo o furor europeu amparado no poderio imperial. Esta estrutura binária de oposição (nós: a nação alemã e seus aliados gibelinos; eles: Roma e os güelfos), singela e violenta, recebia, mediante um processo de legitimação mútua (religiosa e política), distintas classes de rechaços do poderio da primazia romana, denunciada como uma tirania que traía o espírito evangélico. Um exemplo surpreendente (embora, contra o habitual, de origem inglesa) da inserção do anarquismo herético na invectiva contra Roma se encontra no famoso tratado do Anônimo dos York (também chamado o Anônimo Normando), escrito por volta de 1100. O autor se pergunta a quem deve obedecer o cristão em Roma; mediante uma sucessão de alternativas juntadas, descarta uma série de obediências malvadas, que nos remetem todas a um aspecto concreto da Igreja romana: em Roma terá que obedecer ao Letrán, a nenhuma outra igreja; e ali, aos homens e não às pedras; entre os homens, aos membros de Cristo, não aos membros do diabo; entre os membros de Cristo, a uma pessoa, não ao conjunto; nesta pessoa, ao apostólico (ao enviado), não ao homem; lhe obedecerá se é enviado por Cristo e por nenhum outro. Mas inclusive assim, isto é, desencardida de seus elementos romanos, a obediência à Papa carece de sentido: «Mas se é enviado por Cristo, qual é a finalidade? Ou nos é enviado para nos dar a conhecer a mensagem de Cristo e nos ensinar, ou para outra coisa que ignoramos e que não afeta à mensagem de Deus; neste caso, não devemos nem sequer lhe escutar. Mas se nos é enviado para nos transmitir a mensagem de Cristo e nos ensinar, resulta supérfluo, já que dispomos dos Escritos proféticos, evangélicos e apostólicos ( o Antigo Testamento, os Evangelhos e as Epístolas) que contêm toda a mensagem de Deus; e nós temos um conhecimento mais completo destes escritos que ele» . A única tarefa justificada do apostólico (este adjetivo sustantivado se emprega com freqüência durante a Idade Média para referir-se à Papa, insistindo no sentido etimológico: o enviado) consiste, pois, em evangelizar aos pagãos; a Igreja romana não tem nenhuma legitimidade sagrada, bem ao contrário: «Ela inclui poucos escolhidos e filhos de Deus, mas muitos réprobos e filhos do diabo; podemos chamá-la-a Igreja de Satã e não a Igreja de Deus.» mais de 400 anos antes do Lutero, a binaridad etnopolítica (a Europa do Norte e o Império contra Roma) encontrava um armação religioso igualmente binário (a Igreja de Deus contra a Igreja de Satã) apoiado no rechaço violento do Papado. O investimento retórica e carnavalesca podia penetrar, pois, com bastante facilidade neste molde. Bonizon do Sutri (t 1091), imperialista virulento, encenou um desses investimentos clássicos na evocação dos mundos ao reverso (o caçador caçado, etc.), a propósito da imagem do Pastor: «Se o próprio guardião se converter em lobo, quem haverá para proteger o rebanho?» . Este investimento convertia o bem em mau, Roma em Babilônia, como havia dito já no século XII Sigiberto do Gembloux: «Houve antigamente mais confusão em Babilônia que hoje na igreja» . A figura da Grande Prostituta de Babilônia surge já, embora com acanhamento, por meio da alegoria, como nessa passagem do Planctus ecclesiae in Germaniam do Conrado do Megenburgo (1337), quem associa a condenação da perversão romana e a recriminação germânica: «A prostituta que é o orgulho e a vangloria dos prelados da cristandade oprime à águia (= o Império germânico)» . Boêmia ou a heresia como território Que novidade se produz no século XV? Em que sentido marca um marco a mascarada de 1411? Simplesmente a retórica se faz realidade; a representação carnal da Prostituta assinala e anuncia que a Igreja autêntica, essa congregação de fiéis, que investe e transtorna a Igreja romana para recuperar a imagem reta do cristianismo, já não se constrói a base de meditações franciscanas nem de invectivas germânicas, a não ser na realidade de um país. Juana se encarna (ainda implicitamente) para separar-se melhor do Corpus Christi vivo que se faz carne na Praga. A heresia se convertia em país: os recentes trabalhos do Frantisek Smahel e do John Martin Klassen demonstraram que a revolução hussita favoreceu (ou ocasionou) a aparição de uma nobreza nacional tcheca, contra a realeza e a Igreja; em 1412, Juan Hus enviou uma carta aos dignatarios do reino que preparava ideologicamente a liga hussita antirrealista de 1415. Neste sentido, a orientação do Hus diferia completamente da do Wyclif, quem, para situar a sua Igreja autêntica, só pedia o amparo antipapal do rei da Inglaterra. Mas os monarcas podem maltratar às Papas sem cair na secessão religiosa, com a que pouco podem ganhar e da que, entretanto, têm muito que temer. À margem das tragédias (o aplastamiento sangrento dos extremistas urbanos e dos taboritas), o certo é que a paz da Kutna Hora, assinada em 1485, instalou um reino fortemente controlado pela nobreza, que conservava os princípios adquiridos da doutrina do Juan Hus. Assim, uma igreja que até então tinha sido invisível, faz-se visível, e no referente ao âmbito sacramental se manifesta clara e rapidamente. Desde 1414, antes do processo e execução do Juan Hus, Jacobelo do Stribo e Nicolás do Dresden propugnaron a comunhão sob as duas espécies (o que dará lugar ao utraquismo) com uma finalidade evidente: o sacramento sob as duas espécies suprime a barreira sacerdotal entre os fiéis e Deus. Os hussitas redigiram rapidamente uma liturgia em língua tcheca, e a partir de 1420 os taboritas escolheram já eles mesmos a seu próprio bispo. Ns e Juana entre os selvagens A Igreja romana se resintió profundamente desta secessão, como se desprende da citada carta de Ns Silvio Piccolomini escrita em 1451, em que o bispo de Siena descreve o horror que lhe produziu seu descobrimento do Tabor, essa cidade-Igreja do sul de Boêmia onde se reuniam os extremistas do movimento hussita, os continuadores de Žižk. Ns chega ao Tabor em qualidade de teólogo, para converter-se em etnólogo da monstruosidade: «Eu acreditava que este povo só se separou de nós a causa do rito da comunhão (= sob as duas espécies), mas agora descubro um povo herético, infiel, que se revela contra Deus, sem pensamento nem religião» . Ns descreve uma população estranha e monstruosa, um Estado de hereges, de uma vez organizado e anárquico, étnico e federal. A novidade resultava prodigiosa: uma espécie de islã (entendamos com isto uma religião constituída, escândalo incompreensível em uma era cristã) tinha crescido no coração da Europa cristã. É certo que no século XIII se organizou uma cruzada contra os lhes provar, mas os albigenses, embora se implantaram com certa densidade, nunca pretenderam destacar e de fato sua aparência externa era bastante débil. É preciso ler alguns fragmentos deste descobrimento da alteração total da heresia, para compreender de que maneira Juana se converteu em um monstro entre monstros, e também de que maneira se proveu para a guerra religiosa. Ns vê, pois, «...uma massa rústica e sem ordem, embora urbana... uns foram nus, outros só levavam posta uma camisa e por último os havia com uma túnica de pele... as têmporas ao descoberto, com orelhas recortadas e narizes cortados com uma ferida vergonhosa... Nenhuma ordem ao caminhar, nenhuma moderação verbal. Receberam-nos com um rito bárbaro e selvagem, nos oferecendo pescados, veio e cerveja. Ao entrar na praça, vimos um lugar que não sei como chamá-lo, ou cidadela ou um asilo de heréticos; em efeito, tudo o que a cristandade entende como monstros de impiedade e de profanação se encontra reunido aqui e acha refúgio neste lugar onde há tantas heresias como indivíduos e onde cada um é livre de acreditar o que quer» . Esta selvageria se traduz no âmbito religioso com o rechaço de toda ordem, de todo rito: «Esta seita pestífera e abominável é digna do maior suplício. Rechaçam ao primado da Igreja romana ou a existência de um clero qualquer... Destroem as imagens de Cristo e dos Santos, renegam do fogo do purgatório..., oferecem a eucaristia sob a espécie do pão e do vinho aos meninos e aos loucos... Não benzem água alguma e não têm cemitério consagrado; enterram os cadáveres de seus mortos nos campos junto aos das bestas, como assim se merecem... burlamse da consagração das Iglesias e realizam o sacramento em qualquer parte... Condenam os dízimos» . A partir de então, as coisas se esclarecem para Ns: Tabor, reverso radical da Igreja, é uma autêntica criação diabólica: «compreendestes que classe de cidade é esta, quais são os costumes deste povo, qual é o lugar desta praça forte, o que é este senado de heréticos, qual é esta sinagoga do mal, este domicílio de Satã, este templo do Belial, este reino de Lúcifer» . Terá que tomar-se a sério a emoção experimentada por Ns Piccolomini, pois o prelado não tem nada nem de inquisidor nem de profeta. trata-se de um grande humanista, autor da delicada novela História de dois amantes, muito próximo a esse meio intelectual e cético descrito no primeiro capítulo a propósito de Platina. Embora entrou tardiamente nas ordens (em 1446, à idade de 41 anos), desembrulhou-se constantemente nas altas esferas da Igreja, e participou do concílio da Basilea como secretário do Amadeo VIII da Saboya, quem se proclamou Papa com o nome do Félix V. depois de reconciliar-se com a ortodoxia do Eugenio IV, foi renomado rapidamente bispo do Trieste (1447), e logo depois de Siena (1450), antes de ser eleita Papa em 1458. A selvageria que encontra no Tabor fere precisamente essa ordem mediterrâneo, jurídico e civilizado, em cujo marco tinha construído sua personalidade e sua carreira literária e eclesiástica. Ns, um homem do pre-Renascimento humanista, acredita no progresso da humanidade, e sua própria concepção da infalibilidade papal assim o demonstra. Para ele, as variações do dogma, fora da própria intangibilidad da fé, representam um madridaje com a evolução constante e benéfica das sociedades. Por isso, a seu julgamento, a república taborita oscilou da imitação literal do cristianismo primitivo até um tribalismo militar que vive só da pilhagem, e que desdenha o trabalho artesanal; em conseqüência, entende que no Tabor se investiu o curso da civilização. Os términos nos que se dirige ao rei de Boêmia, Jorge do Podiebrady refletem sorte concepção: «Antigamente, esse reino foi muito florescente, o mais rico de entre os reino ocidentais; agora é uma região miserável, desvastada, destroçada. por que? Porque nossa verdade não pode mentir, quando diz com palavras do evangelho: "Todo o reino, dividido em si mesmo, será assolado, e a casa se derrubará sobre a casa". Vós, boêmios, não só estão divididos entre vós, mas também lhes separastes que a grande maioria da Cristandade» . Paradoxalmente, Ns expressa seu horror pelo obscurantismo em tudo profético; a queda do Tabor em 1452, depois de 30 anos de vida republicana, poucos meses depois da visita do Piccolomini, deveu confirmar sua concepção progressista de uma vez que apocalíptica da história da humanidade. O caso Piccolomini ilustra de que maneira pôde a Igreja católica, da cúspide de seu refinamento doutrinal, deslizar seu discurso sutil e lhe englobem para a expressão da ruptura e da exclusão; quer dizer, para o que mais acima chamamos a crença fantástica. Neste sentido, é possível que a explicação da diabolización do herético e da feiticeira não se encontre em um misterioso e arcaico rearmamento de fanatismo, mas sim mas bem no resultado ou melhor dizendo no fundamento desse medo que invade o século XV, e que é o medo a grande revanche por parte de umas forças do mal que tinham sido domesticadas com a cristianização da Europa nativa, étnica, quão mesma agora é capaz de produzir seu próprio discurso e sua própria Igreja. Acaso não foi esta uma razão importante na surpreendente intransigência que mostrou Roma frente a Lutero, entre 1517 e 1520? Em qualquer caso, Pio II não tinha esquecido o horror que sentisse sendo Ns Piccolomini, e, contra toda razão, em 1464 derrogou quão compacta garantiam um compromisso bastante razoável entre os hussitas e a Igreja católica. Ao chocar com a história, o discurso católico estala em mil pedaços; o debate entre Ns e os taboritas, literalmente análogo a muitas outras disputas da Idade Média (com o Berenguer, no século XII, a propósito da Eucaristia; com os espirituais franciscanos nos séculos XIII e XIV, sobre a eclesiología e sobre o cristianismo primitivo) desenvolve-se dentro dos muros de uma cidade herética, o que representa uma diferença capital frente a situações anteriores. Agora, laicos, poderosos e organizados, devolvem à Igreja a letra da Escritura, o detalhe da história eclesiástica. Neste sentido, a Igreja acaba de perder esse domínio da argumentação que lhe permitia tudo; a partir de agora, e no que se refere a seu tesouro doutrinal, deve selecionar entre o que lhe permite continuar e o que significa um lastro. Juana forma parte de este último, junto com os monstros domésticos e familiares com os que até então tinha jogado a eclesiología católica. Qualquer retrocesso, qualquer distância desaparecem, e o inventário das figuras e das doutrinas se reparte em duas colunas: a de Deus e a de Satã. De metáfora, Juana se converte em metonímia, «pares pró toto», quer dizer, é uma parte de Satã e portanto é uma parte do discurso herético. Juana e a Grande Rameira A papisa formou, efetivamente, parte da herança hussita legada aos luteranos. Consideremos em primeiro lugar, antes de reconstruir filiações e derivações, um texto fundamental por quanto conferiu carta de natureza ao novo estatuto da Juana. Nos anos 1540, o luterano Martín Schrott deu a conhecer um opúsculo violentamente antipapista, titulado Sobre a terrível destruição e queda do Papado (Von der Erschrocklichen Zurstorung und Niderlag dess gantzen Bapstums), que continha uma ilustração representando a uma mulher vestida de Papa, tocada com a tiara de triplo coroa, encarapitada em uma besta monstruosa de sete cabeças cornudas, e dado a beber um cálice a uma série de monarcas (entre eles o imperador da Alemanha) ajoelhados diante dela. Em uma cartela retangular, dentro da própria imagem, pode lê-lo seguinte: «Inés, uma mulher da Inglaterra, chamada Juan VII no ano 851» («Angnes ain Weib au Engelant Johanes der Sieben' genant. A 851») . A imagem ilustra a passagem do Apocalipse, 17, que fala da Grande Rameira: «E eu vi uma mulher sobre uma besta vermelha, e cheia dos nomes de blasfêmia, com sete cabeças e dez chifres. E a mulher estava envolta em púrpura e em grão ornado de ouro, de pedras preciosas e de pérolas; levava na mão uma taça de ouro repleta da abominação e do lixo de sua fornicação. E sobre sua frente estava escrito: "Mistério: Grande Babilônia, mãe das fornicações e das abominações da terra. E eu vi a mulher embriagada com o sangue dos Santos e com o sangue dos mártires do Jesus. E o anjo me disse: por que te assombra? Eu te direi o sacramento da mulher e da besta que a leva e que tem sete cabeças e dez chifres. A besta que você viu foi e não é e subirá do abismo e será morta... E este é o sentido, que contém a sabedoria. Sete cabeças: são os sete Montes sobre os quais a mulher habitará e são sete reis. Cinco morreram; outro vive e o último ainda não veio" 21». As cores e os ouros, monopoliza-cáliz-a, e sobre tudo os sete Montes que constituem o reino da prostituta, permitiam uma assimilação bastante fácil da mulher com a Igreja romana, assimilação que como vimos tem sua precedência nas invectivas contra Roma e na procissão da Praga de 1411. Inés (cujo nome latino pode resultar de uma femenización-investimento do «Agnus» que combate à Besta, assinala a filiação hussita) justifica a aplicação histórica da profecia apocalíptica ao Papado. A gravura do Schrott retomava um modelo ilustro que, por si mesmo, limitava-se à assimilação do Papado à Rameira, sem explicitar o elo juanista. Em setembro de 1522, aparece no bastión luterano do Wittenberg a tradução do Novo Testamento redigida pelo próprio Lutero em seu refúgio do Wartburgo; seu amigo Lucas Cranach ilustrou o texto (do único Apocalipse, o que indica o papel essencialmente agressivo da imagem), estabelecendo minuciosamente um paralelismo entre Roma e Babilona, e a Papa e o Anticristo ou a Rameira: a destruição de Babilônia (Apoc. 18) inclui uma representação do castelo do Sant Angelo de Roma; a besta (11, 18) que devora às testemunhas de Deus, é um dragão com patas em forma de garra, e coroada com a tiara papal; e a aparição da Rameira sobre a Besta (Apoc. 17) representa-se com forma de uma mulher, vestida com roupas contemporâneas, e tocada com a tiara. Resulta impossível saber se a intenção do Cranach era evocar a papisa, já que de fato a função ilustrativa da gravura impedia de indicar o episódio da Juana. Não obstante, terá que assinalar que na edição seguinte (dezembro 1522), a tiara papal da prostituta ficou reduzida a uma simples coroa, enquanto que outros gravados não sofreram nenhuma mudança; acaso a alusão resultava muito precisa, muito «metonímica», em um momento no que o luteranismo era ainda muito frágil e dependente do Império? Em qualquer caso, mantém-se a papalización gráfica da Prostituta na edição do Novo Testamento publicada em 1523 na Basilea, com ilustrações do Hans Holbein o Jovem, e logo com a Bíblia completa do Lutero, editada no Wittenberg em 1534 . Estas imagens, ampliamente difundidas (pensemos no alcance da Bíblia do Lutero), formam parte do imenso material de propaganda iconográfica que o luteranismo distribuiu pela Europa durante os trinta primeiros anos de sua existência (1520-1550), e que foi objeto de uma admirável análise por parte do R. W. Scribner no For the Sake of Simples Folk. Santinhos, cuja impressão chegou a alcançar até os 1.000 e os 1.500 exemplares, difundiram os temas essencialmente polêmicos e antipapistas do luteranismo, utilizando formas populares e tradicionais (mundo investido, imagens de peregrinação, carnaval, etc.) e reduzindo os textos evangélicos a oposições singelas (bien/mal, papa/pastor, Roma/Babilonia); sua simplicidade e sua brutalidade superavam com freqüência a produção polêmica escrita e inclusive a apologética da predicación. O próprio Lutero conhecia bem essa força que contém a imagem, e em 1545 escrevia: «publiquei essas figuras e essas imagens cada uma das quais representa todo um volume dos que ainda terei que escrever contra a Papa e seu reino» . A imagem permite captar importantes heranças medievais, nascidas ao fio dessas crenças «fantásticas», dificilmente perceptíveis no discurso. Assim, por exemplo, em um santinho sobre a Origem e o nascimento do anticristo (Vom Ursprung und Herfunkft dê Antichristi) pode ver-se a dois diabos ocupados em amontoar monges e monjas dentro de uma grande Cuba sangrenta, enquanto, a seu lado, há outros dois que vão fabricando um corpo com a «sagrada forma» dessa massa, para logo lhe insuflar vida; é um corpo nu, ventrudo e meio doido com a tiara papal que se converterá no Anticristo depois de cobrar vida. Esta imagem, inominável em términos doutrinais, surge a sua vez da grande tradição a que nos referimos no capítulo anterior; isto é, da hóstia diabólica dos heréticos, e que sataniza à Papa como havia diabolizado aos hereges do Soissons descritos pelo Guiberto do Nogent, no século XII. O poder da imagem reside, pois, em sua indeterminação essencial: a imagem representa e metaforiza a um mesmo tempo, sem que haja nenhum indício que permita estabelecer o limite entre a invectiva e o mito, entre a brincadeira e a crença. Sinais do Anticristo A simplificação binária da imagem e da violência antipapista do Lutero introduziram rápida e ampliamente a assimilação da figura da Papa ao Anticristo, inimigo eterno e presente do evangelismo. Por sua parte Juana, quintaesencia do Papado, testemunho vivo do investimento satânico que reinava em Roma, e encarnação da Rameira de Babilônia, entrava em formar parte da rede de figuras que, a sua vez, multiplicavam de maneira vertiginosa a forma medieval do Anticristo. A lenda do Anticristo, apoiada em alusões fugazes e pouco consistentes da Bíblia (Daniel, Tesaloniciensis II, Apocalipse), desenvolveu-se ampliamente ao longo da Idade Média, como reflexo investido da figura de Cristo. Segundo a lenda, o Anticristo tinha nascido em Babilônia, fruto do Diabo e de uma rameira, e foi educado por feiticeiras e magos; aos trinta e três anos se transladou ao Jesusalén, onde se fez a circuncisão, denunciou a usurpação de Cristo, reconstruiu o Templo, proclamou-se Deus e reinou durante três anos e meio (duração do Papado da Juana segundo as primeiras versões franciscanas). Deus enviou contra ele ao Enoc e ao Elias, a quem assassinou, ao tempo que maquinava uma falsa morte e uma pseudo ressurreição; mas morreu derrubado pelo arcanjo Gabriel ao tentar a Ascensão do Monte dos Olivos . As grandes incertezas que subsistiam sobre a relação exata de suas datas de nascimento e de morte com o Fim do Mundo, e sobre sua natureza precisa (indivíduo, retorno cíclico de indivíduos, população?, pois Juan, em sua segunda epístola, falava de vários anticristos) convertiam-lhe em um ser sempre ameaçador, e de uma plasticidade indefinida (a mesma com a que se moldaram numerosos adversários da Papa, como Federico II, denunciados como Anticristos). Cada vez que se produzia um momento de tensão, abriam-se novas especulações sobre a chegada do Anticristo, como vimos a propósito da junta de 1360, apoiando-se no cálculo e na observação dos prodígios, pois, segundo a versão mais corrente da lenda, a vinda do Anticristo devia acompanhar-se de 15 signos ou sinais. A finais do século XV e começos do XVI, o tema anticrístico da queda de Babilônia e da chegada do Fim do Mundo registra uma importante atualização; assim, neste contexto, os agustinos de Veneza, inspirados pelo general de sua ordem, Gil do Viterbo (com quem nos encontramos já a propósito de sua denúncia católica de Roma e de sua lembrança da Juana), editam em 1519 o comentário do Joaquín dá Fiore sobre o Apocalipse. Entre 1490 e 1520, um mesmo sopro de vituperação e de esperança se estende por toda a Europa, por Florência (Savonarola, Marsilio Ficino), pelo Orvieto (Lucas Signorelli), pela Alsacia (Sebastián Brant, e o Livro dos cem capítulos, Tomam Murner) etc. A contribuição específica do Luteranismo consiste em situar precisamente em Roma o reino do Anticristo. Lutero tinha arrojado este descriframiento romano do Anticristo como resultado de seu excomulgación em 1520, através de um comentário sobre a «Bula do Anticristo», e com a redação de um Opúsculo sobre o cativeiro babilônico da Igreja (De captivitate babylonica Ecclesiae). A imagem popularizou esta interpretação; em maio de 1521, Lucas Cranach gravou uma Paixão do Cristo e do Anticristo, que consiste em uma série de 13 páginas dobre de imagens nas que se enfrentam as cenas da vida de Cristo e a das Papas, glosadas com textos do próprio Melanchthon, o discípulo mais próximo ao Lutero. Uma edição latina dobrou a edição alemã, e o texto se publicou depois no Erfurt e no Estrasburgo; por último, o mesmo Cranach decorou em 1536 a grande sala do castelo do Torgau com a dobro cena final da coleção (ascensão de Cristo e queda ao inferno da Papa-Anticristo) . O Renascimento, muito sensibilizado aos signos anticrísticos por causa da hipertrofia do simbolismo medieval em combinação com a extraordinária expansão da astrologia, conheceu «um despertar da teratología e uma espécie de enlouquecimento augural», por utilizar a expressão do André Chastel, quem assinala que «se contaram até 56 autores e 133 opúsculos a base de presságios e de cômputos astrológicos para os anos 1520-1530» . De todos esses signos anticrísticos, só nos deteremos no que melhor amostra o processo de bestialización e de feminización pelo passou a denúncia da Papa (e a satanización da Juana), quando os luteranos monopolizaram esses prodígios. Em 1496 se extraiu do Tíber um cadáver monstruoso (uma burra com torso humano, cujos membros pertenciam a diversos animais), e que na Alemanha lhe chamou a Papa-burra de Roma («Dia Banstesel zu ROM»); o prodígio foi representado em Boêmia pelo gravador Wenzel von Olmutz a finais do século XV, com uma exegese antipontificia, e daí passou a Alemanha (nova aparição da filiação entre hussitas e luteranos). Em 1523, Lutero e Melanchthon publicaram um comentário ilustrado sobre dito prodígio a propósito de outro (o bezerro-monge), em seu Significado de duas figuras espantosas (deutung der czwo grewlichen Figurem). O êxito do comentário foi imenso, pois se publicaram nove edições das duas figuras e cinco da Papa-burra sozinho, sem contar as traduções da citada obra ao francês, ao inglês e ao holandês . Juana entre as amazonas e os hermafroditas Esta possante cristalização do prodigioso em torno de Roma terminou de satanizar a papisa, já que o investimento sexual exacerbava o investimento religiosa (a Papa anticristo), que a sua vez tematizaba a imaginária luterana. Conforme parece, durante o século XVI, o investimento dos sexos cobrou um significado novo, poderoso e inquietante , presente em numerosos prodígios resenhados pelo Polidoro Virgilio, Boaistuau ou Ambrosio Parei. Neste sentido, quando se ocupam do travestismo sexual, os homens do Renascimento acrescentam a estigmatización medieval da astúcia humana ou satânica o espanto ainda maior que produz um mistério natural ou sobrenatural, cujo peso se deixa sentir como uma ameaça de instabilidade generalizada. O Jornal de viagem do Montaigne nos proporciona um testemunho do expresso com a justaposição de duas anedotas (assinalemos além disso, a respeito, que os relatos de sucessos são muito estranhos no Jornal). A primeira anedota nos apresenta uma espécie de mudança voluntária e eficaz do sexo; e a segunda descreve a virilidade virtual de qualquer mulher de ação: no Vitry-oFrançois, diz Montaigne (ou mas bem seu secretário anônimo), «inteiramo-nos de três histórias memoráveis (a primeira se refere à extraordinária longevidade da duquesa de Guisa)... A outra, que faz poucos dias tinha sido enforcado em um lugar chamado Montier-no Der, um vizinho daquele, isto é, do Vitry, pelo seguinte sucesso: sete ou oito moças dos arredores do Chaumont no Bassigny decidiram, faz alguns anos, vestir-se de varões e continuar assim sua vida pelo mundo. Entre as demais, uma delas veio a este lugar do Vitry com o nome da Mary, ganhando sua vida como tecedor, um jovem de boas condições e que se fazia amigo de todos. No dito lugar do Vitry se fez noivo de uma mulher que ainda vive; mas, por causa de algum desacordo que surgiu entre ambos, seu compromisso não passou daí. Depois se instalou no chamado lugar do Montier-no Der, onde ganhava a vida com o mesmo ofício, e se enomoró de uma mulher, com a que se casou, e viveu quatro ou cinco meses com ela felizmente conforme dizem; mas ao ser reconhecido por alguém do chamado lugar do Chaumont, e levado o assunto ante a justiça, foi condenada a ser enforcada, já que dizia que preferia sofrer a retornar a sua estado de mulher. Foi enforcada por invenções ilícitas com as que quis suprir seu sexo. «A outra história tem que ver com um homem que ainda vive e que se chama Germán, é de baixa condição, carece de ofício, e foi mulher até a idade de vinte e dois anos, como lhe viram e conhecido todos os habitantes do povo, entre quem chamava a atenção porque tinha um pouco mais de pêlo ao redor do queixo que as demais moças, e por isso lhe chamavam María a Barbuda. Um dia, com o esforço de dar um salto, manifestaram-se seus atributos viris, e o cardeal do Lenoncourt, bispo à maturação do Châlons, deu-lhe o nome do Germán. Entretanto, não se casou; tem uma grande barba bem povoada. Nós não pudemos lhe ver, porque estava no povo. Existe ainda nesta cidade uma canção popular que cantam as moças, em que se guardam de não dar grandes pernadas por medo a converter-se em varões, como María Germán. Dizem que Ambrosio Parei incluiu este relato em seu livro de cirurgia, que é um relato muito certo, como testemunharam ao senhor do Montaigne os oficiais mais destacados da cidade» . A proximidade entre a história da Juana e as anedotas do Montaigne resulta menos gratuita ainda se tivermos em conta que um jurista francês, Esteban do Forcadel, referiu-se, em seu Do Gallorum império et philosophia, publicado em Paris em 1580, ao caso da Juana a propósito da famosa «lei sálica», expondo a hipótese de que esta tivesse podido ser escolhida sendo homem, e que tivesse trocado de sexo durante seu pontificado. Como apoio de dita hipótese, entrevista um caso de mutação sexual na obra do Tito Livio. Não obstante, isso não altera a monstruosidade da papisa, já que tanto Tito Livio como Montaigne falam de uma mudança que se produz no sentido «natural», «ascendente», isto é, do feminino imperfeito ao masculino perfeito. Frente a esta labilidade dos sexos, o luteranismo quis propor as certezas de uma partilha sexual dos papéis apoiado na família, e proclamado publicamente a raiz do matrimônio do Lutero, quem rechaçava assim a omnisexualidad sacerdotal, seus prestígios e seus perigos. Lutero nunca deixou de reivindicar gloriosamente sua masculinidade, e basta citar como exemplo um de seus famosos Bate-papos de sobremesa, a respeito dos eunucos do ascetismo, em que Lutero confessa que antes deixaria que lhe enxertassem um segundo par de órgãos genitais que cortarse um («Ich wolde eher Mir zwey par lassen ansetzen dêem ein par lassen ausscheiden») . Juana, figura anticrística e prototípica do investimento religiosa e sexual de Roma, encontrará, pois, um lugar adequado na imaginária luterana. Mas como chego até o arsenal argumental do Wittenberg? Fontes da Juana Luterana Por volta de 1520, a lembrança da Juana parece gozar de grande vitalidade na Sajonia, aonde chega por distintas vias: A) Via romana: em seus Bate-papos de sobremesa (Tischreden), Lutero diz ter visto a estátua comemorativa da Juana, durante a viagem realizada a Roma para finais de 1510, por conta de sua ordem (os agustinos): «Em Roma, em uma praça pública, existe um monumento em pedra para comemorar a essa Papa que em realidade era uma mulher e que iluminou a um menino nesse mesmo lugar. Eu mesmo vi esta pedra e me surpreende que as Papas tolerem sua existência» . B) Via editorial: dois textos impressos a finais do século XV difundiram ampliamente a história da papisa (só mencionaremos aqui os êxitos editoriais contrastados; como já vimos, há numerosas crônicas impressas a princípios do século XVI que mencionam a Juana). As mulheres deslumbrantes, do Boccaccio, conheceram uma edição popular, iluminada com gravados em madeira violentamente sugestivos, datada no Ulm em 1473; e, a Crônica do Hermán Schedel, publicada em 1493 no NUREMBERG, continha ilustrações reproduzidas com freqüência, concretamente pelos reformistas. André Chastel demonstrou que, para representar a destruição de Babilônia em suas gravuras para o Novo Testamento do Lutero (setembro de 1522), Cranach tinha utilizado a vista de Roma gravada a sua vez na Crônica do Schedel . A tradução latina (apresenta anonimamente) de uma obra do protestante inglês John Cooke, titulada Johanna papissa toti orbi manifesta e publicada no Oppenheim em 1616, utiliza outra gravura em madeira do Schedel (uma encantada Juana com menino). C) Via boêmia: a menção do nome do Inés no opúsculo do Martín Schrott confirma esta filiação, contrastada pelo piedoso comentarista e recopilador do tema de sobremesa do Lutero, onde também se menciona o nome do Inés. Os luteranos conheciam o tratado Sobre a Igreja do Juan Hus, que fazia alusão a papisa como vimos no capítulo IV. O diálogo do Piccolomini no Tabor em 1451 demonstra que a história se transmitia. É certo que tinha perdido atualidade no momento da busca do compromisso, depois da destruição do Tabor, e de fato, o professor Macek, perito em textos hussitas, tentou encontrar para nós rastros tardios do Inés em ditos textos, sem achar nenhuma. Mas não por isso podemos evitar a possibilidade de uma difusão oral; neste sentido, em 1906 tirou o chapéu no Preuss um rastro tardio do episódio em uma obra hussita, que comparava a eleição de uma Papa feminina a do apóstolo Mateo (Feitos dos apóstolos, 1,23). D) Via bávara e turingia: a versão do Tegernsee que traduzimos no capítulo anterior formava parte sem dúvida de um conjunto bastante rico e vigente; referimos a uma recuperação dessa tradição autônoma em uma peça dramática de dietrich Schernberg, representada no Mulhausen na Turingia por volta de 1480, e publicada por um luterano no Eisleben em 1565. No capítulo seguinte nos ocuparemos dessa Fraw Jutta (notemos neste nome bávaro da Juana), da que se fala em dito drama. Por outro lado, o resumo da lenda que nos brinda o comentarista-recopilador do tema do Lutero nos devolve claramente à tradição bávara (embora o êxito provável da obra do Schernberg difundisse os temas locais por toda a Alemanha). E) Via alsaciana e renana: a história da Juana teve um importante eco na obra de um personagem surpreendente, o franciscano alsaciano Tomam Murner (1476- por volta de 1537. Este frade errante, que tinha ingressado muito em breve na ordem franciscana (1490), estudante universal (estuda direito no Friburgo, artes e teologia em Paris, filosofia e matemática na Cracovia), poeta do imperador Maximiliano I (1506), inventor na Cracovia em 1507 do Chartiluidum, jogo de cartas pensado para ensinar lógica, e difusor assim como possível criador da famosa lenda do Till Eulenspiegel, parecia avocado a um destino de humanista; entretanto, sua fidelidade franciscana a uma certa veia popular com ressaibos medievais, e seu afeto pela língua alsaciana lhe desviaram desse destino. Seu aperturismo às correntes utopistas e fideístas, tão ativas na Alsacia de finais do século XV, perfeitamente legível nos textos próximos à inspiração do Sebastián Brant (a Conjuración dos loucos, a Corporação dos pícaros, 1512, O moinho do Schwyndebzheim, 1515, etc.), tivesse devido lhe conduzir até o Lutero; entretanto, foi seu adversário resolvido, o único possivelmente que respondeu à propaganda ilustrada do Lutero nos anos 1520-1535, já que demonstrou seus excelentes condicione de desenhista ilustrando ele mesmo seu Grande louco luterano, onde assume dialógicamente a cabeça de gato (por alusão a seu nome) depois da qual se escondiam os panfletarios do Lutero, e se apresenta a si mesmo como devorador de ratos luteranos . Por outra parte, e em duas ocasiões distintas, Murner relatou a história da Juana. Em 1514, publicou no Estrasburgo uma Viagem aos banhos (badenfahrt), que representa uma alegoria termal da salvação cristã, em cujo capítulo XI, onde ordena arranhá-la pele («Die Hût kratzen» = fazer penitência), oferece como ilustração a eleição da Juana, quem preferiu a vergonha terrestre à condenação eterna. Murner apresentou uma narração mais circunstancial em seu Prado dos lascivos (Die Gauchmatt), publicado na Basilea em 1519, no que com uma tonalidade mais satírica e popular recupera o princípio da galeria de mulheres (já não deslumbrantes, a não ser escandalosas); em dita obra, consagra a Juana («Johannes ein babst») seu capítulo vinte, não longe do Putifar, Jezabel, Tailandeses ou Vênus (recordada em uma versão do Tannhauser) . Outro franciscano alemão, Juan Pauli, menciona a Juana em uma recopilação tardia de exempla, Schimpf und Ernst (1522), ao nos devolver aparentemente a uma cena do Fraw Jutta (a negativa do diabo a deixar-se exorcizar por uma mulher desvela a argúcia da papisa). Assinalemos que os franciscanos (Murner, Pauli, Rioche) foram os últimos católicos que conservaram para a Juana esse apego que caracterizou a seus irmãos do século XIV. A lógica da exclusão, analisada a partir do caso Piccolomini, carece de valor no universo populista e truculento do Murner; a censura do século XIV não o afeta já, posto que pela via indireta do tema da penitência (fruto da tradição bávara), o discurso franciscano, de uma vez arcaico e consonante com seu próprio tempo, pode englobar ainda a história da papisa. Mas chegou Lutero. A história da papisa se inscreveria, pois, de forma duradoura no patrimônio luterano, depois de sua aparição ilustrada nas gravuras do Cranach e do Martín Schrott. R. W. Scribner localizou três santinhos que narram a história da Juana nos anos 1540; e inclusive desde 1532 , o grande Hans Sachs tinha composto uma canção sobre ela. Mas, curiosamente, a história propriamente textual da Juana luterana começa muito tardiamente e fora do reduto saxão. Primeira narração luterana: Juan Bala (1548) Em 1548, o inglês Juan Bala, consagrou uma notícia a papisa no capítulo sobre as Papas ou anticristos romanos de seu Catálogo dos escritores ilustres da Grã-Bretanha, publicado na Basilea (reeditado em 1557). depois de uma estadia com os carmelitas do Norwich e de realizar estudos em Cambridge, Juan Bala foi eleito bispo do Ossory na Irlanda, antes de aderir-se à causa luterana (o que lhe levou a exilar-se na Alemanha) e de casar-se. Esta é sua versão da história: «Juan VIII quem recebeu o apelido de Inglês de um inglês que a amou e era monge no convento da Fulda; embora era mulher, ocupou como Papa, em Roma, a cadeira pontifícia durante dois anos e seis meses. De origem alemã, nascida na Maguncia, chamava-se Gilberta; fingindo ser um homem, chegou até Atenas com seu amante o monge. Ali, realizou grandes progressos em todas as disciplinas e então, quando teve morrido seu amigo, partiu a Roma, dissimulando sempre seu sexo feminino. Por causa de seu grande talento e de sua facilidade de palavra, pôde sustentar debates difíceis e dar lições públicas provocando a admiração geral; atraiu-se tanta simpatia que à morte de Leão IV, foi escolhida Papa. Ao exercer semelhante ofício, segundo o costume papal, concedeu as sagradas ordens, criou sacerdotes e diáconos, promoveu bispos, ordenou abades, celebrou missas, consagrou altares e Iglesias, administrou sacramentos, ofereceu seus pés a beijar e exerceu todos outros ofícios pontifícios; e tudo que realizou na Igreja foi totalmente válido» . Como pode apreciar-se, Bala toma emprestada sua versão das diversas tradições: o nome da Gilberta e a aventura amorosa e de estudo procedem do Boccaccio, mas o desvio por Atenas pertence ao Martín o Polonês. Não obstante, aparece um novo detalhe: o amante é um monge da Fulda, essa enorme e prestigiosa abadia que se encontra perto da Maguncia. Semelhante acrescentado tem um aspecto muito luterano como para não ser a obra do próprio Bala, já que na primeira época da propaganda luterana a sátira antimonástica registrou uma violência inaudita; neste sentido, o amante se converte aqui em um dos numerosos expoentes do monge lúbrico, ambicioso e equívoco. Neste contexto luterano, o afã da papisa pelo estudo, gabado sem reservas pelo Boccaccio, apresenta um valor inverso; a apologética luterana põe no pelourinho a ciência medieval: Tiram do Aquino, Aristóteles, Ockam, Duns Decoto aparecem com freqüência entre os demônios e os monges perversos. O comentário de Bala insiste contundentemente nos sacramentos válidos que reparte um indivíduo canonicamente inepto; não obstante a maioria destes sacramentos, ou destes ritos (ordenação, consagração do Iglesias, veneração da pessoa da Papa) eram rechaçados violentamente pelo luteranismo, que indicava seu caráter blasfemo ou terrestre em sua propaganda ilustrada. Neste sentido, o besapiés das Papas se apresentava como contraponto de Cristo lavando os pés dos pobres na Paixão de Cristo e do Anticristo do Cranach e Lutero. Continuando, Bala abarrota sua narração com considerações políticas sobre as relações entre o Papado e os poderes laicos, fazendo funcionar o caráter sinótico das crônicas universais; o modelo clássico, da época do Eusebio e do Jerónimo até o Martín o Polonês, apresentava em duas colunas distintas a crônica dos pontífices e a dos imperadores (as crônicas locais acrescentavam, em seu momento, uma coluna condal ou episcopal, ou inclusive abadial). Mas a correspondência cronológica, de uma coluna a outra, não era prática comum. Bala sim o faz, por afã de polêmica, anunciando dessa maneira o método dos centuriales do Magdeburgo, dirigidos pelo Flaccius Illyricus, e que são os fundadores da historiografia reformista. Bala encontra, pois, na história legendária dos soberanos laicos, correlações interessantes para as datas do pontificado da papisa, que depositam nesta mulher anticrística a velha vinculação dos poderes seculares com a Santa Sede e com a instituição vergonhosa do dízimo: «Durante seu pontificado, o velho imperador Lotario vestiu o hábito monacal e Luis II, chegado a Roma, recebeu de suas mãos o cetro e a coroa imperial com a bênção do Pedro. Com esse gesto, a Rameira de Babilônia demonstrou ter o poder suficiente para sujeitar aos reis. Do mesmo modo, foi em seu tempo quando o rei dos anglos Etalwulf, como o conta Howedehus, por sua vontade, como uma mujercilla, concedeu a décima parte de seu reino aos clérigos e aos monges. Em todo isso, você poderá ver, piedoso leitor, se na verdade a Igreja romana não pôde errar depois da missa do Espírito Santo (= a que prepara a eleição da Papa por inspiração divina). Em realidade, este fato preciso demonstra muito claramente que esta Igreja é a sede da Grande Rameira e a Mãe de todas as fornicações, que nenhum Apele poderia pintar com suas verdadeiras cores». Desta maneira, Juana adquiria a figura de fundadora mítica da perversão babilônica de Roma. Por último, Bala se refere ao rito de verificação da virilidade das Papas e sua inutilidade atual à vista da prolífica descendência que se asseguram os cardeais antes da eleição papal. A papisa do Pedro Pablo Vergerio (1556) O segundo historiógrafo luterano da Juana apresenta uma figura tão curiosa como interessante. trata-se do Pedro Pablo Vergerio, nascido em 1498 no seio de uma família que já se ilustrou com o huma-nista estritamente homônimo de nosso autor*. Vergerio foi consagrado bispo de sua cidade natal da Capodistria pelo Paulo III, realizou importantes serviços diplomáticos por conta de Clemente VII, Paulo III, e Julho III, e participou ativamente na preparação do concílio do Trento. Em 1535, conheceu o Lutero no Wittenberg, e embora o encontro estava precedido por certa atração, a entrevista pessoal que manteve com ele dissipou as expectativas. Vergerio viu no Lutero a um «monstro», embora não pôde sustraerse de tudo à influência lenta mas segura do luteranismo, e em 1549 evitou pelos cabelos ser detido pela Inquisição, fugindo a Suíça, e logo a Alemanha, concretamente a Tubinga . Desde seu refúgio da Tubinga, o novo luterano se apressou a publicar uma abundante produção antipapista, entre a que encontramos em 1556 uma História da Papa Juan VIII que foi uma mulher (História dava Papa Giovanni VIII che fu femmina), cujo título piorou ainda na reedição do seguinte ano, com uma História da Papa Juan VIII que foi uma prostituta e uma feiticeira (História dava Papa Giovanni VIII che fu meretrice e strega). A obra se editou de novo em 1562, traduziu-se ao francês e ao alemão em 1557, ao latim em 1560 e ao inglês em 1584. A contribuição do Vergerio, quem, sem dúvida, tinha lido a Bala, resulta ainda mais incisiva e injuriosa que a de seu predecessor inglês. A ampla cultura do prelado italiano lhe permite além de oferecer indicações histórico-polêmicas mais violentas: «De entre todas as más passadas que o diabo jogou a estes miseráveis (os papistas), a mais solene foi esta: faz ao redor de setecentos anos, em tempos do imperador Lotario, esse bufão que logo se fez monge (digo monge e não irmano, porque nesse tempo ainda não se estendeu esta peste do mundo: os irmãos), o diabo lhes deu como um digno chefe uma grande rameira para governar a sinagoga, para dizer as missas solenes, para dar bênções e absolvições, para criar bispos e outros prelados (não digo criar cardeais porque nesse tempo não se descoberto ainda esses Sardanápalos, essas bestas e monstros sanguinários); hei aí, pois, a Sua Santidade grávida que iluminou em presença de todo o clero e do povo romano. Vergonha, E onde estava a sucessão ordinária dos Apóstolos da que tanto lhes orgulham? Nesta mulher necromántica ou feiticeira e prostituta (In quella femmina nigromante ou strega e meretrice)? Criem que ela «consagrava» (como dizem vós) quando ela dizia missa? vós criem que anulava os pecados quando absolvia? Quem imprimia seu famoso sinal indelével naqueles que ordenava e ungia? Quem dava o Espírito Santo? Que formosa raça a destes bispos e outros sacerdotes nascida desta emano necromántica! E é um fato que tudas as Papas que lhe aconteceram resultam ser Fabricaciones e criaturas destas mãos graciosas, quer dizer dos diabos que havia nela e a dirigiam. OH papistas miseráveis, ridículos e estúpidos...» . depois deste amável prólogo, no que se mescla a invectiva com o argumento, de por si grave, da interrupção da tradição petrina, Vergerio relata a história da Juana, seguindo muito de perto a versão do Boccaccio (a papisa se chama Gilberta; vai a Inglaterra com seu amante; acontece a Leão V; perde-lhe a luxúria), por isso não reproduzimos o texto; não obstante, deteremo-nos em alguns comentários do pérfido e preciso Vergerio, como o que faz a propósito da eleição da Gilberta pelo povo e o clero, ponto no que se abre o seguinte parêntese: «Estes (= o clero e o povo) escolhiam então à Papa e não só os carnais ou carnavalescos, quem tem roubado esta eleição, como roubaram a primazia [note o trocadilho ao que se emprestam por sua proximidade semântica os vocábulos italianos «cardinali», «carnali» e «carnevali»]. Vergerio, decididamente cavalheiresco com a papisa, imputa-lhe de passagem prováveis infanticídios: «Mas, por desgraça, Sua Beatitude ficou grávida (não devia ser a primeira vez, mas as outras vezes, deveu matar aos meninos, aos não nATO e aos recém-nascidos)». Vergerio dá ao filho da papisa o sexo masculino, mas sem explicitar o detalhe. Tivéssemos podido conceber que o imaginativo luterano fizesse deste menino o Anticristo ou um Anticristo, que ao parecer devia nascer do diabo e de uma rameira, dado que a Juana a trata explicitamente de rameira («meretrice»). Neste sentido, o polemista católico Florimondo do Raemondo mostrará seu assombro ante esta lacuna luterana, embora é certo que o desenvolvimento de uma narração mítica sobre a figura do Anticristo, situada em um contexto cronológico tão afastado, tivesse entorpecido sem dúvida a dinâmica contemporânea da invectiva. depois deste Boccaccio emendado, Vergerio indica os vestígios deixados pela papisa: embora ignore a estátua que Lutero tinha visto em 1510, não deixa de mencionar o desvio e fala de um «formoso relevo» na praça de Bolonha. Não dispomos de nenhum rastro desse recordo bolones e, como muito, cabe referir-se a um busto da Juana em uma galeria das Papas que se encontra na catedral de Siena. Vergerio tampouco esquece a tradição da verificação da virilidade das Papas, da que dá conta com sua habitual crueldade: «mas porque não era possível que lhes fizessem sofrer uma nova vergonha, de ter uma puta por chefe e uma mãe por pai, tomaram a precaução de mandar fabricar em San Juan do Letrán uma cadeira de pedra viva, chamada estercolera, porque tem a forma de latrina» [que nos perdoe nosso desejo de ser fiéis ao espírito e à letra do Vergerio traduzindo tão expresivamente «cacaioio»]. A confusão entre a cadeira estercolera e os assentos de pórfido tem sua origem sem dúvida em Platina, quem além disso figura entre as três fontes mencionadas pelo Vergerio (a Crônica do Martín, a edição latina de Mulheres deslumbrantes do Boccaccio, publicada na Berna em 1536, e Bartolomé Platina). P. P. Vergerio aproveita a junta para arremeter violentamente contra Platina, «esse secuaz e esse adulador (para seu grande proveito) do Papado» (apreciação surpreendente quando recordamos a Platina nos calabouços do Paulo II, e inclusive surpreende ainda mais quando pensamos nas sutis perfídias destiladas por Platina em seu capítulo sobre a Juana; não obstante, recorrendo a historia-ficción poderíamos imaginar bastante bem a Platina, cinqüenta anos depois, no lugar do Vergerio). O caso é que o historiógrafo luterano reprova ao humanista da Piádena duas falsificações: em primeiro lugar descartou a hipótese da verificação de virilidade das Papas fazendo da cadeira estercolera uma metáfora da fragilidade humana e natural da Papa («chi bisogni cacare», diz Vergerio*); nosso neo-luterano, excelente conhecedor do ritual, como se verá, demonstra que esta metáfora pueril era inútil, posto que o rito da estopa queimada em um cano («Pater sancte, sic transit glorifica mundi») era mais que suficiente para advertir ao tirano que era um homem frágil. O segundo engano de Platina, segundo Vergerio, consiste em uma modalización enganosa: Platina tinha escrito que «Juan se deu procuração do Papado por arte de magia, conforme se conta ("malis artibus-UT aiunt-pontificatum adeptus est")». Além disso, Vergerio pretende, contra a veracidade mesma dos textos, que outros historiadores reconheceram que Juana só pôde tomar posse do trono papal conjurando ao diabo; esta asseveração lhe permitia situar a Juana na larga série de outros Papas necromantes, companheiros íntimos e como irmãos do diabo, tanto na antigüidade como na época moderna», e encadear abundantes insultos contra Paulo III e a casa Farnesio. Juan Bala e Pedro Pablo Vergerio souberam, pois, conferir à história da Juana o comentário ideológico que mais convinha às imagens do Cranach e do Schrott. Mas o caso surpreendente do Vergerio em 1556, como anteriormente o do Piccolomini em 1451, expõe a questão da adesão destes prelados sutis, humanistas e cultivados, a esquemas tão ásperos. Baforadas de crença Acreditava realmente Vergerio no diabolismo papal, ou lhe utilizava esta cobertura violenta e retórica para envolver o furor religioso e/ou pessoal que animava seu animadversión contra Roma? A segunda hipótese parece ser a boa se emprestarmos atenção a uma correlação cronológica descoberta pelo Cesare d'Onofrio na obra do Vergerio . Em 1556, o mesmo ano de seu primeira papisa, Vergerio tinha publicado na Tubinga, e com uma forma editorial muito parecida, o Ordo do Cencio de 1192, editado por ele mesmo segundo o manuscrito atualmente classificado com a assinatura Vat. lat. 2145 da Biblioteca Vaticano, sem alterar no mais mínimo seu conteúdo. Como vimos no capítulo III, este texto menciona os assentos de pórfido e a cadeira estercolera, inequivocamente, sem deixar sítio ao rito de verificação da virilidade das Papas. Mas este Ordo benigno, que não oferecia arma alguma à argumentação luterana, está precedido de uma gravura que representa a iluminação da papisa, de forma muito parecida com a gravura que figura na História da Papa Juan VIII, assim como de uma carta de dedicatória, violentamente antipapista, dirigida ao príncipe Alberto do Brandenburgo. Se Vergerio tivesse acreditado no diabolismo papal, no sentido que chamamos «fantástico», tivesse interpretado de maneira delirante o texto do Cencio, farejando e indicando Deus sabe que interpolação. Mas é evidente que seu minuciosidad delirante e erudita só se desencadeia quando se trata de tomar partido contra seus contemporâneos, como Paulo III ou os homens da cúria muito próximos ainda, como Platina. Haveria, pois, que inventar uma quarta forma de crença na Juana (ou melhor dizendo uma subforma da «crença» fantástica), ao falar de «baforadas de crença», no sentido no que se fala de «baforadas delirantes» em psiquiatria: estas baforadas só afetam a certos âmbitos e em determinadas circunstâncias importantes do ponto de vista afetivo. Na propaganda luterana, a história da Juana oscila entre três estatutos: o da realidade histórica (para Bala, a papisa de 855 fundou a tirania papal ao submeter aos soberanos), o de sinal (anunciador e revelador, para o Vergerio, da anticristía romana) e o de metáfora (Juana serve de emblema à realidade papista), mediante uma espécie de condensação da ignonimia romana; por isso, Ciríaco Spangenberg escreve em 1562 que «os pontífices romanos só eram com freqüência, embora exteriormente homens, nada mais que prostitutas» , enquanto que Lucas Osiander, no polêmico escrito (Considerações sobre a necessidade do novo calendário para a cristandade) , que redigiu em 1583 com o propósito de atacar os projetos de reforma do calendário do Gregorio XIII, serve-se de uma Juana metafórica: «O camelô Gregorio se ufana de ter vendido seus calendários com tanto proveito como vendia antigamente as indulgências. iluminou o calendário para não ficar estéril; antes dele, e pelo mesmo motivo, a Papa Juan VIII havia trazido para o mundo um precioso garotinho.» Parece bastante difícil fazer uma partilha exata entre estes três estatutos, e só a polisemia (ou a indeterminação) da imagem podia englobar as três formas. depois destas violências primerizas, Juana recuperaria uma existência histórica mais tranqüila (embora reprovada) ao passar aos grossos volúmenes da História eclesiástica luterana, redigida pelos chamados centuriales do Magdeburgo, dado que construíam sua história século a século. Estes centuriales se ocuparam da Juana no tomo V (novena centúria), publicado em 1565, no que reuniram um amplo expediente com textos e testemunhos que provavam a existência da papisa . Dito instaure se converteria a sua vez em referência constante das polêmicas que se aconteceriam até o século XIX; o próprio J. Wolf, de quem falamos no primeiro capítulo, inspirouse no mesmo e o difundiu ampliamente. Juana repudiada pelos seus: Onofrio Panvinio (1562) Durante estes ásperos anos de expansão do luteranismo, o que dizia a Igreja católica da Juana? Em um princípio, nada. Em términos gerais, o catolicismo (com a brilhante exceção de Tomam Murner) não quis, não soube como, responder à polêmica luterana. André Chastel analisou esta inadaptación com a apresentação das pinturas que decoram as Stanze do Vaticano, realizadas entre 1520 e 1525, e que constituem uma resposta aos ataques protestantes (em especial a que representa a Doação do Constantino). Em efeito, Ulrico von Hutten, o violento coroinha laico do Lutero, tinha dado a conhecer mundo, em 1518-1519, a recusa da falsa Doação, redigida pelo humanista Lorenzo Cerca por volta de 1440 e editada sem estrépito algum em 1506. As conclusões do A. Chastel são as seguintes: «O antagonismo era tão profundo que se manifestava em duas formas de discursos figurativos totalmente irreconciliáveis: por um lado, a tradição da pintura monumental do Mediterrâneo na plenitude de sua projeção, e, por outro lado, a arte direta, popular e rápido da imagem setentrional que se converte assim por primeira vez em uma força maior da vida cultural e religiosa. Roma não utilizava as armas adequadas, os meios modernos, e portanto não podia vencer» . Mas além disso, o que se podia fazer com a Juana? Até então, a Igreja se acostumou bastante bem a sua presença, mas agora sentia o mesmo desconforto que experimentasse Ns Silvio Piccolomini em 1451. É certo que a argumentação de São Antonino de Florência em meados do século XV tinha recusado já, adiantado, os temas mais discutíveis apresentados logo pelo Juan Bala ou Pedro Pablo Vergerio; como recordaremos, Antonino havia sustenido que os atos sacramentais da papisa, até sendo nulos, tinham recebido uma validez divina cheia de graça (ao igual a em nosso direito público contemporâneo se pode legitimar um decreto ilegal mediante uma lei de validez). Mas, em 1520, esta sutilidad florentina resultava perigosa, por quanto implicava precisamente aquilo contra o que vociferava Lutero: a incapacidade do clero para receber a graça. Pelo mesmo resultava igualmente perigoso expor a estrita linealidad da herança do Pedro, liberada já da doação do Constantino. A Igreja não queria, pois, comprometer-se mais com esta Juana, sem dúvida amável, mas perigosamente familiar para os luteranos. Não obstante, adotar uma postura radicalmente oposta parecia difícil, à vista da quantidade de textos que tinham institucionalizado sua existência, desde o Martín o Polonês até Platina, e também a quantidade de costumes que lhe comemoravam. Por isso, a Igreja não repudiou a Juana até 1562, e isto graças ao trabalho minucioso de um frade agustino (a ordem do Lutero!) da Verona, Onofrio Panvinio. Panvinio respondeu publicamente aos agustinos utilizando a via não do libelo, a não ser precisamente de uma reedição de Platina, publicada em Veneza em 1562 (traduzida ao italiano em 1563). A cúria lhe tinha encarregado que continuasse a vida das Papas de Platina, desde o Sixto IV até Pio IV, pontífice este último contemporâneo do Panvinio, tarefa que realizou ao tempo que completou o texto de Platina com notas eruditas . A eleição deste meio tinha sido cuidadosamente premeditada, pois o texto de Platina, com seu estatuto quase oficial e seu estilo penetrante, não só tinha conhecido um êxito enorme, mas também além fazia as delícias dos luteranos, como comprovamos a propósito do Vergerio. Em três páginas, e com notas marginais no capítulo primitivo que reproduz integralmente, Panvinio demonstra que o pontificado da Juana não se ajusta a nenhuma realidade. Começa com considerações de caráter geral sobre a verossimilhança psicológica e teológica; por exemplo: os romanos não teriam sido tão estúpidos para escolher a um desconhecido de origem incerta; Deus não tivesse permitido semelhante impostura. Depois Panvinio passa às recusas filológico-históricas mais convincentes: retomando as cronografías papais, observa que entre Leão IV e Benito III (localização tradicional do pontificado da Juana) a vacante não dura mais de quinze dias. Por outro lado, assinala que Anastasio o Bibliotecário, a quem considera o autor do Liber pontificalis, não menciona o pontificado da Juana, e adverte que o aplique que o consigna é obra de uma mão diferente e tardia. Ampliando sua investigação, constata que nenhum cronista tem feito alusão alguma a papisa até o 1250 aproximadamente (data que atribui à redação da crônica do Polonês). Como pode apreciar-se, Panvinio dirigia com muita segurança os textos, e, neste sentido, é pouco o que a investigação contemporânea pôde acrescentar. Mas há ainda outro argumento, retomado recentemente pelo Mons. Maccarrone, que apresenta certo interesse. Ao parecer, Panvinio assinala que em 1054 Leão IX tinha enviado uma carta ao patriarca de Constantinopla, Miguel Cerulario, lhe reprovando que, segundo um rumor que circulava pelo Ocidente, tinha promovido a elevados cargos sacerdotais a vários eunucos e a uma mulher. Como tivesse cometido Leão IX a imprudência de lançar semelhante acusação se na verdade tivesse tido lugar o pontificado da Juana dois séculos antes? Continuando, Panvinio se ocupa da inverossimilhança institucional da história: a Igreja só escolheu Papas que se formaram dentro de seu seio. Por último, sublinha o absurdo dos detalhes: a dobro designação de origem («Maguntinus anglicus»), os estudos realizados em uma Atenas virtualmente inexistente no século IX, ou o ensino público em Roma em uma época em que dita prática estava em desuso. Ao fio do comentário do texto de Platina, Panvinio põe de relevo todas as modalizaciones de sua narração («conforme dizem», etc.), antes de debulhar outras circunstâncias igualmente inaceitáveis: impossibilidade de manter oculto um embaraço em um ambiente de semelhante densidade humana, imprudência de sair em procissão em avançado estado de gestação, duração inverossímil de travestismo, etc. depois desta crítica pontual dos textos, em sua forma e em seu fundo, Panvinio propõe a sua vez um intento de reconstrução da invenção legendária: por exemplo, explica o famoso desvio procesional com a topografia de Roma, em uns términos que Cesare d'Onofrio, excelente conhecedor do espaço histórico romano, logo que modificou; e, para ele, a fábula se referia à vida escandalosa do Juan XII († 962), quem tinha entre seus numerosas amantes a uma chamada Juana, de maneira que a proximidade dos homens e o rumor sobre o ascendente da sorte Juana, verdadeira «papisa», teriam engendrado o relato. Esta explicação, retomada e modificada uma e outra vez até nossos dias, servia-se sem dúvida de uma análise do cronista bávaro de começos do século XVI, Juan Thurmayr, chamado «O Aventino» («Aventinus»), a causa do nome latino de sua vila natal do Abensberg. Em seus Anais da Baviera, redigidos por volta de 1510, Thurmayr relata o Papado do Juan IX da seguinte maneira: «Alberto, um príncipe muito rico da Etruria, governou sobre a Rávena, Bolonha e Roma. Sua sogra Teodora, cortesã nobre e imperiosa, dominava em Roma; impôs seu amante Juan aos boloñeses, depois aos da Rávena e finalmente aos romanos; fez-lhe nomear para o supremo sacerdócio; esse é, acredito eu, a origem da fábula que se repetiu à ligeira, e segundo a qual se acredita nestes tempos que uma mulher tinha ocupado o sacerdócio supremo com o nome da Juana» . Certamente, a análise do Thurmayr constitui um dos maiores mistérios que rodeiam a história da Juana. Em primeiro lugar, não se trata da opinião de um escritor escuro e desdenhável, mas sim do fundador da historiografia bávara moderna. Por outra parte, tampouco parece que estivesse comprometido nesses debates eclesiológicos nos que Juana fazia carreira. Em terceiro lugar, ao igual a em 1451, o eminente Piccolomini não pôde passar do desconforto ao rechaço, durante mais de cem anos nenhuma voz católica se elevou para renegar da Juana; de maneira que atrás do rechaço tardio do Panvinio advertimos a pressão curial, assim como o peso de uma enorme erudição. Entretanto, Thurmayr não vacila, vai direito a sua certeza sobre a inexistência da Juana, com a segurança de uma hipótese solvente sobre o nascimento da lenda. O Aventino estava penetrado de um espírito erasmista que lhe permitia adotar uma atitude crítica frente a qualquer fábula, à margem dos interesses partidistas. Mas, curiosamente, a Igreja não soube apreciar seu juanoclastia, já que seu livro figurou no índice de 1564, entre os autores de primeira classe (heréticos ou suspeitos de heresia). A refutação católica do Panvinio, graças a sua extraordinária erudição e a seu notável miniaturización, proporcionou virtualmente até o presente o modelo de todas as juanoclastias. Entre 1562 e 1565, quer dizer entre o Panvinio e os centuriales, ficou selado o suceder polêmico da Juana; por um lado, a rechaçava com argumentos sólidos, enquanto que por outro se publicava o impressionante conjunto de textos medievais que provava, se não a existência mesma da Juana, pelo menos sim sua prolongada familiaridade com a igreja católica. A controvérsia subseqüente, muito densa como se verá, reitera até o infinito esse intercâmbio de argumentos textuales. A Igreja católica tinha determinado por fim sua posição e sua tática (a réplica erudita), do momento em que os luteranos passaram da invectiva e da propaganda visual à polêmica discursiva. Esta evolução, que coincide além com o esgotamento da produção iconográfica por volta de 1550-1560, explica-se por três motivos: em primeiro lugar, em términos gerais (e fora do âmbito religioso), a imagem sofre um retrocesso no campo editorial europeu de finais do século XVI; em segundo lugar, o luteranismo, já instalado, e bem entrincheirado, preocupa-se mais de cimentar sua instituição que de lançar vituperios contra Roma; e, por último, as novas circunstâncias (Concílio do Trento, reformas calvinista e zwinglista) sugeriam a necessidade de uma argumentação mais doutrinal e menos polêmica. Jesuítas e devotos ao assalto da Juana Os católicos souberam aproveitar rapidamente a erudição do Panvinio, e em 1584 aparecia simultaneamente no Ingolstadt e em Viena a primeira obra completa de recusa da existência da Juana, redigida em alemão pelo jesuíta Jorge Schérer, pregador do arquiduque Ernesto da Austria: Grundlicher Bericht ob é wahr sey, dass auf ein Zeit ein Pabst zu ROM schwanger gewesen und ein Kind gebohren há. Esta obra, que foi traduzida ao italiano em Veneza e em Melam em 1586, sem contribuir nada novo à argumentação do Panvinio, apresentava não obstante uma novidade dobro: em primeiro lugar, estava redigida em alemão e portanto se projetava sobre o âmbito lingüístico do luteranismo; por outro lado, significava a chegada da Companhia do Jesus ao terreno ideológico. A Companhia, além de estar melhor adaptada que as antigas congregações para as novas lutas, não tinha que assumir a herança medieval dos dominicanos e dos franciscanos, cuja ausência das controvérsias em torno de Juana desde começos do mesmo século XVI não deixa de ser chamativa. Recordemos de novo a figura claramente contemporânea do franciscano do Saint-Brieuc reescribiendo em 1586 uma crônica universal em que aparece uma papisa ingênua. A idéia de uma retirada dominicana e franciscana tampouco é de tudo exata, embora sua ação antiluterana conserva formas antigas e lentas (o pesado trabalho inquisitorial no caso dos dominicanos, e a predicación popular no dos franciscanos). A entrada em campo de batalha dos jesuítas, que proporcionava um eco decisivo às investigações do Panvinio, coroou-se em 1586 com a intervenção do membro mais eminente da Companhia, São Roberto Bellarmino, quem afinou a demonstração do agustino em seu tratado De romano pontífice . Por aquelas mesmas datas, quer dizer em 1587, aparecia no Burdeos outra recusa católica, o Engano popular da Papisa Juana, assinada pelo Florimondo do Raimundo, magistrado do parlamento do Burdeos e amigo do Montaigne e do Monluc (a quem editou), quem cortejou durante um tempo o calvinismo antes de converter-se em uma muito ativo propagandista católico de tendência filojesuita (dizia-se que o jesuíta Richeome tinha inspirado o livro do Raimundo). Esta obra, reeditada e aumentada constantemente (só entre 1587 e 1614 conheceu 12 edições francesas e latinas em Paris, Burdeos, Lyon, Cambrai, Colônia e Amberes) , importa pela amplitude extraordinária de sua erudição. Não nos deteremos na mesma por medo a fatigar ao leitor, mas sim assinalaremos que o texto retoma e desenvolve a argumentação do Panvinio e passa todos os aspectos da vida da Juana pela peneira (textos, contexto do 855, comemorações diversas da papisa...). A verdade é que a demonstração do magistrado lhes borde resultava menos convincente que a do agustino da Verona, sendo assim certo que o melhor está acostumado a ser inimigo do bem; todos os textos que mencionam a papisa antes do Boccaccio são atribuídos a malignidad de falsários luteranos ou cuasi luteranos. Frente a cada manuscrito onde figura a papisa, Raimundo esgrime outro manuscrito sem papisa, e este procedimento não deve entender-se como simplesmente delirante, já que, como vimos, os primeiros manuscritos da crônica do Martín não contêm nenhuma papisa. Mas Florimondo do Raimondo se detém nesta via, ao tomar consciência de que ele, a sua vez, está incorrendo na corrosiva tática luterana que consiste em descobrir falsidades por toda parte (recordemos o grande trauma provocado pela recusa da Doação do Constantino a cargo do Lorenzo Cerca e reavivado pelo Ulrico von Hutten). A busca frenética das causas subjacentes na invenção da lenda situavam ao Raimundo ante pistas interessantes: ao lado do mal-entendido que supõem o Aventino e Panvinio (teria tomado ao pé da letra uma metáfora que chamava «papisa» a uma amante da Papa), sugere uma perversa invenção alemã fabricada nos tempos da Luta das Investiduras. O furor polêmico confere ao espírito escassamente iluminado do Raimundo vivacidades insuspeitadas, que se traduzem a sua vez em formosos desenvolvimentos sobre os mecanismos culturais que impulsionam aos autores a recopiarse mutuamente, por medo a passar por ignorantes, assim como sobre as fascinações de caráter novelesco; neste sentido, Raimundo consegue esboçar uma descrição da autonomia dos sistemas simbólicos. Se a isto acrescentamos que em suas especulações sobre as diversas sucessões de Papas Leão-Benito exibe certa agilidade vizinha no estrutural, e se ponderarmos o extraordinário esforço de avaliação filológica dos textos dirigidos, então constatamos que a energia polêmica faz progredir a investigação histórica com maior rapidez que qualquer outra força. Por último, advertimos igualmente que Raimundo tenta passar ao contraataque em duas frentes: no fronte anglicano, demonstra que a única usurpadora verdadeira de uma fila pontifícia é a rainha Isabel da Inglaterra (a Jezabel da Liga Católica), quem depois do cisma provocado pelo Enrique VIII, diz ser chefe da Igreja: «Como podemos, pois, batizar a que diz ser o chefe da Igreja se não ser com o nome de papisa» ; e no fronte luterano, afirma que a fábula, em boca de seus adversários, só serve para mascarar a novidade inaudita que comporta o matrimônio dos sacerdotes. Em seu texto, Raimundo descobre um dos rastros mais molestos da papisa, a quem em última instância imortaliza quando o que pretende é eliminá-la. O episódio em questão é um claro expoente desse labirinto de testemunhos sobre a Juana, no que se perde qualquer origem. Segundo Raimundo, existia ainda em sua época um busto da Juana entre os que formavam a galeria das Papas da catedral de Siena, esculpida no século XV. O cardeal Baronius, leitor do Raimundo, alertou a Clemente VIII (1592-1605), quem mandou substituir o busto da Juana pelo da Papa Zacarías. O próprio Raimundo se ecoa do êxito de sua denúncia nas últimas edições de seu Engano, e o episódio é relatado pelo Pighi, editor e comentarista dos Annales do Baronius, e pelo G. Gigli em seu Jornal Senese , em 1723, antes de entrar definitivamente na grande tradição juanista. A realidade que comporta a inquietação do Raimundo, do Baronius e de Clemente VIII não implica em modo algum a autenticidade inicial do busto. A galeria, situada em uma cornija que remata a alta nave da catedral, era dificilmente visível; por outro lado, os mesmos bustos, escassamente diferenciables e etiquetados muito tardiamente, podiam emprestar-se a qualquer atribuição, e a qualquer cômputo, dado que, evidentemente, a galeria não podia incluir à totalidade das Papas. Acrescentemos que nos parece muito improvável que se omitisse em um princípio ao Zacarías, essa grande Papa de sobra conhecido por seu diálogo político com Pepino o Breve. Assim, e ao igual a acontece com o assunto do rito de verificação da virilidade das Papas, não sabemos como delimitar o engano cometido de boa fé (no momento da execução dos bustos?, como resultado de uma leitura tardia?), a malícia interpretativa, ou a obsessão atemorizada. Apesar de suas imperfeições, o trabalho do Raimundo conheceu certo eco de prestígio, na Cronografía do Genebrardo e sobre tudo nos Anais Eclesiásticos do cardeal Baronius, texto fundamental, já que constitui uma resposta católica às Centúrias do Magdeburgo. Em 1630, e a pedido da cúria, o grande erudito italo-grego Leão Allacio (Allacci) sintetizou a argumentação antijuanista em seu Confutatio fabulae Joannae Papissae, que se publicou em Roma. O fim da Juana: o desprezo calvinista e racionalista Como era previsível, o contra-ataque católico desencadeou uma verdadeira proliferação de publicações reformistas, cuja aparição registra uma grande regularidade; assim, as respostas às recusas geram a sua vez recusas das respostas. pudemos localizar até 40 títulos de opúsculos publicados entre 1548 e 1700 (38 protestantes e 8 católicos) consagrados exclusivamente a papisa, excluindo as reedições e as traduções confessadas ou dissimuladas (com freqüência, uma obra anônima reproduz um texto anterior). Se integrarmos a este lote as reedições e traduções, assim como as obras que se perderam (ou que não se localizaram), mas das que temos notícia graças às alusões na literatura que se conservou, então terá que multiplicar essa cifra pelo menos por quatro, o que arroja uma média de uma obra por ano durante um século e médio, sem contar os capítulos dedicados a Juana nas obras de caráter geral. Esta literatura não sempre é acumulativa, embora com freqüência sim é repetitiva; isso pop, constitui mais uma resposta que um adiantamento. O antagonismo dos reformistas se instala em uma guerra de trincheiras, onerosa em esforços e em papel, mas parca em movimentos importantes. Contentaremo-nos, pois, com uma cartografia rápida da guerra juanista, assinalando dois períodos intensos, por volta de 1585-1600 e por volta de 1649-1690. O primeiro período corresponde ao contra-ataque católico (Scherer, Bellarmino, Raimundo e Baronius), e se passa ao lado reformista a partir do bastión luterano (Wittenberg, Dillingen, Eisleben) e do mesmo Londres, onde o anglicano se calça as botas polêmicas dos luteranos. O segundo período, que se desenvolve principalmente nos Países Baixos e na França, tem sua origem exata na publicação no Amsterdam, em 1647, de uma obra que introduzia uma mutação capital na história da Juana. Em efeito, um pastor calvinista chamado David Blondel publicou uma recusa da história da Juana, que aos olhos de numerosos reformistas representava uma traição; trata-se do Esclarecimiento familiar da questão de se uma mulher se sentou na sede papal de Roma entre Leão IV e Benito III (reeditado em 1649, traduzido ao holandês em 1650 e ao latim em 1657). Alguns calvinistas responderam airadamente ao Blondel: Nicolás Congnard redigiu um Tratado contra o esclarecimiento proposto pelo Blondel (Saumur, 1655), e Samuel Dê Marets (Maresio), quem tinha acusado ao Blondel de perceber uma pensão do superintendente Miguel Particelli d'Emery em compensação por ter escrito sua recusa, publicou a sua vez uma lohanna Restituta (Groninga, 1658 e logo 1661). O jesuíta Felipe Labbé interveio nesse debate calvinista com seu Cenotafio da Papisa (Cenotaphium Joannae Papissae, Paris, 1660), apogeu da erudição católica (citam-se nada menos que 150 testemunhos textuales), ao que deu resposta em 1691 desde o Leiden Federico Spanheim, membro de uma ilustre família calvinista, com sua obra monumental Disquisitio historica de Papa foemina, muito popular entre o público francês graças à adaptação do J. Lenfant (História da Papisa Juana, Colônia 1694, com numerosas reedições). O giro que se produz em 1647 tem uma explicação singela: o calvinismo repudiou sempre o uso das lendas e dos temas populares (principalmente os iconográficos, mas também os textuales). A lista das publicações juanistas que aparecem a partir de 1548 reflete a chamativa ausência da Suíça calvinista e zwinglista, apesar de que Genebra era já então um centro editorial muito importante. Calvino se inclinava por enfrentar a católicos e luteranos no marco da superstição que ambos compartilhavam: «em matéria do Papado, dizia, nada mais estendido e manido que a chegada do futuro Anticristo.» Certamente, em 1647 David Blondel não tendia a mão precisamente a catolicidad, e o propósito desdenhoso que animava suas palavras consistia em dizer que Roma tinha suficientes crímenes e heresias atuais e constatables para reprovar-se para acrescentar fábulas duvidosas a esse expediente tão pesado. Neste mesmo sentido se manifestava um calvinista tão fanáticamente anticatólico como Jurieu, em sua História do papismo de 1682 : «Penso que a forma em que se relatou esta história faz mais honra à sede romana do que esta merece. diz-se que esta papisa tinha estudado bem, que era douta, hábil, eloqüente, que seus talentos fizeram que Roma a admirasse... Eu digo que é fazer honra à sede de Roma, nesse momento no que se situa a dita papisa, sendo a condição de amante de alguma dama romana o único mérito que conduzia até o pontificado.» Tinha passado já a hora das punhaladas alegres e sangrantes dos tempos do Lutero, desse tempo da convivialidad agressiva no que os irmãos gêmeos de Roma e do Wittenberg compartilhavam o mesmo gosto pelo teatro, pelo cenário, pela carne e pela escatologia escatológica; pensemos neste sentido no rumor católico que designava como lugar da invenção doutrinal do Lutero os privadas do Wartburgo, rumor ao que respondia como um eco essa imagem da Descrição do Papado (Abbildung dê Bapstum) (Wittenberg, 1565) , em que podia ver-se a um camponês luterano defecando na tiara derrubada da Papa. Mas o calvinismo, severo e moralizados, não podia divertir-se no jogo da Juana. Não obstante, é o calvinismo francês o que de uma maneira mais profunda, através da academia do Saumur, e sob o impulso do pastor Moisés Amyraut, converge com a aparição do racionalismo crítico; o pensamento jesuíta já tinha minado o chão apocalíptico da controvérsia com os famosos comentários de Ribeira (1591) e de Fortaleza (1614) sobre ao Apocalipse. O ilustre arminiense Grocio havia assinado essa negativa a fazer uma leitura milenarista do Apocalipse. Alguns anos antes da publicação do opúsculos do Blondel, Gabriel Naudé tinha famoso com bastante sagacidade e precisamente a propósito do Grocio, o nascimento de uma nova orientação reformista; em uma carta que envia de Roma ao Jacobo Dupuy em 1641, escreve o seguinte: «Prevejo que o senhor Grocio, com seus livrinhos, converterá-se insensivelmente em chefe de uma terceira partida, que possivelmente não seja de escassa conseqüência para o bem da cristandade» . Naudé aludia assim, entre outras coisas, a um comentário do Grocio, publicado em 1640, que provava que a Papa não podia ser o Anticristo. Uma vez mais, Juana vinculava sua existência a do Papado, e algumas linhas mais adiante nos oferecem o julgamento do Naudé sobre o livro do Saumaise De primatu Petri (publicado pouco depois, em 1645): «...Por isso se refere a papisa, jamais deveu empenhar-se em sustentá-la, havida conta de que inclusive os homens galantes de sua partida se mofam dela, e que ela mesma servirá para desacreditar a outra proposição como se esta procedesse de um homem muito apaixonado» . Terá que situar a obra do Blondel entre as Meditações de Descartes (1641) e o Leviatã do Hobbes (1651); no caso de Descartes, a prática das idéias claras e distintas e da dúvida metódica limitava a crença ao domínio exclusivamente divino (a existência de Deus), e inclusive, de maneira subsidiária, mediante o descartes da prova a priori (o argumento ontológico) da existência de Deus. Todo o resto é acessível ao tribunal da razão, onde as oportunidades da Juana, depois dos progressos obtidas graças à instrução dirigida pelo Panvinio e os jesuítas, são francamente escassas. Por outra parte, a epistemologia cartesiana e sua antropologia do engano, cujo eixo é o indivíduo cognitivo, investia radicalmente a perspectiva medieval onde a tradição constituía a paisagem mental primeiro e original, pelo que se deslocava, com bastante liberdade, o sujeito, até as quatro esquinas do saber. O cavalheiro cartesiano, solo ante Deus e o Gênio Maligno, alivia drasticamente sua bagagem e nos conduz até a quarta forma de crença, dominante após, e que é a forma racionalista, que só subsume a alternativa estrita do verdadeiro e do falso sob a adesão facultativa (mas desejada) a Deus ou a um Valor. Nada representa melhor dita investimento, apesar da diferença entre os pensamentos respectivos, que a construção do Leviatã do Hobbes em quatro partes: sobre o homem (I), sobre a comunidade (II), sobre a comunidade cristã (III); a quarta parte, bastante parca, está consagrada ao «reino da escuridão», e consiste em um repertório dos enganos do homem, no que vão caindo como grandes tecidos as antigas crenças, repartidas a sua vez em quatro tipos: as interpretações literais das Sagradas Escrituras, a demonologia, o espiritualismo filosófico e as tradições fabulosas («fabulous Traditions»). Apesar dos combates de retaguarda que se prolongaram até finais do século XIX, o livro do Blondel põe fim à vida da Juana, da que já ninguém queria saber nada. O próprio Leibniz, quem pouco depois do Cenotafio da papisa do Labbé, escreveu um volume muito elegante que titulou Flores jogadas sobre a tumba da Papisa (Floresça spersi in tumulum Papissae), atribuiu uma nova carreira a Juana: «Assombra-me que a papisa, digno argumento para um novelista, não tenha encontrado ainda, quando tanto gostam das fábulas, seu escritor como aconteceu ao Argenis ou a Clelia; esse escritor disporia de uma heroína e de uma amante, bem disposta para as desgraças; hei aí a matéria de uma obra muito elegante. E, na verdade, esta mulher ilustre concerne aos poetas e não aos historiadores.» A chamada do Leibniz foi atendida tardiamente, a finais do século XVIII, quando Juana encontrou acolhida nos histriões, mas que já não eram os «joculatores Dei» franciscanos que tanto a tinham amado, desde o Ockam até o Murner, a não ser os literatos, amantes a sua vez da bufonería, da tragédia, ou simplesmente das antiguidades góticas. CAPITULO VII Brasão literário da papisa É bastante possível que, muito antes de que Labbé e Leibniz enviassem a papisa à tumba, o germe da transfiguración literária da Juana estivesse já plantado na Turingia de meios do século XVI. Esta hipótese tem seu fundamento em um título aparecido em 1565 no Eisleben, cidade natal do Lutero: «Apoteose do Juan VIII, Pontífice Romano. Formosa peça sobre Dama Jutta que se converteu em Papa em Roma, e que quando estava no trono de Roma, extraiu de seu scrinium pectoris um recém-nascido. Escrita faz 80 anos mas recentemente achada e mandada imprimir pelas razões que se indicam no prefácio. Apocalipse XVIII: lhe paguem com sua própria moeda, lhe dêem o dobro de suas obras, já que diz em seu coração: Como reina estou sentada». por que situamos aqui precisamente o começo da existência literária da papisa? Acaso o término apoteose contém uma justificação suficiente? Certamente que não. É mais, se pretendemos cercar o campo literário da papisa, arriscamo-nos seriamente a nos afundar nas areias movediças das sutilezas sem fim, posto que ainda a finais do século XVI a aparição de uma novelita sobre a Juana provoca um vivo debate no que o texto novelesco serve como elemento de polêmica. Já no século XVI, o texto mesmo do Boccaccio se apresentou com um estatuto ambíguo, e neste sentido sugerimos no capítulo V que a inclusão da vida da Juana na galeria das Mulheres deslumbrantes conferia a papisa categoria de «personagem». Mas o uso do texto do Boccaccio, fonte essencial no século XVI para a historiografia da Juana, devolvia a figura da papisa ao estatuto verificável da crônica ou da biografia. Em conseqüência, a edição do Eisleben assinala com maior firmeza a aparição da autonomia literária da papisa: 1) trata-se de uma peça de teatro que, por definição, suspende a adesão referencial; o jogo esquematiza, representa, e em última instância se afasta da autenticidade literal postulada pela biografia ou a crônica. 2) Seu uso explícito, em 1480, neutraliza os investimentos históricos do relato; como se desprende de uma análise mais detida do texto, a aventura da Juana não expõe nenhuma polêmica, posto que o único que importa é a salvação da alma da Juana. É certo que a edição de 1565, preparada pelos luteranos, forma parte do esforço propagandístico descrito no capítulo anterior, pois como se advertiu, o título contém a alusão maliciosa ao famoso adágio do direito canônico «a Papa leva seus arquivos no estojo de seu coração (in scrinio pectoris)». Mas o editor Tilesio trata o drama como se fora um texto intangível, como um «monumento», e sua intervenção se limita à escolta textual: título, entrevista do Apocalipse, e prefácio, já que a obra em si mesmo não tem nada de antipapista. 3) A celebração literária, perceptível desde 1565 na atenção minuciosa que lhe dedica o editor, tem uma continuação imediata. Apesar de que até o século XVIII sua difusão material foi bastante escassa (o manuscrito que utilizou Tilesio, o editor de 1565, perdeu-se, e só se conservam duas exemplares da edição do Eisleben, alguém se encontra no Berlim e outro no Dresden), Johann Christian Gottsched, esse grande descobridor da literatura alemã do século XVIII, estimou que Fraw Jutta era «o mais antigo texto trágico original impresso em alemão», e como tal o editou cuidadosamente em seu Nöthiger Vorrath zur dê geschichte dê deutschen dramatischen dichtkunst de 1765 . Por sua parte, Achim von Arnim conheceu o texto graças ao livro do Gottsched e o transcreveu. Finalmente, a erudição contemporânea tomaria a substituição e a obra ficaria incorporada na edição do Keller em 1853, na do Schröder em 1911, e na tese do Haage em 1891 . insistimos na acolhida dispensada ao Fraw Jutta porque, no fundo, não há melhor critério de «literalidad» que o consenso da recepção; quer dizer, um texto é literário quando lhe trata como tal. Fraw Jutta (por volta de 1480) Para conhecer as circunstâncias que rodearam a redação do Fraw Jutta, não temos mais remedeio que confiar em prefácio do editor de 1565, Jerónimo Tilesio, da Silesia, e diretor além da reforma luterana na cidade do Mulhausen, na Turingia. Segundo Tilesio, a obra foi escrita e representada em 1480, e seu autor era um sacerdote («Mespfaffe», diz Tilesio), chamado Dietrich Schernberg, natural de dita cidade imperial do Mulhausen. Ao parecer, Schernberg deixou um manuscrito autógrafo da obra, que é o que logo utilizou o próprio Tilesio e a linguagem empregada no Fraw Jutta confirma essa datação. Do mesmo modo, supõe-se que o drama formava parte dessas peças teatrais que se representavam com motivo do carnaval cristão. De acordo com o modelo medieval do mistério ou da moralidade dos personagens, o texto, bastante largo (1.724 versos), compõe-se de uma série de diálogos estáticos separados entre si por breves indicações cênicas sobre os gestos, os acontecimentos e as mudanças de cenário. O primeiro quadro apresenta o conselho do diabo; Lúcifer convoca a seus coroinhas: Vnversün (transcrição do Universum, o Universo), Lillis (avó de Lúcifer), Satanás e Spiegelglanz. A seguir aparecem diabos de segunda categoria: Fedderwisch, Nottir, Astrot e Krentzelein. Lúcifer recebe a comemoração da Jutta (cuja história anterior e projeto desconhecemos). Depois, retornamos à Terra para ver como Jutta arrasta a seu amante Clericus à aventura; disfarçada de homem, faráse chamar Johann von Engelland e ambos irão estudar a Paris. A ascensão da Jutta está representada por uma cena breve que se desenvolve entre a Jutta, Clericus e um professor (Magister); no curso de um diálogo rápido, abonam-se os emolumentos e se fixa o programa (trata-se sempre de artes liberais, com especial atenção à lógica por quanto o domínio desta última permite manipular e transformar a lei em benefício próprio); o lacaio do Magister viu os dois amantes com o traje doutoral, ao objeto de que possam partir com as honras e com o dinheiro («mit soldem um ehren»). Ato seguido, Johann e Clericus oferecem seus serviços à cúria, representada por quatro cardeais que lhes conduzem até a Papa Basilio; o pontífice recebe sua comemoração e lhes outorga o cardenalato. Uma indicação cênica assinala a morte da Papa, antes do diálogo-conclave que designará a Jutta como Papa. No seguinte quadro aparece um senador («Rathsherr») romano que leva ante a nova Papa Johann a seu filho poseído pelo diabo, para que o pontífice o exorcise. Jutta, assustada, tenta confiar a tarefa a seus cardeais, mas Vnversün, que habita no corpo poseído, desvela à assembléia o segredo da Jutta: mulher, leva um filho em seu seio («Nu hóret zu alie gleich / Die hier in diesem saal gesamelet sind! / Der Bapst dá tragt fürwar ein Kind! / Er ist ein Weib ind nich ein Mann»). Esta cena reproduz a versão franciscano-turingia da fórmula diabólica das seis P, analisada no capítulo IV, da que toma tanto a declaração diabólica como o marco (ante uma assembléia de prelados). Esta extrapolação cênica tem aqui sua importância, posto que indica a permanência de uma tradição turingia que se remonta a sua vez à Crônica do Erfurt de finais do século XIII, à margem do desenvolvimento europeu da lenda, quando tínhamos a impressão de ter perdido esse rastro a princípios do século XIV, depois do Sigfrido do Balhusen, e das Flores temporum. De fato, a vida germânica da Juana prosseguiu entre a Baviera, de onde provavelmente lhe vem o nome da Jutta, e Turingia, nessa zona limítrofe da Boêmia hussita e da Sajonia que abraçará o luteranismo. Por outra parte, o episódio reflete um processo de criação «literária» e/ou «popular», da fórmula à cena que lhe confere sentido, de acordo com os mecanismos próprios da epopéia. Mas retornemos rapidamente às aventuras da Juana. Deixando a Roma presa de uma comoção, Schernberg nos translada ao Céu: Cristo («Salvator») comunica a sua mãe sua decisão de recuperar a Juana. Então o anjo Gabriel propõe a Jutta a eleição entre a expiação imediata e a condenação eterna. Encontramos aqui o segundo episódio da tradição germânica e/ou popular (localizada na Baviera, mas também na Cataluña do século XIV, como recordaremos), que explica o escândalo público da iluminação como confissão. O qual nos convida a meditar sobre as correntes subterrâneas da religiosidade, pois o que triunfa nesta encenação do escândalo público é o conceito da confissão não sacerdotal mas salvadora, que em seu momento será um dos componentes essenciais do luteranismo. depois da eleição da Jutta, chega a Morte e justifica a sentença, cujo objetivo principal concerne a transgressão da partilha sexual dos papéis. Jutta invoca precedentes ilustres: Adão, Pedro, Tomam, Pablo, Mateo, Teófilo, María Madalena e Longino traíram, renegado ou combatido a Cristo antes de ser salvos por sua misericórdia. depois de invocar a María, Jutta ilumina a seu filho e morre. Imediatamente, o diabo Vnversün leva sua alma ao inferno, onde, com o Nottir, conduz-a ante o senhor do lugar, Lúcifer. A alma da Jutta se debate entre os diabos, enquanto que em Roma, os cardeais, consternados, decidem mandar construir uma cadeira especial para que, a partir de então, fique estabelecido que o candidato é uma galo e não uma galinha («Ob er são ein hão oder ein henne»). O quadro seguinte nos mostra como Jutta, no inferno, e para poder sair do Purgatório («Fegfewr»), invoca à Virgem e a São Nicolás, quem a sua vez imploram ao Salvador. Esta dobro súplica tem êxito, e Jesus envia ao Miguel para que libere a Jutta, quem é recebida filialmente no Céu pelo próprio Jesus («Bis wilkomen du liebste Tochter mein»)*. Apesar do tardio de sua data, o texto do Schernberg nos remete ao milagre de corte medieval, e seu mesmo tema nos recorda o Milagre do Teófilo (personagem chamado pela própria Jutta), escrito pelo Rutebeuf no século XIII . A intervenção cíclica dos demônios, muito do gosto do público medieval, assinala sorte continuidade, enquanto que o tom satírico resulta bastante discreto (sobre os doutores e sobre a cúria), por não dizer que vizinho na estupidez (pensemos a este propósito nos ataques antipapistas da obra Concílio da Basilea, representada em 1434). Não obstante, a novidade que comporta Fraw Jutta (com independência da leitura luterana que sugere Tilesio em seu prefácio) radica no deslocamento dos gêneros: a técnica teatral, muito popular, do milagre ou da moralidade acolhia um tema de brincadeira ou de idiotice. Esta mescla de gêneros, que integrava o tema da impostura romana na categoria mais religiosa do teatro, anunciava transtornos ainda mais graves na vizinha Sajonia. O purgatório literário da Juana (1480-1777) Juana tivesse podido desenvolver sua carreira literária a partir da edição do texto do Schernberg pelo Tilesio, e ocupar um lugar no grande florescimento do drama barroco alemão («Trauerspiel») que tanto prosperou no meio luterano. Mas a intervenção de um autor quase contemporâneo do Tilesio foi decisiva. trata-se do grande polígrafo Juan Sachs (1494-1576), introdutor na Alemanha da «tragédia», e que se ocupou da papisa em 1532 e em 1558, sucessivamente , com uma narração que daria lugar não a uma elaboração dramática (tragédia, comédia, Trauerspiel), a não ser a uma canção, e logo a uma singela «história» mais na linha do panfletario que do literário, em que Juana aparece vinculada às Papas e aos prelados (Juan XII, Silvestre II, Udo do Magdeburgo), objeto à maturação de brincadeira por parte do mesmo Sachs em outras «histórias». Assim, entre 1480 e 1777, Juana só pôde viver no mundo da controvérsia. Podemos entender que o repúdio romano expulsasse a Juana do panteão literário, mas o silêncio protestante não resulta tão fácil de explicar e supomos que a violência dos debates em torno da existência da papisa impediu que se produzira a distância suficiente, quer dizer a neutralização necessária da figura, para a fabricação de um personagem. O sentido literal da vida da Juana importava muito para favorecer crenças em sentido metafórico, o qual nos permite extrair uma lei dos momentos descontínuos que balizam a vida literária da Juana (1360, Boccaccio; 1480, Schernberg, e 1777, Borde): estes momentos correspondem a uma vazante dos investimentos polêmicas (depois do uso franciscano da Juana, depois dos debates conciliar surtos do Grande Cisma, e depois do abandono da papisa por parte dos protestantes, quem só a utilizou durante algumas décadas depois do golpe calvinista atirado pelo Blondel). A «Apoteose» proclamada pelo Tilesio deve, pois, reduzir-se a seu sentido polêmico e irônico, e não interpretar-se como o acesso à glorificação literária, embora dito título nos recorde o universo do Trauerspiel. Em conseqüência, apesar de sua sedução cronológica, a data de 1565 carece de importância, pois na verdade Juana jamais conheceu Renascimento algum. À vista do exposto, parece necessário saltar por cima de três séculos para seguir a Juana pela literatura. A neutralização do tema de sua existência brindou a Juana muito tardiamente as obrigado do jogo literário, sem dúvida porque a anedota adquiriu, durante o anticlerical século XVIII, um estatuto sério, embora fora de segundo grau. Para os filósofos, o episódio se apresentava como um objeto de disputa irrisória e grotesca entre dois fanatismos falsários (o catolicismo e o protestantismo). A atitude filosófica se traduz, pois, em um desprezo dos efeitos fáceis que proporciona a fábula, e em um enfrentamento dos adversários; qualquer uso sério ou literário do relato tivesse abolido a superioridade adquirida mediante esse cepticismo desdenhoso. A partir de então, a condescendência irônica e racionalista dos filósofos classificou a anedota entre os contos supersticiosos. A Enciclopédia*, por exemplo, situa a história entre os chamados contos de velha: «É depois de Leão IV, quem morreu no 855, onde se coloca à falsa Juana. No Sonho do velho peregrino, escrito pelo Felipe do Mezières em 1385, reina-a Verdade conta no capítulo 1j do livro I, que um dia uma velha lhe disse "Nesta corte de Roma eu vi reinar a uma mulher que era da Inglaterra". A velha não soube explicar bem o resto de seu conto e a reina Verdade não lhe deu crédito, como tampouco o deu a outro conto da mesma velha a respeito de um bispo do Besançon quem, conforme dizia, foi transportado a Roma pelo diabo» . Mas já Bayle, em seu Dicionário (1694-1696), tinha adiantado essa distância que os pensadores ilustrados quiseram pôr entre o relato e seu uso. depois de uma análise dos argumentos que sustentam a existência da papisa, Bayle demonstra que o uso do relato reveste maior importância que seu conteúdo para a Razão, a qual, desde sua altura, pode entreter-se com as argúcias da história e da controvérsia; de fato, os protestantes «tiveram que abandoná-la (a papisa) e não utilizar toda sua indústria para prolongar a disputa, posto que com isso ensinavam a seus adversários o método de criticar todos os fatos» . Por sua parte, Voltaire, no «Catálogo dos imperadores e das Papas, etc.» (último expoente do modelo Eusebio-Jerónimo), com o que conclui seu Ensaio sobre os costumes (1756), acrescentou por mor do sorriso cético o prazer de uma explicação do engano, que toma a sua vez do Baronio. Assim, e a propósito do assassinato do Juan VIII (882), Voltaire assinala: «Não é mais certo que a história da papisa Juana. Lhe atribuiu o papel desta papisa porque os romanos diziam que não tinha mostrado mais coragem que uma mulher contra Focio». Sem dúvida, esta postura vantajosa dos filósofos é a que liberou a Juana de correr a mesma sorte funesta que recaiu sobre sua virtuosa prima, Juana de Arco, a quem Voltaire trata com bastante grosseria (não isenta de graça), em sua Donzela (1762). A fábula da papisa não pertencia à história, que se podia e devia parodiar, a não ser à história da história, onde se encontra esses outros látegos (católicos e protestantes) que fustigam a nossa Juana. Por outro lado, dificilmente podia o relato encontrar seu sítio entre os gêneros do século XVIII, isto é antes de que se inventasse a novela histórica, que derruba a fronteira entre o sério e a fantasia, entre a autenticidade e a ficção. O conto necessitava mais liberdade, enquanto que o poema burlesco requeria a sua vez uma matéria mais autêntica para a paródia. Entretanto, o gênero dramático, imensamente variado, sim sabia manipular a invenção e a história, mas já conhecemos os limites que a censura impunha a uma produção que não podia existir sem ser consumada publicamente; assim, por exemplo, até a Revolução esteve proibido que o hábito eclesiástico aparecesse em cena. Mas um desejo expresso pelo Voltaire em 1764 anunciava já o triunfo próximo da Juana nas pranchas: «Sem dúvida chegará um dia no que tiraremos seus Atreos e seus Teste com o propósito de fazê-los odiosos» . Nestas palavras advertimos com claridade que a reserva condescendente e racionalista não poderia resistir durante muito tempo as diversas feitas ondas do anticlericalismo, mescladas à antiga corrente do galicanismo, e inclusive reforçadas com o exercício ritual que comporta o assassinato do Pai jesuíta... A papisa clandestina do Carlos Borde (1777) Mas antes da explosão revolucionária, a tentação burlesca que subjazia na tática ou na colocação racionalista produziu a primeira Papisa Juana moderna da literatura, com o poema narrativo do Carlos Borde, publicado anonimamente com dito título, sem lugar de edição, em 1777, e logo no Leiden em 1778. Com este comprido poema cheio de picardia, que só conheceu uma difusão clandestina na França, encontramo-nos na marginalidad da literatura das Luzes. Não obstante, pudemos conhecer melhor as características dessas zonas culturais graças aos trabalhos do Robert Darnton, quem demonstrou como, sob uma capa estabelecida de escritores consagrados, o pensamento ilustrado engendrou uma classe de autores mais escuros, cuja situação ajudante e desprezada lhes empurrou a expressar seu rechaço do Antigo Regime em términos violentos, e com freqüência inclusive pornográficos . Sua produção se mescla com as obras principais dos filósofos, nessa corrente difusora que tem sua origem na Suíça e nos Países Baixos. Assim, encontramos bem situada a uma Papisa Juana entre os livros encarregados pelo livreiro Mauvelain do Troyes, por volta de 1780, à Sociedade Tipográfica do Neuchâtel, cuja lista conhecemos graças ao chamado R. Darnton . Esta Papisa só pode ser a de Borde, a falta de outra conhecida. O passo do Leiden ao Neuchâtel não apresenta nenhuma dificuldade. A Papisa figura na lista dos 48 livros mais pedidos pelo Mauvelain, com um total de 44 exemplares encarregados em seis ocasiões, o que a situa no quarto posto de êxitos, depois Dos Fastos do Luis XV (84 exemplares), As Musas do lar da ópera (46 exemplares) e a Crônica escandalosa (45 exemplares), três títulos que correspondem a sua vez a três obras pornográfico-políticas, que se situam em vendas muito por diante das escassas obras sérias encarregadas pelo livreiro do Troyes (História filosófica do Reynal, 18 exemplares, e as Obras de La Mettrie ou de Helvécio, 16 e 3 exemplares respectivamente). A carreira farto escura de Borde confirma sua pertença a esse contingente de escritores violentos e oportunistas que se desembrulham à sombra das Luzes. Carlos Borde (1711-1781), filósofo de talha menor e provinciana (concretamente do Lyon), beneficiou-se da boa acolhida que JuanJacobo Rousseau dispensou a seu Branca do Borbón (1736), antes de lhe atacar com motivo dos Discursos (1750-1762), e de aproximar-se do Voltaire, quem lhe fez uma visita em sua casa das Delícias no Lyon, em 1765. A inspiração anticlerical de sua obra só aparece muito tardiamente, como se o choque das táticas de aproximação do Rousseau e do Voltaire tivesse radicalizado a Borde. De fato, isto é o que aconteceu a muitos autores que ficaram na soleira do templo das Luzes. Em 1766, Borde inclui um Catecismo no Evangelho da Razão do Dulaurier, e em 1783, dois anos depois de sua morte, apareceram seus Versos sobre o breve da Papa Clemente XIV quem defende a castração em seus estados. Resulta compreensível, pois, que Borde não se detivera ante as considerações enunciadas mais acima sobre a oportunidade de falar da papisa. Por outra parte, um brilho de gênio lhe permite a Borde franquear as reticências deontológicas ou táticas que tinham presidido a atuação do Voltaire. Ao tempo que se ocupa do episódio da Juana com absoluta liberdade e abundância de licença literária, deixa cair, como quem não quer a coisa, na parte inferior das páginas, algumas nota eruditas que dão a entender que, se esta fantasia desbocada ressurge no âmbito da ficção, não por isso carece de fundamento; desta maneira, a narração consegue atrair-se aos setores mais irredutíveis do protestantismo, sem entregar de tudo a sua argumentação apologética. O recurso da nota devolve o episódio ao contexto equívoco no que se manteve até o presente; quer dizer, que não há fumaça sem fogo. A história não é nem verdadeira nem falsa, mas sim significativa, e sua origem poderia ser verídico; a Grande Rameira de Babilônia se converte assim em uma mulher encantadora de vida alegre. O método de Borde inaugura a entrada da Juana no mundo da ficção: uma fantasia envolta em uma malha de veracidade. Por sua parte, Casti, Rhoides e Durrell imitarão esta forma de exposição. O poema, em dez cantos, paganiza os costumes romanas, utilizando as formas do gênero burlesco, como o fará, a finais do século, e com imenso talento, o cavalheiro do Parny em sua Guerra dos deuses. Uma assembléia de Santos e de seres celestiales celebra conselho no firmamento para remediar a triste situação pela que atravessa a Santa Sede, quando Leão IV morre a conseqüência da sífilis, «Fruto muito amargo de um engano agradável». Miguel interpela ao Pedro: «Até quando, nosso leal amigo Pedro / Suportará sentado em sua cadeira / Dos pérfidos um montão de deslealdades.» despacha-se ao Rafael a Roma para a abertura do conclave, enquanto que as santas mulheres deliberam por sua conta no céu, para reivindicar seu acesso à a Santa Sede, já que, diz Mónica, «Não há... nem honra nem dignidade / Onde nossa pretensão não seja de direito pleno.» O conselho se interessa então pela Juana, cuja carreira canta o poeta: filha de sacerdote, apaixona-se pelo Renato Fulda, jovem monge com o que quer compartilhar a vida, vestindo ela também o hábito de São Benito; no curso de suas peregrinações, tem que separar-se do Renato, e, lhe acreditando morto, parte ao Tívoli, onde leva uma vida retirada perto do sepulcro que levantou em memória de seu amante. Enquanto isso, as santas mulheres enviaram uma embaixada a São Pedro, quem acessa a sua petição e sabe convencer a sua vez ao conclave para que este recorra ao santo monge Juan. O conclave envia ao Tívoli ao cardeal Marcelo, que não é outro que Renato Fulda; os amantes se reconhecem, e retornam a Roma depois de ter consultado os oráculos. O conclave escolheu ao Juan, mas aplicou de novo a «lei da poltrona», cadeira perfurada para a verificação da virilidade das Papas. Marcelo, bem aconselhado pelas santas mulheres, recorreu a um expediente muito comum na literatura libertina: «Nos conventos mais renomados / Para sua clausura e seus castos ferrolhos / Existe uma arte que imita essas jóias / Frescas e vermelhas que sempre entre vós / Aos olhos do sexo mereceram a maçã.» Assim, e graças ao artifício, Juana é proclamada Papa. Como pode apreciar-se, Borde introduz uma mutação decisiva na narração, liberando à anedota das restrições que impõe a história, ao objeto de utilizar o relato como mero pretexto para confeccionar uma fantasia de vadios. Esta narração encontra seu sítio em sua época; por uma parte porque, conforme acabamos de ver, o recurso da fantasia picante se apresenta como campo literário substitutivo aos «Rousseau du ruisseau»*; e, por outro lado, porque no século XVIII o gênero da ficção abunda em personagens e cenários eclesiásticos (veja o Porteiro dos cartujos, e outras mil capuchinadas). A história da Juana, cujo distanciamento no tempo está sublinhado pelas notas de Borde a pé de página, permitia, como os contos licenciosos orientais, o prazer da transposição, do anacronismo e do alotopismo a gosto do autor. Porque a história, como lhe ocorre ao estilo heróico, esfuminha (quer dizer, vela e desvela) a crueldade das situações. Assim, com estas duas ancoragens históricas da narração galante da Juana (isto é, a eleição ideológica e o gênero licencioso), inaugura-se uma nova tradição. Mais adiante teremos ocasião de nos deter nas congruências anticlericales e libertinas que suscitou Juana durante a Revolução francesa, mas antes devemos atender a expansão européia da papisa, à luz severo do Norte, e à luz cálida do Sul. As luzes germânicas da Juana: Winkopp (1783) Pouco tempo depois de Borde, em 1783, Pedro Adolfo Winkopp publica no Leipzig uma Papisa Juana criada novelas, inspirada na polêmica narração do Egberto Grim {Pauselicke Heiligheid...), que tinha aparecido em 1635 em holandês. Winkopp (1759-1813), autor esquecido, teve uma trajetória vital interessante, bastante representativa do impacto alcançado pelo movimento filosófico fora da França, e em uns contextos onde a ambição iluminada podia desenvolver-se com maior amplitude que na própria a França. Natural da Sajonia luterana, mas de origem católica, abandonou, sendo jovem ainda, seu convento beneditino do Petersberg, perto do Erfurt, na Turingia, e entre 1780 e 1785 publicou uma série de novelas {Serafina, Faustino, O prior Hartung e a Papisa Juana), cuja ação tinha lugar nos odiosos e opressivos conventos. Estes textos produziram tal ruído, que desencadearam uma pesquisa oficial sobre a vida nos monastérios. Continuando, Winkopp empreendeu a carreira de publicitário, fundando um Observador Alemão (Der Deutsche Zuschauer), no Zurich (1785-1789). Em 1786 foi detido por causa da virulência de seus escritos, e conduzido desde a Basilea até os cárceres do arcebispo da Maguncia, cidade onde, apesar de sua situação, prosperou; depois de um intento frustrado por converter-se em comerciante de livros, obteve cargos oficiais na mesma corte da Maguncia. Em 1790, capa de novo no Zurich um periódico de estatísticas sobre a Alemanha renana, e com motivo da invasão republicana da Renania se converte no observador e propagandista da Confederação Renana até sua morte, em 1813 . As luzes italianas da Juana: Casti (1804) Juana, sempre brilhante, desfrutou no outro limite da Europa das cuidados literárias que lhe dispensou um autor muito notável, o abate italiano João Batista Casti (1724-1803), personagem equívoco e provocador, expoente ativo da Ilustração, que percorreu toda a Europa, desde Malte até a Rússia, desde o Estambul até Paris, travando conhecimento com a Casanova, Goethe, Napoleón Bonaparte, ao tempo que escrevia óperas para o Paisiello e Salieri, e foi sucessivamente poeta pensionato pelos grandes duques da Toscana, membro do corpo diplomático austríaco na corte da Catalina da Rússia, poeta na corte do Francisco II da Austria e anfitrião dos irmãos Bonaparte em Paris, apesar de seu antibonapartismo virulento . A Papisa do Casti apareceu em italiano em Paris, em 1804, um ano depois da morte do abate, em uma recopilação de Novidades em verso, que recolhia e completava uma primeira edição publicada em Roma, em 1790, confeccionada com textos redigidos desde 1766. A recopilação, dedicada às mulheres que «sabem acompanhar à virtude com a razão», refere-se de uma parte à antiga tradição do Boccaccio (neste caso como autor do Decamerón e não das Mulheres deslumbrantes), e do Masuccio (relatos narrados em uma sociedade de mulheres, prazeres furtivos, damas ardilosas, «frati bordellai», etc.), e de outra ao relato erótico-filosófico do século XVIII, manifestando uma profunda hostilidade para o poder temporário das Papas (concretamente na notícia sobre «A bula do Alejandro VI») e para a política jesuíta, ao tempo que exalta o divórcio, a liberdade sexual e o prazer, contra a imposição religiosa. Como no caso de Borde, encontramos aqui certo gosto pela transposição, presente já no Poema Tártaro (1783), onde a evocação medieval da Rússia mongola encerra uma denúncia sobre a Catalina II. A narração do Casti emprega os mesmos procedimentos burlescos que a de Borde, mas conserva mais fidelidades para com a vulgata medieval, incluído o triste fim da Juana, apesar de um aplique a esta última parte, que compreende uma pergunta cômica sobre o futuro da Juana no inferno, onde lhe Dêem não a viu, e um pensamento «para a pobre pequena alma do pequeno bastardo papal» («Alia povera animetta / Do picciol pontifício bastardello») . Esta trama clássica está enriquecida com uma grande erudição não isenta de malícia por parte do autor, tanto no que se refere aos contextos históricos como à própria historiografia da papisa, erudição que se distribui com o passar do texto e também das abundantes nota. Este fundamento erudito permite uma amplificação saborosa e satírica, esboçada sobre o modelo sério e polêmico que distingue às versões do Spanheim e Lenfant: assim, o pai da Juana resulta ser um sacerdote inglês que tinha vindo ao continente para evangelizar Sajonia, o que deu ao Casti a oportunidade de referir-se indiretamente à sangrenta conversão empreendida pelo Carlomagno na região. Os novelistas contemporâneos (Rhoides, Jarry, Durrell) copiaram a sua vez esta passagem. Desta maneira, a genealogia da Juana multiplica a hilariante temática anticlerical, já que a mãe da Juana seria uma tal Hildegarda, de origem irlandesa, que teria sido raptada a sua vez de sua terra natal por um cenobita, antes de conhecer sacerdote inglês. A menção de Atenas como lugar de estudo, que tanto incomodava aos historiadores, converte-se aqui, sutil e prerrománticamente, em uma espécie de viagem de iniciação amorosa e artística, em uma peregrinação às ruínas da antigüidade. Mas o rasgo mais destacável do relato do Casti é a total secularização da Juana, quem se apresenta com uma mescla da energia herdada do Boccaccio e do gosto vivo e alegre pelo prazer. junto com seu amante Fulda, desfruta de uma existência singela, em que os dias de estudo alternam com as noites de prazer, até que ambos se separam de mútuo acordo, sem drama, para entregar-se cada um por sua conta a novos desejos e a novos descobrimentos. Fulda se dirige ao Oriente e chega até o Bagdad; enquanto que Juana se volta para o Ocidente e alcança Roma. Em última instância, a vida de ambos representa a própria existência do Casti, dedicada ao prazer e a viajar. A chegada da Juana a Itália proporciona ao Casti a oportunidade para deplorar a decadência de uma Itália que impacienta ao autor pelo arcaísmo que a invade, quando na França se vive a Revolução e a chegada dos republicanos. À vista da cadeira de São Pedro, Juana se dá conta de que constitui um objetivo digno de seus talentos, embora o êxito lhe aborrece; assim, pois, toma por amante a um cardeal que a enche com seu vigor: «A câmara então foi sacudida. / De acima caiu um Cristo que se rompeu em pedaços. / A uma Virgem grafite lhe coloriram as bochechas. / O retrato de São Pedro se enegreceu. / Mas eles continuaram sua carreira.» A iluminação final porá fim a esta dita romana, não sem que antes Fulda, que tinha chegado a Roma, assumisse em sua condição de amante ciumento, a visão luterana da Juana: «Certamente é de ti de quem fala o Apocalipse» . Detivemo-nos um momento comprido na notícia do Casti porque, além de seu grande encanto, constitui o protótipo da brincadeira erudita que, até nossos dias, feito-se cargo da papisa. Mas que o leitor não se preocupe, pois não lhe fatigaremos com outros exemplos novelescos, entre outras coisas porque quase todos copiam ao brilhante Casti, sem superá-lo e nem sequer sem igualá-lo. Não obstante, o importante é que o passo de Borde ao Casti compreende um momento capital de nossa genealogia literária, o da Revolução Francesa. Voltemos para ela. Juana no anticlericalismo teatral (janeiro 1793) Em menos de um mês (23 janeiro-22 fevereiro 1793), Juana emprestou seu nome e sua história a três peças de teatro. A Revolução tinha liberado por completo à produção dramática, levantando a censura e suprimindo os monopólios de repertórios (1791) ; os resultados foram aplastantes: escreveram-se 1.500 obras. Só no ano 1792-1793, quando aparecem nossas três papisas, representam-se entre 200 e 300 em uns quarenta teatros parisinos. O anticlericalismo, tão enraizado nas consciências burguesas e populares, ajudou a esta nova liberdade: o famoso Carlos IX do José Chénier pôde por fim representar a figura odiosa do cardeal da Lorena. No momento da supressão das ordens monásticas e da Constituição civil do clero (1790), o repertório teatral recebeu uma verdadeira avalanche de obras antirreligiosas. A antiga fascinação erótica pelo claustro estalava ao tempo de sua abertura simultânea, como aparece no canto do Silvio Maréchal em 1790: «Saiam, dancem, divertios / Divertios, jovens monjitas! / Façamos juntos em voz baixa / O ofício do dia e da noite» . Em poucos meses, aparecem obras como O convento (Laujon), Os Rigores do Claustro (Fiévée e Berton), As Religiosas, As Religiosas Liberadas, As Irmãs do urinol, O convento ou os votos forçosos (Olimpio do Gouges), A Comunidade de Copenhague (Bertín d'Andilly), durante 1790, e O marido diretor ou o desalojamento do convento (Flins dê Oliviers), Os capuchinos, Amela ou o convento, As vítimas enclausuradas (Monvel), durante 1791. «Todos os teatros pequenos ou grandes, conta o autor Fleury, logo estimaram necessário dispor em seu figurino de casula, sobrepeliz, solideo e do cordoncillo de São Francisco, entre outros trajes... Nós mesmos tivemos um cardeal no Carlos IX, um cardeal no Luis XII, cartujos no Conde do Domminges, e um grupo de bonitas monjas no Convento ou os frutos da educação». Neste contexto, a história da Juana podia representar-se perfeitamente no cenário, embora é importante decantar com a maior exatidão possível as razões precisas de sua apresentação em público, pois se encontram na encruzilhada de dois processos determinantes: o da história política e o da biografia social de seus autores. Uma vez mais, Juana nos permite entrar em um universo histórico singular. O momento da Juana Em 1793, a história da papisa aparece como uma arma resgatada de mãos dos protestantes, no combate contra o Papado. Em efeito, desde 1791-1792, a Papa se converteu em inimigo declarado da República: Pio VI condenou a Constituição civil do clero, e agora alberga aos sacerdotes refratários em seus Estados, enquanto que sem pertencer à Coalizão a assinava com a garantia de seus breves. A anexação do Aviñón decantou a postura pontifica a favor dos tiranos, e este alinhamento com os soberanos absolutos constitui o tema central da famosa obra do Silvio Marechal, O Julgamento final dos reis, que se representou nove meses depois de nossas três papisas, concretamente em 18 de outubro de 1793. Em dita obra, a Papa é deportada pelos «sãsculottes» a uma ilha, onde perece sob as cinzas de um vulcão, em companhia do imperador, dos reis da Inglaterra, da Prusia, da Rússia, de Nápoles, etc. Entre as capuchinadas de 1790-1791 e a violência do outono de 1793, nossas três papisas representam um término intermédio. É possível que esta rajada de papisas se desencadeasse como resultado de uma circunstância particular. Em 13 de janeiro de 1793, Juan do Bassvill, secretário da legação francesa em Nápoles, dirige-se a Roma para exigir que a Papa admita os emblemas revolucionários sobre a porta do consulado francês; mas no curso de uma revolta, cuja responsabilidade a opinião francesa atribuiu ao cardeal Zelada, secretário de estado do Vaticano, Bassvil resulta morto; a notícia chega rapidamente a Paris, onde a Convenção se indigna e a rua ruge. Um revolucionário italiano, Vicente Monti, compõe imediatamente um comprido poema em quatro cantos, à memória do mártir, titulado os Bassvilliana . Em 26 de janeiro do mesmo ano, representa-se no teatro da rua Feydeau a primeira Papisa, a do Léger, em uma época em que se compunha uma comédia breve em poucos dias. A introdução do Defauconpret a sua própria papisa, impressa em janeiro de 1793, confirma sorte precipitação, pois sustenta que seu papisa, escrita desde fazia algum tempo, tinha sido rechaçada por três teatros (Feydeau, Teatro Francês Cômico e Lírico e Vaudeville), e que a publica porque ouviu falar de outras duas obras sobre o mesmo tema. Defauconpret sustentará suas pretensões de precedência, inclusive depois da representação que obteve finalmente no teatro Moer, em 23 de fevereiro de 1793, titulando a segunda edição de seu texto com o alusivo A maior das papisas . Juana na carreira de um autor-ator. Pedro Léger Se tivermos em conta os conteúdos destas ficções dramáticas (pelo menos das duas que chegaram até nós) e a posição social de seus autores, advertiremos que o antipapismo benigno de janeiro de 1793 representa uma forma de compromisso cultural e político. A obra do Pedro Léger evacúa qualquer lembrança turva de uma transexualidad e se situa no paradigma das comédias ligeiras, nas que os amantes separados e disfarçados se encontram por azar. Juana, prometida do Florello, teve que fugir disfarçada para escapar de um pretendente desprezado. Florello a encontra no momento mesmo de sua eleição ao pontificado. Justo depois da proclamação de seu acesso à a Santa Sede desvela publicamente seu segredo e declara seu propósito de ser Papa e casar-se com o Florello. Coerente e revolucionária, Juana abole o celibato dos sacerdotes e suprime os dízimos. Com um ligeiro tom burlesco, Léger se refere amavelmente aos cardeais Gireplante, Rolando, Jejunio e Boivin, mas em realidade a hora pertence sobre tudo ao feminismo e à exaltação da união dos corpos, na linha das capuchinadas que presidiram a produção teatral de 1790-1791: «E se eu quiser hoje, diz Juana, em meu novo estado / A meu sexo enoblecido dar um novo resplendor»... «O celibato é a fonte infinita do vício» . Pedro Léger (1760-1823), produto clássico da pequena burguesia (seu pai era cirurgião no Barnay), levava durante o Antigo Regime a vida precária de um intelectual de segunda fila, primeiro como abate de capa e logo como escritor. A Revolução lhe permitiu acessar à fila de autor e de ator de êxito. Sensível a todas as tendências do momento, como se verá a seguir, foi um dos primeiros em subir a um membro do clero à cena, no órfão e o pároco (1790). Esta peça breve, dedicada a um sacerdote, não tem nada de um arrebatamento anticlerical, a não ser justamente o contrário; apresenta a um valente pároco de aldeia que aceita de bom grau e sem reservas a Constituição civil do clero, assim como o desaparecimento dos dízimos e dos privilégios. O mau da obra é Antonio, o granjeiro, quem tenta abusar da generosidade ingênua de Augusto, um jovem órfão criado pelo pároco, mas herdeiro virtual de uma fortuna. Augusto, por pudor, dissimula um empréstimo que tem feito ao pároco, quem de repente se ficou sem recursos, e a conseqüência de uma série de qui proquods Agustín passa por ladrão a olhos de seu rico benfeitor, o senhor Dorval, ao tempo que empenha sua herança eventual com o Antonio, o desenlace desmascara ao Antonio e reconcilia ao senhor Dorval com Augusto sob o olhar bondoso do pároco. Com o concurso de outros atores-autores, Léger criou em 1792 o teatro de opereta ou vodevil . Tempo atrás, nos anos 1780, os diretores da empresa, o cavalheiro do Piis e o compositor Gradeei tinham querido restaurar o gênero francês do vodevil, ilustrado pelo Favard e desprezado a favor da ópera italiana. depois da liberação do teatro, Piis e Gradeei quiseram relançar a idéia do vodevil com o antigo repertório, assim como com novos sainetes que dariam uma crônica satírica da atualidade do momento. A municipalidade outorgou sua permissão e uma antiga sala de baile perto do Louvre fez sítio ao «Vaudeville», que após se representou ali durante 46 anos. A sala se converteu rapidamente em um dos teatros mais populares de Paris. Mas o governo revolucionário suspeitou logo do quadro de atores, tanto pela sátira da que faziam ornamento permanente, como pela situação pessoal de Gradeei, um de cujos irmãos servia nos guardas da rainha. Em 1792, Léger proporcionou aos revolucionários motivos mais concretos de acusação contra os atores do teatro do vodevil. Em efeito, escreveu uma obra titulada O autor do momento em que se mofava ferozmente do Palissot, e sobre tudo do José Chénier, autor predileto dos patriotas por seu Recife Graco. Léger reincidiu imediatamente em seus alegações por escrito com um manifesto, ao tempo que Gradeei anunciava a representação de outra obra incendiária, A Revanche. A quarta velada do Autor de um momento se apresentou ante um público realista, que tratou brutalmente aos escassos contestatarios jacobinos ali pressente; uma contramanifestación de patriotas provocou a chegada do Dantón e do Pétion para restabelecer a ordem, e a representação se saldou com a morte de três espectadores (um soldado confundido com um jacobino e dois pajens da rainha). O resultado da velada se traduziu no restabelecimento da censura, depois de mais de um ano de liberdade total nos teatros. Aos poucos dias do sucesso, Gradeei teve que apresentar suas desculpas ao público e queimar o manuscrito da obra do Léger . Entretanto, Léger não tinha nada de ideólogo e continuou sua carreira no gênero da paródia atacando, pouco depois do Autor de um momento, a um Lovelace representado no teatro da Nação, com uma obrita titulada Gil Lovelace no mais puro estilo da sátira literária. O resto de sua vida como autor-comediante reflete de uma vez seu oportunismo e sua fidelidade ao ofício que lhe tinha facilitado a liberação revolucionária do teatro. Em 20 de setembro de 1793, Léger foi encarcerado em companhia de Gradeei e do Piis por ter insistido em representar o Autor de um momento, e foi posto em liberdade em janeiro de 1794. Compôs imediatamente, e em honra da República, uma Apoteose do jovem Bara. Sempre dentro desta linha laudatória, escreveu com Gradeei A década feliz, de corte muito revolucionário, e logo, com o mesmo Gradeei e Lecouppey da Rosiére O surdo curado ou Os você e os você, comédia ligeira que elogia o tuteo republicano. Em 1799 retomou com Pus o teatro Moer, sem conseguir muito êxito. Seguindo seu costume, Léger saudava o novo dono da situação exaltando o golpe de estado do 18 brumario na Jornada do Saint-Cloud, escrita com o Chazet e Gouffé, e representada no teatro dos Trovadores. Mas, apesar de seu oportunismo recalcitrante (em 1814 compôs uma obra titulado Berço do Enrique IV), padeceu o recesso registrado pelo teatro durante o Império e a Restauração, e teve que recorrer a tarefas de menor categoria como professor, secretário de prefeitura e tabelião, antes de fazer-se carrego do teatro do Nantes, onde permaneceu até sua morte em 1823. Com independência do aleatório de sua carreira, o certo é que a revolução cultural de 1789-1790 tinha conferido um estatuto insuspeitado de homem de teatro a este proletário da cultura do Antigo Regime. Em janeiro de 1793, no momento do assunto Bassvill, para um autor duvidoso, mas dúctil e ambicioso, o anticlericalismo brincalhão e moral constituía uma forma fácil de integração em um movimento político que de outro modo lhe superava. Léger representou seu papisa não no Vaudeville, a não ser no teatro da rua Feydeau. Acaso foi por prudência, isto é, para fazer esquecer o escândalo do Autor de um momento, cuja carreira particular continuava? Nesse mesmo mês de janeiro de 1793, o quadro de atores tinha representado a Casta Susana do Radet e Desfontaines. Além disso, contra toda previsão, o Vaudeville tinha agravado seu caso: a obra, muito anódina, limitava-se o episódio bíblico, mas a reputação adquirida pelo Vaudeville como resultado dos incidentes de 1792 a converteu em uma obra reacionária. Os convencionalistas, auditório um tanto paranóico, tematizaron uma réplica que interpretaram em términos políticos («fostes seus denunciantes, não saberiam ser seus juizes»); os autores se apressaram a modificar a frase, mas o esforço foi em vão, e em 28 de janeiro Hébert reclamou e obteve da Convenção que se proibisse a obra. Radet, Desfontaines e Gradeei foram encarcerados. Foi nesse momento quando se representou no Vaudeville a Papisa do Flins dê Oliviers. Acaso os atores decapitados recorreram ao Flins, cujas obras alcançavam os maiores êxitos nos teatros mais ilustres (a Comédia Francesa, o Richelieu), para restabelecer com seu concurso sua situação financeira e ideológica? É que esta Papisa expulsou do cenário a do Léger? Ou possivelmente se tratava de uma revanche contra um Léger que se apartou insolidariamente do Vaudeville depois dos incidentes de 1792 e 1793? Não sabemos. Léger apresentou, pois, seu Papisa em 26 de janeiro no teatro Feydeau, ao mesmo que um ano mais tarde, quando saiu do cárcere, ofereceu sua obra republicana sobre a Bara. O Feydeau, antigo teatro do Monsieur, rebatizado em 1791, estava muito longe de ser um antro revolucionário, inclusive pode dizer-se que até finais de 1793 se manteve como único ponto de reunião dos moderados. Não obstante, seu repertório lhe convertia em um dos teatros mais populares de Paris, junto com o Vaudeville e o Favard. Por isso, e com independência de seus indefiniciones e estupidezes, Léger se apresenta como um verdadeiro profissional do teatro, e seu Juana flutua no ar do tempo, alegre e oportuna. A papisa do Léger obteve um certo êxito, se tivermos que acreditar Os espetáculos de Paris, onde se resenha o seguinte: «Feydeau, A Papisa Juana, comédia em um ato, em verso misturado com vodevil pelo cidadão Léger em 26 de janeiro de 1793. Êxito.» Mais adiante lemos: «Os aplausos que a cidadã Verneul obteve em sua estréia pelo papel da papisa Juana na obra deste nome demonstraram a esta atriz que o público desejaria vê-la representando papéis mais importantes». O fato de que Cailleau imprimisse duas edições da obra constitui uma prova mais do êxito que teve. A Juana do obstinado Defauconpret A papisa do Defauconpret resulta mais difícil de classificar. Esta obra se desenvolve igualmente no momento do conclave; mas ao preço de um recorte assombroso, junta com a trama da vulgata, anunciando na última cena o parto da Juana. A singularidade da obra do Dafauconpret radica em sua tonalidade política: dois clãs (o dos cardeais jovens e o dos cardeais velhos, chamados «portadores de perucas») enfrentam-se em vão com motivo da eleição da Papa; um enviado do povo anuncia que os cardeais permanecerão encerrados e sem provisões até que sua eleição seja definitiva. O cardeal Morini insiste em que lhe encerrem com seu amante Juana, e a disfarça de monge. Em contrapartida, Juan exige a sua vez que lhe apóie em sua candidatura à a Santa Sede. Mafeo, o chefe dos cardeais jovens, está aceso da Juana e só obtém promessa de receber seus favores em troca de seu voto. Juana resulta, pois, escolhida. Seria forçar as coisas ler neste argumento uma sátira dos mecanismos de facção que naquela época rasgavam a Convenção? Quem se disfarçava então para obter a unanimidade? O tom dos vodeviles evidencia maior virulência que o dos textos do Léger (de fato, Defauconpret titula seu papisa «opera brincadeira»), pois aos tons populares («gosta de rir, gosta de beber», «quando vejo meu amante», etc.) incorpora uma canção (a do Saint Roch), e o final da obra conclui com o «Isso partirá» republicano: «Quando sobre a frente da Juanita / A tiara brilhará / A nosso gosto, minha pombinha / A quem toda Roma aplaudirá / OH. OH. OH. OH. Ah. Ah. Ah. Ah. A bonita Papa, aí está. / Perto da beleza que te adorna / Logo veremos eclipsar-se / O vão fulgor da tiara / Ah, isso partirá, isso partirá, isso partirá». É muito pouco o que sabemos a respeito da personalidade do Defauconpret (1767-1843). Autor sem publicações, fez-se notário (1795-1815), e em 1799 publicou um Novo tabuada ou tabela de redução das novas moedas e medidas análogas (curiosamente, este gosto pela cifra e pela Juana lhe aproxima do Winkopp). Ao arruinar-se, translada-se a Inglaterra, onde se converte em tradutor prolífico, chegando a traduzir até 600 títulos do inglês ao francês, entre os que se encontram os das obras do Walter Scott e Fenimore Cooper. Defauconpret e Léger pertencem ao mesmo paradigma social: ambos procedem da pequena burguesia e ambos têm algo mais de vinte anos em 1789; a Revolução lhes permite (ou lhes permite albergar esperanças) entrar na República das Letras, frente a esse imobilismo social que destinava a um ao ensino fundamental e a outro ao notariado (neste último caso também na parte mais baixa do escalão, já que Defauconpret se viu obrigado a exilar-se). Ambos não obtêm mais que um êxito limitado em suas novas carreiras, vinculadas a uma nova indústria da cultura, que resulta a sua vez do processo revolucionário; assim, enquanto um se beneficia da prodigiosa expansão que registra o teatro depois de 1790, e consegue viver dela mal que bem até sua morte, o outro vive a sua vez do desenvolvimento legal da livraria popular e da anglofilia romântica. Já comentamos mais acima sua rivalidade de janeiro de 1793: a Papisa do Defauconpret foi rechaçada por três teatros, dois dos quais (o Vaudeville e o Feydeau) estavam vinculados ao Léger. No prefácio da segunda edição (o que indica certo êxito) de seu texto, titulado A maior das papisas, Defauconpret explica a razão de ditos rechaços: «Eu pensava que um tom novidadeiro poderia facilitar minha aceitação; mas ocorreu justamente o contrário. Me reprovou que o meu não fora um gênero que pudesse representar-se em um teatro como o da rua Feydeau.» Não obstante, a aparição da obra do Léger demonstra que esta razão não é válida. Se Léger não for anterior ao Defauconpret, e se tampouco lhe copiou, então o episódio demonstra que era necessário ser um autor conhecido no ambiente dos atores para que estes representassem suas obras. No Vaudeville (onde se representou também a Papisa do Flins dê Oliviers, Defauconpret recebe «as mesmas razões que tinham determinado o rechaço do [teatro] da rua Faydeau». O terceiro teatro que rechaçou a obra, o Teatro Francês Cômico e Lírico, parece uma réplica dos do Feydeau e Veadeville: baseado em junho de 1790, em uma pequena sala frente à Opera, na rua Bondy, oferecia, sob os auspícios do Piis e Gradeei, vodeviles e obras de circunstância; colheu seu primeiro êxito a partir de novembro de 1790. Em outubro, a obra anticlerical de Olimpo do Gouges, O convento ou os votos forçosos, tinha conhecido um fracasso completo, mas a representação do Nicodemo na lua, do Primo Jacobo, endireitou a situação, e foi representada 363 vezes até finais de 1793. Ao parecer, o êxito do Nicodemo se deve a uma mescla de fantasia e de manifesto, sobre um fundo político moderado (o Primo Jacobo foi detido em 1793). Todo isso nos permite apreciar com claridade em que ponto se situa então nossa papisa em razão de sua figura real ou desejada, e este ponto não é outro que a encruzilhada que separa e une o entretenimento e a atualidade, mas sem albergar grandes ambicione. Entretanto, para o Defauconpret, o acesso da Juana ao vodevil ou opereta de circunstância resultava impraticável por causa do Léger (Vaudeville, Feydeau) e do Primo Jacobo, inclusive apesar de que, para o mesmo autor, o rechaço do Teatro Francês se devia à má gestão que provocou seu fechamento em 1793, não obstante o êxito lhe esmaguem do Nicodemo: «Eu necessitava um traje que nunca pôde adquirir-se com os recursos desse espetáculo, já em declive» . Mas o certo é que, inclusive depois do aperturismo geral decretado em 1790, a carreira literária seguia sendo muito estreita para acolher a tantos postulantes. Neste sentido, o Primo Jacobo representa uma variante no paradigma social de nossos autores; em realidade se chamava Beffroy do Reigny e durante o Antigo Regime se dedicou como Léger ao ensino, ao tempo que escrevia poemas burlescos de tipo volteriano, chegando inclusive a fundar uma revista satírica titulada As Luas. lançou-se ao teatro sem poder acessar à Comédia. Mas em 1790 conhece por fim o triunfo com obras ligeiras de circunstância; logo passou brevemente pela revista patriótica antes de encontrar sua própria medida com o Nicodemo. Não obstante, Defauconpret conseguiu que se representasse seu Papisa em 23 de fevereiro de 1793 no teatro Moer, decantando-se assim por outra classe de público. Em efeito, em junho de 1791, J. F. Boursault Malherbe, deputado na Assembléia Nacional e homem de negócios, capa o Teatro Nacional Moer com o propósito de representar espetáculos patrióticos e revolucionários de grande virulência (A Liga dos fanáticos e dos tiranos, Luis XIV ou a máscara de ferro, o Conde Oxtiern do Marquês do Sade), e durante a época do Terror o teatro tomou o nome de Teatro do «Sãs-culotte». Mas este zelo patriótico e revolucionário não impediu que Robespierre suspeitasse do Boursault, quem pôde livrar-se de um processo graças à amizade que unia ao Collot d'Herbois, e a que aconteceu com a clandestinidade . Curiosamente, Léger e Piis se fizeram cargo do teatro em 1799, com o nome de Teatro dos Trovadores. Defauconpret tinha tentado, pois, passar da competência dramática (dentro do gênero do vodevil) à competência política; a manobra só daria resultado no caso de que Léger se comprometesse. Mas não foi assim, de maneira que perdemos o rastro do Defauconpret, quem depois de fracassar em seu intento de ingressar na República das letras como dramaturgo, desaparece da cena até conseguir seu passaporte vinte anos depois no guichê da tradução. Em qualquer caso, o episódio das peripécias do Defauconpret nos serve para compreender que não terá que dar muita importância ao conteúdo ideológico de nossas Papisas, embora comportem alusões escuras que de algum modo refletem a natureza do combate cercado entre elas mesmas; porque o que de verdade importa é a tática sutil e variada que emprega cada um dos autores em questão, no sentido de que, uma vez mais, Juana resulta útil. A papisa perdida do Flins dê Oliviers Ainda temos que nos referir à terceira papisa em lide: a de Carvão Flins dê Oliviers. Desgraçadamente, não se imprimiu o texto, e o manuscrito se perdeu. Tampouco encontramos menção alguma sobre o mesmo. O único testemunho de sua representação em cena se encontra em um periódico de notícias: «A Papisa Juana em um ato do cidadão Flins (sic). Tem espírito e coplillas bonitas, mas o tema está mal estruturado. Pouco êxito.» É provável que esta falta de êxito impedisse a impressão do texto. Entretanto, conhecemos bem ao Flins dê Oliviers, quem, em um nível mais alto que o do Léger ou Defauconpret, representa a sua vez outra variante da boêmia literária da Revolução. Em suas Memórias de ultratumba, Chateaubriand nos deixou um retrato do Flins que confirma as análise do Robert Darnton: «Conheci em sua casa [= a do Delisle de Sai, divulgador do pensamento das Luzes; estamos em 1787] a Carvão Flins dê Oliviers, quem se apaixonou pelo Madame do Farcy irmana do Chateaubriand. Ela se burlava, e ele não levava a mal, pois lhe adulava freqüentar boas companhias. Flins apresentou ao Fontanes, amigo dele, quem se fez também meu. »Filho de um proprietário dos Montes e rios da Reima, Flins recebeu uma educação descuidada, embora sempre se manifestou como homem de espírito, às vezes de talento. Não podia ver-se nada mais feio: baixo e gordo, com grandes olhos saltados, cabelo arrepiado, dente sujos, e, apesar disso, seu aspecto não era muito ignóbil. Seu estilo de vida, que era o mesmo de quase todas as gente de letras de Paris de então, merece ser contado. »Flins ocupava um apartamento na rua Mazarine, bastante perto do do Laharpe, quem vivia a sua vez na rua Guenégaud. Dois saboyanos, disfarçados de lacaios por magia de uma cascata de librea, serviam-lhe: pela tarde lhe acompanhavam, e pelas manhãs introduziam as visitas. Flins acudia com regularidade ao teatro Francês, que à maturação se encontrava na praça do Odeón, e que destacava sobre tudo na comédia. Logo que terminava Brizard, que começava Taima; Larive, Saint-Phal, Fleury, Mole, Dazincourt, Dugazon, Grandmesnil, e as senhoras Contat, Saint-Valha, Desgarcins e Olivier estavam na plenitude de seu talento, à espera de que a senhorita Mares, filha do Monvel, estivesse preparada para debutar no teatro Montensier. As atrizes protegiam aos autores e muitas vezes facilitavam sua fortuna. »Flins, que só dispunha de uma exígua pensão de sua família, vivia do crédito. Quando começavam as férias do Parlamento, empenhava as libreas de seus saboyanos, seus dois relógios, seus anéis e sua roupa branca, pagava com o empréstimo suas dívidas e partia ao Reims durante três meses. De retorno a Paris, retirava o que tinha empenhado no Monte de Piedade com o dinheiro que lhe dava seu pai, e reatava o ciclo dessa vida, sempre ditoso e bem recebido» . Mas temos que completar com outros dados este admirável retrato, para calibrar melhor o lugar que ocupou Flins no âmbito cultural e social do janeiro de 1973. Flins (1757-1806) pertence a um nível social muito mais alto que o do Léger e Defrauconpret, pois sua família procede da burguesia latifundiário, e ele mesmo exerceu, durante o Antigo Regime (é dez anos maior que seus rivais), uma carreira paralela; isto é: a de conselheiro no Tribunal de Contas e a de autor oportunista. Sendo ainda muito jovem, e depois de ter assistido à consagração do Luis XVI em sua cidade natal do Reims, publica uma Ode sobre a consagração do Luis XVI. Seguida em 1779 de uma Ode em honra do Voltaire, composta com ocasião da morte do filósofo em 1778. Ingressa então na Loja maçônica das Nove Irmãs. Do qual se desprende que sua posição era mais solvente do que diz Chateaubriand quem, também é certo, conheceu-lhe em 1787, quando Flins vive em plena boêmia literária, muito próxima ao mundinho da Comédia. Em 25 de agosto de 1781, lê durante uma sessão pública da Academia Francesa um poema Sobre a servidão abolida nos domínios do Rei. Sua posição social, as amizades contraídas graças à mesma, inclusive durante a Revolução, falam-nos de uma situação e de uma segurança que contrastam com a fragilidade do Léger e do Defauconpret. Por outro lado, o próprio Chateaubriand nos fala de sua amizade com o Fontanes, coetáneo dele, futuro Grande Professor da Universidade com o Napoleón, e igualmente vinculado a Harpe. Dita amizade não é sem dúvida alheia ao posto que Flins ocupou durante o Império, até sua morte em 1806: o de procurador imperial no tribunal civil do Vervins. Flins, herdeiro do Século das Luzes, recebe com agrado a Revolução, embora esta lhe priva de seu cargo de conselheiro (escassamente remunerado, é verdade, como indica Chateaubriand). Ao longo de 1789-1790, publica seis entregas de um desses pequenos jornais que tanto proliferavam então, As viagens da opinião nas quatro partes do mundo. As notícias chegam através da figura alegórica da Opinião, quem se passeia pela Assembléia Nacional, por Bruxelas e pelos ambientes da primeira emigração. Nestas páginas encontramos um tom predominante anticlerical, que parece ser a característica do Flins a partir de então. Assim, por exemplo, os primeiros emigrados chegam a Bruxelas disfarçados de sacerdotes, e lhes convida a dizer missa; seu anfitrião lhes convence: «por que não teriam que celebrá-la como outro sacerdote qualquer? Acaso são mais ateus que um bispo, mais ignorantes que um capuchino, mais glutões que um cônego, ou mais libertinos que um abade comendador? E, entretanto, eles celebram a missa todos os dias.» Na quarta entrega, Flins analisa o êxito do Cagliostro, oferecendo uma curiosa sociologia religiosa na linha do Max Weber: «A religião estava próxima a sua queda; Baile (sic) e Fréret tinham desarraigado a fé com provas e razões... Voltaire vai mais longe e a ridiculariza. Não obstante, a curiosidade e a inquietação dos homens necessitam um alimento. E eu acreditei que era já hora de que novas superstições substituíssem às antigas (é Cagliostro quem fala); os homens enfastiados, as velhas e quão tolos não se emocionam com paixões doces precisam agitar-se com paixões violentas; necessitam tanto o fanatismo, como os paladares gastos o água-forte... Na Inglaterra..., o amor pelos negócios substituiu o amor pelas mulheres. Na França..., essa inquietação que sobrevive às paixões da juventude se projeta de forma extraordinária nos temas de religião: isto é o que produziu aos jesuítas, aos calvinistas, aos jansenistas, os molinismos...» . Flins soube situar-se rapidamente como autor dramático importante: em 1790 deu à Comédia Francesa (sabemos, graças ao Chateaubriand, que Flins tinha preparado este terreno com antecedência a 1789) O despertar do Epiménides, que mostrava o despertar secular de um ser imortal em 1789; Epiménides se assombra das mudanças que se produziram durante seu sonho, com um verdadeiro catálogo laudatório dos primeiros lucros da Revolução. Ao fio de sua recontagem, mofa-se de um abade que se lamenta da perda de seus privilégios. O êxito desencadeou uma série de imitações (O jantar mágica, do Murville; o Epiménides francês, do Riouf; O convalescente de qualidade, do Fabre d'Eglantine), e a obra se repôs no teatro do Monsieur (o futuro Feydeau). As representações se interromperam em julho de 1790, por causa de uma disputa entre a Taima e os amigos do José Chénier, quem queria impor Carlos IX no repertório da Comédia Francesa. Em fevereiro de 1791, Flins entrega à Comédia Francesa O marido diretor ou o desalojamento do convento. Nesta obra, a Revolução abre as portas de um convento, e um delegado do Governo se disfarça de superior para ouvir em confissão a sua mulher e a sua filha, quem reconhece seu amor por um monge; o delegado seculariza à monge e o une a sua filha, e tudo conclui com uma série de canções mordazes. Encontramos, por fim, no Flins um autor sinceramente entregue a Juana, amante do disfarce e do cenário religioso. Flins desempenhou um papel importante na temática teatral da Revolução, já que foi o primeiro em dar um tom alegremente licencioso a uma obra antirreligiosa, quando por sua parte Léger se limitava a suscitar admiração para seu pároco constitucional. Flins constinuó sua carreira com a Jovem anfitriã, adaptação da locandiera do Goldoni, no teatro Richelieu; a obra sobreviveu a crise antes citada, posto que se repôs em 1821 no Teatro Francês (sucessor do Richelieu). Neste sentido, pode dizer-se que a Papisa do Flins abriu um período de silêncio e de retiro para seu autor, coincidindo com o retraimento geral do teatro iniciado em 1793: a Comédia Francesa estava dividida, e seus atores sofreram a repressão desse ano de 1793; então o Richelieu se radicalizou. Em janeiro do mesmo ano, de 1793, o Vaudeville, que atravessava uma situação precária a raiz do encarceramento de seus diretores, oferecia uma solução de recâmbio ante o prudente silêncio do Flins. A função que desempenha Juana nestas circunstâncias não pode ser mais clara: ante o frenesi antirreligioso que preside o verão de 1793, e a volta à religiosidade em 1794, e durante uma período de fortes tensões, Juana se converte na receptora de um anticlericalismo alegre e apto para o vodevil e as canções, de maneira que sua figura podia interessar por igual e de uma vez a um oportunista do teatro, que a um autor necessitado de uma cena, ou que a um dramaturgo consagrado e prudente. Juana e a nostalgia revolucionária do Teodoro Desorgues (1801) antes de abandonar a Revolução francesa, temos que nos referir a uma última papisa, mais tardia. Nossa referência será breve, já que Michel Vovelle se encarregou de estudar exaustiva e admiravelmente a carreira e a produção de seu autor, Teodoro Desorgues (1763-1808) . Em 1801 se publicou A Papa e o muftí ou a reconciliação dos cultos, sem que se tivesse representado. A data de publicação indica já que esta obra, ao contrário das papisas de 1793, situa-se à margem das preocupações temporárias que presidem aquelas, pois o tema tem que ver mas bem com a exaltação do gênio do cristianismo. A anedota logo que conserva nada da trama antiga, e a ação se desenvolve na atualidade atemporal da ficção. Como vimos a propósito da obra do Léger, a situação nasce do tema dos amantes separados: os turcos do muftí Alí assediam Roma, mas resulta que a Papa é um tal Azémis, uma jovem turca disfarçada de homem para poder viver com seu amante Aplainam (que chegou a cardeal), contra a vontade de seu pai, o muito mesmo muftí Alí; ao mesmo tempo, na cidade se respira um ar de sublevação contra a religião católica. O regedor de Roma, Penetranti, propõe à Papa que renuncie à continência: «Devem lhes casar, infalível vigário / E merecer por fim o título de Santo Pai»". Os notáveis romanos sugerem a sua vez chegar a um acerto com o muftí e com esse islã tão amigo dos prazeres de Vênus. O muftí, que chegou com o propósito de ditar suas condições, depois de um comprido debate sobre os méritos do islã e do cristianismo, reconhece a sua filha. Azémis e Aplainam se casam, mas os romanos se negam a ficar sob seu domínio, e então Azémis e Alí se encarregam de educar às moças ela e aos moços ele na tolerância que acabam de descobrir. A obra do Desorgues, tão ágil e acalmada como as Papisas de 1793, comporta não obstante uma carga anticristiana muito mais forte. Durante a larga controvérsia que se cerca entre o Alí e Azémis, o muftí passa o cristianismo pela peneira da crítica, da que só damos a título de exemplo uma declaração do Alí: «Esse Deus recopilador, para pregar a sabedoria / Traduz em um mal grego aos sábios da Grécia / Pretende que se trata de algo novo; e sem seus formosos sermões / Possivelmente não tivesse fatigado a seus pulmões. / De um ladrão, no cadafalso, faz um proselitista; / Expira em público, em segredo ressuscita; / De filho de carpinteiro se converte em filho de Deus: / O mundo teria sofrido menos se tivesse exercido seu ofício» . Este anticristianismo tardio, fora de época, é o que distingue ao Desorgues de seus companheiros. Michel Vovelle o interpreta a sua vez como uma espécie de fidelidade última e se desesperada à Revolução perdida, e o final do Desorgues confirma dita análise: foi encerrado no Charenton, junto com o marquês do Sade, desde 1803 até sua morte em 1808, por ter rechaçado, segundo conta a tradição, um sorvete de limão no café da Rotonde, dizendo: «Eu não gosto da casca.» Ao parecer, a gravidade do jogo de palavras tinha que ver com uma canção, que começava assim: «Sim! O grande Napoleón é um camaleão» . A papisa do Desorgues brilhava, pois, em um fogo de artifício terminal e sem esperança, sem poder prolongar a atividade de um poeta da Revolução. Mas como tinha chegado até aí? Desorgues, neto de um notário da região do Manosque e filho de um advogado próspero e influente do Aix-no Provence, encontrava-se em uma trajetória ascendente quando estalou a Revolução, apesar de que, por sua condição de filho menor e por sua desgraça física (era jorobado), o grosso da grande fortuna paterna tivesse recaído em seu irmão maior. Não sabemos nada de sua vida com antecedência a 1789, mas nos encontramos isso em 1792 em companhia do abate Delille construindo versos galantes; e logo, de repente, em 1794 (ano II), os irmãos Desorgues, suspeitos a causa da ascensão nobre (ou quase nobre) de seu pai, oferecem seus serviços ao Comitê de Instrução Pública. Pouco depois, Robespierre escolheu ao Teodoro Desorgues para escrever o hino ao Ser Supremo, o 20 pradial ano II, substituindo ao José Chénier. A partir de então, Desorgues se converte em um poeta importante da Revolução, autor de numerosos hinos e odes; é certo que a veia anticristiana aparece muito em breve em suas obras, concretamente em seu poema sobre os Trasteverinos ou os Sãscolottes do Tíber, publicado no Mercure Français de 11 de setembro de 1794, mas conta muito pouco em uma inspiração republicana e roussoniana. O detonante que provoca um giro na vida do Desorgues não se produz até os momentos finais da Revolução, no ano VII, com um estranho poema prejuanista, Meu conclave. Juana já não serve, mas sim estorva, e em vez de unir, exclui. Assim conclui a aventura revolucionária da Juana. Desde 1777 até 1804, desde Borde até o Casti, Juana se tinha permitido toda classe de liberdades e de licenças com a história; ela, que tinha vivido imersa nas tormentas da discórdia e nos temores da carne, de agora em diante ofereceria ao mundo a possibilidade de um acordo fácil e a alegria do corpo. Esta veia alegre não se esgotaria jamais, e percorremos rapidamente os nivelamentos contemporâneos, que, a pesar do brilho dos autores, não contribuíram nada a Juana, cujo cénit se encontra, como havemos dito, no texto do abate Casti. Mas antes de fechar este capítulo no que nos ocupamos que ennumerar a seus cirurgiões, devemos ter em conta outra versão da Juana, algo posterior a do Desorgues e a do próprio Casti, e que surge em um universo muito diferente do daquelas, concretamente na Prusia romântica do Achim von Arnim. Genealogia da papisa do Achim von Arnim (por volta de 1815) A Papisa Juana do Arnim, última estação importante em nossa peregrinação literária, ocupará nossa atenção durante um momento bastante largo; por um lado, porque se trata de uma versão muito desenvolvida (465 páginas na edição póstuma realizada pelos irmãos Grimm), muito rica e muito formosa, e por outra parte porque põe de manifesto com toda claridade o estatuto da papisa no âmbito da literatura. Já no capítulo V demonstramos que Juana nasce à literatura com o Boccaccio (1360), indicando um deslocamento: ao sair de seu marco pontifício, a papisa se tematizaba em personagem mediante sua inserção em uma galeria de mulheres deslumbrantes; a partir de então, Juana abandonava sua existência empírica, enigmática (existiu?, como influiu no curso da história da igreja?), por uma vida metafórica (o que desvela esta papisa a respeito da mulher, da sexualidade, da ambição?). A segunda epifanía literária da Juana aparece no texto do Dietrich Schernberg; aqui, e de uma forma mais radical, passávamos do deslocamento à condensação (sem conferir a estes dois términos seu valor exato no psicanálise). Schernberg fazia convergir para a anedota papal todo um universo de angústia e de esperança (culpa e remissão, purgatório, intercessão dos Santos e da Virgem); e ao transpor o milagre do Teófilo anunciava o Trauerspiel sem preocupar-se, como tinha feito Boccaccio, de manter-se fiel ao episódio juanista. A invenção do Boccaccio diferia, pois, por sua própria natureza das retificações ou das manipulações dos historiadores da papisa, desde o Martín o Polonês até o Federico Spanheim. As papisas das Luzes, embora às vezes conservavam o benefício da referência histórica, perseguiam a sua vez e por outras vias (denúncia da impostura e do celibato, exaltação alegre da carne) dita condensação. A versão do Arnim se desprende ainda mais da referência, neutralizando-os temas polêmicos que até então tinham suscitado a invenção, a favor de novas configurações, constitutivas de um universo próprio. Arnim não se ocupa em modo algum da fascinação do Vaticano ou do convento. Para o Achim von Arnim (1781-1831), nascido no seio de uma antiga aristocracia latifundiário e luterana, em um estado fortemente secularizado pelo Federico II, longe da Renania onde prosperou Winkopp, a questão do clericalismo romano não se expõe; como a maioria dos românticos alemães, experimenta uma certa atração estético-mística pelo catolicismo, mas sem que isso lhe faça durar de seu luteranismo, componente essencial dessa germanidad setentrional tão importante para ele. A temática feminina (temor ou revanche) tampouco lhe importa muito. Neste sentido, a Alemanha romântica desfrutava de uma situação muito favorável, resultante da simbiose que se produziu sem convulsões entre os princípios do luteranismo e os da ilustração; baste recordar ao respeito algumas figura femininas, proeminentes e respeitadas, do entorno familiar de escritores destacados: Bettina von Arnim, esposa do Achim e irmã de Clemente Brentano; Cunegunda von Savigny, outra irmã do Brentano e companheira do grande jurista Savigny, Carolina von Günderode, Herminia von Klencke, Raquel Varnhagen, Enriqueta Vogel e tantas outras que participaram de pleno direito e muito diretamente o auge cultural alemão dos anos 1800-1820. A papisa chega até o Arnim como um objeto cultural já constituído, isto é como um elemento do patrimônio cultural, pois em primeiro lugar Juana é a heroína do mais antigo drama alemão, Fraw Jutta. Frente à dureza da ilustração prusiana, do desastre da invasão napoleônica, da fragmentação da nação germânica, surgia a necessidade imperiosa de recuperar as raízes culturais de uma unidade nacional. Desde esta perspectiva, o primeiro texto importante do Arnim, fruto de sua colaboração com o Brentano, O corno mágico do menino (Dê knabenwunderhourn), recopilação de canções populares reescritas, pretendia encontrar um rasgo comum que unisse às classes e às tribos dispersas da Alemanha. Arnim conheceu muito em breve o texto do Schernberg, como se desprende de uma carta datada em 2 de abril de 1805, em que aconselha insistentemente ao Brentano a leitura da Revista Dramática do Gottsched, onde figurava, conforme havemos dito antes, uma edição do Fraw Jutta . --A papisa aparece pela primeira vez na obra do Arnim através de um fragmento e de um resumo que inclui na quarta parte de sua grande novela Pobreza, riqueza, culpa e expiação da condessa Dolores (1810), uma obra professora tão imensa como complexa, escassamente conhecida (como a maior parte da obra do Arnim), e que aguarda ainda sua tradução ao francês . Na novela, a história da Juana reflete com claridade esse aspecto popular e antigo que tanto importava ao Arnim: o conde e a condessa, heróis alemães da novela, quem, como resultado de diversas peripécias, vivem com seus doze filhos na Sicilia, dirigem-se o dia de Carnaval ao monastério de São Lorenzo ao objeto de assistir a uma representação dramática; o cavalheiro Brülar, emigrado francês (a ação se situa ao dia seguinte da Revolução Francesa) que faz as vezes de preceptor dos meninos, critica o projeto argumentando que «não se pode levar aos meninos a ver semelhantes gracejos insensatos e sem norma alguma» . O próprio prior do monastério tenta elevar o nível cultural da tradição, mas não pode opor-se à vontade popular: «O prior se desculpou: não se pôde levar a efeito sua proposta de representar uma obra italiana, nova e de qualidade, do Metastasio, porque o povo ("dá Volk") tinha querido conservar a velha tradição da Papisa Juana» . A representação acordada a consciência do jovem Juan (forma masculina da Juana, não o esqueçamos), primogênito do matrimônio, e que tinha nascido um ano depois do adultério da condessa, como primeiro testemunho de seu arrependimento. Juan identifica o paralelismo que existe entre sua submissão ao domínio intelectual e cínico de seu professor Brülar e a sujeição da Juana ao Spiegelglanz*, o filólogo delegado por Satã para a formação anticrística de uma papisa que, a sua vez, está destinada a sacudir o trono de Roma. Assim começa o grande processo de salvação da família que, depois de que a condessa pecadora morre em aroma de santidade, recupera, com sua volta a Alemanha, suas raízes e sua participação na comunidade singela e autêntica da nação. A papisa Juana serve, pois, como metáfora de uma renúncia à tentação da «civilização», e como metonímia da nova e tradicional «cultura» convivencial, para recuperar assim uma oposição de términos muito apreciada na ideologia nacional alemã de princípios do século XIX, como demonstrou claramente Norbert Elias . É, pois, em um contexto novo onde reencontramos a constelação (o povo-a mulher, o menino-a Santa ignorância) em que Juana brilha do século XIV. O processo de transmutação completa da Juana em personagem arnimiano foi lento: a formosa cena que se desenvolve na Dolores aparece textualmente no drama do Arnim, embora na forma resumida própria da novela, enquanto que o final da aventura se ajusta ao esquema do Schernberg, herdeiro a sua vez da larga tradição juanista (o parto fatal que resulta da eleição do castigo terrestre em troca da salvação eterna). A versão final modificará este esquema. Arnim dedicou vários anos a sua elaboração, animado sem dúvida pela favorável acolhida que tinha tido Dolores; em uma carta dirigida ao pintor Runge (junho 1810), Brentano fala dos «magistrais» episódios dramáticos da novela (a Papisa, Hylos e o Anel). Por sua parte, e em uma crônica do Heidelberger Jarhbücher (1810), Guillermo Grimm declara sua admiração pela cena sublime da Juana no jardim, enquanto que seu irmão, Jacobo Grimm, escreve ao Arnim em 24 de setembro de 1810 que dita cena é a parte mais formosa de quantos tem escrito: «É uma peça tão importante como o Fausto do Goethe» . Arnim se entrega, pois, a sua tarefa, e em uma carta dirigida aos irmãos Grimm, no mês de novembro de 1812, declara que logo concluirá seu drama e se congratula dos constantes estímulos que recebeu que seu cunhado Savigny. Mas em uma carta de 1813 ao Brentano anuncia que renúncia parcialmente à forma primitiva (uma tragédia de em gambos rimados, construída sem dúvida sobre o patrão do Trauerspiel barroco, parecida com o que faz seu admirado Gryphius) , ao objeto de poder incluir amplas partes de prosa. A publicação do primeiro volume de teatro do Arnim (Schaubühne) em 1813 inclui outro fragmento da papisa («a festa da primavera»), coro e diálogo em forma de cantata. Logo perdemos o rastro do drama, do que nada novo sabemos à exceção de uma alusão rápida em uma carta aos irmãos Grimm, datada em 1817. A obra ficou inédita à morte do Arnim em 1831; entretanto, apresentava já uma forma concluída, e inclusive perfeitamente polida, e Bettina von Arnim a publicou em 1846, no tomo 19 das Obras completas reunidas pelos irmãos Grimm. A partir de então, e se excetuarmos os fragmentos antológicos editados pelo M. Jacobs em 1908 e pelo R. Steig em 1911, assim como dois breves estudos (H. Specken em 1903 e P. Merkens em 1933) , esta grande papisa foi relegada ao mais completo e injusto dos esquecimentos. Semelhante infortúnio exige, pelo menos, a reparação de um resumo, por outro lado de tudo necessário, para poder apreciar no que vale a esta Juana prusiana e romântica, última creacción autêntica sobre a figura da papisa. A papisa do Arnim A primeira parte começa na Islândia, berço paradisíaco da nação alemã antes de convertise no refúgio sorvete de Lúcifer. Oculto em sua cova, o diabo se trabalha em excesso na fabricação de um Anticristo para que destrua a obra do Filho de Deus. Mas Melancolia acaba de dar a luz a uma menina quem, por ser filha de um pai terrestre, não pode aspirar a um lugar no reino supraterrenal; sem que saiba Lúcifer, Melancolia deposita a sua filha debaixo de um sino de cristal, para que o dono do lugar pense que é o feliz resultado de sua alquimia anticrística. Lúcifer confia a educação da menina ao Spiegelglanz, «o mais terrível dos filólogos», com a promessa de um emprego de profeta no futuro reino do Anticristo. Uma loba amamenta à criatura antes que Spiegelglanz, professor da Universidade de Paris, a leve com ele; ali a mantém se separada dos homens, em uma cova de gesso, para determinar, ao casaco de qualquer influência, a língua original da humanidade. Quando fala, Juana o faz em alemão, e em vez de grasnar ao estilo satânico, entoa um canto de louvor a Deus. Spiegelglanz decide então partir com a Johanna a Alemanha, mas o principal adversário do filólogo, o estudante Rafael, consegue deixar sobre a menina de três anos a estampagem de lhe irradiem espiritualidade. O final da primeira parte e o conjuto da segunda se desenvolvem na Renania. Graças à ajuda do gigante Oferus (o pai da Johanna), Siegelglanz se instala no castelo do conde palatino, onde um ancião cavalheiro cuida do jovencísimo conde para proteger ao menino do ódio de seus pais. O filólogo assume as funções de preceptor dos dois meninos, quem se ama meigamente apesar de que ignoram seu sexo autêntico, já que de acordo com o plano luciferino Juana está vestida de menino (Johannes), e o jovem conde palatino de menina, com o nome da Estefanía, para escapar de seus pais. Spiegelglanz tem uma disputa com o ancião cavalheiro e se incorpora ao colégio catedralicio do arcebispo da Maguncia. Spiegelglanz, vigiado a sua vez por Lúcifer, que se faz passar pelo Crisolaras, um professor grego, dedica-se a desviar as tendências infantis do Johannes-Johanna pela fantasia e o amor à natureza: inicia ao Johannes na fraude, compondo em seu lugar o poema sobre a festa da primavera, apresentado na cerimônia que substitui ao exame na escola episcopal, e Johannes se leva o prêmio, que consiste em uma bolsa de estudos em Roma, aonde lhe leva Spiegelglanz. O terceiro período do drama nos mostra a irresistível ascensão do Johannes quem, graças à ajuda do Crisolaras-Lúcifer e do Spiegelglanz, converte-se em sacerdote; o estudo dos textos antigos lhe afasta ainda mais do universo cristão. Él/ella recebe a influência de duas damas romanas, a imperiosa Marzia e a paganista Reinera, quem adora em segredo a Vênus. Ao encontrar-se de novo com o jovem conde palatino, que conserva ainda seu disfarce, Johannes se sente irresistivelmente atraído pela jovem. Ao pressentir o perigo que dita atração entranha para a execução de seu plano satânico, Spiegelglanz revela ao Johannes sua verdadeira condição feminina. Johanna se afunda no desespero e deseja converter-se em homem no universo dos deuses gregos; então participa de uma cerimônia em honra de Vênus. Mas nesse momento, o conde palatino, informado também a respeito de seu verdadeiro sexo, abandona seu disfarce e reaviva as esperanças amorosas da Johanna. Entretanto, Lúcifer consegue lhe dissuadir; com a ajuda do Spiegelglanz, faz acreditar na Juana que, graças a seu nascimento supraterrenal, desfruta de do poder de uma diosa/ Mas Juana começa a ter dúvidas a respeito de Lúcifer quando constata o terror que lhe inspira o crucifixo. Então falece a Papa Anacleto, e Juana se deixa empurrar ao trono pontifício, onde fica sob a crescente influencia do Spigelglanz, que se converteu em médico papal. O quarto período se refere ao pontificado da Johanna, quem tenta esquecer seu amor pelo conde palatino dilapidando os bens da Igreja, e organizando festas e torneios. Durante uma visita ao palácio da princesa Vênus, filha da Marozia, cai em um transe de delírio; essa mesma manhã, o conde palatino chega ao palácio, onde desaparece, vítima da absorção de um filtro mágico. Ao retornar do palácio, Johanna se encontra com um eremita, quem lhe libera de sua angústia e lhe incita ao arrependimento. Mas, enquanto isso, Marozia e Vênus se apropriaram da corte pontifícia. A quinta parte compreende o desenlace. O imperador alemão chega a Roma a restabelecer a ordem e faz proclamar Papa ao gigante Oferus, pai da Johanna, quem se converteu com o nome do Christophorus (Cristóbal). Por sua parte, Johanna encontra de novo ao conde palatino, e se refugia com ele na montanha do eremita, antes de retornar da Alemanha. Por último, Spiegelglanz perece no Tíber e Lúcifer volta para seu reino subterrâneo. As liberdades que se tomou Arnim com a tradição juanista refletem o gosto do romantismo alemão (Tieck, Brentano, Grimm) pela lenda popular, carregada de um significado poderoso e original. Em altares deste gosto, Arnim introduz na trama principal vários relatos totalmente arrivistas: a história do Cristóbal, o gigante que se passa do serviço de Satã ao de Deus, a lenda da morada encantada de Vênus (Tannhaüser), a anedota dos meninos privados de todo contato com o mundo humano para identificar o idioma original da humanidade (episódio relatado ao Federico II Hohenstaufen na Idade Média), etc. Embora os episódios romanos (a dominação da Marozia, a chegada do imperador alemão), ao recordar à Papa Juan XII, suposto modelo da Juana, refletem um certo conhecimento por parte do Arnim das controvérsias eruditas a propósito da papisa, entretanto é a obra do Schernberg o que marca a pauta nesta interpretação da lenda. Arnim tira dele o esquema do plano satânico e o desenlace feliz que transcreve, em términos seculares, a recuperação crística do arrependido. A naturalização germânica da Juana, preparada por uma tradição cunhada das versões medievais da Turingia e da Baviera até o Schernberg, Murner, Pauli e Sachs, recebe aqui um verdadeiro selo nacional: o relato adquire as dimensões de um mito fundador da nação alemã fragmentada, e logo reencontrada; encontramos aqui uma eleição (a língua original, a chegada salvadora do imperador), um paraíso perdido (Islândia), um perambular (a vagabundagem da Juana por Paris, Maguncia e Roma) e uma volta (a papisa volta para a Alemanha para casar-se ali com o conde palatino). Hei aqui uma nova paradoxo da Juana: fruto do movimento comunal de Roma e da universalidade católica se converte em uma figura da nação alemã. Mas à margem desta determinação cultural, a lenda brindava ao Arnim um espaço idôneo de cristalização para a temática essencial de sua obra, a do dobro. Juana, criatura manipulada que acessa finalmente à humanidade, recorda as figuras de suas primas da mandragora e do golem que encontramos nas notícias do Arnim («Isabel do Egito», «Meluk María Blainville») (1812); com seu passado do serviço de Lúcifer ao de Deus, com sua dúvida interior entre o masculino e o feminino, multiplicada com o disfarce inverso do conde palatino, com seus períodos de consciência e de esquecimento, de culpa e de arrependimento, Juana ocupa um lugar entre esses personagens do Arnim que, como a condessa Dolores, vivem-se não como indivíduos, mas sim como campos de batalha. A conquista sempre difícil da humanidade contra o saber e o poder, através da dor e do abandono ao destino e à reencontro, fazem dela, como soube vê-lo em seu dia Jacobo Grimm, um novo Fausto. Por mediação do Schernberg, Juana encontrava sua força na debilidade de sua alma. Pequeno intermédio teórico Uma vez que chegamos a estas alturas da mão última do Arnim, conviria deter a história literária da papisa: o ano 1831, data da morte do Arnim e do Hegel, assinala o fim da filosofia, da história e da Juana. Em términos acadêmicos, diríamos que a partir dessa data entramos na história chamada com grande acerto «contemporânea». Porque, após, o historiador já não domina nada, e deve ceder o sítio ao sociólogo. Entendamos com eles que a literatura, a partir do romantismo, converte-se em um campo cultural autônomo, com sua própria lógica. Nossas papisas de 1793 ainda gotejavam história, já que, embora em tom burlesco, refletiam um acontecimento possível (o Papado da Juana), mentalidades (a da Boêmia político-literária), ou a situação social de seus intérpretes (em vias de profesionalización, como vimos). Com o Arnim, o episódio da papisa se converte em referência por si mesmo: a literatura se faz com a literatura; a Juana do Arnim não é fruto do real (empírico ou mental), mas sim da Revista Dramática do Gottsched, onde se encontra o texto do Schernberg, marcado já com o selo literário («a primeira tragédia alemã»). Werner Kraft, o primeiro comentarista que produziu, em 1925, uma tese de análise literária sobre os motivos da lenda , tomou partido pela tecnicidad literária, ao advertir que os dois teóricos rivais do drama alemão no século XVIII, Gottsched e Lessing, ofereciam a seus êmulos duas versões distintas do tema da sedução (Jutta e Fausto): uma a seguiu Arnim e a outra Goethe. Esta situação põe fim a nossa tarefa, já que a produção literária sobre a Juana, muito abundante ainda, fragmenta-se sem que o historiador possa, de verdade, pô-la em ordem. Em efeito, até aqui ordenamos os repetidos embargos sofridos pela papisa, nos limitando a seguir seu curso nos diversos sistemas de crença, sucessivos e/ou simultâneos; mas, a partir de agora, a autonomia literária da Juana como personagem, ou sua solidariedade com conjuntos especificamente culturais (o gosto gótico, o nacionalismo alemão, a novela histórica, a farsa decadente, etc.) expulsam a Juana dos universos da crença que, por outra parte, encontram-se já em plena recessão. Uma sociologia na linha da Pierre Bourdieu poderia levantar uma cartografia dos âmbitos culturais pelos que se desdobrou então Juana, distinguindo assim três classes de papisas: em primeiro lugar, as papisas autênticas e emblemáticas, que representam um acesso ao conhecimento histórico; em segundo término, as papisas metafóricas que comportam uma poderosa imposição cultural (o simbolismo como rasgo distintivo), e as papisas de terceiro grau (as do Jarry ou do Bertolt Brecht, cuja grosseria afetada indica a liberação com respeito às normas documentários ou à arte simbolista). Nossa incompetência na matéria nos impede de nos arriscar a realizar uma análise nesse sentido, de maneira que nos contentaremos confeccionando, brevemente, um inventário classificado das papisas contemporâneas. Desde 1831 até nossos dias podemos distinguir três tratamentos, três leituras do episódio, que não oferecem nenhuma novidade criatividade, apesar da extraordinária proliferação dos textos. Leituras burlescas Borde e Casti colocaram os alicerces da empresa, e o teatro da Revolução liberou sua invenção do contrapeso malicioso de sua erudição anticlerical. Por outro lado, o século XIX reproduz com bastante exatidão essa partilha das tarefas literárias: nosso ano simbólico de 1831 presença a aparição do último vodevil, A Papisa Juana, «vodevil-anedota em um ato pelos senhores Simonnin e Teodoro N. representada por primeira vez em Paris no teatro do Ambigu-Comique, na sábado 15 de janeiro de 1831». debaixo destes dois pseudônimos se escondem dois autores prolíficos, Benjamim Antier (1787-1870), autor de famosos melodramas como A estalagem dos Adrets e Roberto Macario (1823 e 1834), e Teodoro Nezel. Não imporemos ao leitor um novo resumo; bastante assinalar que a acuidade antipapal se alimenta de brincadeiras atualizadas ao gosto da Idade Média gótica (Juana é a esposa cabeça-de-vento de um cruzado), e do familiarismo próprio do século XIX (o tema da adultera ardilosa tem sua precedência em uma larga tradição de teatro guia de ruas). Frente a suas irmãs de 1793, a Juana de 1831 registra a distância que separa a revolução de 1789 da de 1830. dentro de um contexto muito distinto ao da Revolução, o anticlericalismo do século XIX serve de ponto de reunião nesse amplo espaço entre Reação e Movimento que estrutura o campo político europeu. Recordemos que a reação européia, depois de 1815, caracterizou-se pelo papismo e o ultramontismo; pensemos neste sentido no José do Maistre em 1817 (Da Papa), e nesses filhos de família que se fizeram zuavos pontifícios a finais do século, quando o Papado de Pio IX (18461878) defendeu o Patrimônio de São Pedro, ameaçado desde 1859, instituiu os dogmas da Imaculada Concepção da Virgem (1854) e da infalibilidade papal (1870), e condenou o liberalismo e o socialismo (com a Quanta cura e Syllabus de 1864). Por outro lado, o anticlericalismo desempenhava o papel de uma formação de compromisso republicano, depois das grandes rupturas de 1830, 1848 e 1870. Uma versão criada novelas da papisa publicada por aquelas datas reflete muito bem essas tensões e essas lembranças, ocupando assim um lugar desproporcionado com relação a sua importância literária dentro da tradição juanista. Em 1866, o grego Emmanuel Rhoides (18401904) publica em Atenas uma Papisa Juana burlesca, que em grande medida é uma imitação da larga notícia do abate Casti, incluindo suas também extensas disgresiones anticlericales. O fato, por si mesmo, não tem nada de surpreendente: Grécia, independente desde 1830, vivia ainda sob o domínio tradicionalista que tinha prevalecido na diáspora durante a época da dominação turca, e que inspirava sonhos de um império helênico em torno de Constantinopla. A aparição desta papisa manifesta, pois, uma espécie de ecumenismo anticlerical, pouco depois da queda do rei bávaro da Grécia Otón I e da redação da Constituição de 1864. Rhoides se inteirou, sem dúvida, do tema que logo lhe ocuparia em sua história durante sua estadia na Génova, onde seu pai esteve de cônsul, ou durante sua etapa de estudante no Berlim. De fato, sua carreira de diretor da Biblioteca Nacional de Atenas e de tradutor do Chateaubriand e do Macaulay evidenciam sua abertura à cultura européia. A novela do Rhoides conheceu um êxito considerável na Europa e foi traduzida ao alemão (tradução do Georg Buvar, Leipzig 1875; tradução do Paul Friedrich, publicada também no Leipzig em 1904), ao italiano (Atenas, 1876) e ao francês (Paris, 1878); esta última, isto é a tradução francesa, provocou um escândalo. Barbey d'Aurevilly fez uma crítica indignada da obra no Constitutionnel, a que seguiu outra do Charles Buet; ambos pensavam que se tratava de uma falsificação, cuja responsabilidade atribuíram ao Edmond About ou ao Francisque Sarcey. O editor respondeu às acusações incluindo na sétima edição de 1882 um retrato do Rhoides, um fac-símile do frontispício da edição grega e uma réplica do Rhoides ao texto do Barbey, reproduzido igualmente em sua integridade. Curiosamente, esta novela, distanciada já dos textos do Casti e/ou Spanheim, suscitou a sua vez outras duas adaptações que esfumavam a própria figura do Rhoides. Assim, Juana seguia abandonando à sombra a seus mediadores sucessivos. Em efeito, por volta de 1905, o ilustre Alfred Jarry empreendeu a tradução do Rhoides, ignorando, ao parecer, a tradução anterior de 1878. Em 1903, e com motivo da morte de Leão XIII, comunica ao músico Claude Terrasse seu desejo de escrever uma opereta sobre o tema da papisa, em colaboração com o compositor Demolder, e acrescenta: «Como precedentes, houve dois "Papisa Juana", não bufa, uma durante a Revolução e outra em meados do século»; o projeto teria que esperar, e em 1905 Jarry escreve ao editor Sansot, lhe anunciando seu descobrimento do Rhoides: «recebi que a Grécia a obra original que tem feito ali seu pequeno Quo Vadis e que nunca foi traduzida, "? ??????? ??????", A Papisa Juana» . Com a ajuda de seu amigo o doutor Salta, Jarry empreende a tradução da obra, cuja publicação não pôde conhecer antes de sua morte; Fasquelle e Charpentier a publicaram em 1908. Esta tradução, bastante fiel ao texto original, não contribui nada a de 1878, e o gênio particular do Jarry deve buscar-se no Mostacero da Papa (modificação do projeto de 1903, publicado em 1907). Trata-se de uma farsa equívoca e delirante, que tira a palestra da crítica ao Jane of Eggs, papisa com o nome do Juan VIII», ao grande mostacero Macaro, ao Man Forte de Custo, o coronel dos zuavos pontifícios, aos «embaixadores, cardeais saludadores, muleteros, faroleiros, bastoneros, gondoleiros, zuavos pontifícios, guardas escoceses, pequenos mostaceros da Capela Sixtina, fiéis, balés de vírgenes prudentes e de vírgenes imprudentes, farmacêuticos indignados». Outro tradutor célebre, o novelista inglês Lawrence Durrell, esmagou com seu prestígio ao desgraçado Rhoides, pois a versão francesa (1974) de dita tradução inglesa (Londres, 1971) só menciona o nome do Rhoides na página interior do título, apresentando como adaptação o que em realidade é uma tradução bastante fiel. Um episódio de história cultural alemã e inglesa (1890-1930) A lógica pobre e aproximativa de nossa classificação das leituras contemporâneas da lenda deveria nos induzir a incluir, dentro desta série burlesca de papisas, o esboço dramático realizado em 1922 pelo Bertolt Brecht para a atriz Tilla Durieux . Nesta primeira fase de produção do grande dramaturgo, a história da Juana se relata seguindo a fórmula expressionista, quer dizer com essa afirmação paródica e rangente da individualidade em bruto que se desenvolve na primeira obra do Brecht, Baal (1912-1922). Frente ao cálculo ambicioso do cardeal Matteo, promotor da papisa, surge o cálculo terrestre, carnal e singelo da Juana quem, depois da iluminação pública, «descansa em uma casita do Vaticano, adormecida, sossegada e tranqüila, perto de um berço de madeira». A apresentação dos cardeais como negociantes de gado e estelionatários anuncia já a Santa Juana dos matadouros (1930-1932) e a Resistible ascensão do Arturo Ui (1941). Sem pretender aplicar pela força a este esboço de juventude o famoso término de «efeito de estranheza» («Verfremdungeffekt», habitualmente traduzido como «distanciación», em detrimento de seu verdadeiro parentesco com a operação teórica de «estranhamento», que à maturação realizavam os formalistas russos) , observamos que na eleição do episódio está já presente essa vontade do Brecht por tirar o mundo do poder, que é tema essencial de sua obra, fora de seu marco habitual (para o mundo dos gánsters, no âmbito da cúria medieval, na China antiga, etc.), para poder assim mostrar as molas contemporâneas do poder mesmo. Esta lógica singela e eficaz do estranhamento explicaria sem dúvida o significado de numerosas papisas contemporâneas. Mas ainda há outro fator determinante em jogo: Juana foi objeto de interesse preferencial para os escritores alemães durante o período compreendido entre 1890 e 1920. O sinal de partida de dito interesse parece ser a tese do Haage sobre a Fraw Jutta do Schernberg e a reedição de dito texto a cargo do Schröeder em 1911 . O «Kulturkampf» orquestrado pelo Bismarck, entre 1871 e 1878, contra o poderio da partida do Zentrum tinha reavivado o interesse pela cultura luterana ou preluterana; de fato, na floração das papisas de princípios do século XIX se adverte já a presença de versões neoluteranas e misóginas, produzidas pelo obscuro Max Weitemeyer no Erfurt, em 1920, ou no Munich, em 1905, e pelo Adolf Bartels (1862-1945), futuro grande mestre da crítica literária nazista, quem destacou siniestramente por seus ataques anti-semitas contra a memória do Enrique Heine . A contagem rápida das demais papisas da época demonstra até que ponto Juana tinha adquirido a ligeireza e a variabilidade de um motivo literário disputado; assim, podemos ler em 1920 uma papisa Jutta metafísica e simbolista na obra do Rudolf Borchardt (1877-1945), poeta e amigo do Hoffmannstahl, e em 1920 Richard Alexander Edon publica uma versão criada novelas da história da Juana; por último, em 1924 sai da pluma do Georg Reicke uma nova Jutta à antigo uso . Todos estes textos se respondem e se respondem implicitamente. A confirmação desta arbitrariedade no âmbito literário se encontra, por seu significado contrário, na surpreendente ausência de papisas inglesas nas mesmas datas, quando entretanto as circunstâncias pareciam ser favoráveis. O catolicismo romano exercia uma grande atração nos ambientes de estetas ingleses próximos ao Oscar Wilde; neste sentido, a feminilidade e a impostura da Juana tivesse podido oferecer a esse grupo a imagem de uma suprasexualidad refinada e decorativa. Vem-nos à memória o caso do Frederick Rolfe (o barão Curvo) (1886-1913), anglicano convertido ao catolicismo que quis ser sacerdote e partiu a Roma em 1890, onde viveu enquanto aguardava em vão ser ordenado, e antes de expressar sua fascinação e sua repugnância pela corte romana em suas Crônicas da casa Borgia, Dom Tarquinio, e sobre tudo em sua obra professora, Adriano VII, onde se imagina a eleição de uma Papa inglesa e homossexual. Poderíamos recordar deste modo ao Ronald Firbank (1886-1926), amigo e admirador do Oscar Wilde, quem em sua última novela, As excentricidades do Cardeal Pirelli (1926), encena sua interpretação da decadência da Igreja romana (batismo católico de um cão, travestismo feminino do cardeal, etc.) . Mas retornemos a nosso breve tipología das leituras da história da Juana. Leituras novelescas A princípios do século XIX, momento gélido na produção da novela histórica, o êxito da Juana resulta bastante exíguo. Acaso a razão de semelhante contradição radica no caráter não gótico da anedota, ou possivelmente na influência decisiva da leitura burlesca ou da controvérsia permanentemente reaquecida? A única novela histórica verdadeira sobre a Juana é a do Friederich Willhem Bruckbräu (A Papa em anáguas, Der Papst im Unterrocke, Stuttgart, 1832), um autor prolífico em narrações históricas galantes, a metade de caminho entre o relato licencioso do século XVIII e a novela histórica da época romântica. Bruckbräu se imagina a uma Juana viriloide, a quem seus pais consideram como um ser masculino («A criatura parece destinada a algo grande. É duvidoso que chegue a realizá-lo como menina»). Acontecem-se inumeráveis aventura, com raptos, perseguições e disfarces; tudo acaba bem, já que Juana grávida consegue escapar da fúria romana graças a seus dois cúmplices, Basilio o monge e Odón, corsário sarraceno convertido. Não nos deteremos no desenvolvimento fácil e livre do destino novelesco da Juana por parte de Leão Taxil (Uma Papa fêmea, 1882) (o próprio Leão Taxil foi um personagem assombroso, que vivia de uma verdadeira indústria da publicação anticlerical, antes de converter-se ao catolicismo em 1885 e receber a absolvição do mesmo Leão XIII, para a seguir denunciar sua própria conversão como uma mascarada, em 1887), e também do Ernesto Mezzabotta (A Papessa Giovanna, Roma 1885), ou do Claude Pasteur (A Papesse Jeanne, Paris, 1983, seguida do Manuscrito d'Anastase, 1986), já que o mero prazer de desvelar (os segredos do Vaticano) e do travestismo carece de mistério e de profundidade. Leituras metafóricas Se a obra do Arnim não fora virtualmente desconhecida, poderíamos colocar ao poeta prusiano à cabeça de uma linhagem de escritores que se interroga sobre o destino extraordinário da Juana, interessando-se menos pela aventura eclesiástica, ambiciosa ou aventureira da papisa que pelo mistério do travestismo ou do investimento das aparências. Michelet tiver podido escrever um louvor da Juana; não o fez, e entretanto glorificou, bastante rastreramente como certo, a outra disfarçada, Juana de Arco. Não obstante, achamos uma versão micheletina da papisa em uma curiosa obra publicada na Marsella em 1878 (o mesmo ano do escândalo do Rhoides), e redigida pelo J. P. Cansson, autor virtualmente desconhecido de uma História da papisa Juana, senhorita Inés Alia Etelbert nascida na Inglaterra, ascensão ao trono pontifício em 17 de julho do 855 com o nome do Juan VIII. A obra, dividida em artigos sobre a mulher e as fadas, elogia a Juana, figura gloriosa do triunfo necessário da mulher; Cansson não duvida em afirmar que «o cristianismo é o pontificado da mulher». A aventura da Juana, desembaraçada de todas as escórias duvidosas e imorais, ilustra a trajetória radiante da mulher para a humanização do gênero humano. Mas, em vez de continuar com a descrição da vida metafórica da Juana (como as que nos propõem Bartels ou Borchardt, por exemplo), preferimos concluir este retablo literário com a projeção paradigmática da papisa através de duas obras contemporâneas, nas que, à margem da letra da anedota, desenha-se poderosamente o espírito da Juana. Yentl, ou a ambivalência Isaac Bashevis Singer relata, em sua nova Yentl (1962) , a história de uma Juana nascida no seio do judaismo polonês. Yentl, apaixonada pelo conhecimento talmúdico, renega de sua condição feminina e se disfarça de homem jovem, com o nome do Anshel, ao objeto de seguir um ensino judaico longe de seu povo natal. aloja-se na casa de um homem cuja filha, Hadass, acaba de romper seu compormiso matrimonial com o Avagdor, companheiro de estudos do Anshel/Yentl, e a quem él/ella ama. Empurrada por um escuro desejo, casa-se com o Hadass antes de abandonálo, e animar ao Avagdor a que se case a sua vez com ele, depois de obter um divórcio arrumado de um lugar longínquo. O texto do Singer, tão próximo à lenda cristã, reproduz uma asíntota da história: a nostalgia da androginia, imaginada através da vontade de saber. Um Crime, ou a Mulher Cristo Uma novela policíaca do Georges Bernanos, Um Creme (1935), mergulha-nos no coração mesmo da fascinação que exerce Juana, longe dos temas papais, ao nos descrever a misteriosa presença de uma mulher Cristo, tema essencial de um texto no que o autor só sacrifica à intriga as últimas páginas da obra, necessárias para concluir o relato de ficção. Vejamos qual é a chave que nos proporciona Berna-nos nessas cinco páginas finais: uma moça (sem nome), filha de uma monja que teve que fugir do convento depois da iluminação, chega até a aldeia alpina onde vive sua mãe em qualidade de governanta de uma anciã rica. Seu objetivo é assassinar à dama, para assegurar que sua fortuna passe a sua neta, Evangelina, de quem ela mesma é senhorita de companhia e amante, à espera de poder desfrutar da herança. Ao fugir do lugar do crime de noite se encontra com o sacerdote que deve tomar posse de sua paróquia; e, posto que já o tinha encontrado durante a viagem, pensa que deve eliminá-lo. A seguir decide substitui-lo e, vestindose sua batina, apresenta-se como o novo pároco. O novo sacerdote chega, pois, em metade da noite, quando ninguém lhe aguarda já, e Celeste, a criada do presbítero, acredita que se trata de uma aparição: «O rosto destacava com nitidez no centro do halo luminoso... "chegastes", repetia mecanicamente, "chegastes"...». Esta aparição estava anunciada e precedida de uma espécie de silêncio ruidoso: «O que ela (Celeste) acabava de ouvir era apenas um ruído, já que não tivesse podido situá-lo em nenhum ponto do espaço e entretanto parecia que dito ruído não tivesse cessado, já que seguia flutuando a seu redor (de Celeste), muito perto. "Vá", disse em voz alta, "o vento cessou"». Nessa aldeia esquecida de Deus, a espada do anjo (sua pistola) vai cortar o sonho pesado para separar aos escolhidos (de Deus?, de Satã?). A primeira cena da obra anunciava já a chegada do anjo com uma espécie de paródia, de falsa feminización, de esboço áspero, do angelismo do pároco-mulher, nessa aldeia que Bernanos chama «Mégère». Celeste aguarda, pois, temerosa, ao novo pároco, e em seu lugar chega Phémie a campanária (anunciadora) «sem fazer mais ruído que uma doninha», personagem viril que cospe, bebe genebra, e que propõe a Celeste lhe fazer companhia com a condição de que lhe permita fumar o «cachimbo do morto», isto é a do pároco cujo substituto aguardam. O jovem pároco conquista Mégère e os aldeãos se advêm a seus desejos. Celeste é primeira em entregar-se: «Nunca esqueceria esse sorriso que, com tanta rapidez, soube conquistar seu coração e ganhar sua fidelidade para sempre.» Celeste entende que o neumatismo do pároco se traduz em uma inspiração direta que convoca, sem ele desejá-lo, a imagem do Espírito Santo: «Inclusive antes de que tenha aberto a boca seu pensamento já está dentro de ti, dentro de seu peito, e saltou dentro do coração. E as palavras para lhe responder afluem igualmente, como se só tivesse que lhes fazer um sinal, lhes chamar, já que tem a graça de encantar às pombas, como o velho italiano que veio aqui o ano passado.» Logo lhe tocou à coroinha, ao «curilla», que seguirá ao pároco passo a passo até sua morte, cair vítima de sua fascinação, quando o anjopároco lhe disse: «Quando Deus nos põe em presença de um professor, o futuro pode depender de um primeiro olhar.» Um pouco afastado do círculo presbiterial, o juiz de instrução encarregado do caso se faz esperar. Mas a fascinação lhe reduz ao convencimento da inocência e, ante o assombro de suas guardas, deixa partir ao pároco, à testemunha principal. Seu inspetor de polícia, que está escutando detrás da porta, é testemunha a sua vez dessa mudança fulminante que faz que o juiz acabe de confessar-se a sua testemunha: «É o mesmo que pretender escutar como cresce a erva. Deixem, pois. Um magistrado que não tem nada que reprovar-se não fala como se fora uma moça em confissão.» O juiz não reconhece ao anjo, já que só conserva dele uma vaga lembrança: «O rosto do pároco do Mégère parecia surgir também das profundidades de sua memória. Era toda sua imagem, ou alguma singularidade do olhar, da voz, do gesto?» E, quando o sacerdote desapareceu já, o juiz, impaciente por esse véu («Aqui ninguém se resigna a ver como todo mundo, com seus próprios olhos. conhece-se, encontrou-se em algum sítio, ouviu-se falar vagamente com um terceiro quem ele... Voltarei-me louco, pardiez!...»), só dispõe da foto de uma jovencita, que encontrou na carteira do pároco, e que contempla sem fim nem motivo. O que devemos compreender deste sopro sobre o Mégère? Uma leitura plaina veria nesta intrusão uma metáfora da graça violenta que sacode e investe, de acordo com o modelo evangélico que evocamos mais acima. De fato, a nebulosa Celeste-o curilla-o idiota da aldeia (o único que viu ao anjo de mulher, entre seus dois crímenes, em pleno ato de selvageria: «Uma mulher de verdade, mas com um montão de pêlo. Tivesse-a tomado por uma besta») recorda-nos a trilogia salvadora da mulher, do menino e do louco, que deve substituir à Papa malvada, segundo os franciscanos espirituais do século XIV. Por sua parte, Celeste e Phémie relatam a aparição da seguinte maneira: «Um pároco que chega acontecida já a meia-noite e no calhambeque do idiota... E se fosse a justiça, amiga minha...» Mas o fundamental de toda a história é que a capacidade sedutora do pároco resulta da distância que ele mesmo estabelece, desse medo que lhe devora e que ele propaga como uma infecção («Não há amor sem temor», escreve él/ella a Evangelina). Este terror (o do ex-terminador ou o do Mesías) procuram-lhe a fidelidade do curilla e de Celeste («seu terror já não tinha objeto: amarrava-lhe simplesmente ao suceder desse sacerdote desconhecido»), e desarma ao juiz, esse novo São Pablo. Para estes escolhidos, o padre se apresenta como um ser chegado do exílio, de alguma capital longínqua. Com o assassinato e a impostura (investimento ou restauração verdadeira da Paixão), o pároco-mulher intervém em seu destino, forçando-o para a graça. El/ella assume e dispersa a herança feminina (a fortuna de sua vítima e o atavismo materno), para extrair assim a arma de uma suprasexualidad em que prepondera o feminino, de uma feminilidade Angélica (revanche ou verdade de Deus) que esgrime contra suas paródias: a aldeã (Mégère), a afetiva (o amor turvo pela Evangelina) e a clerical («tinha vivido com toda intensidade, embora completamente acordada, um pesadelo sinistro, em que até os mais lúcidos tivessem reconhecido uma por uma todas essas imagens aberrantes que eram fruto do remorso materno: essa obsessão pela figura do sacerdote, por seus gestos, por sua linguagem, que durante tantos anos tinha envenenado a consciência atormentada de antiga religiosa»). A formosa novela do Bernanos coincide, ao cabo do tempo e em detrimento da anedota e da história, com o estupor original do Juan do Mailly, ao tempo que nos convida a fechar este libero com uma interrogante final sobre essa fascinação metódica que, em última instância, suportou esta, já larga, pesquisa sobre a papisa. Temos, pois, que concluir. Epílogos CAPITULO VIII primeiro epílogo: historiografia da papisa Para a história da Juana, esta passageira das ambivalências, pensamos em dois epílogos distintos, cujo caráter não concludente sublinharemos seguindo a numeração dos capítulos. A retórica manida de uma certa repulsa por concluir não justifica por si só dita decisão. Mas, a quem poderíamos reconhecer o direito de pronunciar a última palavra sobre a papisa? Até aqui, nossa investigação situou a Juana no âmbito dos discursos e dos universos de crença ou nos campos culturais que lhe conferiam uma função, ao tempo que lhe absorviam totalmente. Que lembrança de sua figura nos permitiria pensar na papisa além dessas fraturas e dessas cristalizações sucessivas e exclusivas? No melhor dos casos, corremos o risco de acrescentar novas versões ao fio do comentário que oferecemos a seguir. Não obstante, ambos os epílogos representam um intento de redução fenomenológica da anedota, pondo entre parêntese toda a floração histórica da lenda, e tendo em conta só o ato mesmo de relatar a história da Juana, reeditado na presente obra. Como sou o último, até a data, dos fiéis da papisa, situarei minha própria versão ateniéndome a dois critérios: em primeiro lugar, interrogando esse protocolo que me obriga a adotar uma posição concreta dentro da tradição historiográfica sobre a Juana (epílogo 1); e, em segundo término, sopesando minha própria participação nessa curiosidade continuada que suscita a papisa à margem das diversas interpretações (epilogo 2). Podemos isolar, legitimamente, uma historiografia da papisa? Certamente que não, se tivermos em conta que, desde o Juan do Mailly, Juana constitui por si mesmo um tema de história. Por isso, a historiografia se confunde com o conjunto dos discursos que suscitou Juana, raiando na ficção (e, ainda assim, o aparelho erudito do Casti ou do Rhoides comporta uma descrição histórica). Ou terei que distribuir diplomas de historiador ao pôr o ponto final da verdade sobre a Juana, assinalando que autores tomaram o caminho para esse ponto. Ao parecer, esta teleología funcionou bastante bem em nossa época, já que o esforço histórico ficou virtualmente imobilizado (excetuando o trabalho do Cesare d'Onofrio) em 1863 com o Döllinger, quem determinou a verdade da Juana (sua inexistência) ao tempo que metia em um só pacote ao quadro de honra historiográfica (a lista dos céticos) e ao cúmulo do engano (a lista dos crédulos). Juana não existiu: este e não outro é o fato histórico. A história verdadeira começaria, pois, no século XVI com o Panvinio, aperfeiçoando-se depois graças ao Blondel (crítica desinteressada), ao Leibniz (crítica pormenorizada) e ao Döllinger (quem põe ao serviço da crítica os novos lucros da ciência filológica alemã do século XIX). É totalmente exato que, com toda probabilidade, a papisa não existiu jamais, como assim nos faz isso ver o pensamento elegante e sóbrio do Leibniz em duas linhas que valem por volúmenes de controvérsia: «dentro da ordem justa dos tempos, a série de acontecimentos e de pessoas não lhe deixam sítio algum« («Cui in justo temporum ordene nullum relinquit serie rerum personnarumque»). A erudição moderna e contemporânea não deixa subsistir nenhuma lacuna na cronologia papal do século IX. Mas, por outro lado, nada proíbe a quem o deseje feminizar a tal ou qual Papa, como se tem feito no caso do Homero ou do Shakespeare . Sabemos igualmente que toda construção imaginária pode encontrar sua própria justificação. Mas, neste sentido, só estamos ante uma verdade da Juana, a mais pobre, porque o fato de acreditar na existência da papisa ou de rechaçar sorte crença constitui deste modo um tema histórico. Por outro lado, essa verdade provável incitou o esforço de historiar, e não o contrário; seria, pois, inútil procurar um método onde se utilizaram médios. Por isso, tentarei a minha vez identificar algumas constantes na interpretação moderna e contemporânea da lenda, analisando os dispositivos mentais que acompanham a decisão de te ocupar da Juana. Assim, referirei-me ao caso de um homem honrado, que se enfrenta ao tema da papisa a princípios do século XIX, muito depois das grandes controvérsias religiosas. Escutemos, pois, durante um momento, a esta última testemunha, ao Stendhal, cuja eleição aqui não se deve a sua notoriedade, a não ser ao caráter de uma vez insuspeitado e exemplar de seu encontro com a Juana: «Quem poderia acreditar que ainda hoje existem em Roma pessoas que dão muita importância à história da Juana? Um personagem de muita consideração, e que aspira ao cape-o, atacou-me esta mesma tarde a propósito do Voltaire, quem, segundo ele, permitiu-se muitas impiedades ao falar da papisa Juana. Parece-me que Voltaire jamais disse uma palavra sobre o particular. Por não parecer desleal a meu hábito ( o pior dos defeitos a olhos de um italiano), hei sustenido a existência da papisa, utilizando como melhor podia raciocínios que meu próprio adversário me expor. »Vários autores contemporâneos dizem que depois de Leão IV, no 853, uma mulher, alemã de nacionalidade, ocupou a cadeira de São Pedro e teve por sucessor ao Benito III. »Eu hei dito que não se devia pedir à história um gênero de certezas que não pode oferecer. A existência do Tumbactú, por exemplo, é mais provável que a do imperador Vespasiano. Preferiria acreditar na realidade das ruínas mais singulares que alguns viajantes dizem ter visto em meio da Arábia, que na existência do rei Faramondo ou do rei Rómulo. Não seria raciocinar bem contra a existência da papisa Juana dizer somente que a coisa parece pouco provável. Porque as proezas da Donzela de Orleans se chocam contra todas as regras do sentido comum, e, entretanto, temos mil provas delas. »A existência da papisa Juana está comprovada por um extrato das crônicas do antigo monastério do Canterbury (baseado pelo célebre Agustín, que tinha sido enviado a Inglaterra pelo Gregorio o Magno). No catálogo dos bispos de Roma, e imediatamente depois do ano 853, a crônica (que eu não vi) contém estas palavras: "Hic obiit Leio quartus, cujustamen anni usque ad Benedictum tertium computantur eo quod mulier in papam fuit". E depois, o ano 853: "Johannes. Esteja non computatur quia femina fuit. Benedictus tertius, etc.". Este monastério do Canterbury mantinha relações freqüentes e íntimas com Roma; por outro lado, comprovou-se suficientemente que as linhas que acabo de transcrever se escreveram no registro no mesmo tempo que indicam as datas. »Os escritores eclesiásticos que aguardam sua ascensão na corte de Roma acreditam que ainda é útil estabelecer que o poder para redimir nossos pecados, e do que a Papa goza, foi-lhe irradiado de Papa em Papa, pelos sucessores de São Pedro, quem a sua vez o tinha recebido do Jesucristo. Dado que é essencial, não sei por que, que a Papa seja um homem, se entre o ano 853 e o 855 é uma mulher a que ocupou o trono papal, então se interrompeu a transmissão de poder para redimir os pecados. «Sessenta autores pelo menos, gregos, latinos e inclusive Santos, relatam a história da papisa Juana. O famoso Esteban Pasquier diz que a imensa maioria desses autores não tinham nenhuma animadversión contra a Santa Sede. O interesse de sua religião, o de sua própria ascensão, e inclusive o medo a receber algum castigo, deveriam-lhes ter induzido, pelo contrário, a manter oculta esta estranha aventura. Durante os séculos IX e X, as facções rasgavam Roma e a desordem estava em seu apogeu. Mas as Papas não eram mais malvados que os príncipes de sua época. Agapito foi eleita Papa antes de cumprir os 18 anos (946), Benito IX subiu ao trono aos 10 anos e Juan XII aos 17. O próprio cardeal Baronius, o cronista oficial da corte de Roma, está de acordo. Há muita diferença entre a figura de um homem jovem de 18 anos e a de algumas mulheres de caráter decidido e audaz, como o que se precisava para aspirar ao Papado? Atualmente, e apesar da intimidade que requer a vida militar, quantas mulheres disfarçadas de soldado não receberam a cruz da Legião de Honra, e as da época do Napoleón? »Dou-me conta que esta lembrança dos fatos incomoda muito a meu antagonista, quem extraía suas razões de peso da improbabilidade, já que os textos históricos são terríveis. Mariano Decoto, monge escocês morto em 1086, narra a história da papisa. Bellarmin, o escritor papista, diz dele: "Diligenter scripsit". Anastario, chamado o Bibliotecário, abate romano, homem douto e de grande mérito, contemporâneo da papisa, relata sua história. É certo que em muitos manuscritos do Anastasio, os monges que os copiavam omitiram esta página escandalosa. Mas se provou mil vezes que tinham por costume suprimir todo aquilo que estimavam contrário aos interesses de Roma. »O Sueur em sua História eclesiástica e Colomesius em suas Miscelâneas históricas citam a um Anastasio da Biblioteca do Rei da França. Existiam dois Anastasios parecidos no Augsburgo e em Melam. Saumaise e Freher lhes tinham visto. Anastasio dispunha de informação suficiente, habitava em Roma e falava em qualidade de testemunha ocular. Tem escrito a Vida das Papas até o Nicolás I, quem viveu depois do Benito III. »Martín Polonus, arcebispo da Cosenza e penitenciário do Inocencio IV tem escrito a história da papisa Juana. »Esta mulher singular recebe às vezes o nome do Anglicus e outras o do Moguntinus. Rolewinck, o autor das Flores Temporum, diz "Joannes Anglicus cognomine sede natione Mogontinus". Na Vida do Carlos o Calvo, Mézeray diz que a existência da papisa Juana foi recebida como uma verdade permanente durante quinhentos anos. »E1 leitor poderá apreciar sem dificuldade, à vista do tom sério das páginas que acaba de ler, que esta discussão que tinha começado nos salões do Embaixador de *** concluía na biblioteca Barberini, onde me tinha chamado meu erudito antagonista. Um tal senhor Blondel, protestante, mas que tinha vivido em Paris em tempos do Luis XIV, e que desejava progredir, compôs uma dissertação pouco convincente contra a existência da papisa Juana, quem reinou provavelmente entre o 853 e o 855. »Mas o que importa a verdade desta anedota? Nunca chegará até a classe de homens que se faz redimir seus pecados. Dêem o Código Civil a seus súditos, dizia-lhe eu a meu adversário, e ninguém despertará seriamente a lembrança da jovem alemã que se situou intempestivamente entre São Pedro e Leão XII. Era jovem, posto que tirou o chapéu seu sexo com uma iluminação ocorrida em meio de uma procissão. Vimos no museu do Louvre uma cadeira de banho de pórfido que está mesclada na história da papisa Juana. Mas eu não desejo me converter em escandaloso» . Esta cena romana reflete com claridade a natureza da historiografia da Juana: abunda a impostura, como se a mutreta da Juana ricocheteasse sobre quem se aproxima a ela. De fato, o texto do Stendhal copia a sua vez quase textualmente, e sem dizê-lo, duas cartas da Viagem a Itália do Misson, publicado em 1694, e utilizando com freqüência pelos viajantes (entre eles Sade); a entrevista mesma da biblioteca Barberini procede do Misson quem, para romper a monotonia de sua dissertação sobre a Juana, passa a fazer uma descrição de dita biblioteca. A falsidade da posta em cena inclui, além disso, a falsidade mesma dos argumentos: o futuro cardeal recrimina equivocadamente ao Voltaire, um juanoclasta convencido, como vimos mais acima. Por outro lado, a alusão ao Anastasio (considerado também erroneamente autor do Líber Pontificalis; e, sabemos, do século XVI, que as menções da papisa foram acrescentadas ao Liber no século XIV) remete a um escuro assunto que, a princípios do século XVII enfrentou aos jesuítas de Colônia e aos protestantes: ao parecer, arrancou-se de um manuscrito emprestado a página que falava da Juana. Nesta guerra de falsidades que se remonta ao século xVI, os historiadores da Juana não cessam de copiar-se, saquear-se, deformar-se e acomodar-se mutuamente. Mas esta penetração do falso não reflete uma psicologia particular asociable aos historiadores da Juana (embora em ocasiões possamos advertir uma virulência singular por parte de alguns fugitivos, como Balo, Vergerio ou Raemondo), mas sim sublinha o aspecto fundamentalmente agonístico da questão. Stendhal ilustra perfeitamente dito aspecto, inventando a cena dos dois adversários, cuja decisão polêmica tem que ver sua vez com uma situação tática: o juanoclasta, «personagem de muita consideração», «aspira ao cape-o» (cardenalicio) e «ataca» a um representante do anticlericalismo, compatriota do Voltaire. Por sua parte, o narrador juanista dá a cara por solidariedade nacional e cultural («por não parecer desleal a meu hábito»). Os jogos, que aqui resultam anódinos, embora estejam tratados com humor, têm sua precedência. Por outro lado, a conversação ácida que se desenvolve entre o narrador e o prelado projeta bastante bem a vida da Juana na controvérsia dos historiadores; isto é, um diálogo incessante que reitera incansavelmente argumentos mais insuflados (inspirados e inchados) que maturados. Só daremos um exemplo desta dialética repetitiva: em 1844 um erudito holandês, N. Kist, escreveu um novo tratado favorável à existência da papisa, Do Pausin Joanna; ao ano seguinte, G. Wensing publica uma resposta cuja agressividade contra Kist importa mais que o fundo mesmo do assunto (De verhandung vão N. C. Kist). O ciclo continua com uma «palavra» (de vões dezenas de páginas) do L. Tross (Een Woord an Wensing) dirigida ao Wensing; as principais revista históricas européias dão conta da disputa Kist-Wensing-Tross, antes de que se inicie o século seguinte... depois de tantas controvérsias, esta persistência tardia expõe a difícil questão da sobrevivência de certas representações, que parecem estar dotadas de uma espécie de atemporalidad indestrutível, inclusive quando os conteúdos variam e desaparecem. A recuperação do debate que gera historiografia reflete um estranho autonomismo, à margem da razão, como se o homem tivesse necessidade de um montão de perguntas já debatidas, sobre as que alberga a ilusão de abrir um processo mau instruído, como se fora um juiz ou um fiscal. Em efeito, esta rabia dialética, esta argumentação copiosa, este verbo infatigável definem qual foi o tom da historiografia da Juana do século XVI: um tom judicial. Juana encontrou advogados e fiscais, em ocasiões juizes, e estranha vez historiadores. Desde o Panvinio, e concretamente desde que Juana importa como peça de um processo mais amplo, o procedimento, embora se depurou, foi sempre idêntico. A acusação (juanista) propõe dois tipos de médios: os testemunhos e a reconstrução narrativa do crime; a defesa, a sua vez, responde com outros testemunhos e com a constituição de um álibi. 1) Os testemunhos: como vimos, a acusação acumula os testemunhos escritos desde o Anastasio o Bibliotecário e Mariano Decoto; o princípio de acumulação prevalece como na justiça. Spanheim e Lenfant chegam a reunir até 160 textos. Outro rasgo indica a influência judicial, pelo menos no século XVI: contra toda lógica de método histórico, a acusação privilegia os testemunhos recentes, contribuídos pelos historiadores contemporâneos, como se a qualidade mesma da testemunha, garantida pela proximidade temporária, tivesse preferência frente à antigüidade do rastro. A defesa responde com contratestimonios estabelecendo largas listas de autores que ignoraram a papisa. Por outra parte, recusa às testemunhas da acusação, assinalando a falsidade, a interpolação ou as cópias sucessivas e ignorantes. Florimondo do Raemondo foi muito longe neste sentido; de havê-lo seguido, nenhum autor, à exceção dos poetas, tivesse falado da Juana. Esta crítica do testemunho conduz, no caso dos autores mais sutis como Panvinio ou Allacio, a uma verdadeira avaliação filológica dos textos, emprestando igualmente atenção à paleografia e às filiações dos manuscritos. O ardor demonstrativo engendra a agilidade científica, e Bayle tinha razão ao assinalar que, neste assunto, os protestantes havia tornado contra eles as armas que tinham forjado para a destruição dos enganos católicos. Mas a filologia não podia triunfar, já que suas vitórias abriam sem cessar novos campos de batalha, sempre além das tradições. O ácido corrosivo da crítica textual arrasava o próprio pergaminho. 2) A narração: o modelo romano da advocacia, isto é, de defesa ilustrado pelo Cicerón e perpetuado até nossos dias, utiliza como médio essencial a «narração», quer dizer a reconstrução orientada e verossímil dos fatos («ex-facto oritur /mí»). Também aqui, Spanheim e Lenfant proporcionam um exemplo perfeito, já que começam sua defesa a favor da existência da papisa com um larguísimo relato que absorve todas as descreencias dos cronistas; por outro lado, inserem a história nos contextos conhecidos e pouco discutíveis: assim, a origem inglesa da Juana, uma geração ou duas depois da conversão da Sajonia, constitui uma lembrança das missões monásticas britânicas. Ao igual a na narração judicial, pensa-se chegar à convicção através do amálgama cuidadoso do que é certo, pelo que é falso e do que só é hipotético. Ao emprestar-se a esta elaboração, Juana assinala as fissuras que gretam determinados painéis da historiografia geral, levantados sua vez sobre os alicerces brandos das categorias narrativas (a casualidade resultante da cronologia, do psicologismo e da confusão entre o verdadeiro e o verossímil). 3) O álibi: frente ao relato verossímil, a defesa esgrime a linealidad cronológica do Papado que não deixa sítio a um reinado supernumerário; mas este argumento não é suficiente em razão da natureza vaporosa da temporalidad da Alta Idade Média, e da possibilidade de uma inscrição masculina do Papado feminino. Em conseqüência, os defensores devem propor uma explicação positiva da lenda: a papisa não se encontra na realidade da instituição, a não ser fora, na imaginativa da metáfora. Desde o Panvinio até nossos dias, a defesa aplica este álibi, reconstruindo o engano que teria produzido uma crença errônea: a memória coletiva (? !) teria tomado ao pé da letra uma metáfora insultante ou zombadora sobre as mulheres, mujercillas das Papas débeis ou libidinosas. Não faltaram candidatos para este papel matriarcal: essa Papa feminizado maliciosamente foi Juan VII para o H. G. Wouters (1870), Juan VIII para o Baronius, May e Hergenroether (1868) e Hefele (1879); Juan XI, para o L. Weiland e A. Lapôtre (1895); Juan XII, para o Panvinio, Raemondo e Moroni (1845); o conjunto de Papas com o nome do Juan no século IX, isto é desde o Juan X até o Juan XIII, para o F. Vernet (1911), e o antipapa Anastasio o Bibliotecário para o G. Arnaldi (1886) . Para outros autores, a lenda não reproduz uma injúria dirigida a uma Papa, a não ser a denúncia irônica de uma mulher presunçosa: para o Allacio (1630) e Ciaconio (1677), trataria-se da pseudoprofetisa Thiota, condenada no concílio da Maguncia no ano 847; para o bispo Suárez (chamado pelo Reynaud em 1603), e contra a evidência cronológica, esta «papisa» seria Juana, esposa do antipapa Nicolás V (1328); enquanto que para o F. Vernet, a famosa Marozia, mãe do Juan XI, resultaria muito conveniente: o cronista Benito de São Andrés do Monte Soracte nos indica que Roma se encontrava então sob o domínio de uma mulher . Entretanto, tanto Bellarmin como Leibniz parecem dirigir o álibi com mais desenvoltura; ambos despacham o assunto fora do campo pontifício sem explicá-lo. Por sua parte, o jesuíta vê na lenda a derivação de uma fábula de Constantinopla sobre uma mulher patriarca, a que se refere a Papa Leão IX em 1054, quando escreve ao patriarca Miguel Cerulario, o pontífice se nega a acreditar em dita fábula, mas extrai da mesma o argumento que necessita para condenar o costume bizantino que permite aos eunucos acessar ao Patriarcado . Leibniz, exercendo de pacificador lhe reconciliem, propõe aceitar a lenda referida a um bispo qualquer, e que o acontecimento se teria atribuído a seguir ao Papado mesmo. Por último, alguns têm proposto como tema do decifração errôneo: um simbolismo teológico (analisamos extensamente mais acima a hipótese do Cesare d'Onofrio sobre a metáfora incomprendida da «Mater Ecclesia»); uma alegoria satírica (para o Blasco —1778— e A. F. Gfoerer —1848—, a lenda procederia de uma personificação zombadora das Falsas lhes Decrete); ou, por último, uma simples inscrição misteriosa, traduzida maliciosa ou ingenuamente (já consideramos antes esta teoria do Döllinger) . Mas terei que encontar aos culpados deste deslocamento; para muitos, a travessura maliciosa do povo romano desempenhou um papel determinante, enquanto que para outros terei que olhar em direção dos dominicanos, e em uma época muito mais tardia. Não nos deteremos no aspecto aventuroso e aleatório destas hipótese, que por outro lado explicam mal um silêncio de dois ou três séculos antes da eclosão narrativa do século XIII (inclusive embora aceitássemos a proposta adiantada mais acima sobre um estado verbal e ritual da lenda durante o século que precede a sua inclusão nos textos), porque, que memória oral e tenaz teria podido conservar dito relato? O procedimento judicial da controvérsia escapa ao controle do discurso histórico, multiplicando os sujeitos ali onde a história só pode determinar agentes e sistemas. Ao situar a Juana no centro de um processo em curso, lhe converte em um sujeito que deve responder de seus atos; aproveitando a participação do Leibniz nesta historiografia, falaremos de uma verdadeira juanodicea, tão premente como a teodicea do filósofo, que pretende atar a Deus ao banco de uma valoração judicial do mal e do bem repartidos pelo mundo. A postulação da inexistência da papisa se limita a substituir ao sujeito acusado por outros: o enganador, o fraudado, o ignorante, o peralta e o fantasma errante portador de uma metáfora infamante; todos estes sujeitos, desprendidos de seus tempos, procuram uma ancoragem aleatória (todos os que se chamam Juan resultam convenientes) ou mítico (o povo, os gregos, os alemães, os dominicanos, etc.). Por minha parte, e frente a essa ontologia judicial da papisa, tão sugestiva até nossos dias, dadas as implicações ideológicas do episódio, quis propor uma antropologia histórica da Juana. Rogo aos leitores que me perdoem este instante de ambição teórica, cujo objeto não é o de celebrar a tarefa realizada, a não ser, pelo contrário, o de esboçar um projeto. Animado por esse desejo, quis identificar os significados globais e sem dúvida capitalistas do relato no âmbito das sociedades pelas que discorreu, evitando reduzir sorte interpretação ao domínio exclusivo da história eclesiástica, do folclore, ou da curiosidade anedótica. A lenda, esta lenda (junto com algumas outras), por seu poder de cristalização e de precipitação, e por sua capacidade para organizar as mentalidades, constitui sem lugar a dúvidas um «fato histórico total», tão importante (nem mais, nem menos) que o curso do trigo, ou que tal ou qual reforma política. A referência anterior à «antropologia» pretende, pois, reivindicar para o historiador essa virtude do «estranhamento», que induz ao antropólogo a considerar que a complexidade das sociedades que estuda requer uma atenção tão cuidadosa dos conteúdos simbólicos, como a que de fato disposta aos aspectos sociais ou econômicos. À margem do verdadeiro afeto que lhe professo, a papisa me proporcionou uma entrada cômoda em universos de crença muito longínquos, e esta comodidade não se reduz ao mero interesse pelo estudo de um caso que a sua vez permita um domínio exaustivo da matéria. Juana atravessa, quase sem variar, a seqüência dos tempos e dos contextos, graças a grande estabilidade de sua história, unida à perenidade da instituição papal. Em conseqüência, a papisa, utilizada como marco, detém em primeiro término (o metodológico) o estatuto de tema histórico. Por outra parte, Juana constitui uma espécie de pólo fixo ao redor do qual se organizam parcialmente os campos movediços da crença ; neste segundo sentido (o empírico) apresenta-se como um tema de história. O procedimento seguido aqui consistiu, pois, em historizar a lenda mediante uma desconstrucción (rechaço do ponto de vista ontológico), uma contextualización múltiplo e uma reconstrução funcional dentro de células significantes. A tarefa que iniciamos aqui consistirá, em última instância, em percorrer, partindo de outros pólos e de outras configurações parciais, esses conjuntos etéreos mas reais, que denomino sistemas de crença. Na linguagem vulgar, o término de crença evoca por igual um conteúdo (tal ou qual dogma, tal ou qual relato) como um ato (de adesão ou de captação). Mas mais que de um ato ou de uma atividade, teria que falar, com o Habermas, de um atuar, isto é de uma disposição orientada para a ação: condiciona-a e prescreve suas possibilidades, suas restrições e seus limites. A crença, contemplada como dispositivo, distingue-se do aparelho (concreto, como a paróquia, ou abstrato, como o sacramento) e da ideologia (como produto). Em soma, a crença seria o instrumento, determinado concreta e historicamente, que vincula as capas profundas e inertes das mentalidades (a tradição narrativa da papisa, por exemplo) à superfície manifesta da ação (a conduta a seguir no momento do Grande Cisma, a condenação de Roma, etc.). Este atuar não deve tomar-se aisladamente, posto que forma sistema com outras esferas, nas fronteiras da atividade transitiva (a transformação do mundo) e da atividade de representação, ao lado, como vimos, das práticas rituais, especulativos, estéticas e comunicativas. O sistema de crença se recorta, pois, sem cessar e de maneira diferente segundo os tempos. O estudo dos sistemas de crença contemplaria, pois, três elementos: o universo de crença, formado com os conhecimentos e representações disponíveis historicamente, e balizados com alguns pólos de organização; as diversas formas de crença, sucessivas e concomitantes de uma vez, e, os agentes da crença (produtores e consumidores de crença, em permanente interação). Minha proposta contempla todas as facilidades e todos os perigos do sistema, de maneira que a abstração e a arbitrariedade espreitam. Por isso, abordo dito programa pela via indireta da monografia, sonhando com uma cartografia futura dos universos de crença. Mas seria muito triste abandonar a Juana com estas frite considerações de método, já que a papisa atravessa os tempos e as apropriações com um corpo ligeiro e fugitivo. Sigásmola ainda um pouco. CAPITULO IX segundo epílogo: o corpo da Juana Ao término de nossa investigação, pergunta-a inicial segue aí: o que significa, em última instância, esta história da papisa Juana? Por nossa parte, ocupamo-nos que ela por seu valor verbal, isto é seguindo o célebre adágio do Wittgenstein: «Não procurem os significados, procurem o uso». De fato, Juana serviu sobradamente como manequim para a brincadeira ou o temor no século XIII, como caso de ratificação do direito ou da graça pelo fato para o Guillermo do Ockam e os franciscanos do século XIV, como precedente de um pontificado supernumerário no momento do Grande Cisma, como prova do Anticristo romano no século XVI luterano, como cargo engraçado e zombador contra a catolicidad nas brincadeiras anticlericales da Revolução Francesa e do século XIX e por último como metáfora das virtualidades femininas (exaltadas ou temidas), ou da vertiginosa plasticidade humana em determinadas versões literárias, desde o Boccaccio até o Achim von Arnim. Mas todos estes usos não esgotam o ser da Juana. Que envoltório suficientemente amplo e flexível conterá essas estoque díspares? Uma resposta indolente consistiria em colocar a história da Juana entre as que a sua vez conformam o imenso receptáculo das «lendas». Mas isto seria banalizar o tema, tratando o de pretexto. A operação historiográfica que realizamos aqui, percorrendo os diversos usos que se feito da Juana, corresponde-se mas bem com a famosa definição da tarefa de criar novelas, que Stendhal tomou emprestada do Saint Real: «Uma novela: é um espelho que passeamos ao longo de um caminho.» Mas, além disso, resulta que o espelho da Juana apresenta umas características farto singulares: é côncavo, de maneira que focaliza os raios projetados para ele; e não reflete, mas sim concentra o calor e o brilho, de maneira que produz a fusão ou a efusão. E esta neutralização terminológica evitaria a sua vez um dos principais mesentérios desta história: o tema da crença. Como vimos, Juana conhece registros e formas de crença muito diversos (distinguimos entre a crença verídica, a crença fantástica, a crença racional e o contrato de adesão), de maneira que a normalização do episódio suspenderia essa dinâmica que resulta essencial para a força desta narração. Por último, e sem mais justificações, terá que afirmar que a talha da Juana é muito distinta a dos seres de papel que povoam as «lendas». Em conseqüência, Juana vive mais à frente ou mais para cá do que se há dito a seu propósito. Mas qual é sua vida? Pergunta-a não é retórica, posto que interpela o resplendor que se mantém aceso entre nossos contemporâneos, quem, pelo general, desconhecem a folha de serviços da Juana. Quando aludia ou anunciava o presente trabalho, meu interlocutor não perguntava jamais a razão de minha investigação (o que sim ocorreria se se tratasse do sacerdote Juan ou do Grog e Magog); uma conivência imediata, zombadora ou calorosa, parecia indicar uma cumplicidade, uma familiaridade recuperada com um ser um pouco esquecido mas sempre presente, como se tivesse tirado de minha carteira a fotografia amarelada de uma prima comum, simpática e escandalosa, vagamente extravagante e ligeiramente comprometedora. Esta familiaridade etérea mas segura, que pode prescindir de um conhecimento, permitiria possivelmente tratar a história da Juana como um mito. Brutalmente, e a título experimental, atrevemo-nos a ver na Juana um eco cristão do Tiresias, tematizando, na história da papisa, a trangresión da separação dos sexos. Semelhante decisão incomodará sem dúvida pela facilidade que entranha, pois o leitor pode farejar na mesma a harmonia banal que resulta do desfile conclusivo da papisa, à saída de sua igreja, para a praça maior, lugar comum onde tudo converge, enquanto que, até aqui, a história da Juana e das configurações nas que preponderava não deixava sítio para esse vibrato universalista. Mas lhe deixemos desenvolver-se por um instante sem introduzir as dissonâncias da crítica. Falemos, pois, do Tiresias. Recordemos a versão mais comum do mito grego. O tebano Tiresias se passeava pelo monte Cileno, quando viu duas serpentes em transe de aparearse; separou-as e, ao ponto, converteu-se em mulher. Sete anos depois, e nas mesmas paragens, observou de novo um emparelhamento de serpentes; reiterou seu gesto e recuperou o sexo masculino. Estas metamorfose lhe deram a conhecer, e Zeus e Fira recorreram a ele a propósito de uma polêmica que lhes enfrentava: quem experimenta major goze no amor, o homem ou a mulher? Só Tiresias podia dar testemunho. Deu-o sem duvidar dizendo que se se dividisse o prazer sexual em dez partes, a mulher se levaria nove. Fira, furiosa ao ver insone o segredo do sexo feminino, castigou ao Tiresias com a cegueira; em compensação, Zeus lhe concedeu o dom da profecia e uma grande longevidade. A história da Juana distribui de outra maneira os mesmos elementos: trânsito do feminino a masculina e volta ao feminino (para a iluminação pública), privilégio único de uma superação da divisão dos sexos (a do sacerdócio e a do Papado), e conexão entre um conhecimento superior (o saber prodigioso da Juana) e uma cegueira sobre a evidência imediata (desconhecimento de seu próprio corpo, que lhe leva a escândalo do parto). A proposta capital que comporta o mito do Tiresias explicaria o interesse comum pela Juana, além de tudo os investimentos interessados que permitiu. A conivência a que nos referimos mais acima se reduz, possivelmente, à irradiação que emana dessa palavra de «papisa», uma palavra que põe em feminino um dos últimos vocábulos da separação dos sexos no Ocidente. Objetará-se sobre o estatuto menor do episódio da Juana, que forma parte das «curiosidades» da história ocidental; mas é preciso tomar na plenitude de seu significado dita «curiosidade»: Tiresias e Juana são seres curiosos (por um parte, são seres estranhos, únicos, ciumentos da divindade, e por outro lado, são seres pragmáticos em sua vontade de saber); ambos expressam a necessidade e a impossibilidade de percorrer o continente negro do outro sexo, e no âmbito da curiosidade ambos representam de uma vez a realização e o castigo. Mas há outra razão que deveria descartar a tematización da Juana em um Tiresias feminino: Juana trocou que aparência, não de realidade sexual. De fato, só a picaresca do século XVII se divertia semeando a confusão sexual. Entretanto, se o que queremos é dar conta da unidade que engloba os usos tão díspares que se feito do episódio, então terá que aceitar a idéia de que esta metástase de sentido (os usos) produz-se a partir de um núcleo não diretamente significante (atreveríamo-nos a dizer «inconsciente»?), constantemente presente no nome da papisa, mas jamais expresso. Dita estrutura (núcleo ignorado e metástase de sentido) afasta-nos do mito, já que este é perfeitamente explícito, um relato fundador e permanente, e reativado metaforicamente ao fio de seu significado original (assim, por exemplo, Marcel Jouhandeau, ao descrever seu maravilhoso descobrimento, sobre o tardio de sua idade e da sodomia, relata-nos sua própria experiência em um livro que titula precisamente Tiresias). De acordo com nossa hipótese, a história da Juana carece de significado intencional ou original. A arqueologia romana da Juana, apresentada nos três primeiros capítulos, não reconstrói em modo algum uma primeira intenção, institucional, posto que o jogo carnavalesco do investimento era já um costume perfeitamente constituído. O primeiro texto, o do Juan do Mailly, falava do mero sobressalto; vinte anos mais tarde, Martín o Polonês conferia a Juana um sentido jurisprudencial, com sua narração e seu comentário; por último, outros relatos, como o do Boccaccio, substituíam outros sentidos, sem outra referência anterior que o só acontecimento cristalizado pelo próprio nome (a papisa). Corremos o risco de ser pontuados de realismo ingênuo, de afirmar a existência permanente de um núcleo ignorado (Tiresias cristão); mas, entretanto, não pretendemos recuperar um significado oculto, encoberto, mas sim mas bem o lugar geométrico dos efeitos de sentido. Distingamos uma vez mais: o mito grego e sua apresentação metafórica, a fábula, têm um alcance universal, unido a seu significado explícito. A história da Juana só tem valor dentro de um âmbito simbólico particular, o do cristianismo (ou em âmbitos conexos), onde se percebe o estatuto supraxesual com um dominante masculino da figura sacerdotal e papal. Além disso, o episódio, como o resto das narrações cristãs, situa-se em meio dos homens e de sua história: Juana voltou por volta do ano 854 (o qual incomodava bastante aos luteranos, quem tivesse desejado situá-la na origem mítica do Anticristo romano). Esta inserção média é essencial; porque, como havemos dito, Deus, ao encarnar-se, como homem e fora da Origem (a Gênese) obriga ao cristão a debater-se com relatos muito humanos, dos que não se sabe onde começa o espírito e onde termina a letra; a falta de autentificación canônica (e portanto de significado) obscurece ainda mais os relatos postevangélicos (mas virtualmente sagrados, já que a Parusía se produzirá sem anúncio prévio). Nestas condições, Juana adquire a fila de um desses seres literais que procuram um espírito (recebemos sua existência, não seu significado) ao lado dos Santos, dos prodígios, do Judas, do madeiro da cruz, etc. Na Juana, a letra escarlate (cor do cardenalato e da rameira de Babilônia) sobre a carne cristã importa tanto por sua marca como pelos decifrações que exige, sem fim. Colocaremos, pois, sobre a história da Juana, a etiqueta de «objeto simbólico», querendo significar assim que o âmbito da crença não é homogêneo, mas sim se apresenta fortemente polarizado ao redor de pontos de atração; assim, o objeto simbólico se caracterizaria pela certeza da existência de um sentido incerto. A força que conservou Juana (assim como outros muitos objetos) permite supor que o laicismo do âmbito simbólico cristão não altera em modo algum nem seus contornos nem seus pólos. Mas como nos aproximar desse núcleo ignorado embora constantemente substituído pela proliferação dos sentidos referidos? A versão contemporânea do Bernanos (analógica e não literal), em sua novela policíaca Um creme, apresentada no sétimo capítulo, dará-nos uma imagem, uma metáfora de dito núcleo. Esta narração investe as proporções da história da Juana: o sentido (o uso) e o desenlace (indutor poderoso de significado) desaparecem na narrativa sob o cômodo proteger-se no gênero da novela policíaca; por sua parte, o desenvolvimento novelesco (favorecido uma vez mais pelas restrições literárias: a investigação deve ser larga e incerta) limitase a descrever o efeito da impostura: uma mulher-pároco antes do descobrimento; todos os personagens ignoram até o final a identidade do pároco; o leitor só se inteira no último e curto capítulo da novela; e a mulher-pároco imprime sua marca de uma maneira quase física em seu entorno. Bernanos constrói uma fenomenología da papisa. O último capítulo, o único que nos apresenta ao pároco de mulher, dá-nos a conhecer seu testamento, em três versões sucessivas, dirigidas a Evangelina antes do suicídio. Estes três textos, nenhum dos quais diz a última palavra sobre esta história, modulam o tema da chegada crística e da traição do Judas-Evangelina, quem se desviou que Advento por um amor terrestre e masculino. depois dela, e com um Mesías renegado, reina o vazio: «Para mim só sua espera, já que a partir de agora já não esperarão a ninguém» (carta 1); entretanto, a Parusía ameaça: «Sua vida fica aberta para mim: forçarei-a quando me agradar. Uma presa, digo-lhes isso eu, nada mais que uma presa» (carta 2). A terceira carta é mais vã ainda: «Agrado-me muito só lhes deixando, deixando em sua vida um ser tão parecido a mim, de uma raça tão próxima à minha, tão familiar que lhe reconheci ao primeiro golpe de vista.» O final do pároco-mulher, triturado sob as rodas de um trem, não conclui nada, como tampouco conclui nada a Paixão de Cristo, mas, entretanto, deixa o mesmo temor da Ocasião desperdiçada, a mesma espera da Volta. Bernanos integra na história da Juana a intuição medieval de uma feminilidade divina (Deus, ou Jesus, ou o Espírito Santo em mulher); recorda a Guillermina, Encarnação do Espírito Santo por volta do 1300, e também à fisiologia erótica do conhecimento de Deus na Hildegarda do Bingen, assim como a veneração do Jesus como mãe por parte dos cistercienses do século XII. Na versão negro batina do Bernanos, com maior dramatismo que nas versões brancas ou escarlates sobre o pontificado, a tiresiada Juana, ao situar-se por um instante no ponto humano de contato com o Espírito (a designação papal, a unção sacerdotal), deixa planejar vagamente essa dúvida surda ou fulgurante que a Encarnação (a materialização carnal) tem inscrito no centro da história humana: e se o esquecimento, ou o exílio, da feminilidade, fechado tanto para as mulheres quanto para os homens, e entretanto absolutamente carnal, hic et nunc, em um dia matricio de Deus (Deus nascido de uma mulher ou Deus mulher), fizesse-nos perder os nove décimos do gozo e da salvação?