Alain BOUREAU A PAPISA JUANA
A mulher que foi Papa
Título do original francês: A PAPESSE JEANNE
Traduzido por:
GUADALUPE LOIRO DO URQUÍA
1988 Aubier.
1989 fotografia coberta THE PIERPONT Morgan LIBRARY.
1989, Editorial EDAF, S. A. Jorge Juan, 30. Madrid.
Para a edição em espanhol por acordo com o EDITIONS AUBIER, Paris (França).
ISBN: 84-7640-353-4 Depósito Legal: M-388S1-1989
PRINTED IN SPAIN
IMPRESSO NA Espanha
Gráficas Rogar, S. A. Leão, 44. Pol. Cobo Ruela - Fuenlabrada (Madrid)
A PAPISA JUANA
Detalhe de «La Papisa», naipe do Tarot Visconti-Sforza, pintado por volta de 1450 por
Bonifacio Bembo ou Francisco Zavattari, e que se conserva na biblioteca
Pierpont-Morgan, de Nova Iorque.
índice
índice de ilustrações e planos
Prólogo à edição espanhola
Introdução
Primeira Parte
O SEXO DoS PapaS UMA HISTÓRIA ROMANA
Primeiro capítulo: OS PONTIFICAIS
Habet duos, 29.—A papisa: o rumor e o rito, 30.—Ritos e olhares, 31.—As duas primeiras
testemunhas: Adão do Usk e Jacobo do Angelo, 33.—A Coroação do Gregorio XII (1406),
34.—Enigmas do rito de verificação de virilidade, 37.—Algumas testemunhas do século xV,
41.—Malícias de Platina, 42.—Brincadeiras humanistas e murmúrios pró testantes, 44.—Um
luterano na coroação do Inocencio X (1644), 46.—Imagens do rito de verificação, 48.—
Primeira explicação: a ré vancha dos intelectuais frustrados, 49.—A substituição
«evangelista»: Rabelais, 53.—O horror do Roberto do Uzès, 54.—Segunda explica ción: o
medo à invasão feminina, 56. —A exclusão do sacerdócio feminino no direito canônico, 57.—
Justificação dos glosis lhas, 59.—Estruturas medievais da obsessão pelo feminino, 61.
Capítulo II: HISTÓRIA DE UM ASSÉDIO
Morfologia do rito de verificação de virilidade, 67.—Asseiem-nos tosse perfurados, 69.—A
hipótese do Onofrio: sela parte ras, 71.—Crítica da hipótese, 73.—Primeira aparição dos
asseiem tosse: a coroação de Pascal II (1099), 74.—Os assentos curules de 1099, 77.—
Lucano, a cúria e o papado, 78.—Transações papais, 81.—A Cúria como Senado, 82.—
Função política do rito de 1099, 85.—Fragilidade e escuridão dos significados rituais, 86.—A
Cadeira de São Pedro, 88.—Eminência do Letrán, 89.—Da cadeira à coroação, 91.—Na
soleira do palácio, 93.
Capítulo III: AS PapaS ENTRE DUAS SEDES
A Cornomanía segundo Juan Diácono, 95.—O testemunho do cônego Benito, 96.—Uma
contra-liturgia, 98.—O investimento como revanche dos clérigos, 100.—O investimento como
revanche comunitária: as diaco-nías, 102.—A paródia no calendário litúrgico, 104.—O espaço
de compromisso no carnaval romano, 107.— Fim do compromisso: O espaço abstrato da
dominação papal, 111.—Juana como última ré vancha, 113.—A sistematização dos ritos de
coroação no século XII, 114.—Novos sentidos das cadeiras curulas no século XII: 1. A
metáfora teológica, 118.—2. A metáfora eclesiástica: a soleira dos apóstolos, 119.—3. A
metáfora jurídica: o corpo da Papa, 121.—Pilhagem e poder, 122.—A Papa morre, 124.—
Conclusão: naci minto da Juana, da revanche ao rumor, 126.
Segunda Parte JUANA A CATÓLICA
Capítulo IV: JUANA A CATÓLICA (Séculos XIII-XV)
Primeira forma: um sucesso em uma crônica, 131.—O enigma da Juana, 132.—Uma crônica
em busca de autor, 134.—A rede domi nica, 135.—Contá-lo tudo, 136.—A Igreja à conquista
do imagi nario, 137.—Azar e necessidade: as versões Enikel e vão Maerlant, 141.—Forma
2: do sucesso ao exemplum. Esteban do Borbón (H. 1260), 142.—A moral na história:
Jacobo de Voragem (por volta de 1295), 144.— A Papisa no alfabeto: Arnoldo da Lieja
(1307—.), 148.—O método do Martín, 148.—Do exemplum ao caso jurídico-histórico: Martín
o Polonês (H. 1279) (Forma 3), 153.—Acreditar na Juana?, 155.—Excursus comprido, mas
necessário, sobre a fé na Idade Média, 156.—Fortuna da Juana, 162.—Acertos, 163.—A
fórmula das P e o esquecimento da tra dición franciscana, 166.—O texto da fórmula, 168.—A
fabricação da fórmula, 168.—Os franciscanos e a pseudo-Papa, 171.—A Papa angélica e a
pseudo-Papa: a junta de 1294, 175.—Juana, patrono da infalibilidade papal, 178.—Juana nas
fronteiras, 182.—Juana no Cisma, 184.—Juana e os cães de Deus, 189.
Capítulo V: A PAPISA E SUAS IRMÃS
Juana como alegoria, 191.—A invenção do Tarot, 193.—Juana no Tarot, 194.—O jogo
Visconti-Sforza, 196.—A papisa Manfreda, 197.—Mudança de escala, 200.—A papisa como
bruxa, 202.—As duas figuras da Juana de Arco, 204.—Juana como feiticeira, 208.—A
profetisa cristã, 211.—Uma má profetisa, a Pythya, 212.—Volta da Sibila, 214.—Loucuras da
virgem prudente, 216.—Quatro configu racione, 218.—Uma profetisa na soleira da Igreja:
María Robine, 22O.—Hildegarda do Bingen, profetisa maior da Igreja, 221.—A feminilidade e
o sagrado na Hildegarda, 223.—Uma sexualidade feminina mística, 224.—As tiaras da
Hildegarda, 226.—Um parecido de profetisa: a mulher no sistema do Roberto do Arbrissel,
228.—A profetisa domesticada, 230.—Guillermo Postel e seu Papisa Juana, 231.—Juana
entre as damas deslumbrantes, 234.—A papisa Juana do Boccaccio, 235.—O trabalho do
Boccaccio, 237.—Paixões da Juana, 238.—Posteridade do Boccaccio, 240.—A papisa do
Tegernsee, 242.
Terceira Parte
MORTE E TRANSFIGURACIÓN DA PAPISA
Capítulo VI: JUANA NA FOGUEIRA (séculos xV-xVII)
A dúvida de Ns Silvio Piccolomini (1451), 247.—Roma e a Germa- nia: da invectiva à
paródia, 249.—Boêmia ou a heresia como terri tório, 251.—Ns e Juana entre os selvagens,
252.—Juana e a Grande Rameira, 255.—Sinais do Anticristo, 257.—Juana entre as Amazo
nas e os Hermafroditas, 259.—Fontes da Juana luterana, 261.—Primeira narração luterana:
Juan Bala (1548), 264.—A papisa do Pedro Pablo Vergerio (1556), 265.—Baforadas de
crença, 269.—-Juana repudiada pelos seus: Onofrio Panvinio (1562), 270.—Jesuítas e
devotos ao assalto da Juana, 274.—O fim da Juana: o desprezo calvinista e racionalista, 276.
Capítulo VII: BRASÃO LITERÁRIO DA PAPISA
Fraw Jutta (por volta de 1480), 282.—O purgatório literário da Juana (1480- 1777), 285.—A
papisa clandestina do Carlos Borde (1777), 287.—As luzes germânicas da Juana: Winkopp
(1783), 290.—As luzes italianas da Juana: Casti (1804), 291 .—Juana no anticlericalismo
teatral (janeiro 1793), 293.—O momento da Juana,; 294.—Juana na carreira de um autorator, Pedro Léger, 295.—A Juana do obstina dou Defauconpret, 298.—A papisa perdida do
Flins dê Oliviers, 301.—Juana e a nostalgia revolucionária do Teodoro Desorgues (1801),
304.—Genealogia da papisa do Achim von Arnim (por volta de 1815), 306.—A papisa do
Arnim, 310.—Pequeno intermédio teórico, 313.—Leituras burlescas, 314.—Um episódio de
história cultural ale emana e inglesa (1890-1930), 316.—Leituras novelescas, 318.—Leituras
metafóricas, 318.—Yentl, ou a ambivalência, 319.—Um crime, ou a mulher Cristo, 319.
Epílogos
capítulo VIII: PRIMEIRO EPILOGO.—HISTORIOGRAFIA DE LA PAPISA
Capítulo IX: SEGUNDO EPILOGO.—O CORPO DO JUANA
Notas
Bibliografia cronológica de obras ou de fragmentos de obras dedicados a papisa Juana
índice de ilustrações e planos
- Detalhe de uma vinheta do Liber chronicarum do H. Schedel,
Nurenberg, 1943 (Biblioteca Nacional, Paris)
- Vinheta que lustra as Lectiones memorabiles do J. Wolf, Frankfurt,
1600 (B.N., Paris)
- Fotografia do assento de «pórfido» do Letrán, conservado no
museu do Louvre (negativo propriedade de Reunião dê Musées
Nationaux)
- Plano: espaço pontifício e espaço cidadão na Roma do seglo XII
- Plano: o itinerário papal desde o Letrán até o Coliseu
- Página do Liber chronicarum do H. Schedel, Nurenberg, 1493
(B.N., Paris)
- Ilustração para o M. Schrott, Von der erschrocklichen Zurstorung dê
Bapstums, 1550, F. A 5 V. (Germanisches Nationalmuseum, Nurenberg)
- Vinheta que ilustra a edição do Boccaccio (De claris mulieribus),
Ulm, 1473,f. 107 V. (B.N,París.)
- Miniatura que ilustra uma tradução francesa das Mulheres dêlumbrantes (Femmes éclatantes) do Boccaccio, princípios século XV,
Paris Arsenal, MS. 5193, F. 371 (B.N., Paris)
• Ilustração para o Apocalipse na Bíblia do Lutero, Wittenberg,
1522 (B.N., Paris)
Prólogo à edição espanhola
Estava eu atarefada em um trabalho sobre a concepção dualista da cultura, que atribui uma
tendência viril ou feminina a determinadas atitudes estéticas ante a vida, quando me brindaram a
tradução de La Papesse Jeanne, do Alain Boureau, obra de recente aparição no mercado francês.
O oferecimento não podia ser mais oportuno, pois a figura equívoca da papisa, presente no morbo
popular há séculos, é sem dúvida, e precisamente por razão da ambigüidade que comporta sua
identidade, um arquétipo desse dualismo que, como diz Guillermo Díaz-Plaja, «rege toda a
história da cultura humana»*. Esta é, no meu entender, a essência do atrativo que exerce Juana,
e também o segredo de sua larga e singular vida, concebida nas brumas do rumor medieval, mas
cuja isto problemática é, o antagonismo entre os valores masculinos e femininos, entre o poder e
a submissão, entre o religioso e o laico, entre o que parece e o que é, etc.—, que subjaze no
dualismo, interessa ao leitor de hoje porque cai totalmente em nossa atualidade.
Assim o entendeu Alain Boureau, e com seu Papisa Juana nos oferece não só um estudo erudito
e exegético sobre um personagem sugestivo, mas também uma reflexão muito oportuno sobre um
tema tão próximo a nossa realidade diária qual é o dos critérios que, em última instância,
presidem a distribuição dos papéis na sociedade moderna. Poderemos coincidir ou não com dita
reflexão, mas o que é seguro é que não poderemos sustraernos ao encanto da Juana do
Boureau, e que seguiremos com interesse crescente suas peripécias ao longo e largo da Europa
durante perto de oitocentos anos de paixões humanas, por conventos e praças, por palácios e
frentes de batalha, nas reuniões de sobremesa e na quietude dos arquivos, e acompanhados em
todo momento por esse conjunto de individualidades que, anonimamente ou de forma destacada,
precedeu-nos na construção de nossa biografia, da que não sempre temos consciência clara.
Como muito bem adianta A. Boureau em sua «Introdução», a história da papisa não se reduz a
um episódio longínquo, envolto em um escândalo com aroma de incenso, nem tampouco a uma
bandeirola de gancho habilmente agitado por descontentes, cismáticos e anticlericales. Neste
sentido, quem espere encontrar neste livro um relato picante e mordaz sobre uma mulher que com
engano ocupou a cadeira de São Pedro, descobrindo sua falsa identidade com um parto
escandaloso na via pública, logo ficará defraudado. Pelo contrário, a quem deseja conhecer as
circunstâncias que originaram semelhante fábula e as que contribuíram a sua longevidade na
memória coletiva, o relato ameno e rigoroso em suas fontes do Alain Boureau não só não lhe
defraudará, mas também lhe apresentará uma Papisa Juana muito mais lhe sugiram que a que,
tradicionalmente, ficou-se enclausurada em seu papel de usurpadora papal. Porque Juana, ou
melhor dizendo sua história, foi e é um escândalo e uma bandeirola de gancho, mas também
muito mais.
Produto de uma fusão de elementos cultos e folcloristas, Juana nasce do vazio histórico à
plenitude do rumor, da fábula, da lenda, da invectiva, e finalmente da literatura, para instalar-se na
verdade dos fatos históricos como expoente do que é e do que pode ser. Por isso, a evocação de
sua lembrança provoca, ainda hoje, quando menos, um sorriso picasse e quando mais uma
discussão entre quem assegura sua existência e quem a nega, fazendo-se todos eles eco, acaso
sem sabê-lo, de centenares de anos de controvérsia sobre o divino e o humano —nunca melhor
dizendo—, e em que possivelmente, depois de tudo, o menos importante tenha sido e seja a
realidade de sua existência. Juana não existiu, e, como Boureau sublinha desde o começo, sua
inexistência é um fato comprovado, isto é um dado objetivo. Mas a realidade, até sendo uma,
projeta-se em muito distintos planos, e é no das crenças, receptáculo fecundo e frágil, onde a
papisa encontra sua razão de ser e seu destino, que é servir e ser servida em sua condição de
filha natural da história. Desde esta condição que a libera e a restringe a um mesmo tempo, Juana
nos empresta sua vida como espelho no que se refletem outras vidas que nos interessa conhecer
para compreender a nossa. Por isso, parece-me significativo que Boureau encabece seu trabalho
com uma entrevista dos Ensaios do Montaigne.
Além do conteúdo de dita entrevista, que lhe permite ao autor da papisa Juana nos situar do
primeiro momento no contexto das crenças onde nasce e vive Juana, os Ensaios têm um claro
sentido autobiográfico, como se desprende, entre outras coisas, das palavras prévias do Michel do
Montaigne ao leitor, lhe advertindo: «Je suis moy-mesmes a matière de mon livre»*. Digo, pois,
que é significativo porque acredito advertir na eleição do Boureau a intenção não já de nos referir
a um testemunho direto e importante da vigência da papisa na memória romana do século XVI,
referência que poderia ter resolvido com outros muitos textos, a não ser, sobre tudo, de nos
sugerir até que ponto a história da Juana é a nossa. Boureau sabe do valor antropológico dos
Ensaios, quer dizer do valor testimonial de vidas excepcionais que refletem a essência da
condição humana, e se serve do Montaigne para nos dar uma chave temprana e inestimável
sobre o significado da papisa, no século XVI e no século XX.
Como hei dito antes, a oportunidade da papisa Juana do Alain Boureau é, pois, importante, e no
caso da edição espanhola apresenta um interesse adicional, por duas razões, ambas as
históricas. Em primeiro lugar, porque no curso de sua atormentada carreira, a papisa desempenha
um papel destacado nas controvérsias doutrinais que balizam, a sua vez, a história da Igreja
católica e em definitiva do Ocidente, controvérsias que alcançam um ponto gélido durante a
Reforma, quando a Espanha desempenha um papel igualmente destacado, como nação católica
defensora de Roma e como Império defensor de sua hegemonia, respondida em duas frentes: no
cultural e no político. Em segundo término, porque a leitura global da vida da Juana nos remete
em última instância, e como apontei ao princípio, a nossa realidade imediata. Refiro-me ao
significado que adquire a identidade fronteiriça da papisa no contexto das mudanças registradas
de um tempo a esta parte em todos os âmbitos da sociedade espanhola, entre os que cabe
destacar aqui a separação Iglesia-estado, a laicización progressiva e a intervenção crescente do
elemento feminino na vida civil e religiosa da Espanha.
Pouco mais posso acrescentar sobre esta Papisa Juana do Alain Boureau, que não adiante o
próprio autor em sua «Introdução», exceto, se acaso, duas opiniões pessoais. Por um lado,
sublinhar a objetividade que preside o tratamento de alguns temas delicados por parte do
Boureau, quem fugiu que panfletarismo fácil que está acostumado a acompanhar a Juana,
atendo-se ao testemunho das fontes historiográficas com soltura de ofício não isenta de senso de
humor; o resultado de seu esforço é que seu livro não ofende a ninguém e a todos interessa. De
outra parte, significar a exígua presença da historiografia espanhola em um trabalho
particularmente rico em fontes documentários. Pelo resto, só fica me reiterar nas qualidades lhes
argumente deste relato ameno e esclarecedor sobre uma figura tão escorregadia como é A papisa
Juana.
Guadalupe Loiro da Urquía
Introdução
Do mesmo modo, no estudo no que me ocupo de nossos
Montaigne, Ensaios, I, XXI.
costumes e atuações, os testemunhos fabulosos, sempre
que forem possíveis, têm o mesmo valor que se fossem
verdadeiros. Porque, tenham acontecido ou não, seja em
Paris ou em Roma, ao Juan ou ao Pedro, o certo é que são
sempre um exemplo da capacidade humana, que é da que
dou testemunho útil neste relato.
«Quem poderia acreditar que ainda hoje existem em Roma pessoas que dão muita importância
à história da papisa Juana?», escrevia Stendhal por volta do ano 1830. Entretanto, seu assombro
não lhe impediu absolutamente ocupar-se ampliamente do tema. mais de 150 anos depois, o
historiador da Juana tem que enfrentar-se freqüentemente com essa mesma classe de assombro,
entre condescendente e admirativo, já que logo incorre na suspeita de querer desviar o prestígio
do trabalho histórico, atraído pela piscada equívoco da crônica escandalosa, vendo-se obrigado a
protestar em defesa de seu rigor e seriedade, embora sem convencer de tudo a ninguém. De fato,
a história da papisa segue suscitando o desejo de penetrar nas halls e curvas do poder (neste
caso de um poder sagrado e obstinadamente masculino), e durante os anos que dediquei à
preparação deste trabalho assisti à aparição, na França, de uma trilogia criada novelas sobre a
Juana, assim como de uma investigação sobre a secretária-enfermera de Pio XII, titulada A
Popessa (por La Papessa, por efeito de uma tradução precipitada do inglês). Adverte-se, pois, um
despertar incessante do gosto pela revelação extraordinária («Um escândalo no Vaticano», «A
Papa era uma mulher»), expresso de múltiplos maneiras segundo os públicos. Este recurso, longe
de desgastar-se ou de esgotar-se, alimenta-se a sua vez de outra fonte de poder, posto que na
atualidade tanto o papado como o sacerdócio católico continuam sendo, no Ocidente, o último
bastión de exclusão feminina; assim, neste reduto único pode desenvolver o antigo jogo da
substituição dos sexos, falar da nostalgia da separação, ou, pelo contrário, tratar da fusão dos
sexos.
Riscarei aí o limite destas considerações em torno da fascinação que exerce a figura da papisa,
para estabelecer a seguir minhas próprias ambições como historiador, com uma tenacidade
exacerbada por essa avidez duvidosa que gera a crônica escandalosa. Em conseqüência, que
ninguém espere de mim, e aqui, uma declaração de modéstia, pois o tema já se encarrega por si
mesmo de me recordar minhas próprias limitações, de maneira que nestas páginas de
apresentação não me ocuparei de exaltar os resultados obtidos, mas sim de explicar a natureza
da tarefa empreendida e as expectativas formuladas.
Consideremos em primeiro lugar o tema do que me ocupo, quer dizer, esse relato sobre a
papisa Juana. A narração propriamente dita surge a finais do século XIII, e rapidamente se
converte em uma versão comum que resumo a seguir, muito brevemente: por volta do ano 850,
uma mulher, natural da Maguncia, mas de origem inglesa, adota a aparência de um homem para
poder acompanhar a seu amante, um homem entregue a sua vez ao estudo, e portanto imerso em
um mundo exclusivamente masculino. Mas também ela triunfa neste ambiente, até o ponto de
que, depois de uma estadia em Atenas, onde se dedica a estudar, recebe em Roma uma acolhida
calorosa e cheia de admiração que lhe franqueia o acesso à hierarquia da cúria, para finalmente
ser escolhida Papa. Seu pontificado dura mais de dois anos e se vê interrompido com motivo de
um escândalo: Juana, que não renunciou aos prazeres da carne, está grávida, e falece no curso
de uma procissão que discorre entre São Pedro do Vaticano e San Juan do Letrán, depois de
iluminar publicamente a um menino. As diferentes versões do relato vão deixando rastros, e
provas, e em última instância a lembrança da existência da papisa; a partir de então, verificaria-se
manualmente o sexo das Papas durante a cerimônia de coroação. Do mesmo modo, as
procissões pontifícias abandonarão o caminho direto do Vaticano até o Letrán, à altura da igreja
de São Clemente, para evitar passar pelo lugar onde se produziu a iluminação. Por último, a
presença de uma estátua ou uma inscrição em dito lugar se encarregaria de perpetuar a memória
deste incidente deplorável.
Mas existiu realmente este papado? Certamente que não. O leitor que tenha albergado a
esperança de encontrar a lembrança de um personagem real possivelmente possa consolar-se de
seu desencanto se considerar que a presença da Juana no espírito das gente do passado foi tão
real como a realidade mesma. depois de tudo, o sucesso do ano 850 só tem realidade histórica
em função das crenças e dos comportamentos que gera; de ter sido real, embora ignorado, não
teria passado de ser um fato insólito. Imaginemos, por exemplo, que Pio XII tivesse sido uma
mulher travestida; se ninguém souber, o fenômeno, revelado por um historiador isolado, só tem
interesse no que se refere à psicologia do Eugenio (ou Eugenia) Pacelli (1876-1958). Mas se o
rumor se difunde transtornando a comunidade católica, seja esta a de 1995 ou a do 2123, então
dito efeito gerará, por si mesmo, abundante matéria histórica.
Não obstante, reconheço que o consolo proposto seria tão pequeno como rechazable (pois o
historiador também se interessa pela psicologia dos soberanos) se a vida fictícia da Juana não
resultasse tão sedutora. Em efeito, constitui por si mesmo um precioso tema histórico, cheio de
conteúdos, embora completamente isento de verismo; é certo que não oferece ponto algum de
inquietação, mas não é menos verdade que abunda em matizes que refletem um trabalho
imaginário e ideológico, já que coincide ativamente com múltiplos zonas escuras da história, e em
conseqüência pode tomar-se como referência visível entre as ilhotas que balizam o tempo. Quero
insistir, pois, nesta orientação do tema de uma perspectiva completamente histórica e temporal da
colocação proposta, detalhando a seguir os atrativos que, no meu entender, adornam a figura da
Juana:
1. Em primeiro lugar, terá que dizer, não sem certo desapego, que esta narração, tantas vezes
retomada, repetida, discutida e readaptada, constitui por si mesmo um fenômeno cultural (historiográfico, pictórico, editorial, literário e doutrinal) importante.
2. Mas o simples desejo de descrever um fenômeno não é suficiente para justificar uma
curiosidade intensa, compartilhada durante muito tempo pelos atores e os comentaristas da
história, e da que eu, a minha vez, reivindico a parte que me corresponde. O episódio da Juana
encena uma transgressão capital, no coração e na cúspide mesmos da instituição fundamental do
Ocidente, a Igreja. Embora resulte banal afirmar que o cristianismo representa a originalidade
mais decisiva em todos os âmbitos, da história ocidental, o certo é que estamos ainda muito longe
de esgotar todo o conteúdo que encerra sorte observação. E, quando a chave da abóbada do
edifício central, quando Pedro se converte na Juana, quer dizer, quando a eleição divina se
transforma em engano humano (e feminino), o que acontece então?
Durante dois ou três séculos, todo mundo acreditou na veracidade do episódio. As gente da Idade
Média se enfrentaram, pois, a esta realidade, e tentaram adaptá-la a suas próprias concepções do
mundo. O ato mesmo da narração e da interpretação forma parte das táticas e das estratégias
múltiplos e variadas, que envolvem os temas fundamentais da eclesiología (quer dizer, da teoria
do estatuto da Igreja): o problema da validez dos sacramentos administrativos por mediação de
um pontífice ilegítimo, o replanteamiento da infalibilidade do Pontífice e do princípio da tradução
romana ininterrupta desde São Pedro, o tema da exclusão da mulher do sacerdócio, etc.
Este embargo do escândalo e do horror, assim como os alardes e os protestos ocasionados,
contribuíram decisivamente ao processo de construção da Igreja, edificada de uma vez com
dízimos e com dogmas, com pedras e com o Pedro, com instituições e com crenças. E, quando os
católicos rechaçaram a papisa, Juana contribuiu, da polêmica e a literatura, na construção dos
edifícios reformados e laicos que se levantaram frente à Igreja.
Encontramos, pois, neste episódio da Juana um tema de interesse histórico importante, entre
ação e pensamento, entre religião e política, no coração mesmo da história. O relato e o rumor
atuam no mesmo sentido em que um elemento químico atua e provoca reações. Esta convicção
íntima me incita a rechaçar a orientação «historiográfica» destinada principalmente a descrever
[ao fio do tempo] as transformações narrativas e temáticas de um texto, orientação que suscitou
em diversos âmbitos a aparição de inumeráveis estudos sobre «a figura de x no tempo de e».
Nosso relato, relativamente estável, se disposta pouco a essa tendência alheia a toda
problemática, que trata o relato como um elemento decorativo, e que se empenha em uma
contemplação abúlica das cores cambiantes que dão tonalidade ao tempo.
3. Por último, o historiador, à margem da curiosidade compartilhada, deve reconhecer os
prazeres e benefícios próprios que deriva pessoalmente deste estudo, e que a sua vez espera
brindar ao leitor: a história da Juana me serviu como instrumento de penetração em universos
históricos complexos. Assim, a lenda da papisa, autêntica ou não, expõe o problema da crença,
tema principal do presente trabalho. Entre o 1250 aos 1450 ou 1550, quer dizer durante dois ou
três séculos, a Igreja crie e faz acreditar na existência da Juana, inclusive quando este episódio se
afasta dela, como assim o demonstra o enfoque ulterior que protestantes e anticlericales conferem
ao mesmo; portanto, que classe de crença permite de uma vez acreditar na Juana e acreditar na
infalibilidade papal, claramente afirmada do século XIV? No que podemos acreditar quando nos
conta dito episódio, ou quando o lemos em uma obra de ficção? O luterano que representa a
Juana na figura do Anticristo, adere-se a esta representação da mesma maneira que o cronista
medieval que avalia a verossimilhança do incidente? Quando se evoca o rito da verificação da
virilidade das Papas, em que classe de certeza nos fundamos? A transformação radical das
percepções da Juana, e da forma em que se inseriu sua história na trama dos discursos
eclesiásticos, sugere a hipótese, sem dúvida discutida, de uma historicidade profunda que penetra
nas formas de acreditar.
Em términos mais gerais, a história da Juana, por seu caráter preciso e de tom menor,
permitirá-nos entrar às vezes nos universos fechados ou complexos que revelam, quase
inadvertidamente, um acesso indireto mas custodiado. Por minha parte confio em poder
demonstrar que o assunto da Juana, no que se mesclam a história medieval de Roma, a liturgia e
a eclesiología, proporciona-nos os meios necessários para captar certos matizes escuros dos
rituais que compreende a coroação papal. Além disso, a história da papisa, pequena amostra
concreta que facilita uma apreciação exaustiva das fontes, brinda-nos a ocasião de realizar um
estudo sobre a casuística; assim, uma prosopografía breve dos autores de versões satíricas do
episódio na Europa do século XVIII ajudará a reconstruir um fragmento da boêmia literária das
Luzes, ao mesmo tempo que expõe a questão das funções e das formas do anticlericalismo
revolucionário.
Em resumo, trataremos a Juana como a uma figura emblemática dessa «larga Idade Média»
das mentalidades, tão queridas pelo Jacques O Goff, e cujo marco cronológico situo eu a minha
vez, e muito gostosamente, entre a morte de São Bernardo (1153) e a do Hegel (1831), datação
que coincide, por outra parte, com bastante exatidão com a vida real da papisa. Os primeiros
textos, datados por volta do 1250, fazem-me supor que a lenda nasceu a finais do século XII, e
que em 1831 desaparece, ao mesmo tempo que Hegel, com o poeta prusiano Achim von Arnim, o
último seguidor autêntico da Juana.
A primeira parte da obra («O sexo das Papas, uma história romana») tenta recuperar e situar a
origem do episódio, indagando não nos primeiros textos narrativos, que de fato nos propõem já
uma história totalmente construída, a não ser no ritual de verificação da virilidade das Papas, que
em um momento muito cedo, desde finais do século xIII, aparece já como a conseqüência
institucional do acontecimento. Dito ritual, apresentado por autores, com freqüência próximos à a
Santa Sede, como um elemento autêntico da coroação papal, não pôde referendar-se jamais
alguns pontos de ancoragem para a crença na Juana.
Na segunda parte («Juana militante») pretendo explicar a adesão da Igreja a esta lenda,
examinando as distintas formas em que se utilizou o relato nos debates eclesiológicos da Idade
Média. Como contraponto, analisamos também o lugar da papisa no horizonte das percepções
clericais e laicas, ortodoxas e heréticas da mulher até a soleira da idade moderna.
A terceira parte («Morte e transfiguración da papisa») apresenta o passo da Juana à controvérsia
antirromana dos protestantes, que conduz ao abandono da papisa por parte da Igreja católica, no
transcurso do século XVI. A seguir estudo as funções literárias da papisa desde finais do século
xV até nossos dias.
O livro é, pois, o resultado de dois métodos: em primeiro término (capítulo 1 ao 4), aplico um
sistema de busca de indícios a partir dos rastros deixados pelo relato, indícios que intento reunir e
inserir em seus próprios contextos explicativos, enquanto que os capítulos 5, 6 e 7 conformam
mas bem um quadro diagnóstico.
Só fica agradecer a todas as pessoas que me ajudaram nesta larga tarefa. Leitor, reconheço que
às vezes me irrita este costume, porque me parece que apresentar uma lista de agradecimentos
revela vaidade e impostura. Por um lado, porque dá a sensação de que o autor festeja a
inauguração de um monumento com a convocatória de tantos participantes; e, por outro, porque
faz uso de uma legitimação abusiva, ao propor como garante de seu trabalho a aquelas pessoas
que, bem por generosidade ou por amizade, informaram-lhe ou orientou. Mas então, como
agradecer sua ajuda aos que persegui para lhes pedir informação ou opinião, a todos os que têm
lido meu trabalho com a paciência que só se explica pela amizade?; porque o que sim é
absolutamente certo é que este livro, seja qual for seu resultado final, deve-lhes muito. Nestes
momentos penso em leitores atentos como: Simona Cerutti, Colette Collomb Boureau, Cario
Ginzburg, Christian Jouhaud, Giovanni Levi, Daniel Melo, Alinhe Rousselle e Jacques Revel;
também em quem atendeu minhas petições concretas, como: Robert Darnton, Jan Macek,
Agostino Paravicini Bagliani; e, nos que me proporcionaram pistas, como: Colette Beaune, Yvonne
Cazal, Claude Gaignebet, Claudio Ingerflom, Jean-Enjoe Moeglin e Pierre Tranouez. Do mesmo
modo, quero expressar meu agradecimento ao Maud Espérou, quem soube me procurar
rapidamente textos impossíveis de encontrar na França, e, em definitiva, a todos os que
acolheram diversas fases de meu papisa em seu seminário da Escola de Altos Estudos de
Ciências Sociais: ao Claude Bremond, ao Roger Chartier, ao Pierre Nora e ao Jacques Revel.
Por último, dirijo meu particular e especial agradecimento ao Bernard Guenée, quem, desde
que minha investigação começasse a dar seus primeiros passados balbucientes, e sem outra
garantia que a de sua confiança generosa, abriu a meu Juana seu seminário da Escola Prática de
Altos Estudos, lhe dedicando depois uma sessão na Academia de Inscrições e Belas Letras, para
finalmente lhe brindar um posto na presente Coleção Histórica.
PRIMEIRA PARTE
O sexo das Papas, uma história romana
CAPITULO PRIMEIRO
Os pontificais
Em 16 de outubro de 1978, o conclave de cardeais reunido em Roma escolhia Papa a um
prelado polonês que tomaria o nome do Juan Pablo II. No Nouvel observateur, o ensaísta e
filósofo Maurice Cravo saudava o acontecimento e ao homem com as palavras seguintes: «Mas
nos detenhamos. Primeiro ele. Vejo-lhe. Tem-nos. Duas et bene pendentes, com segurança.
Essas costas, essas mandíbulas proletárias. trata-se de um desses hombretones fornidos, com
aspecto de coelho quente, desses que, pelo menos em seu caso, tinham algo que oferecer a
Deus, igual a aqueles monges medievais de estoque e de êxtase que, precisamente por esta
mesma razão, alimentavam uma devoção sublime —sublimada, dirão os imbecis— para a Virgem
Muito santo».
Habet duos
No chamado texto pode reconhecer-se sem dificuldade o tom populista e vociferante, brusco e
emotivo adotado pelo Maurice Cravo, reivindicando assim a herança de Leão Bloy e do Georges
Bernanos, de uma vez que assume o espírito de 1968. A figura do Juan Pablo II, prelado
enérgico, de origem modesta, e forjado no ambiente combativo da comunidade católica da
Polônia, respondia admiravelmente às expectativas de um dinamismo cristão, longamente
esperado depois dos períodos de dúvida e de incerteza que tinha presidido a gestão atormentada
do Pablo VI, e da fragilidade do Juan Pablo I. Cravo se regozija, pois, ante a chegada do robusto,
do elementar, do fornido, na pessoa de uma Papa de couro e de aço, como sucessor vigoroso de
pontífices apergaminados. O brasão masculino (costas, mandíbulas, força) desta emoção lhe
gratifiquem e complacente se inaugura com a confirmação mesma da virilidade: «Tem-nos, duas
et bene pendentes», pois esta fórmula latina cita elípticamente a frase que, segundo um velho
rumor, proclamava a virilidade da Papa, verificada manualmente por um diácono depois da
eleição: «Habet duos testículo et bene pendentes» (tem dois testículo, bem pendentes).
A alusão de Cravo transborda seu próprio contexto de exaltação fascinada e nos situa ante a
forma última de sobrevivência da lenda em torno da papisa Juana. Sem dúvida, todo mundo
alcança a compreender o significado desta fórmula latina, fruto do rumor, quer dizer cunhada
nesse microsaber que todos compartilham, mas que cada qual considera para si matéria
reservada. De fato, no curso de nossa investigação sobre o particular, vários interlocutores nos
repetiram esta mesma frase, escutada antigamente e conservada celosamente no registro da
memória. Assim, dita lembrança reaviva uma fábula em que uma mulher, depois de dissimular seu
sexo, chegou a ocupar a cadeira de São Pedro; após, a Igreja verificaria a virilidade dos
escolhidos com o fim de evitar que se reproduzira um escândalo parecido. Entretanto, nenhum de
nossas testemunhas contemporâneas soube nos dizer nada a respeito da realidade do rito. O
certo é que o sistema de crenças ao que pertence o rumor impede sua invalidação, pois qualquer
refutação neste sentido se interpreta como denegação, e em conseqüência como confirmação.
Desta maneira, Juana passa à eternidade graças a rumorología.
A papisa: o rumor e o rito
O rumor ritual aparece vinculado já desde sua origem à lenda, a que a sua vez confere o peso de
sua realidade e de sua atualização permanente. A fábula, como teremos ocasião de ver em um
capítulo posterior, aparece por volta de 1250 na obra de alguns autores, antes de difundir-se
ampliamente a partir do 1300. Além disso, por volta do 1290, o monge beneditino Godofredo do
Courlon se refere em sua Crônica da abadia do Saint-Pierre-o-Vif do Sens à história da Juana,
atendo-se a sua vez ao texto do dominicano Martín o Polonês (ou do interpolador anônimo que
completou a Crônica das Papas de Roma e dos imperadores, por volta de 1280-1285). Mas este
procedimento não tem nada de surpreendente, já que a Crônica do Martín conheceu um êxito tão
imediato como duradouro, chegando a converter-se na fonte principal para os historiógrafos da
Juana até finais da Idade Média. Não obstante, Godofredo acrescentou a seu modelo a nota
seguinte: «Por isso, diz-se que os romanos adquiriram o costume de verificar o sexo do eleito
através do orifício de uma cadeira de pedra». Em uma data muito próxima a do chamado
dominicano, Roberto do Uzès menciona a sua vez uma das numerosas visões que teve durante
sua estadia no Orange, e que ele data no ano 1291: «O Espírito do Senhor se apoderou de mim
em espírito e me colocou em Roma... ali vi a cadeira de madeira, muito velha e vazia... e depois o
Espírito me conduziu até o palácio do Letrán. Uma vez ali, depositou-me no pórtico, ante os
escabelos de pórfido, onde conforme dizem se verifica se a Papa é um homem: tudo estava talher
de pó e ninguém parecia estar vivo» . Assinalemos que a frase do Roberto parece implicar que na
antigüidade se utilizou a cadeira de verificação, toda vez que a brevidade mesma da alusão
permite supor que o leitor conhece o rito de antemão. Em conseqüência, pode inferir-se que já por
volta de 1290 o rumor ritual estava estabelecido, embora ainda em sua condição oral (nossos dois
autores se referem a uma tradição vaga: «diz-se...»).
Durante perto de um século, o rumor ritual deixa de ouvir-se, ou melhor dizendo, seu eco não
consegue chegar até nossos ouvidos. Neste sentido, seriam suficientes algumas lacunas ou
desaparecimentos para que um fio tão tênue se interrompesse. Além disso, no século XIV, o
papado abandona Roma pelo Aviñón; e, apesar das escrupulosas transposições litúrgicas, os ritos
romanos perdem então boa parte de seu sentido e de sua complexidade fora da Cidade Eterna.
Logo, logo que retornados a Roma, no 1378, as Papas recuperam o rumor ritual, em defesa
própria: o continuador anônimo do cronista vienense Juan do Vicktring assinala, por volta de 1379,
depois do papado da Juana, que «para evitar semelhante engano, uma vez que o eleito se sinta
na cadeira do Pedro, o último dos diáconos lhe apalpa os genitálias em uma cadeira perfurada a
tal efeito».
Ritos e olhares
Aproveitemos este silêncio de um século para fixar os objetivos e os procedimentos que
presidiram uma investigação que, sem dúvida, parecerá tão tortuosa como o próprio caminho
esboçado pela procissão das Papas através de Roma. Sabemos que, desde o começo de sua
existência, a fábula da Juana se apóia em uma prova factual: a liturgia da coroação, tal e como se
conhece, inclui um rito destinado a conjurar a reprodução do escândalo da papisa. Mas este rito
não existe, ou, pelo menos, nenhum dos textos normatizados, que são muito numerosos e
detalhados, e onde se fixam as formas da coroação papal, menciona-o. É certo que o rumor ritual
goza do mesmo estatuto inexeqüível do rumor fabuloso, pois sua essência secreta sugere a
existência oculta, invisível e inacessível de seu tema. Mas o rumor ritual habita diretamente na
história e não na tradição ocupada dos livros. Em cada coroação, o rumor dirige o olhar e a
interpretação dos espectadores e determina uma tática de alarde (de exibição e de defesa) por
parte dos especialistas em liturgia e os mestres de cerimônias. Não obstante, antes de relatar a
história de uma fábula, parece sensato esboçar a história da crença que a sustenta, já que a
liturgia cerimoniosa evolui, desenvolve-se e se faz cada vez mais pública e política. Além disso,
até o século XVII, os espectadores vêem, ou acreditam ver escondido, o rito de verificação da
virilidade papal. Por este motivo, quis reconstruir o lugar que ocupou Juana nesses cortejos onde
alguns situam a honra que lhe rende; por nossa parte, escoltaremo-lo em centenas de procissões
que nos falam de sua lembrança. No momento, abandonaremos ao ser que encarna este gracioso
fantasma, reservando para o final da investigação a tarefa de assinalar com que véus e com que
adornos revestiu a Juana a quimera doce, ora arisca, ora maliciosa dos homens. Agora,
tomaremos só como testemunha para medir o sentido e a função de certos ritos públicos; trata-se
de uma tarefa imensa e árdua, para cuja realização nós gostaríamos de dispor do esplendor da
Juana. Assim, e a modo de sinal permanente que se sobressai na superfície dessa onda imensa e
imperceptivelmente móvel que está acostumado a ser um rito de coroação, Juana nos ajudará a
nos perguntar o que é o que se oculta e o que é o que se exibe em um ritual, e o que é o que
podemos apreciar neste sentido do exterior; quer dizer, o que é o que o homem domina, o que a
história registra e o que a tradição a sua vez repete. Em resumo, a história do pretendido rito de
verificação nos brinda a oportunidade de seguir ao mesmo tempo a construção de uma cerimônia
e sua penetração, quer dizer de sua recepção por parte do público. Em efeito, a persistência de
dita crença implica três posturas receptivas, igualmente reveladoras:
— acreditam, de boa fé, na existência do rito; neste caso, terá que perguntar-se a respeito da
complexidade das ações simbólicas, sobre a compreensão geral das cerimônias públicas com fins
didáticos, em torno das escuridões que ocultam, e, por último, sobre as razões mesmas de
semelhante adesão;
— fingimos acreditar em dito rito por pura malícia, e então recorremos ao aparelho cerimonioso
para desviar o leito de seus significados dentro dos márgenes do verossímil. Neste caso, é
importante captar tanto a origem como a finalidade dessa postura, assim como as negações que
suscita;
— podemos, sem temor a que nos acuse, construir com a imaginação uma leitura passiva, lúdica
e vizinha na paródia da cerimônia que dê réplica a nossa postura, tentando compreender assim os
meios e os lugares de dita réplica.
Confiamos em que, entre a atemporalidad do paradigma e a fragilidade dos contextos, possa
deslizar-se até nós a magra silhueta da Juana.
As duas primeiras testemunhas: Adão do Usk e Jacobo do Angelo
Retomemos o fio interrompido dos testemunhos. Fora da menção isolada da crônica vienense de
1379, e apesar da ampla difusão que obteve a narração fabulosa sobre a Juana com o passar do
século XIV, não encontramos rastros do rumor ritual até começos do século XV. Adão do Usk,
clérigo galés, transladou-se a Roma para desempenhar ali cargos de importância, entre outros o
de capelão da Papa Bonifacio IX. Em seu Chronicon relata as cerimônias celebradas com motivo
do advento do Inocencio VII em 1404 ao papado, apresentando-se a si mesmo como uma
testemunha ativa de ditos festejos («Tive a sorte de poder intervir em qualidade de ministro nesta
cerimônia tão grande»). Em realidade, quão único descreve é a procissão pública que discorre
entre São Pedro e Letrán, quer dizer, essa «tira de posse» do Letrán sobre a que voltaremos mais
tarde, e que tem lugar depois da coroação na basílica vaticano, quando o cortejo papal «percorre
a cavalo a cidade de Roma até San Juan do Letrán onde, em rigor, encontra-se a sede
catedralicia da Papa. Desviando-se para evitar a lembrança detestável da Papa Inés [outro nome
da Juana, como se verá], que se encontra representada com seu filho em uma estátua de
mármore situada na via mais direta, perto de São Clemente, a Papa descende do cavalo para ser
entronizado, e entra na igreja. Ali se sinta na cadeira de pórfido com o assento perfurado, para
que o cardeal mais jovem se certifique de sua virilidade, e depois, aos sons do Lhe Deum, é
conduzido até o altar». A qualidade da testemunha participante (exagerada sem dúvida, posto que
Adão em realidade nem sequer consegue um lugar entre o pessoal da Cúria) não deve nos
impressionar; de fato, este relato breve resume uma série de notas (sobre o desvio da procissão e
a estátua da papisa) tão repetidas como refutadas do século XIII, de maneira que o rito de
verificação se inserida de uma maneira vaga e pouco coerente na cerimônia do Letrán.
Pelo contrário, sim podemos estabelecer melhor este momento concreto da verificação no relato
que deixou a sua vez outro autor, contemporâneo do Adão, e que evoca com muita precisão as
cerimônias celebradas para a coroação do Gregorio XII, em 1406. trata-se do Jacobo do Angelo
da Scarparia, um desses humanistas procedentes do ambiente florentino, e cuja atividade se
desembrulhava a cavalo entre o estudo de temas profanos e a obtenção de cargos eclesiásticos.
Jacobo, natural da Scarparia, na Etruria, chega a Florência a finais do século XIV para instalar-se
perto do grande Coluccio Salutati, e ali se uniu ao grupo de jovens e brilhantes discípulos do
professor, como Leonardo do Arezzo ou Felipe do Bérgamo. Jacobo aprendeu grego com um
bizantino que se encontrava de passagem pela Itália, Manuel Crisolaras, e depois de uma estadia
no Bizancio em 1401, suas traduções do grego (algumas vidas do Plutarco e, sobre tudo,
Ptolomeo) valeram-lhe a obtenção de diversos cargos menores na Cúria, que desempenhou entre
1401 e 1406, antes de converter-se em secretário da Papa Juan XXIII.
Em uma larga carta dirigida ao Manuel Crisolaras, seu professor bizantino, Jacobo descreve os
funerais do Inocencio VII e a coroação do Gregorio XII. A importância que reveste o relato não
radica exclusivamente na menção e denegação do rito de verificação, a não ser na novidade que
encerra o propósito da narração, pois se trata, com toda probabilidade, da primeira descrição não
litúrgica nem hagiográfica de uma investidura papal. Graças a este testemunho, podemos, pois,
seguir de perto o desenvolvimento desta cerimônia, tal e como tem lugar depois de dois séculos
de elaboração, e que, embora está sujeita ainda a uma certa reserva medieval, apresenta já, não
obstante, uma clara orientação cara ao público.
Jacobo quer luzir ante seu correspondente bizantino o esplendor que rodeia à instituição
romana e ao mesmo tempo mostrar a identificação desta última com os ritos orientais que
configuram a sua vez as cerimônias de consagração das Papas e dos imperadores em
Constantinopla. Com este dobro propósito, adota o ponto de vista do espectador maravilhado,
mais sensível ao desdobramento de poder que à norma litúrgica e a seu significado teológico,
anunciando assim toda a literatura da admiração que gira em torno das monarquias da Idade
Moderna. Escutemos, pois, o relato do Jacobo, já que, por fim, permite-nos situar com exatidão as
circunstâncias do rito de verificação.
A coroação do Gregorio XII (1406)
Os funerais do Inocencio VII se celebraram em São Pedro do Vaticano com toda solenidade e à
vista do público (o corpo foi «chorado, lavado, ungido com os Santos óleos e revestidos com todos
os ornamentos próprios de um pontífice, para que o espetáculo dos funerais possa oferecer-se a
todo o povo, e que o defunto seja beijado e venerado publicamente»). Depois, ao nono dia, o
Sacro Colégio se encerra em Conclave. Uma vez concluída a votação, começa a primeira fase do
ritual de instalação, chamado tradicionalmente «eleição», mas que em realidade consiste em uma
proclamação. O eleito é conduzido à basílica de São Pedro onde escolhe seu nome; «a seguir lhe
despoja de suas roupas, lhe viu com sua nova vestimenta papal e lhe "coroa" com a mitra.
adornam-se seus pés com sandálias douradas; lhe conduz rapidamente ao altar, onde recebe
veneração e o beija-mão; reza. Depois, o primeiro diácono pontifício exclama a grandes vozes:
"Vos anúncio uma grande alegria: temos como Papa ao Gregorio XII"... Acode então uma multidão
extraordinária de toda classe de gente que saúda o Pastor santo, o concha, e lhe beija os pés».
Na igreja contigüa à basílica se repete o rito: se concha ao eleito em um trono de pedra situado
perto do altar. Enquanto isso tem lugar um curioso costume, da que temos aqui a primeira menção
segura, e que nos importará logo em nossa investigação: «A que fora moradia privada do eleito é
roubada aberta e, publicamente, rouba-se e se agarra tudo que se considera sagrado: o povo faz
o rapa não só com o mobiliário, mas também também com as telhas, os tetos, as pedras e
inclusive as paredes, e se disputa todo isso por causa de seu caráter sagrado». Por último, o
eleito fixa, junto com o Sacro Colégio, o dia de sua consagração, que constitui a segunda fase da
cerimônia.
Na data acordada, os sacerdotes do lugar e o Sacro Colégio recebem à Papa, vestido com os
hábitos pontifícios e com a mitra, na basílica de São Pedro, onde lhe veneram. Do santuário que
se encontra na parte inferior da basílica, Gregorio benze à multidão. Continuando, veste-se com
os ornamentos de aparelho: sandálias douradas (cuja instituição Jacobo atribui ao Diocleciano),
anel, túnica bordada em ouro, toga de brocado dourado, manto triunfal e faixa de lamé dourado.
Segundo Jacobo, «são ornamentos próprios de reis», e que se utilizam de acordo com uma
tradição que se remonta aos soberanos etruscos, transmitida pelo Tarquino o Velho, Augusto e
Constantino. Começa então a consagração propriamente dita: Gregorio se dirige para o altar de
São Pedro, levando na mão um cano largo com um pouco de estopa acesa, enquanto entoam três
vezes seguidas «Pater sancte sic transit glorifica mundi» (Santo Pai, assim passa a glória do
mundo). A Papa chega então ao altar maior, onde só ele pode oficiar, toma assento em um
escabelo e os três bispos mais dignos lhe consagram e lhe beijam a mão e os pés. Descende do
altar apertado com o pálio, «que representa a dignidade do Supremo Pontífice. Ninguém pode
tocar ("attrectare") este pálio, a não ser que seja a mão pura e consagrada de um sacerdote». A
seguir, e «a instâncias de seu Patriarca [aqui Jacobo se está dirigindo a seu correspondente
bizantino], dirige-se ao trono dos reis, um elevado trono de mármore, onde o Pai dos Pais
("Patrum Pater") e o Rei dos homens se deixa, segundo o costume, venerar e beijar por todos».
depois das diversas aclamações, cujo tom militar e imperial sente prazer em sublinhar Jacobo,
tem lugar a missa de consagração. Continuando, e depois de novas bênções, volta a tomar
assento na cadeira elevada e começa a terceira fase da cerimônia, a coroação, seguida do rodeio
para o Letrán.
«Sob o olhar de uma grande multidão, os chefes do colégio pontifício, depois de retirar a mitra à
Papa, colocam sobre sua divina cabeça a coroa, ou tiara, ou citaris, que se chama diadema ou
regnum». Esta tiara, de cone comprido e reto, «com a que se proclama a nossa Papa Rei de
reis», procede, segundo nosso autor, do penteado dos sacerdotes do salio instituídos pela Numa
Pompilio, e que logo foi transmitida já como coroa aos imperadores romanos, e mais tarde, em
tempos do Constantino, às Papas. Uma vez coroado, Gregorio monta em um cavalo branco, talher
com uma toalha vermelha de altar. forma-se o cortejo do rodeio: 12 cavaleiros, com trompetistas e
estandartes, em representação dos 12 povos da Etruria, levam os símbolos do poder romano
(cadeira curula, faz, fáleros e sombrinha de seda); depois vêm os dois prefeitos da marinha («para
que se compreenda que nosso Pai reina não só sobre a terra, mas também também sobre o
mar»). Seguem-lhes outros dois cavaleiros blandiendo querubins na ponta de suas largas lanças,
e a seguir passa a grande cruz papal de prata. O pontífice chega justo detrás, jogando na
multidão moedas de prata, segundo o costume dos césares, comenta Jacobo. Ao cruzar a ponte
do Adriano, os judeus de Roma, levando as Pranchas da Lei, saem ao encontro do cortejo, que
segue seu curso «triunfal pela cidade», em meio de saudações e grandes aplausos «de uma
multidão compacta, que arroja flores a seu passo». Finalmente, a Papa chega ao Letrán, «palácio
particular de nosso sagrado Pontífice; antigamente as Papas viviam ali, quando o ar não era tão
insalubre como agora, a não ser saudável e puro». «No palácio, a Papa descende do cavalo, e a
comunidade de sacerdotes que atende a igreja lhe conduz até um escabelo de mármore que se
encontra no centro do pórtico há uma eternidade. A este escabelo lhe chama "estercar", para que
o pontífice recorde que saiu que barro e do lixo ("stercus")». depois de extrair de uma vasilha
várias moedas de ouro, joga-as no povo por três vezes dizendo: «Não quero este oro para mim;
não me dêem seu preço a não ser que seja porque protejo, dirijo e tenho misericórdia de meu
povo». A Papa entra então na basílica do Letrán e, de um escabelo de mármore, recebe a
veneração e os beijos dos sacerdotes. A seguir passa ao palácio contigüo, chamado palácio do
Constantino, em cuja entrada se encontra uma cadeira curula; ali Gregorio invoca a Deus. Depois,
sobe à planta do palácio, ao santuário de São Silvestre, «diante do qual há dois assentos de
pórfido encravado, e, dado que estes dois assentos estão perfurados, o vulgo conta a fábula
insensata de que ali se toca ("attrectetur") à Papa para verificar que em efeito se trata de um
homem». No assento da direita recebe de mãos do sacerdote de São Silvestre o bastão e logo as
chaves; e no segundo assento o mesmo sacerdote lhe impõe uma bandagem vermelha da que
penduram doze pedras preciosas. «Com o bastão ("férula") lhe outorga, como se se tratasse do
cetro real, o poder de julgar e de governar. As chaves significam o dom que nosso Redentor deu
ao Pedro». Por sua parte, as pedras evocam, segundo Jacobo, o sacerdócio do Antigo
Testamento. Finalmente, a Papa, despojado já de seus ornamentos, oferece um banquete público
no palácio do Letrán.
Enigmas do rito de verificação de virilidade
A descrição do Jacobo do Angelo situa pela primeira vez o rito de verificação no contexto da
cerimônia de investidura papal. Assim, no curso da terceira fase, a cerimônia de coroação e tira de
posse do Letrán, substitui a um rito real, oficial: sentando-se sucessivamente em dois assentos
perfurados, executados em pórfido e instalados ante a capela de São Silvestre do Letrán, a Papa
distribui riquezas, para depois receber a sua vez e devolver os símbolos de poder (bastão, chaves
e bandagem). Mas antes de examinar, no capítulo seguinte, a morfologia e a sintaxe deste rito
oficial, podemos adiantar já algumas observações sobre o particular:
1. A verificação tem lugar em uma cadeira perfurada; a descrição do Jacobo, assim como todas as
demais evocações litúrgicas, atribui um papel capital ao assento na celebração do rito oficial. É
preciso, pois, destacar esta obsessão cerimoniosa pelo assento, já que se trata de um rasgo
constante dos ritos de poder até o Saint-Simón. Em conseqüência, nossa investigação deve ter
em conta o detalhe do inventário do mobiliário empregado na investidura papal.
2. Todas as alusões posteriores sobre a verificação confirmam o lugar, o momento e o
instrumento de semelhante operação. Além disso, em boa lógica, a circunstância se corresponde
muito com muita dificuldade com a função explícita do rito. Em uma data muito temprana, o direito
canônico afirma que, em efeito, a Papa goza da plenitude de seus poderes do instante mesmo de
sua eleição. A verificação intervém, pois, muito tarde, já que para que tivesse alguma eficácia
deveria realizar-se durante o conclave, o que por outro lado facilitaria o segredo institucional sobre
a operação (de fato, os autores que escreveram comédias brincadeiras sobre a papisa durante a
Revolução Francesa situaram a verificação no momento do conclave). O rito dos assentos
perfurados, em suas duas versões, a oficial e a legendária, apresenta, pois, uma densidade
particular que é preciso penetrar e perfurar.
3. O mistério do dobro rito se aloja no enigma mais extenso do episódio do Letrán. No ano 1406,
como assinala Jacobo do Angelo, o palácio já não alberga aos pontífices, e a vida litúrgica e
política do papado se concentra totalmente no Vaticano. Por outra parte, esta fase da investidura
se distancia cada vez mais da primeiras; quer dizer, que pode ter lugar várias semanas depois da
consagração. Além disso, a cerimônia de tira de posse do Letrán se desenvolve de forma quase
idêntica até começos do século XVI, quando se simplifica, mantendo-se igual até nossos dias.
Inclusive nesta cerimônia nos escapa o significado de sua função: por que repetir as formas
propriamente litúrgicas de investidura (entrega-a das chaves, a adoração no trono, a humilhação
do estercar)? Do mesmo modo, a complexidade que supõe a chegada triunfal até o Letrán impede
de considerá-la como o simples objetivo de um desfile análogo ao de uma entrada real. Letrán
encerra, pois, outros mistérios, como se desprende, por exemplo, da alusão à impureza do ar
nesses lugares sagrados, que são abandonados e, entretanto, estão cuidadosamente
conservados.
4. escutamos durante muito momento o testemunho de um espectador particular, Jacobo do
Angelo, e o fato de haver escolhido a ele precisamente tem uma justificação. Como já havemos
dito, trata-se do primeiro autor que situa o rito no contexto cerimonioso; mas além disso, parecenos interessante nos aproximar da cerimônia no marco de sua existência histórica, a meio
caminho entre o momento de sua encenação completa (finais século XI) e o de sua fossilização
(século XVII). Não obstante, esta descrição em particular expõe ao mesmo tempo o problema da
visibilidade do Jacobo. O que podia ver? Sem dúvida, algo mais que o romano ou que o viajante
comum, e muito menos que um cônego do Letrán; mas persiste uma grande incerteza que nos
devolve o tema insolúvel da visibilidade durante as cerimônias, e dos estilos narrativos que dão
corpo a semelhantes lembranças. Nestes casos, está acostumado a se empregar o mesmo tom
para contar o que se vê, o que se sabe e o que se interpreta, eliminando-se qualquer possível
diferencia na entonação, dado que a ação representada é ao mesmo tempo empírica,
normatizada e normativa, de maneira que «a Papa se sinta» pode ler-se de uma vez: vi-lhe
sentar-se, sei que se sinta, deve sentar-se, e parece que se sinta. Neste sentido, a visão da
cerimônia reveste um caráter político em seu conjunto. Mas ainda há outra pergunta sobre o
Jacobo: o que queria ver?, por que evocar e reevocar ao mesmo tempo a verificação de
virilidade? Mais adiante voltaremos de novo sobre este curioso mecanismo de denegação.
Porque, à margem do episódio do Letrán, e tendo em conta a personalidade bizantina do
destinatário da descrição, intuímos em que direção está orientada o olhar do Jacobo. Em seu
relato, nosso autor prima a magnificência e a exibição de poder, de maneira que nos parecem
determinantes, para avaliar o texto, a intervenção de dois fatores conjunturais: o contexto
eclesiológico do qual escreve e o contexto mesmo do destinatário. Não terá que esquecer que a
princípios do século XV ainda se confiava, embora por última vez, na reunificação do Ocidente e
Oriente, apesar de que então a Europa estava rasgada pelo Grande Cisma. Em 1369, o imperador
bizantino Juan VIII Paleólogo se converteu ao catolicismo a título pessoal; e, em 1438-1439, o
Concílio Ecumênico de Florência proclamava a sua vez uma unidade ilusória. Em 1406, durante
essa operação de sedução, parecia importante ampliar as dimensões imperiais do papado, único
herdeiro autêntico do Império Romano, sublinhando a tais efeitos os parentescos decorativos dos
rituais de investidura do patriarca de Constantinopla e do patriarca universal. Neste sentido,
Jacobo não faz, pois, a não ser acentuar uma antiga tendência latina: desde que se inventasse a
lenda do Constantino (finais século V), e concretamente depois da «Donatio» do Constantino
(mediados século VIII), a Papa reivindica para si as insígnias do poder imperial romano. A férula
que recebe no assento perfurado encerra um significado não litúrgico, a não ser político, porque o
que a Papa Silvestre recebeu em seu dia de mãos de Constantinopla não foi outra coisa que o
cetro imperial. A tradição e a circunstância se reencontram em torno de um objeto que não trocou,
projetando assim a ilusão da continuidade.
5. À margem do contexto imediato, a cerimônia de 1406, vista por um observador alheio à
mesma mas atento, comporta uma série de desequilíbrios ou de tensões, entre a publicidade e o
secretismo, entre a participação comunitária e a distância calculada, entre as distintas figuras do
poder representado (o pontífice universal, o bispo de Roma, o rei de reis, o senhor de Roma),
entre as fontes do poder reivindicadas (cristã, judaica, antiga), entre a humilhação (rito da estopa,
rito da cadeira estercolera), e a glorificação (veneração, besapiés, procissão, etc.); ambos os
rasgos se misturam durante as três fases da cerimônia, sem que se produza uma progressão
sintática. Por isso, tudo começa de novo no Letrán: ao Gregorio lhe dá o tratamento de bispo
romano (recebe-lhe o capítulo da basílica), de supremo pontífice (entregam as chaves de São
Pedro), de dono do mundo (recebe a férula de juiz e de reitor), de governador da cidade (abre-se
para ele sozinho o palácio). Também no Letrán se o concha como a São Pedro, e ao igual ao
Vaticano dá testemunho de sua humilhação. A cerimônia reitera os elementos do sacro, sem
ordená-los em um sistema ritual de trânsito. Terá que interpretá-lo como uma indeterminação
essencial e constitutiva, ou como uma proliferação da célula litúrgica original?
Na descrição do Jacobo se adverte de uma maneira confusa o desejo de superar essas tensões e
de representar o desenvolvimento de um simbolismo coerente do poder, embora há algo que
resiste, refreando o processo. O que é? Acaso a consciência da debilidade de um poder terrestre,
apoiado na crença no mais à frente? Possivelmente a obsessão cristã da vangloria do mundo?
Ou, em realidade, trata-se do olhar, a voz e o contato do povo, especialmente presentes na
cerimônia, solicitados por uma parte e apartados por outra; o povo quer tocar o sagrado, e por
isso saqueia a moradia da Papa e beija seus pés, mas, entretanto, se o prohíbe tocar o pálio. Não
obstante, através do discurso («a fábula insensata»), converte-se em partícipe do tocamiento
sacrílego (os genitálias da Papa: a palavra mesma «attrectare» se refere por igual ao tocamiento
do pálio e ao pretendido gesto de verificação da virilidade). A Igreja não pode passar de outra
maneira o mistério da encarnação: um dia Deus quis salvar a distância que lhe separava, e, até a
risco de incorrer em promiscuidade, fez-se homem. A Papa, a sua vez, e para defender seu corpo,
não pode por menos que imitar a Cristo: Tomam quis tocar o sagrado, e Jesus o aceitou. Mas um
apócrifo antigo, o Protoevangelio do Santiago, diz que à parteira que quis verificar manualmente
(sempre o tocamiento sexual) a virgindade da María, lhe secou o braço, indicando assim que a
tolerância tem uns limites. Em conseqüência, a investidura deve convocar e rechaçar de uma vez
ao povo cristão, e nossa picante historieta romana pode que se refira mas bem a essa classe de
poder que se alimenta do contato e da distância alternativamente, do consenso e da força que se
mascaram reciprocamente. A coeternidad do Pai divino e do filho humano, percebidos sucessivos
e simultaneamente pelo cristão, metaforiza a instabilidade essencial desse poder apressado entre
a fé e o fato.
Algumas testemunhas do século XV
Voltemos para a história do rito de verificação, segundo nos conta isso Jacobo do Angelo, mas a
um ritmo mais rápido. Por volta de 1435, o dominicano do Lübeck, Hermann Korner, relata em seu
Chronica Novella a história da Juana e suas conseqüências institucionais: a Papa se desvia
evitando o lugar maldito da iluminação papal, e «para que não se repita este engano em um futuro
se tomam precauções, pouco depois da eleição do novo pontífice, ao objeto de assegurar-se
sobre sua virilidade e seu sexo»... O rumor ritual alcança uma ampla difusão, inclusive fora do
âmbito estritamente clerical, já que em meados do século XV uma das numerosas guias de Roma,
construída segundo a antiga tradição das Mirabilia Urbis, o livro do G. Rucellai, Da beleza e da
antigüidade de Roma, menciona: «Perto da susodicha Sancta Sanctorum [a capela de São
Lorenzo] há dois assentos de pórfido, de uma só peça, nos que se sinta a Papa recém renomada;
por um orifício perfurado no fundo do assento se tenta saber se for homem ou se for mulher». Na
mesma época (mediados do século XII), um viajante inglês, Guillermo Brevin, se fixa na mesma
curiosidade, extraída sem dúvida de uma dessas guias pitorescas da cidade que abundavam
então igual a agora: «Na capela de São Salvador há duas ou várias poltronas de mármore e de
cobre com orifícios perfurados no fundo; por quanto pude me inteirar ali, nestas poltronas tem
lugar a verificação que permite saber se a Papa é ou não do sexo masculino».
O horizonte geográfico dos testemunhos se amplia durante mediados do século XV, como o
demonstra o fato de que o grego Laónicos Chalcocondyle também registrasse em sua crônica Dos
assuntos turcos, o rito no momento da eleição do Nicolás V, associando dito rito à lembrança da
papisa: «Já que é um fato estabelecido que um dia uma mulher foi elevada até o papado porque
se desconhecia seu sexo. Em realidade, quase todos os ocidentais da Itália se barbeiam a barba.
Por isso, para evitar um segundo engano, e com o fim de conhecer a verdade sem lugar a
dúvidas, apalpam as partes viris da Papa recém eleita. E, quem os toca exclama: «O senhor nos
deu um varão.» O relato do Chalcocondyle, embora impreciso, tem o interesse de demonstrar
que, para um observador estrangeiro, a peculiaridade do ritual forma parte dos mistérios políticos
que rodeiam a eleição; de fato, para nosso grego, o rito se desenvolve antes da coroação, em um
momento presidido pela incerteza sobre a oportunidade política da eleição: «Escolhem a Papa
entre as famílias Colonna ou Orsini. Quando se juntam os sufrágios necessários, retêm ao eleito
no palácio e tentam averiguar se a eleição convém a outros [refere-se sem dúvida aos grandes
personagens que não são membros do Sacro Colégio]. Indicam à Papa selecionada que se sente
em um assento perfurado para que aquele a quem lhe confiou esta tarefa apalpe os testículo que
penduram por dito orifício e dê testemunho de que a Papa é realmente um homem». O texto do
Chalcocondyle sublinha este matiz político do rumor, que logo reaparecerá com todo seu
esplendor nas versões humanistas da narração ritual.
Ainda, dentro do contexto do século XV, contamos com o testemunho do cônego suíço Félix
Hammerlein (Malleolo), quem acrescenta uma série de interessantes precisões em seu diálogo Da
nobreza e a rusticidade . Hammerlein procede em primeiro lugar a relatar a aventura da papisa,
ateniéndose à forma habitual estabelecida pelo Martín o Polonês, e a completa da seguinte
maneira: «Benito III, que lhe aconteceu, recordando o acontecimento, mandou instalar em San
Juan do Letrán uma cadeira perfurada que ainda pode ver-se; dois clérigos dignos de crédito
tocavam seu testículo, e estas testemunhas davam testemunho legal de sua virilidade. E, se os
achavam intactos, exclamavam em voz alta enquanto os apalpavam: "Testiculos habet", ao que o
clero e o povo respondiam: "Deo Gratias". Continuando, procedia-se felizmente à consagração do
eleito. Este costume se conservou durante muito tempo». O texto do Hammerlein apresenta, pois,
várias novidades interessantes. Em primeiro lugar, tenta conferir certo historicismo ao rito, lhe
proporcionando uma origem precisa na iniciativa do Benito III. Do mesmo modo, desaparece a
incoerência funcional: a antigüidade da instituição da verificação se situa em um momento no que
a eleição ainda se desenvolvia no Letrán, de maneira que bem podia preceder à consagração.
Assim, a realidade do rito apresenta já com rasgos arqueológicos; quer dizer, nosso autor se
apóia em uma lembrança coletiva que já não se atualiza na memória, mas sim se reaviva com a
simples conservação de um assento perfurado. Por último, aparece pela primeira vez a fórmula
triunfal que se encarregará de perpetuar o rumor até nossos dias.
Malícias de Platina
dentro desta sucessão de testemunhos, cada vez mais densa, nossa seguinte testemunha é um
personagem de talha: trata-se do Bartolomé Sacchi, quem se fez chamar Platina, latinizando seu
topônimo de origem, Piadena, perto da Cremona. Este humanista, membro da Academia Romana
e erudito de talento, desempenhou um papel importante na cúria romana. Primeiro foi
«compendiador» (agora se chamaria redator, em uma administração atual) sob o papado do Paulo
II, quem o destituiu de seu cargo, antes de lhe fazer padecer mil misérias, como veremos mais
adiante. Mas ao morrer Paulo II em 1472, recuperou sua alta fila curial, já que Sixto IV, fundador
da Biblioteca Apostólica Vaticano, confiou-lhe a responsabilidade da mesma. Ao mesmo tempo,
Sixto IV lhe encarregou que escrevesse uma Vida das Papas, que devia recuperar, harmonizar e
aperfeiçoar uma recopilação heterogênea, começada no século VI, e que se chama o Liber
Pontificalis. Platina cumpriu esplendidamente o encargo, apesar da urgência, já que o livro devia
contribuir à celebração do jubileu de 1475, e, em efeito, a finais de 1475, Platina tinha terminado o
trabalho. Nesta obra de caráter oficial, nosso autor, humanista crítico e vítima da arbitrariedade do
Paulo II, não regula comentários a respeito da instituição pontifícia, motivo pelo qual o livro não se
imprimiu em Roma, a não ser em Veneza, e além em 1479. Não obstante, não só não foi objeto
da censura eclesiástica, mas também conheceu um êxito considerável (43 edições latinas até o
século XIII, e 21 edições italianas). Mas o que aqui nos importa é que na seqüência cronológica
das Papas, e no momento indicado pelo Martín o Polonês (entre o Benito IV e Leão III), narra a
história da Juana, e a prolonga com o comentário institucional, habitual já desde o Godofredo do
Courlon: «Alguns escrevem sobre o particular duas coisas: de uma parte, o Pontífice, quando se
dirige à basílica do Letrán, desvia voluntariamente seu caminho, por odeio a este crime; por outra
parte, para evitar que se repita esse engano, tão logo se sinta na cadeira do Pedro, perfurada por
este motivo, a Papa consente que o último dos diáconos lhe toque os genitálias. Não negarei o
primeiro costume; quanto à segunda, este é meu sentimento: preparou-se assim esse assento
para que quem é investido como um poder tão grande saiba que não é Deus, a não ser um
homem; quer dizer que está sujeito às necessidades da natureza e que deve defecar. Por esta
razão, chama-se a este assento muito justamente o assento estercolero (excremental)». No texto
de Platina, o assento perfurado, testemunho essencial do rito, converte-se, pois, em uma vulgar
cadeira de alívio, ao preço de uma confusão entre a cadeira estercolera colocada no pórtico da
basílica de San Juan do Letrán, conhecida e descrita nas cerimônias oficiais do século XII, e as
cadeiras de pórfido da capela de São Silvestre, cujo papel litúrgico só intervém depois da
cerimônia celebrada na basílica. Não deixa de ser chamativa tão manifesta ignorância do
cerimonial de coroação papal em um dignatario da Cúria, mas também é certo que
freqüentemente nos encontraremos com contra-sensos sobre a liturgia: a complexidade extrema
das metáforas gestuales e verbais faz que o ritual resulte opaco. A tradição se converte então em
matéria de exegese, e sua escuridão confere aos objetos cerimoniosos a natureza poderosa e
incerta, quase escritural, das criações divinas. portanto, embora não nos assombrem os grandes
enganos que se puderam cometer na leitura das cerimônias, tampouco podemos descartar a
suspeita de uma certa malícia por parte de Platina quem, para salvar à Papa da impureza sexual,
afunda-lhe no excremento!
Brincadeiras humanistas e murmúrios protestantes
A malícia maliciosa que preludia as brincadeiras pesadas dos protestantes, percebe-se
claramente em um amigo de Platina, o humanista húngaro Jano Pannonio quem, em um de seus
ferozes epigramas antipapales, finge querer salvar, ele também, ao papado do ridículo rito:
«Pedro, graças a um rito inalterado na eleição das Papas, um dia uma mulher ousou sentar-se em
sua cadeira e promulgar leis vergonhosas ao universo. Tivesse permanecido oculta durante
muitos anos se não tivesse insone o fato com uma iluminação surpreendente. Após, e também
durante muito tempo, Roma se acautelou contra semelhante artimanha, adotando o costume de
inspecionar os lugares secretos das Papas. Ninguém pode obter as chaves que abrem os céus
sem que antes lhe examinem os testículo. por que, então, abandonou-se este costume em nossos
dias? Pois porque a Papa demonstra adiantado que é um varão». Nesta última frase advertimos
uma alusão às respectivas origens das Papas, tema freqüente e habitual de brincadeiras nos
séculos XV e XVI, até o próprio Rabelais. A brincadeira adquire carta de natureza, converte-se em
lugar comum, e aparece em textos como o de Marco Marullio do Split, autor de outro epigrama
antipapal a finais do século XV: «por que buscas, Cevo, testemunhos que digam se for varão ou
fêmea; toma como objeto seguro a tropa de seus filhos; engendrou recentemente oito filhos e
outras tantas filhas». Pouco depois, o francês Juan-Jacobo Boissard repetiria sorte alusão em sua
Topografia da cidade de Roma, publicada em 1597-1602, onde, ao igual aos outros viajantes que
citamos até o momento, refere-se em primeiro lugar aos assentos perfurados de pórfido, que se
encontram ao final da «Scala Santa» do Letrán. Segundo este autor, o rito só esteve vigente
alguns anos depois do papado da Juana, mas o importante é que Boissard completa a fórmula
ritual: «Testículo habet, dignus est papali coroa» (Tem testículo; é digno da coroa papal), ao
mesmo tempo que esta rechaça «historia ridícula» (que não obstante reproduz sem modificar,
nem marca alguma de discurso indireto), acrescentando: «Atualmente não é necessária
semelhante investigação: não se promove a ninguém ao papado se antes não deu provas
suficientes de sua própria virilidade».
Mas o fato de que nem Pannonio nem Hammerlein reconheçam a existência do rito de verificação
não impede em modo algum que se desse crédito a dita existência; além disso, o rumor ritual,
impreciso quanto à atualidade do gesto, mantinha sua existência própria. Por isso, encontramonos isso sem modificar no Livro de Crônicas do cronista alemão Hartmann Schedel, obra impressa
no NUREMBERG em 1493, em Sobre as damas famosas e ilustres do frade agustino JacoboFelipe Foresti do Bérgamo, em uma nota acrescentada pelo editor veneziano à tradução italiana
das Mulheres ilustres do Boccaccio de 1506, ou inclusive na Vida das Papas, publicada pelo Juan
Stella em Veneza em 1505. Em 1531, e apesar da reação iniciada a este respeito pelas Papas a
começos do século XVI, quem suprimiu os ritos do Letrán associados à cadeira estercolera e aos
assentos de pórfido, o humanista Juan-Pedro Valeriano Bolzani, protegido de Leão X, consegue
que se edite uma carta dirigida ao cardeal Hipólito do Médicis, A favor da barba dos sacerdotes,
onde se demonstra que o costume da barba teria evitado o triste escândalo do papado da Juana.
Bolzani resenha o rito acentuando ainda mais seu caráter público e oficial: «À vista de todo o
povo, e no pórtico de San Juan que está frente à ampla praça repleta de público chegado com
ocasião do rito, obriga-se ao nova Papa a demonstrar sua virilidade com (a verificação) de
abundantes testículo. Esta confirmação, anunciada em voz alta pelo sacerdote, registra-se
imediatamente nas atas: só então sabemos que temos uma Papa legítima, depois da testificación
ocular que prova que em efeito tem o que tem que ter». Assinalemos nesta relação uma nova
ambigüidade da narração: o uso do tempo presente nos remete tanto à atualidade empírica como
à lembrança de um gesto pretérito; a moda narrativa do cerimonial mistura constantemente a
norma e a realidade, o passado e o presente.
No século XVI surgem dois novos fatores que multiplicam vertiginosamente a difusão do rumor
ritual: a imprensa e o protestantismo. Já apontamos o êxito considerável das edições impressas
das vidas das Papas de Platina, desde 1479. A Crônica do Schedel também obteve um grande
êxito. A partir de então até o mais pequeno opúsculo se difunde por toda a Europa. A propaganda
protestante se serve abundantemente da fábula da Juana e do rumor ritual, como veremos mais
adiante, e o leitor terá ocasião de aborrecer-se com a série interminável de libelos protestantes
que mencionam o rito de verificação; em conseqüência, limitaremo-nos a assinalar neste sentido o
trabalho enciclopédico do protestante alemão Juan Wolf, as Lectiones memorabiles et reconditae
«Lições memoráveis e ocultas», que se apresentam como uma grande historia universal,
articulada sobre dois eixos: as mentiras e os crímenes papais. Naturalmente, Wolf menciona a
história da Juana no quadro que dedica ao século IX, onde reúne e entrevista 19 fontes que dão
autenticidade a dita história, das quais 16 evocam o rito de verificação. Bom número destes
testemunhos foram citados já nas páginas precedentes, de maneira que a recopilação do Wolf
não nos contribui nada novo neste sentido, no máximo uma criação de léxico registrada pelo
anônimo autor protestante do De pontificum romanorum emisariis: ouça-se dizer que no Papado,
com freqüência se chama o membro viril com o nome de Pontificais».
Um luterano na coroação do Inocencio X (1644)
Concluiremos este percorrido pelos itinerários do rumor com uma última descrição da cerimônia
de investidura, a do Inocencio X em 1644. Como a maioria das coroações papais da Idade
Moderna, esta cerimônia é bem conhecida graças a uma multidão de livrinhos breves, impressos
rapidamente durante o conclave, entre o conclave e a coroação, ou inclusive depois da cerimônia.
encontramos uma última menção do rito de verificação em Roma triumphans, obra que o
jurisconsulto sueco Laurent Banck consagrou a dita coroação, minuciosamente detalhada. No
século XVII, tira-a de posse do Letrán, o «possesso», distingue-se nitidamente das duas fases
anteriores: Inocencio X, eleito durante um conclave que se celebra entre o 2 e em 15 de setembro
de 1644, é coroado em 4 de outubro, e não toma posse do Letrán até em 23 de novembro. O
solene cortejo que atravessa Roma, saindo do Vaticano por volta das 16 horas, adquiriu uma
complexidade considerável dos tempos do Jacobo do Angelo, e cada vez nos recorda mais às
entradas reais, às que por outra parte e com toda probabilidade serve de modelo no século XV. As
filas, as ordens e as precedências têm aqui tanta importância como os arcos, os cenários e as
inscrições que balizam o percurso da procissão. Entre as 21 e as 22 horas, o cortejo chega ao
Letrán, lugar onde se encontra reunida a multidão mais compacta. Inocencio descende então de
seu beliche e é conduzido em cadeira de mãos sob o pórtico principal da basílica de San Juan. O
chão do pórtico e da basílica aparece talher com tapetes e tapeçarias, e os sinos de todas as
Iglesias e de todos os monastérios repicam. Ali, Inocencio se sinta em um trono decorado com
seda e ouro. Os cônegos do Letrán, com o arcipreste à cabeça, o cardeal Colonna, recebem-lhe
levando vasos de prata, com a cruz pontifícia de prata dourada e as chaves de São Pedro, uma
de prata e outra de ouro. A Papa agarra a cruz, beija-a e reza. Os cardeais Médicis e Barberini lhe
retiram a tiara de triplo coroa e lhe colocam a mitra coalhada de pedras preciosas; então, o
cardeal Colonna, seguido do clero do Letrán, entrega ao Inocencio as duas chaves, ao tempo que
lhe dirige uma oração. depois de uma nova série de orações e de bênções, a Papa retorna a sua
cadeira de mãos para entrar na basílica: «Depois, as mesmas pessoas [nobres e condes da igreja
do Letrán] conduzem-lhe até o assento de mármore perfurado, que se encontra perto, ao objeto
de que, uma vez sentado, apalpem-lhe as partes viris. Não há dúvida de que as coisas se
desenvolvem desta maneira. Em efeito, é absolutamente seguro que este assento de mármore,
perfurado, conservou-se nesta mesma basílica do Letrán, e o vimos em várias ocasiões com
nossos próprios olhos. É igualmente certo que os Pontífices recém nomeados eram conduzidos a
essa mesma cadeira, antes de ser admitidos na direção secular do Letrán, como o testemunham
claramente entre outras pessoas os próprios católicos, como Platina, Sabelio [sic, pelo Sabellicus]
(na Vida do Juan VIII), Stella, o sacerdote de Veneza, etc. Dizem que depois da morte do Juan
VIII se julgou prudente que o Supremo Pontífice fora conduzido a uma cadeira pontifícia e não
recebesse confirmação alguma antes de que lhe apalpassem as partes viris na cadeira, assento
da humildade, para receber uma advertência: deve sentir sua humildade pessoal na mesma
medida em que sente a altura e a glória da sede episcopal; deve recordar que é como outros
homens, que está sujeito aos mesmos defeitos de nossa natureza disforme, e que não é Deus.
Desta maneira, recebe, pois, esta lição: que não deve sentir nenhum orgulho pela coroação, como
se diz, que tem que seguir ao rito... Hei aqui, pois, estes testemunhos. depois desta proclamação,
e quando se compreendeu que a Papa tem em efeito os pontificais, manifestam-se distintos
signos de alegria, e a Papa se instala de novo na cadeira de mãos. Continuando, e a passo lento,
dirige-se ao altar maior».
Banck, que se apresenta como testemunha ocular dessa cerimônia que descreve ampliamente,
em realidade não viu o rito de verificação. Entretanto, enquanto o analisa com o mesmo tom de
asseveração que emprega para o resto da cerimônia, expõe uma certeza que é fruto da tradição
escrita e da visão direta dos assentos perfurados. Ficamos com o mistério desse rito público que
ninguém vê, mas que outros viram sempre. Por outro lado, Banck, seguindo a Platina e a todos os
que arrastaram o mesmo engano, confunde o assento estercolero com as cadeiras perfuradas,
quando de fato, fazia já um século e médio que não se celebrava o rito de humilhação, como o
demonstra visualmente a magnificência do trono instalado sob o pórtico da basílica, substituindo à
cadeira estercolera. A precisão mesma da descrição que nos brinda Banck situa o momento da
verificação na entrada na basílica, entre a oração solene do arcipreste do Letrán e a missa, quer
dizer no coração mesmo do espetáculo festivo visível, descrito a sua vez pelo mestre de
cerimônias Fulvio Servanzio da seguinte maneira: depois de escutar a oração do cardeal Colonna,
e de colocá-la mitra, Inocencio «sobe à cadeira de mãos para ser levado a centro mesmo da
basílica; os cônegos desta basílica... colocam um baldaquino sobre Sua Santidade; uma vez ali,
descende de sua cadeira, deposita seu mitra, ajoelha-se, considera e concha ao chefe dos Santos
Apóstolos, enquanto que os cardeais se ajoelham sobre o pavimento nu dos laterais inferiores.
Lhe translada em cadeira ao altar do Santo Sacramento, e depois se dirige a pé até o altar maior».
A partir daqui nos encontramos com o resto da cerimônia descrita escrupulosamente pelo Banck.
A diferença das visões, em um lugar e em um momento tão concretos, surpreende; além da
variante no ritual, há numerosas diferenças no protocolo (às que caberia acrescentar as que
encontramos na meia dúzia de livrinhos romanos que relatam, sem referir-se à verificação, tira-a
de posse do Letrán em 1644) que dão a impressão de que ninguém viu a cerimônia em seu
desenvolvimento real. Mais até que na Idade Média, a cerimônia se apresenta como um texto
infinito e escuro que nenhuma representação nem nenhuma exegese saberiam esclarecer e ainda
menos esgotar, e que, além disso, transcende a ação imanente dos participantes. Sem dúvida,
terá que ver em dito texto um efeito do absolutismo que tende a absorver qualquer conduta em
uma participação que nunca se concluiu, quer dizer que nunca teve lugar. Nesse caso, a
cerimônia se apresenta como uma realidade lhe englobem, sem projeção exterior e hipertrofiada,
cuja eficácia radica precisamente em sua capacidade para neutralizar as olhadas mais diversas,
bem sejam as dos devotos, as dos ignorantes, ou as dos maliciosos. O próprio Banck, luterano
ele, manifestava ao longo de toda seu Roma triumphans uma admiração crescente pelos
esplendores escuros da cerimônia; assim, ao adquirir no texto do Banck uma exegese litúrgica, a
evocação do rito de verificação perde sua natural picardia. A ausência de negação da cerimônia,
essa máquina generadora do sentido, explica possivelmente a pacífica sobrevivência do rumor no
universo romano.
Imagens do rito de verificação
A propósito do Wolf e do Banck, terá que assinalar que o poder de difusão da imprensa se
incrementa com o do prestígio da imagem: a primeira edição das Lectiones do Wolf em 1600
apresenta, sem dúvida por primeira vez, uma ilustração do rito de verificação: uma gravura em
madeira mostra a uma Papa mitrado sentado em uma banqueta, ante uma multidão de bispos e
de cardeais; situado atrás da Papa há um personagem meio doido com cape-o cardenalicio, que
levanta com uma mão o traje do pontífice enquanto passa a outra por debaixo do assento. O
estrado sobre o que se encontra a banqueta tem em seu frontispício o princípio da fórmula ritual
HABET. depois desta primeira edição de 1645 de Roma triumphans, Banck publicará em 1656
uma segunda versão, aumentada e ilustrada, onde se encontra uma representação da cena de
verificação. A lenda indica «Sedes marmorea Pontificis in Basilica Lateranensi» (o assento de
mármore da Papa na basílica do Letrán), e a imagem mostra à Papa em meio de uma dúzia de
clérigos, monges, bispos e cardeais, e ante dois prelados ajoelhados, sinta-se em um trono
fechado cujo frente está decorado com um querubim. Um cardeal ajoelhado posa a mão direita
em seu chapéu, e passa a esquerda por uma estreita abertura retangular, praticada no lateral
esquerdo do trono; um filáctero que sai de sua boca reproduz sua exclamação: «Pontificalia
habet» (tem os pontificais).
Primeira explicação: a revanche dos intelectuais frustrados
Uma vez concluída este largo comparecimento de testemunhos sobre o ritual de verificação,
podemos distinguir diversas modalidades quanto à colocação do episódio, assim como diferentes
intentos por racionalizar sua existência. Mas, sobre tudo, pudemos constatar que era impossível
manifestar a inanidade do rito em uma cerimônia de tanta complexidade. Entretanto, persiste uma
dúvida: por que motivo se quis acreditar de uma maneira positiva, ou se quis fazer acreditar na
existência de um ato que ninguém pretendeu ver diretamente?
Pergunta-a parece relativamente singela de responder a partir de mediados do século xV (mas
isso não é mais que um limite da explicação) se tivermos em conta, não tal ou qual escuro
cronista encerrado em suas próprias fontes, a não ser os ambientes dos quais se propagou
ativamente o rumor, como é o ambiente no que se desembrulham os humanistas da Cúria
romana. Nas pérfidas negativas de Platina, e nos epigramas zombadores do Pannonio ou do
Marullo, podemos ler a reação social de um grupo de intelectuais frustrados pela atuação do
Paulo II, e desencantados pela penúria dos cargos que ocupavam. Desde os primeiros meses de
seu pontificado, em 1464, Paulo II procede a suprimir as funções de comentarista
desempenhadas geralmente até então por jovens humanistas brilhantes, que as tinham comprado
e das que esperavam obter um benefício material e social. A Papa lhes privou delas sem
indenização alguma. Platina reagiu energicamente, sitiando, junto com outros comentaristas, ao
Paulo II durante vinte dias seguidos, sem ser recebido. Então escreveu uma carga violenta ao
Pontífice, lhe ameaçando convocando um concílio, e apelando ao mesmo tempo aos reis e
príncipes da cristandade para que secundassem seu propósito. Uma ameaça muito menos
jactanciosa que parece, se recordarmos que a finais do século XIV o papado acabava de
confrontar uma corrente antimonárquica muito poderosa, de caráter conciliarista, e reavivada ao
máximo a finais de dito século e princípios do XV pelo Grande Cisma do Ocidente, que se fecha a
sua vez com o Concílio da Constanza celebrado pelos príncipes cristãos. Paulo II encarcerou
imediatamente a Platina no castelo do Sant Angelo durante quatro meses. Quatro anos depois,
em 1468, a Papa descobriu uma conjuração contra a instituição pontifícia, encabeçada pelo
florentino Felipe Bonaccorsi e animada por vários jovens humanistas próximos à Academia
Romana. Platina foi encarcerado pela segunda vez e Paulo II fechou a Academia, proibindo deste
modo o ensino da poesia latina nas escolas. Como vemos, pois, o incidente superava
ampliamente a história pessoal de Platina, para adquirir traçados de um conflito social e político. A
revolta dos humanistas, como muito bem demonstrou Cesare d'Onofrio, forma parte das lutas
contínuas da cidade por defender sua autonomia frente ao despotismo papal, movimento que tem
sua origem no primeiro intento por instaurar uma Comuna romana em 1144, mais tarde, no século
XIV, depois da República Romana de Cauda dava Rienzo. Nos três casos (séculos XII, XIV e XV),
a partida romana se apóia em uma lembrança antiga, de maneira que a proibição dos poetas
latinos nos programas de ensino não significa nem de longe uma postura de obscurantismo
antihumanista por parte das Papas de meios do século XV (Calixto III, Pio II e Paulo II), a não ser
uma verdadeira confisco do patrimônio reivindicativo da cidade de Roma. A carreira de Pio II
assim o confirma, pois antes de converter-se em Papa formou parte desse grupo de humanistas
da Cúria, com o nome de Ns Silvio Piccolomini. Durante essa etapa de sua vida, escreve uma
novelita cheia de encanto, titulada a História de dois amantes, e, em condição de membro da
Cúria, apresenta-se então, ao igual a Platina, como conciliarista acérrimo. Mas como resultado de
sua aproximação ao poder papal não duvida em desenvolver um sentimento monárquico
claramente antihumanista. Não obstante, e antes de abordar este tema em detalhe, assinalemos
que durante sua legação em Boêmia, em 1451, foi o primeiro autor medieval que rechaçou a
história da papisa Juana.
À vista do exposto, é evidente que a narração de Platina não tem nada de inocente nem de fútil,
pois indica uma postura dentro do âmbito social romano, concretamente na Cúria, mas
desesperadamente longe do poder monárquico. O humanista da Cúria, dotado de um capital
simbólico importante (como um conhecimento perfeito da língua e da literatura latinas, e às vezes
competências específicas em direito canônico), prefigura ao «intelectual frustrado» do século XVII,
que tem que desembrulhar-se no seio de um grupo muito numeroso para poder aspirar a uma
posição acorde com sua formação. A esta pletora demográfica, cabe acrescentar as constrições
próprias da situação romana: Roma, por seu prestígio milenario e pelo atrativo de seu sacralidad,
assim como pelas miragens produzidas pela florescente burocracia papal, constitui um foco de
atração para uma multidão de candidatos a prebendas, procedentes de todas as partes da
Europa. Por outra parte, a vida político-social romana não oferece apenas saídas, já que a
monarquia pontifícia, mantida em todo momento pelos estados europeus, à margem dos cismas
ou das disputas, tampouco deixa lugar algum à ação política, ao contrário do que ocorre nas
cidades-estado da Itália medieval e renascentista. Além disso, a forte posição da nobreza romana,
ameaçada durante um breve instante pelas intenções de Cauda dava Rienzo, constitui a sua vez
o ferrolho definitivo do dispositivo romano. Assim, pois, a essa classe formada pelos intelectuais (a
palavra aqui não parece anacrônica) romanos, ou romanizados, só fica o rancor e o assobio,
rasgos ambos que conferem esse tom tão particularmente seu às evoluções da papisa e do ritual
de verificação: nem se destrói nem se vitupera, mas se arranha à pessoa, à pessoa além disso
perpetuada, mais que à própria instituição.
Este dobro aspecto, social e político, da crítica humanista se encontra precisamente em um
gênero bem conhecido, que se desenvolve na época de Platina, a pasquinada. Em efeito, embora
a primeira pasquinada —epigrama satírico destinado a pôster— que se conservou é relativamente
recente, pois data de 1523, a finais do papado do Adriano VI, não obstante sabemos, graças a
certos inícios convergentes, que o uso de fixar pôsteres com libelos e santinhos, sobre a estátua
antiga (um torso sem braços) que se encontrava na atual praça do Pasquim, muito perto da praça
Navona, remonta-se a esses anos de 1460, quando os humanistas romanos se enfrentam ao
Paulo II. É certo que a tradição romana da sátira antipapal tem raízes antigas, sem dúvida
contemporâneas da primeira comuna romana (século XIII), e que provavelmente herdou certos
tema surtos da feroz controvérsia antipapal, de inspiração germânica, na época da Luta das
Investiduras. Mas a geração de Platina soube conjugar a antiga veia popular com a arte
reencontrada do epigrama latino, e para isso encontrou o tom e o lugar adequados: a antiga
estátua ocupa o lugar do Campo dava Fiori, teatro do enfrentamento aberto e da repressão,
enquanto que o assobio interno substitui ao ataque direto. Como já vimos a propósito do Pannonio
e do Marullo, o rumor ritual se emprestava bem ao gênero epigramático, sempre equívoco
segundo a melhor tradição antiga, toda vez que nas pasquinadas as alusões sexuais são
inumeráveis. De fato, encontramos uma pasquinada muito próxima por seus conteúdos aos
epigramas do Pannonio e Marullo, citados mais acima: «Que não se busquem as testemunhas
(«teste»: trocadilho já tradicional, com «testiculi») da Paulo/La filha que engendrou já demonstra
suficientemente que é um varão».
Estaríamos tentados de ampliar esta explicação sócio-cultural no curso do tempo, se não fora
porque é suficiente poder determinar seu momento de aplicação, para justificar grande parte do
êxito do rumor, se tivermos em conta, neste sentido, o papel capital desempenhado pelo texto de
Platina. Se remontarmos a princípios do século XV, advertimos que a postura do Jacobo do
Angelo logo que difere da de Platina e seus amigos: a mesma formação humanista, a mesma
espera larga para obter um posto na Cúria, e a mesma menção do ritual. Desde esta perspectiva,
e forçando algo nosso determinismo, poderíamos inclusive dizer que o fato de que Jacobo negue
o rito significa uma ascensão melhor e menos atormentada que o de Platina dentro da Cúria. No
caso do Jacobo, a alusão ao rito demonstra sua pertença a um grupo quase análogo ao de
Platina; entretanto, defender o papado contra a difamação significa a sua vez recordar a
existência de dita calúnia, utilizá-la e constituir-se em protetor simbólico da instituição. No caso
oposto se encontra a figura contemporânea do Adão do Usk, esse galés propagador do rumor do
que já falamos, que veio a Roma em busca de um cargo que nunca obteve, e que, depois de
retornar a seu país natal, escreveu sua experiência romana com um sentimento de amargura.
Mas, infelizmente, não podemos nos retroagir com tanta precisão na preteridad de nossa
própria tradição, com a única ajuda desse frágil marco explicativo, posto que, depois de superar o
vazio do século XIV, nos escapa por completo a figura farto misteriosa do monge do Sens,
Godofredo do Courlon. Quanto ao Roberto do Uzès, bastante melhor conhecido, a verdade é que
este dominicano visionário nos apresenta como uma figura de uma massa bem distinta a de
nossos jovens ambiciosos e retorcidos. Sua dramática evocação do rito não se sai do molde
agradável das alusões registradas no século xV, e portanto nos reservamos seu caso para mais
adiante.
Esta primeira hipótese que explica a perenidade do rumor, graças à manipulação voluntária do
pesado edifício litúrgico, e à ação de um grupo sócio-político interessado em uma revanche
calculada, permitem-nos apreciar como os protestantes, dotados de um espírito nitidamente mais
agressivo, puderam utilizar um material que já estava divulgado. A transição da alusão satírica ao
ataque violento, a começos do século XVI, produz-se simultaneamente na esfera romana e nos
ambientes europeus que, a falta de um vocábulo mais preciso, poderíamos denominar
«evangelistas».
A substituição «evangelista»: Rabelais
A princípios do século XVI, o poderio do Vaticano é já um fato indiscutível. Em Roma, o
absolutismo papal já não teme ao espírito da comuna, cuja expressão última foi a conjuração do
Bonaccorsi. Julho II se lança a uma verdadeira «política territorial e militar», que em um momento
determinado merece o seguinte comentário: «Tinha entrado em Roma no domingo do Ramos de
1507, com um "triunfo" militar sem precedentes». A atitude de Julho II, simbolizada em um
aparelho cerimonioso de corte realista, ajudou a que o rechaço tradicional alcançasse então vôos
violentos, perfeitamente legíveis na ascensão do tom violento das pasquinadas. Dito protesto
encontrou a sua vez a aprovação desses cristãos contemporâneos do Lutero, que se tinham
mantido dentro da ortodoxia, mas que olhavam com horror o espetáculo que oferecia Roma. A
postura «evangelista» se situa, pois, no extremo oposto da crítica, sem oscilar de tudo para a
condenação total, e por esta razão não duvida em manifestar-se através da ficção meio satírica e
semiseria, ilustrada no Elogio da loucura do Erasmo (1511), ou por obra do Francisco Rabelais.
Como no caso dos humanistas romanos do século XV, a postura tática determina a sua vez uma
forma narrativa de evocação, quer dizer um tom; e, também como eles, a questão da adesão à
lenda da Juana ou ao mito de verificação de virilidade não se expõe. A distância que se
estabelece com a ironia ou com a jocosidade neutraliza a projeção da crença. Tomemos aqui a
modo de exemplo a alusão do Rabelais ao rito no Quarto Livro (1548), de sua famosa sátira
Gargantúa e Pantagruel. Pantagruel, «abandonando a ilha desolada dos Papífigos», aborda junto
com seus companheiros a ilha dos Papímanos; ali se fazem adorar porque viram à Papa, e
inclusive a três Papas sucessivas, «de cuja visão eu não gozei», precisa não obstante Panurgo.
Os papímanos se ajoelham diante de nossos viajantes e pretendem lhes beijar os pés; os
destinatários de semelhantes comemorações se negam a aceitá-los argumentando que estes
devotos não seriam capazes de fazer a mesma ante a própria Papa: «Sim faríamos, sim,
respondiam eles. Isso já ficou resolvido entre nós. Beijaríamo-lhe o culo nu e os cojones
igualmente. Porque tem cojones, o santo pai, assim o encontramos em nossas formosas lhes
decrete, já que de outro modo não seria Papa. De maneira que em sutil filosofia decretalina, esta
conseqüência é necessária: é Papa, portanto tem cojones. E, quando o mundo já não requeira
cojones, então o mundo já não terá Papa». É evidente que Rabelais se refere ao rito em questão,
cuja fórmula figura de fato já no Terceiro Livro (1546); quando Panurgo quer afugentar a sombra
ameaçadora de um Júpiter que, ao pôr os chifres aos humanos, demonstra a fragilidade do
matrimônio, instituição em que nosso herói deseja acreditar, então sonha o seguinte: «Agarrareilhes isso com um gancho de ferro. E, sabem o que farei? Recuerno!... cortarei-lhe os cojones a
ras do culo. Não ficará nem um cabelo. Por esta razão não será jamais Papa, já que "testiculos
non habet”.
Seria tão absurdo perguntar-se que grau de realidade confere Rabelais ao rito de verificação,
como interrogar-se sobre sua crença na deidade pagã citada, porque em seu caso não são mais
que meros instrumentos aptos para seu propósito: a brincadeira. Mas a referência aos pontificais
tem em si mesmo uma importância capital. A viagem do Pantagruel e de seus amigos, que lhes
leva aos mundos igualmente absurdos dos papímanos e dos papígrafos, produz o mesmo efeito
de sátira global, que a que produz o investimento do mundo no Elogio da loucura. A piada verde
degrada a instituição suprema sem pretender derrocá-la, e, se Lucien Febvre tiver razão ao
associar as «criancices do Rabelais» a uma larga tradição de «jocosidades próprias de homens
de igreja», pela mesma razão também terá que pensar na tática igualmente própria dos
evangelistas», herdeiros neste sentido dos humanistas romanos, e de seu apetite de dominação
simbólica.
A explicação sócio-cultural do rumor ritual dá conta de uma transmissão importante a finais do
século XV, mas nada diz sobre o origem da crença que ela mesma neutraliza e multiplica a um
mesmo tempo. É ignorante da angústia que atende ao Roberto do Uzès ou ao Godofredo do
Courlon, e, no referente à baixa Idade Média, só pode aplicar-se aos relatos zombadores ou
retorcidos da cerimônia, e não às ingênuas reconstruções dos Mirabilia urbis, ou das lembranças
de viagem, pois inclusive no caso do Lorenzo Banck a menção do rito tem mais aspecto de
perplexidade que de polêmica ou de azedo. O tom com o que se difunde o rumor é importante, já
que sem este componente sério, dramático, inquieto ou angustiado, o murmúrio se perderia nos
estalos alegres e múltiplos do discurso anticlerical, dentro ou fora da Igreja. Retornemos, pois, aos
primeiros testemunhos, ou, melhor ainda, ao Roberto do Uzès, já que a Crônica do Godofredo do
Courlon não transmite a suficiente aspereza para poder captar o tortura que padece seu autor.
O horror do Roberto do Uzès
Não há nenhuma dúvida de que, no caso do Roberto, o rumor se expressa em términos de
horror, pois o apontamento, pareça ou não factual e referencial («diante dos assentos de pórfido
onde se conta que se verifica se a Papa é um homem»), se inserida em um conjunto de textos
que deploram, com tristeza e aflição, a decadência da Igreja romana. Estes textos, reagrupados
em duas coleções, o Livro das visões e o Livro das revelações, estão escritos dentro do gênero da
profecia, tal como o desenvolvem Joaquín do Fiore ou Juan do Roquetaillade: «Plujo ao Senhor
Jesus Cristo me revelar a mim, o mais vil dos pecadores, suas vontades, ora durante meu sonho
com visões imaginadas, ora durante a vigília com idênticas visões, ora com um discurso externo
ou interno, com numerosas metáforas acompanhadas de sua glosa correspondente». Deus
encarregou a seu mensageiro (nuntius) anunciar ao mundo a iminência dos tempos finais, e
denunciar a corrupção da Igreja e sobre tudo do papado. Esta postura profética adquire todo seu
sentido quando temos em conta o momento das visões, vividas e redigidas entre 1291 e 1295, já
que em 1294, Benito Caetani, o futuro Bonifacio VIII, empurra ao Celestino V (Pedro do Morrone)
à abdicação (à «resignação» como se dizia). Uma Papa com aspecto político, romano e
autoritário, acontecia, em circunstâncias duvidosas, a um ermitão, sem dúvida desordenado e
pouco eficaz, mas considerado santo (de fato, foi canonizado rapidamente) nos ambientes
reformistas que viam nele uma imagem autêntica dos apóstolos pobres, e inspirados pelo Espírito
Santo. Esta situação refletia materialmente uma oposição fortísima, que presidiria todo o século
XIII, entre verdadeiros e falsos sectários de Cristo. As visões do dominicano provenzal
apresentam imagens violentas do fim do mundo, da chegada do Anticristo e do descalabro da
Igreja (nave sem piloto, tempero deserto e vazio, etc.). Os assentos de pórfido utilizados na
verificação apareciam na basílica abandonada, um cenário sinistro evocado por outra visão:
«durante a vigília, vi sobre a terra um montão de mitras e de cruzes pastorais, sem bispo nem
prelados, formando uma massa indefinível» . O rito, bem seja interpretado como um sintoma ou
como um remédio, surge ao fio de uma evocação geral da falsidade e vacuidade de Roma, como
o manifesta «a visão XXXI sobre o estado da Igreja romana: eu rezava de joelhos, com o rosto
levantado para o céu, à direita do altar de São Jaime em Paris, e vi como no ar, e diante de mim,
o corpo de um supremo pontífice, com alvoradas de seda; estava de costas ao oriente, e
levantava as mãos para o ocidente, como fazem os sacerdotes durante a celebração do mistério
da missa solene, e eu não via sua cabeça seca, apergaminada como se fora de madeira. O
Espírito do Senhor me disse: "...representa o estado da Igreja romana"». Advirtamos o paralelismo
das expressões entre este texto e o que evoca o rito de verificação («sedes... ubi dicitur probari
Papa, an sit homo / intuens an esset homo sine capite...»). Nesta dobro visão da Papa, sem pés
nem cabeça, o horror do vazio se complementa com o da aparência equívoca da seda sobre o pó.
Assim, o papado e a Igreja representam uma paródia terrível que investe os valores, sem que
ninguém se de conta do que ocorre: «Visão XXVII horrível e terrível. Vi o seguinte em sonhos: eu
queria entrar em rezar na igreja da Santa María do Tarascón e, quando entrei pela porta principal,
vi ao redor do altar a um grupo de judeus pontuados, que levavam as vestimentas sagradas dos
sacerdotes, diáconos e subdiáconos, e oficiavam no altar ignoro que classe de rito, enquanto a
massa do povo assistia a essa celebração como se assistisse aos sagrados ofícios» . Em outro
lugar o Espírito Santo diz por boca do Roberto: «Profanarão as Iglesias, poluirão os Santos
cálices; homens imundos vestirão as roupas consagradas, e os panos sagrados receberão as
impurezas da menstruação». Em conseqüência, para o Roberto do Uzès o pior da profanação é o
contato impuro, que subverte o sagrado: o judeu, por um lado, e a mulher com sua menstruação,
por outra, tocam os objetos sagrados da liturgia. Mas nos achamos muito longe desses
investimentos do sentido moral que tanto agradavam aos humanistas. Aqui, o investimento é uma
cópia perversa que indica a ação diabólica, pois não terá que esquecer que no século XII, durante
o qual se medita muito sobre o homem como imagem de Deus, está acostumado a se pintar ao
diabo como ladrão desta imagem. Guillermo do Saint-Thierry assim o conta («usurpou o parecido
com Deus»), utilizando para isso o verbo «praesumere», o que a sua vez qualifica a ação da
Juana segundo seus primeiros historiógrafos; do mesmo modo, Gerhoch do Reichersberg
emprega términos análogos em seus próprios textos: «Este aspecto presunçoso do divino
parecido». Por sua parte, Pedro do Blois associa a evocação da consagração diabólica a de uma
cadeira maldita, reflexo perverso da cadeira de São Pedro: «O (Satã), este ser de extrema
perdição, não quis ficar sem Deus, mas, desejando usurpar a imagem do poder divino, fabricou-se
uma cadeira pestilento nas regiões do Aquilón e caiu». No texto do Roberto, o rito de verificação,
brevemente evocado, mas com o eco preciso da descrição e da perversão-investimento romana,
assinala ou conjuração a maior das profanações: a corporeización do divino, quer dizer a paródia
diabólica da encarnação. Neste ponto, o rumor ritual se encontra com o rumor anti-semita surto
durante o século XII, que encena igualmente a perversão do sagrado com o investimento litúrgico
e o contato profanador.
Segunda explicação: o medo à invasão feminina
Desde esta perspectiva, o rito de verificação conjuraria imaginariamente uma angústia que se
mantém ao longo de toda a Idade Média: o perigo de que a mulher polua o sagrado com sua
presença. que uma mulher se apoderasse secretamente do sacerdócio supremo contribuiria a
exacerbar a angústia de dito perigo; por isso, a idéia deste medo só se expressa de uma maneira
colateral, quer dizer mediante a fábula e o rito. Por sua parte, o direito canônico óbvia o tema; e só
muito tardiamente encontramos uma menção explícita da exclusão da mulher do papado, em um
canonista de começos do século XVI, o cardeal Domingo Giacobazzi, quem, em seu Tratado do
Concílio, aborda os casos de anulação em uma eleição papal por parte de um concílio: «O que
acontece se o eleito é acusado e sentenciado de ser uma mulher? Acredito que um concílio pode
depô-lo; em primeiro lugar, porque as chaves da Igreja não podem cair em mãos de uma mulher,
já que esta não tem direito nem a possuir nem a conservar o pontificado, mas sobre tudo porque
não lhe compete a tarefa de julgar, que é uma tarefa masculina. E todo isso vem a propósito do
escândalo produzido na Igreja universal.» Neste caso, justifica-se a verificação, a falta de uma
evidência constatable em outros casos de eleição ilícita: «O que ocorreria se se tratasse de um
menino de curta idade ("infans")? O problema pode parecer fútil... não é verossímil que os
cardeais sejam tão insensatos em sua eleição. Por isso, não convém interrogar-se sobre este
particular.» Giacobezzi enumera os casos de incapacidade, sem esquecer a angústia do
imprescriptible, quer dizer o fato de que a eleição mesma confere já, definitivamente, a dignidade
papal: «Mas me interrogo de novo sobre os defeitos que se possam atribuir a uma Papa e que
fazem que não seja uma verdadeira Papa, apesar de ter sido eleito por dois terços dos cardeais:
pode ser judeu sem batizar, pagão, inimigo e perseguidor de nossa fé, ou mulher; ou outra razão
que em nome do direito divino ou natural lhe impeça de ser Papa. Pode o concílio, então,
pronunciar-se a respeito? Terá que assinalar que quem sai eleito pelos dois terços dos cardeais
não pode ser rechaçado; lhe aceita porque não pode alegar-se nenhuma exceção». A angústia da
invasão secreta se intensifica do momento em que não se apóia em uma exclusão clara do
sacerdócio feminino, pois o rechaço da mulher carece de fundamento teológico seguro, toda vez
que constitui um fenômeno relativamente antigo. Em realidade, a exclusão procede de um horror
profundo ao contato impuro, codificado muito tardiamente.
A exclusão do sacerdócio feminino no direito canônico
Em efeito, se tomarmos como referência essas passagens do Decreto do Graciano (por volta de
1140), base do direito canônico, onde se exclui à mulher do sacerdócio, a verdade é que não
achamos nenhum fundamentou autorizado que justifique teológicamente essa exclusão; além das
proibições de que as mulheres pregassem (capítulo 29 da distinção 23, e capítulo 20 da distinção
4, De consecratione), há três passagens que prohíben à mulher ter contato com o sagrado: «pôsse em conhecimento da Sede Apostólica que as mulheres consagradas a Deus ou as moniales
revistam tocar (contingere) os copos sagrados ou os hábitos sagrados que lhes foram confiados...
todo isso deve abolir-se... E, para evitar que esta peste (pestis)... estenda-se até mais,
mandamos...» (capítulo 25 da distinção 23). Encontramos a mesma proibição em outro lugar: «A
Santa Sede Apostólica decidiu que ninguém toque os copos sagrados exceto os homens
consagrados a Deus, ao objeto de que Deus, irritado por semelhantes perversões, não envie uma
praga a seu povo» (capítulo 41 da distinção 1, De consecratione). Por último, o capítulo 29 da
distinção 2, De consecratione prohíbe taxativamente que tanto os laicos como as mulheres levem
a sagrada forma aos doentes. É certo que os textos do Graciano são muito anteriores ao século
XII, mas recordemos também que em realidade o que persegue o Decreto é, como indica seu
título autêntico, uma Concórdia dos cánones discordantes, e, a partir de elementos diversos
(cartas papais, cánones sinodiales ou conciliar, etc.), constrói um conjunto sistemático de textos.
Não obstante, a exuberante legislação religiosa vigente na alta Idade Média facilitava uma
orientação bem distinta a da síntese pretendida em primeira instância. Neste sentido, é preciso ter
em conta que o Decreto remete a uma situação concreta, qual é o contexto anímico que preside o
século XII, pois a exclusão das mulheres, junto com o medo à contaminação feminina ou judia,
pretendida-a instauração do rito de verificação, e, em definitiva, a história da papisa afundam suas
raízes profundas neste século XII obcecado pela idéia da pureza.
Os decretistas que glosaram ao Graciano com o passar do tempo confirmam esta impressão de
que a mulher produz um horror sagrado quando se aproxima dos lugares e aos objetos de culto.
Assim, e contra uma antiga decisão do Gregorio o Grande, retomada a sua vez pelo próprio
Graciano e seus primeiros comentaristas, Rufino, autor de uma Soma dos decretos redigida por
volta do ano 1158, e utilizada com freqüência pelos cronistas, prohíbe à mulher entrar na igreja
imediatamente depois de um parto. Do mesmo modo, Paucapalea, um discípulo do Graciano que,
entre 1140 e 1148, escreveu o primeiro comentário bolones de seu professor, a soma, refere-se à
menstruação da mulher da maneira seguinte: «Posto que a mulher é o único ser animado com
menstruação: com o contato de seu sangue os frutos não maturam, o vinho se azeda, as novelo
morrem, as árvores perdem seus frutos, o ferro se embolora, o ar se vicia, e, se os cães lamberem
esse sangue, contraem a raiva». Pouco depois, o chamado Rufino reutiliza textualmente esta
descrição dos efeitos do sangue menstrual, descrição que de fato já tinha sido utilizada a sua vez
pelo naturalista Solino.
Justificação dos glosistas
A justificação da exclusão da mulher só intervém de uma maneira tangencial e/ou tardia, a
posteriori; quando isso ocorre, encontramo-nos então com a misoginia psicológica e jurídica,
tradicional e universal. Assim, e a modo de exemplo, no Aparelho para os lhes decrete do
Gregorio IX (1245), do Bernardo de Bolonha, texto considerado como glosa ordinária do Liber
extra (os lhes Decrete) desta última Papa, encontramo-nos com a seguinte adivinhação, que por
outro lado bem poderia pertencer a uma fábula: «O que é mais ligeiro que a fumaça? O vento. O
que é mais ligeiro que o vento? O ar. O que é mais ligeiro que o ar? A mulher. O que é mais ligeiro
que a mulher? Nada» . Do mesmo modo, os rasgos universais da misoginia (a mulher é
«variável», «ardilosa», etc.) aparecem teorizados e classificados no Código Justiniano, que exclui
à mulher dos cargos civis por razão de sua debilidade moral, intelectual e física («imbecillitas et
fragilitas»). Ao parecer, o primeiro canonista que conferiu um fundamento teológico a este
antifeminismo «clássico» foi Huguccio, sem dúvida o jurista mais importante do século XII, quem
em sua soma (1188) declara que nenhuma mulher pode receber ordens dado que a «Constituição
da Igreja se apóia na razão do sexo» («constitutio ecclesiae facta propter sexum»). Até então, e
de acordo com o exposto pelo Graciano, justapunham-se interdições pontuais ou gestuales, fruto
a sua vez de autoridades antigas e de um simples «dictum» (opinião que não tem o caráter de
uma decisão pontifícia ou conciliar) do próprio Graciano, que afirmava que não se podia receber à
mulher nem como sacerdote nem como diaconista. A partir de então, para o Huguccio se trata de
um princípio constitutivo, e seu argumento essencial radica em uma leitura da Gênese 1,17: o
homem, mas não a mulher, foi criado a imagem de Deus. Dita leitura permite interpretar uma
construção hierárquica do universo, interpretação que alcançaria seu pleno desenvolvimento no
século XIII, cujo marco tranqüilizador e legalista, farto homogêneo em relação com as construções
laicas do momento, permite aliviar essa carga de angústia que aparece unida à obsessão da
impureza. Huguccio, o mais «justiniano» dos canonistas do século XII, pode prescindir, em
conseqüência, de qualquer alusão às sujeiras ou necessidades próprias da mulher, já que ele
parte da base que ao igual a ocorre na sociedade civil, a origem, a anterioridade e a necessidade
hierárquica, e não a «natureza», são as razões que privam à mulher dessa semelhança divina:
«diz-se que o homem, e não a mulher, é a imagem de Deus por três razões: de igual modo que
Deus é único e que todo deriva dele, assim em um princípio só se criou ao homem... Em segundo
término, de igual modo que a origem da Igreja brota do flanco do Cristo adormecido, em forma de
sangue e água, assim se formou Eva da costela do Adão dormido. Em terceiro lugar, de igual
modo que Cristo manda na Igreja e a governa, assim o homem manda na mulher.» Uma vez
formulado esta colocação quase feudal, Huguccio pode afirmar: «Mas, em uma quarta instância, a
mulher é tão imagem de Deus como o homem, na medida em que é acessível à essência divina
(essentie Divine capacem), por raciocínio, por intelección, por memória e por julgamento».
portanto, Huguccio consegue articular a tradição fria da legalidade romana com o temor ardente
da obsessão antifeminista. Cinqüenta anos antes, Graciano mantinha separados estes domínios;
assim, enquanto por uma parte se apoiava em escuras prescrições «naturais» para rechaçar a
idéia da ordenação feminina, por outras assinava tranqüilamente a exclusão cultural justiniana,
apoiada só na consideração das tradições e pelo que se refere ao tema dos juizes (e a Papa é o
juiz supremo): «Há três impedimentos para ser juiz: a natureza (o surdo, o mudo, o furioso
perpétuo e o impúber porque carecem de julgamento), a lei elaborada pelo Senado e os costumes
(moribus), as mulheres, e os escravos, não porque estes últimos careçam de julgamento, mas sim
porque está estabelecido que não desfrutem de cargos civis».
Mas ainda temos que encontrar outro sinal distintiva que marca esta evolução da mentalidade, a
finais do século XII e a princípios do XIII; referimo-nos ao segundo grande pilar do direito canônico
medieval, o já chamado Liber extra (ou lhes Decrete, ou Nova compilação) do Gregorio IX (1234),
onde se trata quase exclusivamente o tema da limitação do poder das abadessas, e sobre tudo
das abadessas mitradas, cujo estatuto era, em muitos sentidos, muito parecido ao dos bispos. De
novo, encontramo-nos ante uma situação clara e institucional (que não obsessiva) de domínio
masculino, que nos convida a situar a origem da angústia que gera a fábula da Juana, e também
o desejo de acreditar no rito. As reminiscências tardias da obsessão, que são as que
estruturalmente definitivamente o rumor (junto com as sátiras do século XV), estão já pressente de
algum modo nos textos do Roberto do Uzès e do Godofredo do Courlon, e refletem uma postura
particular, a dos «reformistas proféticos», que encontramos de novo na soleira da Idade Moderna
na pessoa do cardeal Gil do Viterbo (1469-1532). Este agustino, autor de uma História de XX
séculos, depois de relatar a história da papisa, constrói uma história universal da perdição
humana, apoiada em três enganos que a sua vez têm sua origem em uma feminización da
espécie humana. Ao primeiro engano, o encargo pela Eva, Gil acrescenta em segundo lugar, e
servindo-se de um florilegio de entrevistas proféticas, uma tendência dos povos a «transformar-se
não só em mulheres, mas também em prostitutas»; o terceiro engano se refere à progressiva
animalidad do gênero humano: «reunimos todas estas palavras [dos profetas] para descobrir a
razão dos três enganos: assim, a alma se acomoda a um corpo mau, para logo abrandar-se e
efeminar-se; por último, desliza-se pelo torvelinho da impureza e se converte em besta».
Enquanto na chancelaria romana se pode contar a fábula da Juana ou referir-se ao rito de
verificação sem pestanejar, nos desertos e nos bosques da meditação os «profetas» pressentem
a ameaça de impureza que se abate sobre uma instituição debilitada por sua própria frivolidade.
Estruturas medievais da obsessão pelo feminino
Como explicar a gênese da obsessão sexual dentro da Igreja do século XII, obsessão bem distinta
da misoginia rabínica e mediterránea, ou da segregação jurídica romana? Sem dúvida, faz-se
necessário recuperar aqui o tema da estrita obrigação do celibato eclesiástico, no momento da
reforma gregoriana do século XI, sublinhando de passagem a seguinte paradoxo: precisamente
no momento em que se impõe o celibato aos sacerdotes é quando se adverte a necessidade de
verificar a virilidade do mais eminente de todos eles. O século XII, momento de apogeu do
feudalismo e da reforma da Igreja, gera uma situação de sujeição por partida dobro: para
sobreviver, o laico deve contrair matrimônio com alguém que seja muito próximo (para assim
assegurá-la solidez do feudo) e de uma vez os suficientemente longínquo (para assim evitar o
incesto, ampliamente definido em tempos do Gregorio VII). A mulher representa então o papel de
vínculo nesta dobro sujeição, e em conseqüência sua imagem se idealiza de uma vez que se
despreza, e é tão querida como temida. Nesta ordem de coisas, cabe entender que o século XII
produzira simultaneamente a literatura cortesã e a devoção Mariana por uma parte, e o furor
misógino por outra. A Igreja, penetrada dessa mesma fascinação, de uma vez que ciumenta de
sua própria hierarquia suprema, outorga-se a si mesmo um estatuto suprasexual, de varão
andrógino: A Igreja é mãe («mater ecclesia»), algema («sponsa», mística de Cristo) e filha,
nascida do flanco de Cristo, como Eva nasce do flanco do Adão. Em sua obra, l'Homme enceint,
Roberto Zapperi demonstrou que é no século XII quando aparecem as primeiras representações
dessa reescritura da Gênese, a que nos referimos mais acima: Eva sai de um Adão grávida, que
lhe engendrou, enquanto que o texto bíblico fala da extração de uma costela, sublinhando assim o
paralelismo entre Igreja e Eva. Mas além disso, esta equiparação confere ao mesmo tempo certo
fundamento a preeminencia masculina, como já vimos a propósito do comentário do Huguccio à
Gênese 1,17: mulher em sua vertente divina, a Igreja goza do gênero masculino em sua vertente
terrestre, já que procede do Jesus e do Adão a um mesmo tempo. Esta androginia resulta válida
sempre e quando ficar sem resolver, quer dizer, enquanto não seja mais que um símbolo, em cujo
caso se sacrifica o exercício da sexualidade com o celibato voluntário, refletido externamente na
tonsura. O homem pode sacrificar, ou melhor dizendo sacrificar-se, porque é superior, porque está
do lado do eminente (sexual e juridicamente), enquanto que a mulher, em seu vazio, não pode
acessar a essa suprasexualidad que prescinde do sexo e dispõe seu rechaço. Enrique de Suas, o
famoso cardeal Hostiensis, grande canonista do século XIII, diz em sua Soma dourada (por volta
de 1250), e a título de causa que não de conseqüência, que «não se pode tonsurar à mulher, nem
pode amputar-se sua cabeleira (amputando)». Não se cortam os cabelos de uma mulher porque
seu ser sexual se manifesta com os rasgos que a distinguem, de maneira que não ficaria indício
algum de dito ser, enquanto que o super-homem eclesiástico apresenta de uma vez um sinal
natural e a de sua superação, já que aquela é quente e esta fria. Nada demonstra melhor este
asserção que as interrogações expostas pelos canonistas em torno dos hermafroditas, cujo
interesse aqui radica em que nos recordam o rito de verificação. Huguccio, por exemplo, perguntase se se pode ordenar sacerdote a um hermafrodita, e, ao transladar algumas considerações do
código justiniano sobre o valor do testemunho de um hermafrodita, chega à conclusão de que se o
sexo do hermafrodita for mais quente que frio, então terá que aceitar a ordenação.
Como entender, pois, semelhante interpretação da androginia, elemento dominante masculino,
dessa sexualidade assexuada? É certo que a percepção do real não deve sucumbir ante o
assombroso delírio exibido tanto pelos canonistas como pelos «profetas», pois no mais gélido da
Idade Média ninguém ignorava no que radicava essa distinção dos sexos; em realidade, achamonos ante uma colocação tendenciosa, que, como tal, fluctúa entre a sensação de angústia e a
necessidade de adaptação. Tiremos de uma parte ao homem do equilíbrio, a Santo Tiram do
Aquino, e de outra aos «profetas» iluminados, e comparemos. Em Tomam, a exclusão da mulher
também se apóia em sua incapacidade para significar-se, mas esse limite se inserida no contexto
dos valores sociais, herdados a sua vez do espírito jurídico romano: «Dado que o sacramento é
um signo ("signum"), nos atos sacramentais se busca não só a coisa, a não ser o signo da coisa.
Além disso, no sexo feminino não pode destacar-se nenhuma eminência de grau, já que a mulher
tem um estatuto de submissão; em conseqüência, não pode receber o sacramento da
ordenação»65. Como se vê, a fisiologia sexual carece de importância para Tomam, em quem a
evocação da papisa ou do rito de verificação só tinha suscitado um breve gesto de curiosidade.
Mas se, pelo contrário, fixamo-nos no Roberto do Uzès, um autor mais jovem, sentimos vibrar as
categorias fisiológicas do direito canônico: em suas visões, as Papas fantoches são «imberbes»,
«secos», enquanto que os profetas do Oriente mostram uma barba abundante. Assim, na Roma
repudiada pelo Roberto, a androginia sagrada se transforma em femineidad lasciva: «A câmara do
Pastor Jesucristo: José e María. E, a sua (a das Papas) está repleta de jovenzinhos pontuados,
lascivos e impudicos, que levam armas, alimentam pássaros e cães, roubam aos pobres e
engordam às prostitutas».
dentro desta linha profética que reclama a virilidade necessária para o exercício do sacerdócio, é
preciso mencionar a um monge do século XII, de personalidade escura, um tal Burchard do
Bellevaux, autor de uma Apologia da barba, quem assinala a barba, atributo viril suscetível de
tonsura, como um elemento necessário para a expressão da condição eclesiástica. Nesta obra
nos encontramos ante um desses casos limites que por sua exemplaridade resulta quase tão
revelador como o do hermafrodita chamado pelo Huguccio. trata-se do caso da Galla, a mulher a
Barbuda cuja historia Burchard toma emprestada do Gregorio o Magno. Ornamento adverte que
lhe sai barba quando faz muito calor (rasgo masculino), e o único remédio para seu mal consiste
em que acesse a romper sua castidade; ela se nega a ceder e conserva sua barba, como
testemunho de sua participação meritória na androginia sagrada.
Entre estas duas figuras extremas, as de Tomam e Roberto, caberia situar uma visão intermédia
da mulher dentro do universo sagrado da Igreja, tal e como de fato aparece em outro autor que
aqui nos importa, dado que se trata do historiógrafo mais conhecido da Juana: Martín o Polonês.
Este dominicano, homem da Cúria e capelão pontifício, redigiu a finais do século XIII uma
Margarida Decreti («A pérola do decreto»), que resulta ser um cômodo índice alfabético da obra
do Graciano. Citamos a seguir, e em sua integridade, o artigo «Femina» (Mulher), que reúne bom
número dos comentários referidos mais acima:
«Que não deve julgar-se nunca à mulher por razão da vergonha associada a seu sexo. Que,
embora seja douta e Santa, não deve pregar em uma assembléia de homens. Que nem as monjas
nem nenhuma outra mulher Santa devem tocar os ornamentos do altar nem tampouco os copos
sagrados. Que a religião não permite que um homem só fale com uma mulher sozinha. Que não
se devem comentar as formas das mulheres. Que a mulher não deve nem amputar sua cabeleira
nem usar roupas masculinas por afã de lucro. Que, embora a mulher esteja grávida ou com a
menstruação, não lhe deve negar a entrada em uma igreja». Neste texto cheio de moderação
estão pressentem ainda essas obsessões que durante o século XII mantiveram vivo o temor para
a mulher e seu possível domínio.
Até o momento, pudemos identificar duas formas complementares do eco que produz o rumor:
alguém é de caráter burlesco e vingativo, e a outra apresenta rasgos alucinados e obsessivos.
Ambas nos permitem perceber dois sistemas de representação bem diferenciados, que a sua vez
dão sentido ao rito de verificação da virilidade papal, respectivamente. Não obstante, temos que
continuar com este processo de reconstrução arqueológica do rumor para compreender as formas
de inserção do rito nas cerimônias de investidura papal. Neste sentido, deteremo-nos considerar a
disposição espacial dos objetos, dos gestos, das épocas e dos povos que foram dando corpo a
este rumor, tão bem acolhido nos corações, ou pelo menos em determinados corações.
CAPITULO II
História de um assédio
Segundo todas as aparências, sim se verifica o sexo das Papas, e o eco deste rumor medieval
se amplificará com o terror obsessivo ou com a alegria zombadora que se acontecem nos
ambientes de forte reverberação ideológica.
Mas, além desta amplificação, é preciso recolher também, e em suas próprias fontes, o
murmúrio anônimo e de caráter geral. Até aqui, ocupamo-nos que captar as interpretações
delirantes ou maliciosas do ritual que rodeia a coroação papal; mas sorte interpretação não pode
prescindir ou evitar o que constitui seu primeiro tema interpretativo, isto é o que constitui matéria
de exegese, porque o fato de que o rumor persista guarda relação direta com a própria
permanência desses sinais que aquele descreve a sua vez. Retornemos, pois, ao lar, a essa cinza
ou brasa de onde emana a fumaça do rumor, já que é preciso reconstruir a história de um ritual,
neste caso o da coroação papal, porque dito ritual é o que permite que subsista a possibilidade de
uma interpretação lhe desviem, e portanto de uma separação entre o que a cerimônia quer
significar e o que em realidade mostra. Por outro lado, esta história não se reduz à história de um
mal-entendido, de uma perda de informação que repõem os diferentes propagandistas do rito ou
do rumor, mas sim nos indica deste modo de que maneira uma sociedade resiste a ritualidad e ao
poder significados em dita cerimônia. Neste sentido, é certo que terá que guardar-se da
orientação pansemítica de alguns herdeiros, farto abusivos, do Ernst Kantorowicz ou do Clifford
Geertz, quem vê em qualquer cerimônia pública uma ocasião de intercâmbio, quer dizer de feliz
circulação ideológica, um momento metaforicamente contratual entre os que detêm o poder e os
sujeitos do mesmo; e para isso, isto é, para rebater essa edulcoración lenitiva do alcance político
que comporta a cerimônia, é preciso recordar que muitas cerimônias, como, por exemplo, as das
entradas reais francesas dos séculos XV ao XVII, de fato, sim encenam uma força logo que
dissimulada, e ilustram a singela alternativa que os poderosos blanden sobre as cabeças de seus
súditos: inspirar temor ou consentir piedade. Mas, embora a partir do século XIII tende a
confundir-se com os absolutismos aos que serve de modelo, o poder papal se distingue daqueles
em razão de seus próprios orígenes, tantas vezes recordados pelos reformistas inimigos do
poderio militar e estatal das Papas: o pontífice, bispo de Roma, é o eleito do clero e do povo
romano; domina para servir, e se receber riquezas e poder é para pô-los a disposição dos pobres
e dos fracos. As escrituras e a liturgia não deixam de dizer-lhe aos fiéis. Uma das características
mais destacadas deste poder é que se beneficia da aprovação divina, tão desesperadamente
reivindicada a sua vez pelos monarcas laicos, ao mesmo tempo que expor sorte carência ante
seus súditos com a publicação de textos e crenças nos que se apoiavam! Em efeito, o cerimonial
que rodeia o advento de uma nova Papa à cadeira de São Pedro é uma parte integrante da
liturgia católica, acessível por principio a cada fiel, e sobradamente conhecida menos de maneira
fragmentária. A interação que se estabelece entre a Papa e seus confie romanos procede, pois,
da particularidade da situação: se expressa em términos paroxísticos durante as cerimônias, cuja
defasagem permanente em relação com a realidade política e religiosa provoca a sua vez a
lembrança de um passado exaltado com o passar do ato cerimonioso, ou pelo menos
rememorado.
Nesta sintaxe de acordes discordantes, quer dizer, na cerimônia mesma, é onde procuraremos o
sentido do rito de verificação, confiando em poder encontrar a implantação progressiva e difícil
dos «mistérios de Estado», analisados magistralmente pelo E. Kantorowicz. Não obstante, seria
um vão intento por nossa parte pretender escrever uma crônica abreviada dos rituais da coroação
papal, já que estão muito bem documentados e minuciosamente analisados há séculos; por isso,
nesta historia sobre a discussão que agora nos ocupa, só escrutinaremos aqueles pontos de
acordo entre os discrepantes que rodeiam diretamente o recitativo da verificação.
Morfologia do rito de verificação de virilidade
antes de proceder à reconstrução desta sintaxe, recordemos brevemente os elementos
morfológicos que contribuem, em um momento ou outro, à elaboração do rito de verificação e em
conseqüência da lenda da papisa Juana. Os elementos que identificamos são os que seguem:
— lugares: o palácio do Letrán, com suas diferentes basílicas e capelas, onde, como vimos,
desenvolve-se a verificação. Este lugar é o contraponto de outro cenário, o Vaticano (com a
basílica de São Pedro), destino da procissão da Juana. Assinalemos deste modo um lugar
intermédio, perto da igreja de São Clemente, onde se supõe deu a luz a papisa. De fato, uma das
versões do texto do Martín o Polonês fala de uma «rua da papisa»;
— tempos: desde o Martín o Polonês, o papado da Juana se situa no ano 855. Mais adiante
(capítulo IV) teremos ocasião de discutir as circunstâncias precisas que justificam esta data dentro
da historiografia papal; no momento, o que nos importa é situar dito tempo em relação com a
evolução da cerimônia de coroação. Os tempos do calendário não são pertinentes, já que o
advento de uma nova Papa pode produzir-se em qualquer época do ano, em função da morte de
seu predecessor. Não obstante, é preciso sublinhar dois dados que sim aparecem conexos sobre
o calendário; a primeira aparição provada da fábula, em à crônica do Juan do Mailly, datada por
volta do 1250, desvela um detalhe bastante curioso: «Baixo ele (a Papa mulher) ficou instituído o
Jejum do Témporas e lhe chama o Jejum da Papisa». Narrações mais tardias (século XIV)
revelam a sua vez uma segunda indicação sobre o calendário: a papisa deu a luz durante a
procissão das Rogativas;
— atores: a Papa e seu séquito; um diácono (está acostumado a se precisar: o «último diácono»,
«ultimus diaconus») encarrega-se de tocar os pontificais;
— ações: a verificação mesma, tira-a de posse do Letrán, a separação da procissão para evitar
acontecer perto do lugar da iluminação da Juana. Este último aspecto do ritual aparece muito em
breve: Jacobo de Voragem* o resenha em sua Crônica da Génova em 1297, como muito tarde, e
— objetos: o objeto determinante e principal é, é obvio, o par de «cadeiras perfuradas» feitas
em pórfido e que, segundo o rumor, permitem verificar a virilidade papal. No capítulo anterior
apontamos o papel conexo que desempenha a sua vez a poltrona «estercolero», confundido em
ocasiões com os perfurados. As diferentes versões que existem sobre a lenda nos proporcionam,
em seu conjunto, um pequeno lote de objetos suplementares: uma «imagem» (retrato ou estátua)
levantada no lugar da iluminação, e que representa a Juana com seu filho; a primeira notícia deste
dado se deve à pluma do chamado Jacobo de Voragem. Algo mais tarde, vários autores se
referem a um pequeno edículo, instalado no mesmo lugar. Mas ainda há um último rastro da
Juana: trata-se de uma inscrição lapidária, cuja menção se reitera a partir do relato institucional do
Juan do Mailly, quem a situa sobre a sepultura da papisa. Dita inscrição, que muitos quiseram
apresentar como um sarcasmo do próprio diabo, oferece-se como uma fórmula com seis P
iniciais. O texto da mesma varia segundo os autores, mas a estrutura não troca; por nossa parte,
transcrevemos a seguir o texto do Juan do Mailly: «Pedro, Pai dos Pais, Publica o Pacto da
Papisa» («Petre, Pater Patrum Papisse Prodito Partum») .
Providos com esta bagagem um tanto heteróclito de signos, tratemos agora de identificar quais
foram os processos essenciais da interação ritual que deram sentido e contexto ao rito de
verificação e portanto à lenda da Juana.
Os assentos perfurados.
nos situemos, assim de repente, no momento de aparição dos «assentos perfurados» no ritual
romano oficial, e consideremos em primeiro lugar a natureza mesma do objeto em questão. Em
efeito, os assentos existem realmente, e podemos rastrear sua história litúrgica ininterrupta do
1099 até o século XVI, quando desaparecem da cerimônia de coroação. A última referência
litúrgica ao uso de ambos os assentos tem lugar com motivo da cerimônia de coroação de Leão X,
em 1513; meio século mais tarde, em 1560, Pio IV faz desaparecer do rito a «cadeira
estercolera». Por sua parte, as duas cadeiras perfuradas foram relegadas ao palácio do Letrán, e,
logo, já no século XVIII, Pio VI as colocou no museu do Vaticano. Os acontecimentos históricos se
encarregaram de separar às cadeiras as gema, e embora uma delas se conserva ainda no
Vaticano, a outra se encontra atualmente no Louvre, pois foi levada a Paris pelo Napoleón a raiz
do Tratado do Tolentino.
Estes dois assentos idênticos estão feitos com um mármore precioso, de tom alaranjado,
chamado «vermelho velho», que se utilizou durante o Império Romano, e que se extraía de umas
pedreiras situadas ao sul da Grécia; esta classe de mármore recorda bastante ao pórfido, razão
pela qual no século XII se chamou a estes assentos «assentos de pórfido» («porphyreticae» ou
«porphyrae»). O assento propriamente dito repousa sobre dois suportes paralelos e maciços (de
48 centímetros de altura), cujos bordos anteriores e posteriores esboçam volutas; o respaldo
adota a forma de um meio cilindro, tem 44,5 centímetros de altura, e se prolonga em uns braços
decotados. O assento, que está delimitado por dito respaldo, apresenta em seu centro um orifício
circular de 21,4 centímetros de diâmetro, talhado em seu quarto anterior por uma abertura (13,2
por 13,7 centímetros) quadrada, que parte o bordo frontal do assento. Assinalemos de passada
que não existe nenhuma descrição objetiva e asséptica do assento, e que por nossa parte
construímos nossa descrição em função de dito orifício. Mas, se a esse objeto que na atualidade
constitui uma peça de museu, exposta a sua contemplação global, aplicamo-lhe as teorias e os
exercícios perceptivos da Gestalttheorie*, quer dizer da psicologia da forma, então constatamos
que, sem partir já do orifício, mas sim da forma em seu conjunto, também pode ver-se uma
cadeira com assento profundamente decotado e não um orifício praticado em um assento. O matiz
é capital. Não obstante, a forma dos assentos resultou em seu dia o suficientemente estranha
para suscitar toda essa série de interpretações funcionais que reunimos no capítulo anterior. Os
eruditos modernos e contemporâneos, sem dúvida mais pacatos e também mais respeitosos,
deslizaram-se geralmente do âmbito da interpretação ao menos comprometido da descrição, para
determinar a primeira função dos assentos, cuja fabricação se remonta, em efeito, à antigüidade
tardia. Mas a origem não pode converter-se em causa, e ao falar de reutilización não se explica
nada, de maneira que só subtrai considerar as gente do medievo como a selvagens ingênuos, que
utilizavam qualquer resto antigo sem discernimento algum. Por sua parte, os arqueólogos
chegaram quase sempre à conclusão de que se tratava de assentos de banho, cujo lugar original
eram as termas. Já em 1841, F. do Clarac expor esta hipótese em seu guia do Louvre, que seria
retomada logo, a princípios do presente século, pelo Ameling, e logo pela enciclopédia PaulyWissowa; recentemente, J. Deer confirmou sorte conjetura com argumentos bastante sólidos.
Alguns investigadores alemães, entre eles Amelung e Helbig, não excluem a idéia de que fossem
assentos «de noite» ou «de alívio», de maneira que não sem certa malícia poderíamos dizer que
a arqueologia mais séria coincide em seu diagnóstico com as picardias escatológicas de Platina.
Mas no que se refere ao sentido de seu reutilización, reina o silêncio mais absoluto, com uma só
exceção.
A hipótese de d'Onofrio: sela parteiras
Em efeito, a construção audaz, engenhosa e bem documentada proposta pelo Cesare d'Onofrio
em 1979 apresenta o interesse de explicar ao mesmo tempo a origem e a reutilización dos
assentos. Particularmente, a hipótese d'Onofrio não parece convincente, mas a solidez de sua
argumentação nos convida a nos deter nela alguns instantes.
Segundo d'Onofrio o pontificado medieval utilizaria duas cadeiras parteiras antigas para
significar metaforicamente o conceito do Mater Ecclesia, de Mãe Igreja. Nosso autor toma como
ponto de partida a interpretação de um médico dinamarquês, Cheire Borrichius, quem em 1690
descrevia os assentos conservados à maturação no Letrán, cujo antigo uso cerimonioso ao
parecer conhecia, e que identificou então como as cadeiras parteiras utilizadas em seu dia pela
imperatriz Popea. O uso da cadeira parteira, onde se sentava à parturiente para lhe facilitar a
tarefa, recolhendo-se ao recém-nascido por um orifício praticado no centro do assento, está bem
documentado durante os primeiros séculos da era cristã. Soranos, um médico grego do século II
—cuja obra foi traduzida ao latim no século V, e mais tarde no VI foi adaptada pelo Muscion, um
médico africano de língua latina—, descreve com grande precisão este tipo de cadeira: «O que é
uma poltrona obstétrica? Pois terá que imaginar uma poltrona de barbeiro; e, ao sentar-se,
debaixo do sexo se abre um orifício em forma de lua, de maneira que o menino possa deslizar-se
por ele». Um baixo-relevo de princípios do século III, esculpido na tumba da parteira ScriboniaAttica, representa uma cena de parto em que se observa a uma mulher sentada em uma cadeira,
cuja altura, forma quase cilíndrica, e decotes dos braços, recordam muito aos assentos de pórfido
que agora nos ocupam. Na mesma cena, uma mulher sujeita à parturiente pelas costas, enquanto
que a parteira, agachada diante desta, passa uma mão por entre suas pernas e deixa a outra
suspensa no ar, para reter a queda iminente do recém-nascido. O uso da cadeira parteira se
mantém ao longo da Idade Média, como assim o demonstram, além da iconografia, um tratado da
Avicena sobre o parto, e um texto escrito em italiano a começos do século XV pelo médico
paduano Miguel Savonarola, avô do terrível dominicano de Florência. Parece, pois, que se
cumpriu com as condições materiais do uso metafórico do assento; mas as condições ideológicas
também resultam solventes, se tivermos em conta que o palácio do Letrán, legado pelo
Constantino ao papado, oferecia seu marco (e seu mobiliário) à reivindicação papal de uma
continuidade entre o Império Romano e o pontificado. Cesare d'Onofrio combina com astúcia as
fontes para demonstrar que o fato de que os assentos sejam de pórfido não tem nada de fortuito,
mas sim forma parte da simbologia do poder imperial. Quando, em meados do século X,
Liutprando da Cremona relata suas impressões de Constantinopla, assinala que o atributo imperial
«porphyrogeneta» não significa «nascido na púrpura» (significado, por outra parte, aceitável do
ponto de vista do léxico), a não ser «nascido no edifício chamado Porphyria», quer dizer no
palácio reconstruído no Bizancio sobre o modelo do Letrán, que Constantino tinha cedido ao
papado. Nesta mesma ordem de coisas, dois séculos depois, a princípios do século XII, a
princesa imperial Ana Comneno, ao recordar seu próprio nascimento no palácio, indica que essa
sala chamada Porphyria, completamente revestida de mármore vermelho (o mesmo material que
o dos assentos), estava exclusivamente destinada às iluminações imperiais . O aspecto imperial
destas cadeiras parteiras deveu perdurar, pois, vivo nas memórias romanas e clericais, ciúmas
sempre por controlar toda essa simbiología imperial que o pontificado tinha tomado emprestada
para seus próprios fins. Por outra parte, a eclesiología romana podia admitir perfeitamente a
metáfora maternal: a expressão Mater Ecclessia figura na literatura patrística do século II, e não
deixa de utilizar-se e glosar-se durante toda a Idade Média. Do mesmo modo, podemos coincidir
com o Cesare d'Onofrio em que o costume de representar à Virgem da Anunciação encostada aos
edifícios da igreja provocou a confusão dos dois temas iconográficos: a Virgem e a Mãe Igreja. A
prova iconográfica mais turbadora se encontra em uma série de cilindros do Exultet, decorados
com miniaturas, e copiados entre os séculos X e o XIII no sul da Itália. Três destas miniaturas
representam a uma mulher que emerge do telhado de uma igreja, e se trata em efeito de uma
representação feminina da Igreja, e não já da Virgem, como o indica o fato de que vista muito
ostensiblemente o «pallium» pontifício ou arzobispal. Além disso, ainda há uma quarta miniatura
onde, em um marco idêntico e com o mesmo gesto lhe orem (os braços em cruz) substitui-se
sorte figura feminina pela representação de um prelado barbudo e vestido com o «pallium». Desta
maneira, quer dizer mediante uma singela permuta, a Papa ocupa o lugar da Igreja feminina. Fica
ainda um último argumento que permite articular metáfora e ritual: por volta do 1190, isto é perto
de um século depois da introdução dos assentos de pórfido, encontramos em três cerimoniais de
investidura (dos que falaremos mais adiante) uma indicação ritual tão estranha como pouco
explicável: «Nestes dois assentos (os assentos de pórfido), o eleito deve sentar-se como se
jazesse entre dois leitos («inter duos lectos jacere»).
Os textos sobre o cerimonial de coroação repetem de século em século esta indicação. A
posição estendida, tão oposta à superioridade de um trono, bem poderia favorecer a idéia do
parto.
Crítica da hipótese
Apesar de sua coerência sedutora, a hipótese do Cesare d'Onofrio não pode convencer de tudo a
ninguém, já que há quatro objeções importantes que impedem de assinar sorte tese:
1. Nenhum texto, nem litúrgico nem doutrinal, associa os assentos com a imagem da Mater
Ecclesia, toda vez que, como se verá, a cerimônia está glosada com todo detalhe. A miniatura do
Exultet constitui um hápax, quer dizer um caso absolutamente único de equivalência entre a Papa
como majestade e a figura feminina da Igreja.
2. D'Onofrio não explica em nenhum momento a binaridad gemelar, e portanto essencial, dos
assentos.
3. Sem ânimo de polemizar sobre matizes semânticos, parece razoável considerar que a Mater
Ecclesia desempenha em um princípio um papel protetor, mais que um papel progenitor. Em
outras palavras, que a Mãe Igreja se apresenta como matrona, materfamilias, e não como
parturiente. Assim, o autor do cerimonial de 1273, por exemplo, justifica o que a Igreja promulgue
as excomunhões o dia de Quinta-feira Santa, e o que em dita festa deva proibir-se qualquer
atuação de caráter judicial: «Terá que responder que não se trata de uma promulgação de
sentença, mas sim da representação de uma exclusão, e isso não pela via judicial, a não ser
mediante a advertência e a correção maternais». Entretanto, o paralelo com a Virgem da
Anunciação se desvia; durante a narração evangélica, María, uma vez foi visitada, anuncia uma
história particular, única e insubstituível, a da Encarnação: está grávida do Jesus e do salvador,
coexistentes ambos. A Igreja, por sua parte, do que poderia estar grávida? Como se chamaria o
recém-nascido expulso sob seu assento? Com este embaraço repetido d'Onofrio aumenta
dramaticamente a demografia sagrada. A Mãe Igreja, já amadurecida e bem assentada em sua
opulência prudente, aparece mas bem como uma variante dos papéis protetores e dominadores
assumidos pelas Papas e os bispos: pai, mãe, pastor.
4. A praxe da permutação sexual (aqui é a representação da Papa em mãe) parece tão impossível
em sua realidade individual e concreta, em sua representação gestual, como o é possível (como
de fato tudo é possível) em uma derivação metafórica da meditação doutrinal. A conotação
paternal que comporta o pontífice, muito forte e muito antiga, impede qualquer assimilação
feminina: o término «Papa» tem seus orígenes na língua grega, e dos tempos homéricos, no
balbuceio infantil com que se designa ao pai. Cipriano e Agustín o aplicam ao bispo, e esta
designação adquire carta de natureza, no século V, para nomear ao pontífice; entretanto, no
século VI encontramos já o nascimento da expressão «Pai dos Pais» («Pater Patrum»). O
apelativo era tão mais importante do momento que conseguia conjugar o vocabulário pão-familiar
dos cristãos e o léxico político do Império Romano, ao qual o pontificado teve tanto empenho em
vincular-se. De fato, os juristas do segundo século chamavam o imperador «Pater Patriae», «Pai
da Pátria», embora M. Cartilha e Q. Catulo já se dirigiram ao César em ditos términos; e, ainda em
tempos da Papa Gelasio (finais do século v), o imperador Anastasio gozava do mesmo título. Por
isso, seria bastante surpreendente que a finais do século XI, época que se caracteriza
precisamente por importantes imitações nostálgicas do pretérito modelo imperial, recorresse-se à
metáfora oposta que supõe uma maternidade muito parturiente. Em uma palavra, se a Igreja for
mulher e mãe, a Papa é a sua vez homem e pai. Abortemos, pois, o feto Papa d'Onofrio, já que só
pode transtornar a esse casal sólido, e retornemos ao momento preciso da aparição dos assentos,
para tentar escapar do claustro familiar que encerra ao pontífice.
Primeira aparição dos assentos: a coroação de Pascal II (1099)
A aparição se produz no ano 1099, no momento do advento de Pascal II à cadeira do Pedro.
Leiamos a seguir a narração completa da investidura desta Papa, segundo o relato
contemporâneo do Liber Pontificalis:
«Havendo falecido o senhor Papa Urbana (= a Urbano II), de solene memória, a Igreja que estava
em Roma quis proporcionar um pastor. Com este propósito, reuniram-se na Igreja de São
Clemente os pais cardeais e bispos, os diáconos e os magnatas da cidade, com os primeiros
notários e os tabeliães regionais. depois de discutir numerosas candidaturas, chega-se a um
acordo fácil sobre ele (igual a Urbano II); esta eleição, uma vez conhecida, desagradou a este
homem de bem; quis evitá-la fugindo e escondendo-se. Mas não pôde escapar por muito tempo,
para agrado de um sozinho, da decisão humana, ele a quem a graça do poder divino tinha
decidido designar para a salvação da multidão. Lhe encontra, lhe arrasta ante a assembléia e se
reúnen de novo. discute-se sua fuga: "Verdadeiramente precisava fugir, Pais, diz ele, antes que
suportar, com uma excessiva presunção de alma, o peso muito desigual deste fardo; não
convinha que o sacerdote que eu sou se enrede nas laçadas desta honra para sucumbir, preso,
aos vínculos desta carga." "Não, dizem os pais, não deve falar assim; sua vontade deve deixar-se
guiar para o ponto onde, você sabe, olhada-las divinas orientaram sua decisão. Hei aí que o povo
da cidade te quis como pastor; o clero te escolheu, os pais lhe felicitam e por último o cuidado de
toda a Igreja repousa sobre ti. Todo isso é divino e é por inspiração divina que, reunidos,
escolhemo-lhe e confirmou para o pontificado supremo." Assim, depois de prolongadas
reticências, troca seu nome, e logo os primeiros notários e os tabeliães regionais lhe aclamam por
três vezes: "Papa Pascal, São Pedro te escolheu." depois de proferir estas aclamações e outros
louvores, os pais lhe vestem com a clámide vermelha e lhe coroam com a tiara; acompanhado
pelos cantos da massa, deixa-se conduzir ao Letrán; levam-lhe ante o pórtico norte da basílica do
Salvador, que se chama basílica do Constantino; descende do cavalo; colocam-lhe no assento
que ali se encontra, e logo no assento patriarcal; continuando, sobe ao palácio e se chega até as
duas cadeiras curulas (ad duas curules). Ali lhe rodeiam com o baltheum (a banda ou faixa) de
que penduram as sete chaves e os sete selos; desta maneira sabe que com a graça septiforme do
Espírito Santo deverá presidir, sob a autoridade divina, o governo das santas Iglesias, unindo e
desunindo com toda a justiça e solenidade requeridas; continuando, desagrade-se de um assento
a outro, e recebe em sua mão a férula; e, conclui os ritos da eleição, ora sentado, ora caminhando
(vel sedens vel transiens), exercendo já seu papel de senhor, pelo resto dos lugares do palácio
que estão reservados unicamente aos pontífices romanos».
O começo do texto narra atentamente a reticência de Pascal II, mas não nos deteremos no relato,
já que dito episódio reitera uma «toupeiras» da eleição do pontífice, reproduzido constantemente
da eleição do Gregorio o Magno. Pascal I, de quem o recém eleito de 1099 toma o nome, também
manifestou idêntica reticência no 817. Sem dúvida, neste rito, apresentado em todo momento
como uma atitude individual, podemos advertir a proclamação inequívoca de que o eleito não
pretendeu obter a sede papal mediante a intriga. Mas o rito cumpre deste modo a função de
explicar uma separação radical entre os fiéis e o eleito; este último, que ainda é um homem
comum, sobressaltado de espanto, não pode admitir sua transmutação divina por mediação do
Espírito Santo. O discurso argumentado dos pais manifesta a sua vez a parte divina na eleição
humana de uma Papa. Em conseqüência, esta necessidade da separação revela no curso da
sintaxe a existência de ritos de trânsito, tal e como o analisa Arnold Vão Gennep.
A cerimônia em si mesmo não apresenta um aspecto litúrgico propriamente dito, pois a
consagração litúrgica só intervém depois, na basílica de São Pedro do Vaticano, enquanto que o
rito da eleição («modus electionis»), que seria suficiente por si só para a investidura papal, conclui
a sua vez com a tira de posse do Letrán, único lugar específico, já que o cenário do escrutínio
(neste caso a igreja de São Clemente) é contingente. Embora a tira de posse do Letrán não
comporta a celebração de uma missa, terá que distinguir, não obstante, entre uma fase religiosa e
pública e uma fase profana, separadas entre si pela ascensão da escalinata do palácio. A fase
religiosa compreende o uso de dois assentos: o primeiro, sem qualificar («in sede») encontra-se
situado sob o pórtico da basílica do Salvador (a basílica patriarcal, San Juan do Letrán); o
segundo, chamado «assento patriarcal», e sem localizar no texto, está situado no interior da
própria basílica, ou em uma sala pública adjacente. Fontes posteriores nos permitirão voltar sobre
este particular.
A segunda fase, que tem lugar em uma planta do palácio, desenvolve-se em uma soleira: a
bandagem com as sete chaves e os sete selos (que unem e desunem de uma vez que expressam
a plenitude jurisdicional do pontífice) entrega-se à Papa justa antes de que tome assento nas
cadeiras curulas; o matiz cronológico é importante, já que, como se verá, as versões posteriores
da cerimônia, com significados diferentes, assinalam a entrega das chaves durante a parada que
o eleito efectúa nas cadeiras de pórfido. A insígnia que em 1099 recebe a Papa nas cadeiras
curulas é o bastão («férula»), atributo nitidamente imperial (e/ou senhorial) que representa a
autoridade secular, e que se utilizava desde mediados do século X. Por outra parte, um cerimonial
anônimo de finais do século XII, o Ordo da Basilea (na Igreja se chama «ordo» a um texto
normativo, cerimonial e/ou litúrgico), descoberto recentemente pelo Bernhard Schimmelpfennig,
diz que «estes dois assentos e o que se chama estercolero, não foram em modo algum
patriarcais, a não ser imperiais». A parte final de ritual de 1099, a de marcha ou parada
(deveríamos dizer a sessão «vel sedens vel transiens»), está referida a outros lugares do palácio,
reservados unicamente aos pontífices romanos; quer dizer, que os assentos pertencem já ao
específico e senhorial da Papa, fora dos lugares compartilhados (a basílica ou a sala pública do
palácio). Em definitiva, os assentos associam e separam de uma vez o poder jurisdicional e o
poder senhorial do pontífice.
Os assentos curules de 1099
Mas passamos por uma qualificação essencial, quase sem nos dar conta: aos assentos lhes
chama curules. por que? Fustiguemos ainda um pouco mais a preguiça arqueológica, que neste
caso nos indica uma reutilización duplamente ignorante por parte da Igreja; pois se, por um lado,
os assentos curules não têm por que estar em dito lugar, por outro, a cadeira curula dos romanos,
símbolo do poder de cônsuis e pretores, era uma cadeira dobradiça de madeira ou de marfim,
com forma de X, e que não guarda relação alguma com a forma dos assentos de mármore
vermelho que nos importam. Mas, precisamente, e aqui propomos solenemente a seguinte
hipótese: em realidade se trata, sem lugar a dúvidas, de assentos curules; a exatidão formal não é
relevante, já que neste caso ditos assentos desempenham um papel simbólico. Como teremos
ocasião de demonstrar, faziam falta sela curules, mas esse mobiliário frágil —madeira ou
marfim— não durava em Roma. Pelo contrário, os assentos de pórfido, de cuja antigüidade
gloriosa se tinha notícia, puderam subsistir graças a seu gemelidad (as cadeiras curulas foram
sempre por casais). Por isso, e partindo da percepção de seu significado de fundo segundo o
modelo perceptivo da Gestalttheorie citada mais acima, entendemos que não se trata de poltronas
com um orifício, a não ser com um assento estreito, como o das susodichas sela curulas, e as
volutas em forma de S investida dos suportes seriam a sua vez uma lembrança da X que figura
aos pés do assento dos cônsuis. Em última instância, a pertinência simbólica importa mais que a
estrita adequação formal.
por que era preciso que figurassem umas cadeiras curulas no 1099? Um artigo do Stephen
Kuttner nos põe sobre a pista. Mediante uma hábil separação de seu significado eclesiológico e
político, Kuttner demonstra que até o Inocencio III a titularidade canônica das Papas oscila entre
dois extremos: por uma parte, Gregorio o Magno implantou a denominação humilde de «escravo
dos escravos de Deus» («servus servorum Dei»); o pontífice, que é chefe da Igreja, fica ao serviço
dos bispos e dos sacerdotes (que são os servidores de Deus). Mas, por outra parte, ao investir
esta situação em relação com os prelados, os pontífices da época gregoriana (quer dizer,
imediatamente antes de nosso cerimonial de 1099) tentam proclamar-se Papas ou patriarcas
universais. A posta é realmente maiúscula, pois dito título implica a submissão de outros
patriarcas (Constantinopla, Antioquía, Alejandría e Jerusalém) a Roma, e a fortiori, dos prelados
da igreja cristã em todo o universo. Entretanto, Gregorio o Magno tinha proibido que ninguém
pretendesse autodenominarse «universal», reforçando-se dita proibição nas lhes-decretales
Decrete isidorinas do século IX, através da voz do pseudo Pelago. Ao legislar desta maneira,
Gregorio põe de manifesto sua humildade pessoal, mas também expressa uma vontade férrea de
resistir às pretensões universais manifestadas a sua vez pelo patriarca de Constantinopla, com o
apoio do Império. E, ainda a finais do século VIII, enquanto se preparava o concílio da Nicea II,
Adriano tem ocasião de reprovar ao patriarca Tarasios de Constantinopla seu prepotente título.
Não obstante, as Papas não podiam sustraerse de tudo à tentação de passar da proibição em si
mesmo defensiva, à apropriação real do título, de maneira que a partir do século VII, e
concretamente desde o Martín I, empregam já a titulación universal, até que no século VIII a
difunde definitivamente a falsa Doação do Constantino. Durante a reforma gregoriana (segunda
metade do século XI), e em pleno apogeu da hierocracia papal (por utilizar a expressão
magistralmente analisada pelo Walter Ullmann), a reivindicação de universalidade se afirma com
primeiro força com o Alejandro II, no 1061 (aconselhado sem dúvida pelo archidiácono
Hildebrando, futuro Gregorio VII); neste sentido, é significativo que o primeiro juramento de caráter
feudal que se faz à Papa, o pronunciado pelo Ricardo da Capua em 1073, dirija-se a «meu senhor
Gregorio Papa universal». Em 1080, Roberto Guiscardo repete esta fórmula ao receber do mesmo
Gregorio VII os feudos da Sicilia, Apulia e Calabria (assinalemos de passagem essa contribuição
normanda a hierocracia papal, ao associar o uso de pórfido na construção das tumbas dinásticas
dos soberanos normandos do sul da Itália, à figura de seu senhor, a Papa). A expressão de
«universal» aparece ainda nas atas do Sínodo romano de 1079, até que os Dictatus papae do
Gregorio resolvem definitivamente a questão: «Só o pontífice romano pode chamar-se com justo
título universal.» Aqui terei que citar igualmente ao cardeal Deusdedit e aos Dictatus do Avranches
(1085-1087).
Lucano, a cúria e o papado
Mas essa titularidade universal encontra uma forte oposição dentro da própria Igreja romana. Os
primeiros grandes canonistas do século XI se apóiam em proposições bastante vagas do pseudoPelago ou do Gregorio o Magno («Que ninguém se autotitule universal») para opor-se firmemente
a dito uso, como pode advertir-se nas Diversorum patrum sententiae, no Polycarpus (1109-1133)
ou no Anselmo do Lucques (1083-1086). Graciano, autor da primeira grande recopilação de direito
canônico, por volta do 1140, toma postura clara a respeito: «Ao pontífice romano não lhe chama
universal» (Distinção 99). Entretanto, o uso de dito título, iniciado pelo Gregorio VII, adquire
caráter institucional como assinala Rufino em seu Summa; a partir de então, os glosistas do direito
canônico, como Juan Faventino ou Juan o Teutónico, fixarão-se a um mesmo tempo no uso do
título e sua derrogação teórica no Decreto do Graciano. A finais do século XII, a Soma Tracturus
Magister oferece um argumento mais preciso: «Não se conserva esta palavra para evitar assim
essa arrogância que a gente de Constantinopla estava acostumada atribuir aos pontífices
romanos em tempos do imperador Mauricio»; esta alusão a Constantinopla dissimula mal o
alcance romano e político da controvérsia: quer dizer, a idéia de universalidade expressa já o
absolutismo do pontífice. Consideremos agora a postura do grande jurista do século XII,
Huguccio, quem, depois do cardeal Humberto*, foi um dos primeiros defensores do poder
oligárquico dos cardeais-obispos, cujo monopólio eleitoral, estabelecido em 1059, tendia a adotar
a dimensão de uma partilha do poder pontifício. Huguccio tomou parte no debate, contribuindo ao
mesmo maior grau de generalidade: «Porque se a palavra ("universal") convém a vários e só se
atribui a um, parece como se a tirasse a outros.» A atitude antimonárquica aflora sob a defesa dos
patriarcas; em efeito, Huguccio continua dizendo: «Já que aquele que se diz universal ("universus
do universalis") parece ser tudo ("é-se omnia") no sentido em que César foi tudo.» Curiosamente,
esta última frase cita e parafraseia com bastante exatidão o começo de um verso do Lucano
(«Omnia Caesar erat») («César era tudo»), no livro III da Farsalia, com intenção de provérbio
político*. Leiamos a seguir essa parte no que Lucano narra com espanto a cena de demissão dos
senadores da República ante o César: «A massa dos Pais (patrum) encheu os palácios (palatia)
do Febo, abandonando suas dobras sem nenhuma forma senatorial legal; os assentos sagrados
não emprestaram seu esplendor a nenhum cônsul; não está presente nenhum pretor, poder
legitimamente próximo ao consulado; retiraram-se de seus lugares as cadeiras curulas vazias
("vacuaeque louco é-se curules"). César era tudo».
O hemistíquio que precede imediatamente à locução utilizada como provérbio contra as
pretensões universais e absolutistas das Papas diz explicitamente que as cadeiras curulas estão
vazias. Neste sentido, compreende-se então a função simbólica das curulas do Letrán, posto que
com sua presença habitada negam o «cesarismo» das Papas, e converte aos cardeais em
«senadores» (patres) dirigidos por um cônsul. Os assentos de pórfido são, pois, sem dúvida
alguma, sela curulas, que cumprem a função simbólica de marcar um transação cerimonioso entre
a monarquia pontifícia e a oligarquia cardenalicia.
É certo que a referência literária empregada pelo Huguccio pode parecer tardia (terceiro quarto do
século XII) e erudita; mas a verdade é que de fato nos situa ante um conhecimento compartilhado
pelos homens da cúria e pelos grandes teólogos dos séculos XI e XII. Por sua parte, Gerhoch do
Reichersberg emprega deste modo a expressão do Lucano a propósito das Papas de
investigatione antichristi: «portanto, se, como se há dito a propósito do César, o romano pontífice
o é tudo...» Por último, o sentido proverbial do hemistíquio do Lucano aparece também, e inclusive
em um contexto diferente, sob a pluma do Pedro «O Chantre»* quem em seu Verbum
abbreviatum lança contra os bispos pluralistas, quer dizer aqueles que desfrutavam de diversos
benefícios em lugares diferentes, a seguinte invectiva: «São piores que Julho César, de quem
Lucano, ao enumerar todos seus crímenes, há dito a modo de conclusão que César era tudo
("omnia Caesar erat»); em efeito, César era a um mesmo tempo, cônsul, cuestor, etc., na mesma
cidade; mas aqueles que atuam do mesmo modo em várias cidades são ainda piores». Parece,
pois, bastante verossímil que esta denominação proverbial do absolutismo (e sua correta tradução
no vazio das cadeiras curulas) circulasse efetivamente no meio curial de finais do século XI.
Assim, o fato de que a Papa faça uso das curulas no momento de seu advento ao trono do Pedro
constitui uma negação metafórica, pois desta maneira a Papa assume uma superioridade (a de
cônsul) que implica a sua vez uma hierarquia e não uma tirania. Esta réplica gestual aos que,
como Huguccio, queixavam-se («se eu for tudo, você não é nada», «se ego omnia, seu é nihil»)
anuncia com precisão a resposta discursiva e logística do Inocencio III, um século mais tarde:
«fala-se da Igreja universal em dois sentidos. Se se compuser do conjunto das Iglesias, diz-se
Igreja universal ou católica, segundo o vocábulo grego; desde esta acepção, a Igreja romana não
pode ser universal [de fato não o é um absoluto], pois só é uma parte da igreja universal, a parte
principal e primeira, como a cabeça o é do corpo. chama-se igreja universal a que governa a todas
as Iglesias, e somente neste segundo sentido se chama universal à Igreja romana».
Transações papais
Voltemos sobre os términos eclesiológicos do transação justificando em primeiro lugar o uso do
vocabulário romano da República, e depois sua adequação à situação concreta de 1099.
Gregorio o Magno já falava da «sociedade da República cristã», sobre a qual exercia seu
principado o papado, e em seu próprio epitáfio ao Gregorio lhe chama «consul Dei» («cônsul de
Deus»). Esta titularidade se compreende já em relação com o tema da universalidade do poder
pontifício, posto que, como havemos dito mais acima, Gregorio foi o primeiro em protestar contra
as pretensões de Constantinopla em erigir-se em patriarcado universal, apoiando-se no estatuto
de cidade real («urbs régia») da metrópoles do Oriente. O vocabulário romano reinstalava a Roma
e a sua igreja como cabeça do mundo («caput mundi»), ao mesmo tempo que vinculava à Papa o
direito imperial sobre as questões sagradas («jus in sacris»). Ao longo de toda a alta Idade Média,
vão se acontecer ambas as concepções da comunidade cristã, a corporativa e a republicana, em
função das estratégias contingentes. Mas o vocabulário romano alcança seu verdadeiro
desenvolvimento quando Roma se emancipa por completo de Constantinopla, no século VIII. Com
motivo de sua visita a Pepino o Breve, no ano 754, Esteban II unge ao rei dos francos com o título
de «patrício dos romanos»; e no texto de uma carta da mesma Papa Esteban ao próprio Pepino,
redigida [por volta do ano 750] à vista de uma confirmação da falsa Doação do Constantino,
encontramo-nos com uma designação na verdade assombrosa: «A Santa Igreja de Deus e da
República dos Romanos» («sancta Dei ecclesia et republicae Romanorum»), que se repete na
biografia do Esteban II no Liber Pontificalis. Walter Ullmann se ocupou de analisar detalladamente
semajante titulación, para chegar a seguinte conclusão: é evidente que a expressão guarda
relação estreita com a denominação clássica «Respublica romana», mas esta forma verbal nos
situa de novo no Império e em conseqüência ante sua cabeça bizantina; o novo título («República
dos Romanos») engloba a quão cristãos vivem de acordo com a fé romana e não com a grega, e
que em conseqüência seguem os ensinos da Igreja de Roma e não da do Bizancio. A cristandade
se confunde, pois, com a romanidad, atendendo a um movimento iniciado em seu dia pelo
Gregorio o Magno e enfocado à a Inglaterra e à a Germania não imperiais, mas romanas, depois
das grandes conversões que ali tiveram lugar durante o século VII. Não obstante, é evidente que
o término contém implicações sociais, políticas e culturais que acompanham a conotação
estritamente religiosa.
Efetivamente, na mesma Roma, este encargo eclesiástico do léxico antigo marca as etapas de um
processo de conquista urbana, registrado entre os séculos VIII e IX, durante o qual o papado
consegue arrancar à sociedade laica suas antigas referências políticas. Até mediados do século
IX, o término de Senado comportava ainda uma acepção institucional, que se utilizava para
designar a um corpo bastante bem definido em sua composição de patrícios e cônsuis, assim
como uma organização administrativa e judicial. Os nobres romanos recebem os nomes de
«proceres» e «optimates», enquanto que os chefes aristocratas da tropa urbana («exercitus»)
chamam-se a sua vez «duces» ou tribunos. Por outra parte, também é verdade que a geografia
eclesiástica mostra bem às claras as usurpações da Igreja, e, por exemplo, o Senado do século
VIII já não pôde reunir-se na «Cúria Senatus», que tinha sido transformada em caminhos Iglesias
(São Adriano e Santa Martina); e é deste modo certo que o desenvolvimento da própria Igreja
passa igualmente por uma absorção da nobreza «senatorial» dentro da ordem clerical. Não
obstante, a lembrança republicana antiga se conserva na memória com a suficiente vigência
durante o século XII como para que a revolução de 1144 institua imediatamente uma «renovação
do Senado».
A cúria como Senado
Durante o século XI, os cardeais tomaram parte ativa nessa reconstrução ideológica da Roma
antiga. O término de cardeal, cunhado provavelmente no século VI, aparece no VIII, embora para
designar unicamente o liturgo de uma grande basílica romana. No papado do Esteban III achamos
uma menção dos sete cardeais-obispos semanais, quer dizer dos sete bispos suburbiales de
Roma encarregados das diocese da Ostia, Porto, Silva Candida, Palestrina, Sabina e Túsculo,
quem realizava um serviço litúrgico semanal no Letrán (pelo qual de fato lhes chamava bispos do
Letrán). A estes sete bispos terá que acrescentar os 28 cardeais-sacerdotes que, em um princípio,
tinham a seu cargo as 28 igrejas-titulares intraurbanas de Roma, embora também eles garantiam
um serviço litúrgico no Letrán. Por último, embora são algo mais tardios, estão os 18 cardeaisdiáconos encarregados a sua vez das 18 Iglesias diaconales de Roma, sobre as que voltaremos
mais adiante. Assim, desta maneira, vai constituindo pouco a pouco um corpo coerente, formado
em seu conjunto por um total de 53 dignatarios, que reflete a geografia religiosa especificamente
romana (colateral e urbana), sem por isso riscar as estruturas diocesanas ordinárias, dado que
mescla os graus litúrgicos. Mas o que esse corpo constrói em realidade é uma espécie de senado
da Igreja romana, toda vez que confere uma estrutura fixa ao clero (cleros) romano, tomando
como tudo e como parte da comunidade urbana dos fiéis, de maneira que do «senatus
populusque» se passa ao «clerus populusque». E, inclusive quando Leão IX (1049-1054) amplia o
horizonte geográfico do corpo cardenalicio excluindo do mesmo, por motivos de simonía, a certos
romanos em benefício de prelados italianos ou transalpinos (por exemplo, abate-os de Monte
Carmelo, de me Vendo ou de São Víctor da Marsella), mantém-se o esquema romano: o abade
franco toma o título presbiterial de uma igreja da cidade. A assimilação desta élite do clero no
Senado se vinha preparando da Doação do Constantino (mediados do século VIII): «Queremos
que os homens muito reverendos [titulación senatorial], os clérigos das distintas ordens que
servem a esta igreja romana, desfrutem desta eminência, desta especificidad, deste poderio e
desta preeminencia com a que se adorna nosso muito alto Senado para sua glória; que lhes faça,
pois, patrícios e cônsuis, e que lhes decore com as dignidades imperiais» . E se, por nossa parte,
corremos o risco de pecar de anacronismo ao discernir detrás desta élite clerical o corpo dos
cardeais aos que se outorgou honras senatoriales e consulares, é porque esta oferta pseudoconstantiniana se decantaria logo [durante o século Extra grande], com toda naturalidade para o
corpo cardenalicio.
Mas, o que se poderia descrever com esta metáfora senatorial? Acaso uma função, ou uma
simples fila? No sínodo de Roma, celebrado em 1059 sob a direção do Nicolás II, aparece já uma
resposta a nossa pergunta. Sabemos que a Igreja primitiva requeria o assentimento do clero e do
povo para a eleição do bispo ou do pontífice, mas também sabemos que os progressos do poder
clerical, o medo à intervenção dos laicos, e o risco permanente de um golpe de força induzem ao
papado a apartar aos laicos do processo eleitoral; de fato, Símmaco no 498 e Esteban III no 769
já tentaram sem êxito reservar o sufrágio ao voto do clero. No ano 1059, Nicolás II outorga o
direito ao voto exclusivamente aos cardeais; assim, os cardeais-obispos designam um candidato,
logo lhes unem outros cardeais para a eleição formal, e por último pedem o consentimento do
clero e do povo. O papado do século XI instala, pois, uma clara oligarquia eleitoral, segundo o
modelo antigo de deliberação, explicitamente solicitado pelo Pedro Damián, bispo-cardeal da
Ostia, e grande ideólogo da reforma gregoriana: «A Igreja romana, que é a sede dos apóstolos,
deve imitar a antiga cúria dos romanos». Para o Pedro Damián, os cardeais são os «senadores
espirituais da Igreja universal». É então quando o cardeal Deusdedit leva a assimilação ainda um
pouco mais longe, e diz que ao igual ao Senado se nutre da classe Patricia, assim «os clérigos
romanos ocupam o sítio dos antigos patrícios». Mas esta convergência aparente, que reflete a
preocupação comum por dotar de uma organização forte e concreta a «societas christiana»,
tomada como corpo político autônomo, se por uma parte dá vida autêntica à Cúria romana, por
outra deixa aberta a questão da partilha do poder entre a Papa e os cardeais. Porque, se os
cardeais tomavam como referência o modelo republicano, segundo o qual o Senado exercia um
controle estrito sobre o consulado, o papado pensava a sua vez no modelo imperial, segundo o
qual o Senado se encarregava de apoiar o «principatus», quer dizer a soberania do imperador.
Pedro Damián é muito claro a respeito: «O Senado terrestre aconselhava, dirigia e realizava o
esforço de seu trabalho comum ao objeto de submeter à multidão dos povos à soberania
romana.» Desde esta perspectiva se compreende a ampliação geográfica começada por Leão IX
e continuada pelo Gregorio VII, de tal sorte que muitos cardeais procedem do norte dos Alpes,
para significar com sua presença a universalidade da sociedade cristã. Frente a esta função
representativa e intermediária, os cardeais apresentam sua própria visão oligárquica da atuação
da Igreja romana. O já chamado cardeal Humberto, cujos passos seguirá brilhantemente Huguccio
um século mais tarde, pretende que a Igreja romana se componha da Papa e dos cardeais, e, ao
referir-se ambos, Humberto e Huguccio, ao direito imperial romano, aspiram a converter-se em
uma parte do corpo da Papa, do mesmo modo que os senadores tinham sido uma parte do corpo
do imperador.
Por outro lado, o decreto eleitoral de 1059 conferia um estatuto ambíguo aos sete-bispos cardeais
encarregados da designação do pontífice: ao dirigir a eleição do clero e do povo, desempenhavam
o papel de um capítulo catedralicio em relação com o bispo ordinário; ao fazer interina esta
eleição, comportam-se como bispos coprovinciales do eleito; e, ao lhe dar a consagração (carga
litúrgica atribuída desde antigo ao Hostiensis, quer dizer ao bispo da Ostia, a quem assistem os
bispos de Porto e do Albano), assumem coletivamente a função de metropolitano («Posto que a
sede apostólica prevalece sobre todas as Iglesias do mundo, e posto que, em conseqüência, o
metropolitano não pode estar por cima, são os cardeais-obispos quem, sem dúvida alguma,
desempenham as funções de metropolitano e elevam ao bispo a mais alta topo apostólico»). Esta
série de identificações acumuladas confere ao grupo dos sete cardeais-obispos uma
personalidade corporativa forte, por cima das hierarquias eclesiásticas, no coração da instituição
pontifícia, que eles mesmos engendraram a perpetuidade.
Função política do rito de 1099
A finais do século XI, esta ascensão do poder cardenalicio se acentúa ainda mais. O cisma do
Gilberto da Rávena («Clemente III», o antipapa do Gregorio VII), em 1080, aumenta as pretensões
oligárquicas do Sacro Colégio, já que o antipapa, para assegurar o apoio dos cardeais,
reconhece-lhes uma série de privilégios que logo não esquecerão, a pesar do fracasso do cisma.
Ditos privilégios compreendem a preeminencia dos cardeais sobre qualquer bispo, o direito de
julgar também a qualquer bispo, o requisito de apresentar a três dúzias de testemunhas para
poder inculpar a um cardeal processado, o direito a assinar atos papais, a quase suplantación dos
sínodos pelas reuniões cardenalicias que se chamarão «consistórios», término este mencionado
por primeira vez baixo Pascal II, e que a Papa se sente nas curulas. Neste sentido, o cardeal
Hugo chega ainda mais longe, pois pretende que sem as assinaturas dos cardeais as declarações
da Papa (os lhes decrete) carecem de valor! Neste caso, a Papa só seria então a voz da Igreja.
O cisma provoca defecções entre os cardeais (este é o caso do Juan de Porto, quem, em 1084,
passa-se ao bando do Gilberto) antes de que se produza o desdobramento do Sacro Colégio,
como conseqüência do sínodo gilbertino de 1098. A eleição de Pascal II, a sua vez cardealsacerdote de São Clemente, desenvolveu-se, pois, em um ambiente de competência feroz pelo
poder, e no que quem mais quem menos tinha algo que oferecer em troca.
A invenção do rito das cadeiras curulas no cerimonial se origina diretamente à sombra deste
debate capital, que ocupa os últimos anos do século XI, quando o peso dos cardeais e da Cúria
não deixa de aumentar. O primeiro que faz Pascal II ao chegar à basílica é afirmar sua plenitude
religiosa como patriarca universal, sentando-se no trono «patriarcal»; logo sobe ao palácio onde
vincula sua plenitude jurisdicional com os sete poderes judiciais, ao ater o «baltheum» dos sete
selos e das sete chaves. Quem é estes sete poderes judiciais? Certamente não se trata dos sete
juizes chamados «ordinários» ou «juizes do clero» (primário, secundário, arcarius, sacellarius,
protoscrinarius, primus defensor e nomenclator), que são simples oficiais do Letrán, às vezes
inclusive laicos, cuja função tinha perdido contido no século X, e portanto neste momento só
representa uma fila. O que sem dúvida terá que advertir no gesto de Pascal II é uma abertura
cerimoniosa por parte do poder papal frente aos sete cardeais-obispos; ou, dito de outro modo, o
que se desprende é uma tradução ritual da assinatura cardenalicia aos atos do pontífice (os lhes
decrete papais som em realidade documentos de caráter judicial). No caso de que não esta fora a
interpretação correta, como se explica sorte cifra (sete) que evoca vagamente os sete dons do
Espírito Santo, embora no texto do Liber Pontificalis está explicitamente associada à direção
(«regimen») das Iglesias? Por outra parte, o rito de ater o «baltheum» tem lugar pela primeira vez
no ano 1099. As representações anteriores das chaves (sem os selos) falam de três; depois, o
rito, com um significado diferente, pendura doze chaves da cintura papal. Em um terceiro
momento, a Papa adota a postura de cônsul único [postura imperial] no momento de tomar a
férula, enquanto proclama —dado que as cadeiras curulas não estão vazias— a originalidade de
sua relação pessoal com o corpo dos Pais, nessa soleira estreita, mais à frente do espaço litúrgico
e público da basílica, que se encontra entre o espaço judicial e eclesiástico do palácio,
compartilhado com a cúria, e o espaço reservado à moradia papal e senhorial.
Fragilidade e escuridão dos significados rituais
À vista do exposto, resulta compreensível a fragilidade deste rito sutil, metáfora gestual de um
transação delicado que está dirigida a alguns homens da cúria. Não obstante, e apesar de
conservar sua forma como parte da liturgia cerimoniosa, o rito adquire fatalmente uma opacidade
total. Vinte e cinco anos mais tarde, no 1124, achamos uma segunda aparição das cadeiras
curulas durante a coroação do Honorio II. Mas neste caso, o redator do Liber Pontificalis chama a
estas cadeiras os «assentos em forma de sigma» («in simis»), pois só toma notícia de seu
aspecto formal. Continuando, nas «ordene» de finais do século XII (Ordo da Basilea, de Albino, do
Cenco), esfuma-se a descrição formal para ressaltar sua natureza material, o que fica ainda mais
longe de seu sentido original; a partir de então, quando se fizer referência às cadeiras curulas se
falará já, para sempre, dos dois «assentos de pórfido». Esta transição da forma à matéria indica
possivelmente que, no século XII, existe um intento por separar as primeiras percepções
escatológicas ou indecorosas do rito. De fato, a «sima» (ou «sigma») do Sidonio Apolinar se
refere ao assento de banho, muito decote, ateniéndose a sua forma semicircular, já que a sigma
grega em grafia uncial tinha, em efeito, a forma de uma C. A imprudência, não isenta de
ingenuidade, que se desprende da denominação empregada em 1124 pôde ter gerado
interpretações impróprias para a dignidade papal, e por este motivo se retificou.
O mal-entendido ritual, que chega ao paroxismo do rumor comentado no capítulo anterior, emana
de uma estrutura institucional com registro dobro. O transação, materializada nas cadeiras, tem
lugar entre vários indivíduos, enquanto que o estatuto litúrgico da cerimônia projeta a sua vez a
narração de dito rito sobre o teatro universal da comunidade de fiéis. Mas então, do que serve o
gesto ritual se este permanecer escuro para a maioria dos fiéis? Para os membros da cúria,
acostumados por sua formação litúrgica e jurídica a um certo «realismo» da nominação (verbal e
gestual), trata-se de uma atuação legislativa. A Papa formula a lei, e aos fiéis concerne a tarefa de
conhecê-la. O gesto e a palavra rituais fazem a lei, exatamente com o mesmo efeito que o
decretal, quer dizer, essa lei criada pelo pontífice por razão de circunstâncias particulares, e que
está dirigida a um indivíduo (ou a um grupo) em forma de carta, mas cujo valor é, não obstante, de
alcance universal (como o demonstra a constituição mesma das coleções de lhes decrete).
Esta continuidade dos atos cerimoniosos e das redações lhes decrete aparece com nitidez na
forma em que a Papa Adriano IV tratou ao imperador Federico Barbarroja, por volta de 1155,
quando, uma vez concluído o comprido conflito que, da época gregoriana, enfrentava ao papado
com o Império, a Papa quis pôr de manifesto a sujeição que lhe devia o imperador. Em um
primeiro momento, concretamente em 8 de junho de 1155, Adriano IV pretende obrigar ao
Federico, no Sutri, antes da coroação imperial em Roma, a que desempenhe o papel de «strator»,
quer dizer o encarregado de sujeitar as rédeas do cavalo papal. Para o Adriano este gesto
supunha conferir caráter de interinidade ao princípio do traslado imperial do Bizancio a Roma.
Desta maneira, isto é de desempenhar este papel, Federico se instalaria no trono em qualidade de
sucessor do Constantino, já que, segundo o texto da falsa Doação do Constantino, dito monarca
deteve sua vez o cargo de «strator» para a Papa Silvestre, com o propósito de manifestar assim
seu respeito para o papado. Federico se negou violentamente, pois interpretou o gesto como um
signo de submissão feudal muito explícito. Adriano IV não insistiu, mas dez dias mais tarde, no
momento da coroação imperial em São Pedro, a Papa perseverou em seu esforço de legislação
ilustrada com os gestos, e modificou o ritual de coroação estabelecido desde 1014: a unção
imperial não se realizou durante a missa a não ser antes, deixando assim de aparecer como a
concessão de uma ordem sagrada; além disso, dita unção, outorgada pelos cardeais, tampouco
teve lugar no altar maior, reservado exclusivamente ao pontífice, a não ser ante o altar de São
Mauricio. Do mesmo modo, uma promoção aparente ajudou a desvalorizar o significado da
coroação: a Papa fez entrega das insígnias imperiais ante o altar maior e durante a missa, em vez
de ante o altar de São Mauricio; desta maneira ficava de manifesto que o motivo principal da
cerimônia não era outro que a entrega das insígnias por parte da Papa, o que em definitiva
apresentava ao papado como fonte do poder laico. Federico não protestou, provavelmente porque
não entendia bem a natureza destas mudanças complexas e simultâneas; mas, para o papado,
esta mutação adquiriu fila de lei, e foi Inocencio III quem a incorporou definitivamente à última
forma medieval de coroação imperial. Por sua parte, Federico Barbarroja não advertiu com
claridade a verdadeira vontade do pontífice, até que não recebeu no Besançon, em 1157, uma
carta do Adriano IV em que lhe reclamava o «beneficium», quer dizer, em que lhe recordava o
benefício que lhe tinha sido outorgado com a coroação. O conselho do Federico, Rainaldo do
Baissel, futuro arcebispo de Colônia, traduziu ao imperador, que desconhecia o latim, a palavra
«beneficium» pelo equivalente germânico de «feudo», o que provocou o furor do Federico. Esta
anedota ilustra com claridade tanto o papel legislativo do rito, com fila igual ao da decretal, como a
escuridão do mesmo, generadora a sua vez de tantos contra-sensos.
A cadeira de São Pedro
O mal-entendido e a «má impressão» de 1099 não teriam alcançado uma importância tão grande,
se não tivessem acompanhado e expresso uma redistribuição capital do espaço cívico e religioso
da cidade romana. Mas se em realidade foram poucos os que captaram o significado das cadeiras
curulas, o ritual, pelo contrário, confirmava a todos, desde seu cenário de conjunto, a constituição
de um lugar abstrato de poder, de uma corte, de uma cúria, ali mesmo onde Roma tinha
conhecido um espaço concreto e acessível de domínio episcopal. Percorramos rapidamente estes
espaços, sucessivos e encaixotados, nos transladando de sede em sede, «vel sedens vel
transiens», conforme nos sugere a forma pontifícia de concentração de significados.
Até o século VIII, a vida religiosa e cívica de Roma se desenvolve em uma rede que a sua vez
está tecida com múltiplos malhas. Se, da época do Constantino, Letrán, com seu palácio e sua
basílica do Salvador, serve de residência episcopal para as Papas, enquanto que a basílica de
São Pedro do Vaticano alberga ao primado pontifício, materializado na presença do corpo do
Pedro, as diferentes Iglesias da cidade (basílicas, Iglesias titulares, Iglesias diaconales) integramse a sua vez pela via indireta da liturgia sazonal, dentro de um espaço comunitário e episcopal.
Letrán não se distingue apenas de uma residência episcopal ordinária, quando se trata de assaltála em caso de rivalidade de candidaturas ou de cisma, de maneira que sua específica condição de
basílica pontifícia surge lentamente dessa rede local, cristalizando-se em torno de outra sede
capital, a cadeira de São Pedro, cuja história conhecemos graças aos trabalhos respectivos de
monsenhor Maccarrone e Nikolaus Gussone.
A cadeira («cathedra») como tal em um princípio só tem um sentido simbólico, e representa como
diz São Cipriano (século III) a eminência supraepiscopal do Pedro: «Existe um só Deus, um só
Cristo, uma só Igreja e uma só cadeira apoiada na palavra pronunciada pelo Senhor a propósito
do Pedro». A noção de «sede apostólica» («sedes apostólica») define-se no século IV, antes de
recuperar o objeto concreto que é o trono episcopal. O uso deste trono é essencialmente litúrgico,
já que a cadeira e o altar constituem elementos fundamentais do espaço sacramental. Há outros
dois tipos de assentos que aparecem na basílica da alta Idade Média, como de fato aparecem já
em qualquer catedral: a cadeira portátil da confissão apostólica («sela gestatoria apostolica
confessionis»), registrada a partir do século VI, e o assento, também dobradiça, colocado na
sacristia, e reservado às funções judiciais da Papa-bispo. Mas a hierarquia determinada pelo uso
de ambos os assentos se limita ao âmbito religioso, como pode deduzir-se de um canon do
Concílio de Cartago, celebrado no ano 395: «Que o bispo, na igreja, sente-se mais acima que os
sacerdotes; mas, que no palácio, considere-se colega dos sacerdotes».
O espaço sagrado começa a explicar-se com o Gregorio o Magno, quem foi o primeiro em
instaurar a consagração papal em São Pedro, e, conforme parece, o primeiro também em instalar
uma cadeira fixa, de pedra, escolhendo para isso uma disposição que, com grande sentido da
coerência, respondesse além a suas próprias expectativas em matéria de titularidade. Assim, ao
tempo que se desprende de tudo sinal de orgulho, proclama a eminência romana, mandando
colocar no ábside de São Pedro 24 assentos que rodeiam o trono papal. Evidentemente, esta cifra
recorda a assembléia escatológica do Apocalipse e expressa, mediante essa encenação da
herança crística, a primazia de Roma sobre Constantinopla, no lugar exato onde se justifica sorte
primazia: perto da tumba do Pedro. Hei aqui, pois, a primeira separação no espaço romano: o
Vaticano, que se encontra extramuros, transcende a rede urbana e, graças à cadeira de São
Pedro, dá corpo à noção de sede apostólica.
Eminência do Letrán
E, ao igual à apropriação por parte de Roma do título patriarcal universal se desenvolve a partir da
tática defensiva, que neutralizou a denominação, assim o estatuto eminente e pessoal do bispo de
Roma, cuja sede é Letrán, adquire vigência do momento em que o próprio pontífice se esfuma no
Vaticano, de acordo com a noção transpersonal da sede apostólica. O papel específico do Letrán
se afirma no século VIII, quando Roma alcança uma autonomia definitiva em relação ao Império
de Constantinopla, embora algo antes, quer dizer, durante a última década do século VII, o que
até então se conheceu como o «episcopium» do Letrán (a residência episcopal) passa a chamar o
«patriarchium Lateranense» (o patriarcado do Letrán). ao redor dessas mesmas datas (no 685), o
Liber Pontificalis menciona pela primeira vez a cerimônia de «introdução» no Letrán justo depois
da eleição: «Seguindo a antiga tradição, a assembléia introduz ao eleito na igreja do Salvador que
chamam constantiniana, e logo na residência episcopal». Esta novidade assinala um novo regime
do poder papal, pois em efeito, a cerimônia parece adotar como modelo a tira de posse
(«introductio» em linguagem jurídica) de uma igreja titular por parte de um sacerdote recém
consagrado em São Pedro. De um modo ou outro, as aclamações, o uso de um assento concreto,
a missa e a celebração de um banquete interinizan um direito jurídico-litúrgico. Com o passar do
século VIII, a distinção entre o poder de jurisdição («potestas juridictionis») e o poder de
ordenação («potestas ordinationis») das Papas, entre o Letrán e o Vaticano adquire maior
consistência ainda. A basílica do Constantino perde todo seu conteúdo litúrgico na instalação
papal, em benefício do palácio que, no século XI e sob a influência imperial, receberá o nome de
«sacro palácio do Letrán» («sacrum palatium Lateranense»). Começa, pois, a construira cortecuria fazendo convergir para o palácio toda a vida romana. O decreto pontifício do 769, que tenta
regrar a eleição das Papas, proporciona-nos o sentido desta evolução: «E depois de que a Papa
seja eleita e conduzido ao patriarcado, a gente se precipita para lhe saudar como senhor universal
(omnium dominum)». Assim, o palácio do Letrán faz que tanto o tema do patriarcado universal
como o da dominação absoluta, cuja modalización ritual (as curulas) observamos já no 1099,
convirjam em seu espaço. Por isso, embora o chamado decreto do 769 só se aplica parcialmente,
o certo é que estabelece com claridade uma jerarquización do espaço sagrado romano, já que
exclui do mesmo aos laicos durante a eleição e a tira de posse do Letrán. Enquanto esta
cerimônia se desenvolvesse totalmente na basílica estava dirigida à comunidade dos fiéis; mas no
palácio só eram admitidos os dignatarios. O espaço romano perde então esse traçado original de
rede, a que nos referimos mais acima, para adquirir uma forma concêntrica construída ao redor da
figura da Papa. O dispositivo comunitário dos bispados pertencentes a vicarías suburbiales e das
Iglesias titulares se focaliza em torno de Letrán no século VIII, mediante o sistema da participação
semanal: bispos, sacerdotes e diáconos asseguram o serviço litúrgico da basílicia do Salvador,
com um sistema de voltas. Esta organização reflete a sua vez o modelo corporativo da Igreja, cuja
cabeça se encontra ao mesmo tempo na parte superior do corpo e por cima do mesmo (fora dele);
assim, as cinco basílicas patriarcais (das que falaremos mais adiante) estão coroadas pela
primeira delas, a basílica do Letrán, que regula seu funcionamento litúrgico da cúspide e do
exterior de dita estrutura patriarcal. Neste sentido, a basílica do Letrán figura como «a cabeça e a
cúspide das Iglesias», segundo a expressão empregada na Doação do Constantino; mas, ao
mesmo tempo, a Papa já não recebe ali a investidura religiosa, posto que o pontificado se
proclama em outra parte, mais acima (na planta do palácio), e em outro lugar, fora da rede
romana, quer dizer em São Pedro. O novo espaço litúrgico de Roma funciona então como a
representação dos sucessivos encaixotamentos da monarquia pontifícia: as cinco basílicas
patriarcais (Letrán, Vaticano, São Pablo, Santa María a Maior e São Lorenzo do Verão)
representam a sua vez aos cinco patriarcados da cristandade, enquanto que as titularidades
cardenalicias (bispados e Iglesias) desenham por sua parte uma imagem do povo romano,
presente no Letrán através do serviço litúrgico. A Papa participa desta construção ao tempo que
escapa da mesma graças a sua posição elevada, posto que ao ser bispo coprovincial dos sete
cardeais-obispos, e patriarca entre os patriarcas, situa-se sempre na parte mais alta da espiral
ascedente, simbolizada a sua vez na tira de posse do Letrán; o bispo e o patriarca cedem ante o
pontífice, cujo palácio reflete a supremacia, no primeiro piso dos edifícios do Letrán, isto é, em
cima da basílica.
Da cadeira à coroação
Uma vez mais, um assento expressa por si mesmo esta expansão do poder. Em efeito, a
cerimônia de investidura do Felipe, celebrada no ano 767, em que já não se introduz ao eleito na
basílica a não ser no patriarcado, menciona pela primeira vez a presença de um assento papal no
Letrán: «conduz-se [o que significa já uma «introdução»] ao Felipe até o interior da basílica do
Salvador, de acordo com o costume habitual; uma vez ali, depois da oração de um bispo, [Felipe]
distribuiu a todos a paz, e logo foi introduzindo no patriarcado ao Letrán. Ali toma assento na
cadeira pontifícia («in sellam pontificalem») e distribui uma vez mais a paz conforme é costume,
para depois subir ao palácio e oferecer um banquete, como fazem todos os pontífices». No ano
827 aparece a menção de um trono pontifício no Letrán, segundo um modelo cada vez mais
imperial: Valentín, «eleito para a sede pontifícia, foi conduzido ao patriarcado e colocado no trono
pontifício; recebeu a ovação unânime do senado dos romanos»; a imagem antiga, em que a
noção do senado se aplica ainda com certa vaguedad aos aristocratas laicos parece essencial
aqui. As cerimônias de coroação subseqüentes, quer dizer as que se acontecerão com o passar
do século IX, apresentam ligeiras variantes deste modelo: a partir do ano 847 (Leão IV), conduzse ao eleito ao «palácio» do Letrán, que se converte no «sacro palácio» no ano 885 para o
Esteban V, e após o trono se designa com a palavra «solium», de maior sentido secular que
«thronos». Quando o narrador do Liber Pontificalis relata a invasão do Letrán, no ano 855, por
parte do Anastasio o Bibliotecário, adversário do Benito III, leva ainda mais longe a sacralidad do
trono do Letrán, pois se indigna porque Anastasio se sentou nesse assento «que não deveria
haver meio doido nem sequer com as mãos». O trono se converte em um objeto tão sagrado
como o pálio ou o altar maior de São Pedro, reservados exclusivamente à Papa eleita
canonicamente.
Na mesma época, a cadeira de São Pedro, trono de mármore situado no ábside de São Pedro,
adquire uma nova importância; desde finais do século IX, no domingo de consagração se estava
acostumado a realizar uma coroação litúrgica, quer dizer uma ordenação-consagração que agora
quer substituir por uma cerimônia mais específica, em que o eleito já é bispo, e portanto já está
consagrado. A primeira vez que teve lugar dita inovação foi no ano 882 com Marinho, bispo do
Cerrae, e logo no 891 com o Formoso, bispo de Porto. Até então, as regras canônicas proibiam a
«translação», isto é o passo de um bispado a outro; a inovação se introduziu, pois, com
dificuldade, como se desprende da sorte postuma que correu Formoso, cujo cadáver foi exumado
e arrojado ao Tíber. Não obstante, o costume de escolher um bispo para o pontificado se
estendeu ampliamente durante o século XI.
Em definitiva, a multiplicação dos tronos e dos assentos pretendia simbolizar, a olhos dos fiéis,
o espaço cada vez mais importante do domínio jurisdicional das Papas, em detrimento da partilha
litúrgica. A instalação do trono patriarcal no Letrán (segundo assento na cerimônia de 1099)
materializava claramente a separação desse espaço pontifício; desta maneira, se fazia passar ao
eleito da primeira zona (de caráter público, na basílica do Letrán) à segunda (de caráter
reservado, a do patriarcado). Com o passar do século XI aparece uma terceira zona, ainda mais
secreta, que é a do palácio, de caráter quase pessoal; a soleira desta zona estará adornado com
cadeiras as cure.
Na soleira do palácio
A clausura paulatina do Letrán se acelera durante os séculos X e XI, e, sem necessidade de forçar
a analogia, podemos transladar ao palácio do Letrán o processo de «incastellamento» analisado
magistralmente pelo Pierre Toubert a propósito do Murcho feudal no século X. Se trata do
desenvolvimento dos domínios senhoriais concentrados ao redor dos castelos («castra»,
«castelli»), formas bem distintas das estruturas do feudalismo clássico, feudo-vassalagem, que
surgirão mais tarde, durante a segunda metade do século XI. depois da fase de retomada agrária
(século IX), que também afetou ao papado em sua condição de senhor de domínios agrícolas (os
«domuscultae»), cada vez mais numerosos na região do Murcho, a dominação castral (século X)
canaliza esse crescimento. A rede eclesiástica rural do Murcho conhece, pois, a mesma
concentração que a que apresentam os domínios agrícolas, e inclusive o sistema paroquial
urbano de Roma: à dispersão das Iglesias de aldeia (as «plebes»), e a criação das Iglesias
batismais, dos oratórios e das capelas dos domínios (séculos VIII-IX), acontecem-lhes em primeiro
lugar o desmembramiento das «plebes», e em segundo término a retirada das mesmas sobre as
Iglesias senhoriais («ecclesie castri»). Seguindo um processo idêntico e simultâneo, o palácio do
Letrán passa então a converter-se no centro burocrático de gestão do patrimônio de São Pedro,
de acordo com as características senhoriais do «castrum». A partir do Juan XIII (ano 970), o
pagamento anual dos censos e do denario de São Pedro se efectúa no palácio, e, seguindo o
modelo senhorial-imperial do palácio da Pavía, dota-se ao Letrán de uma chancelaria, de arquivos
e de um tribunal. O término de chanceler («cancellarius») aparece com o Juan XVIII no ano 1005,
enquanto que durante o papado do Benito VIII encontramos já a menção de um «arquivista e
notário de nosso sacro palácio e de nossa Santa igreja romana». Esta última denominação indica
a orientação da vida política do palácio do Letrán com o passar do século XI. depois da fase
«cuasi municipal» (P. Toubert) de gestão urbana e senhorial, produz-se um movimento dobro, de
feudalización e de curialización, que instala uma administração pontifícia de projeção
suprarromana. A feudalización eclesiástica se produz exatamente no mesmo momento no que se
sintam as bases das estruturas feudais clássicas, quer dizer do contrato feudo-vassalo, laicas do
Murcho (segunda metade do século XI). Já nos referimos antes ao compromisso feudal que
contraem os normandos na Sicilia (1070-1080); pois bem, imediatamente depois, o papado
começa a desdobrar suas ambições feudais, metafóricas e reais a um tempo, para a Croácia e
Dalmacia (a partir de 1076), e para a Provenza, Bretanha, Dinamarca, Hungria, etc. A reforma
gregoriana impõe aos bispos da cristandade uma submissão direta a Roma, distinta se se quer da
sujeição feudal propriamente dita, mas que em definitiva adota o mesmo vocabulário (trata-se
sempre de «fidelidade»), e conduz à obtenção dos mesmos resultados. A cúria do Letrán adquire
então rasgos radicalmente distintos dos da administração cidadã e episcopal, e se constitui como
uma corte feudal ou monárquica, com uma nova organização financeira (ao «cubicular» e ao
«vestiarius», herdados do Império, acontece-lhes agora o garçom, chamado além «garçom do
senhor Papa», com Urbano II, para converter-se durante o papado de seu sucessor, Pascal II, no
«garçom da cúria romana»); do mesmo modo, por estas datas aparecem igualmente as funções
de «dapifer» (cambelán), de «pincerna» (bodeguero) e de «capelão».
Em conseqüência, é um poder de novo marca o que em 1099 toma assento nas cadeiras
curulas, ao manifestar um alinhamento da comunidade romana por partida dobro. Por um lado, o
poderio romano das Papas se esconde, se repliega e se entrincheira no palácio inacessível do
Letrán, trono, centro e topo da cidade, «castrum» altivo que vazia a Roma de sua vida local. Por
outra parte, o povo romano perde o domínio da linguagem simbólica comunitária, cuja antiga
simplicidade litúrgica se inserida no discurso sinuoso, escuro, e jurídico, ora verbal ora gestual, da
negociação do Estado.
Não obstante, esta linguagem do Pedro, apesar de seus intersicios equívocos, ainda permitia
que se deixassem ouvir os murmúrios zombadores da cidade. Neste sentido, e mediante uma
substituição festiva, a escolta legislativa da cerimônia gestual podia ainda ceder o sítio a um
comentário alegremente subversivo. Por um breve instante, a Juana romana empurrará ao Pedro
fora da cadeira apostólica, sobre tudo quando esta poltrona adota o aspecto burlesco de um
assento de banho. Emprestemos agora atenção ao diálogo entre o Pedro e Juana durante estes
anos decisivos do século XII.
CAPITULO III
As Papas entre duas sedes
Resulta difícil identificar com claridade quais foram as reações da cidade de Roma ante a
pujança do papado, com antecedência ao movimento comunal de 1144, dada a ausência quase
total de fontes narrativas de caráter urbano para os primeiros séculos da Idade Média. Não
obstante, dispomos de dois restos fragmentários em textos redigidos em meios da cúria, que sem
dúvida nos põem sobre a pista de algumas respostas, um tanto festivas, à confisco da vida cívica
e simbólica da cidade por parte do papado. Esta réplica se produz em términos rituais, para pôr
em cena, ante o Letrán, um investimento dos fatores e dos papéis a modo de carnaval,
desencadeando em seu desenvolvimento histórico toda uma série de interpretações bem
malignas bem ingênuas da estranha forma das cadeiras curulas, que em última instância se
mesclam com a rumorología sobre os costumes das Papas.
A Cornomanía segundo Juan Diácono
A primeira menção deste ritual paródico se encontra em um breve texto do Juan Himónido, mais
conhecido como Juan Diácono, autor de uma importante biografia do Gregorio o Magno, e
diácono do Letrán durante a segunda metade do século IX. Este texto, que em seu dia foi
analisado minuciosamente pelo Arthur Lapôtre em um artigo já antigo, mas tão erudito como
singular, apresenta uma nova versão de uma poesia paródica, de origem clerical, e atribuída a
São Cipriano (século III), titulada o Jantar do Cipriano, em que se descreve um almoço em tom
burlesco, onde os convidados são os principais personagens da História Sagrada. Tanto suas
atitudes como suas preferências gastronômicas cobram sentido pelas referências aos textos
bíblicos, dirigidos para a ocasião a modo de jogo de palavras ou de alusão sutil. A antigüidade e o
atrevimento desta paródia demonstram bem às claras a importância do autoescarnio clerical na
Idade Média, quando as instituições fortes e totalizadoras podem permitir-se semelhantes
julgamentos, parciais e periódicos.
Mas o contexto revisionista no que se produz este Jantar do Cipriano nos interessa mais que o
próprio texto. Segundo as sólidas deduções do pai Lapôtre, organizou-se uma primeira audição do
jantar com motivo dos festejos encarregados pelo Carlos o Calvo para celebrar sua coroação
como imperador de mãos do Juan VIII, no Natal do ano 875, de maneira que o texto do jantar,
adotado pelo grande teólogo carolingio Raban Maur, teria chegado a Roma na bagagem do
próprio Carlos. O poema, escuro à força de sutilezas e torpemente adoçado pelo Maur, gostou em
Roma, embora foi precisa sua correção a cargo de um espírito menos inflexível e mais penetrado
de cultura antiga. Referimo-nos ao já chamado Juan Himónido, quem se entregou totalmente a
sua tarefa corretora, finalizando-a rapidamente para que pudesse representar-se no festejo que
nos importa aqui: a Cornomanía.
Uma muito breve alusão do Juan Diácono em seu prólogo ao jantar indica que dita festa tinha
lugar na sábado «in albis» depois de Páscoa, e que ridicularizava ao prior da «scola cantorum» do
Letrán, quem ia à presença da Papa escarranchado sobre um asno e coroado com um formoso
par de chifres: «A Papa romana se divertiu durante os «albis» / Quando chegou, coroado de
chifres, o prior da «scola» / como um Sileno sobre um asno; mofado pelos cantores / Quem
esclarece assim o mistério do jogo sacerdotal». Durante esse ano do 876, o velho prior do Letrán
teve que acrescentar a seu habitual jogo burlesco a dicção arriscada do novo jantar.
O testemunho do cônego Benito
Graças a uma fonte mais tardia, o Políptico do cônego Benito, temos uma idéia mais clara do que
era este rito do Letrán. Benito, cônego de São Pedro, redigiu o que com o tempo seria um texto de
importância capital para o conhecimento da Roma papal por volta do 1140. trata-se de uma
recopilação que compreende fragmentos litúrgicos, uma lista de bens papais (o que explica o título
genérico do texto) e um detalhe dos elementos descritivos das maravilhas de Roma, entre outras
coisas. Leiamos a seguir o capítulo no que Benito rememora a festa da Cornomanía, apresentada
aqui como um verdadeiro rito de investimento das dignidades eclesiásticas, em presença da Papa
e do povo romano, e diante do palácio do Letrán: «na sábado «in albis» se cantam as sentencie
da Cornomanía ao Senhor Papa da seguinte maneira. Todos os arciprestes das dezoito diaconías
tocam os sinos depois do café da manhã de dito dia, e então todos vão à igreja de sua paróquia.
O sacristão («mansonarius»), vestido com alvorada e roquete, e luzindo uma coroa de flores, leva
na mão o fímbolo próprio de sua função: trata-se de uma varinha oca e curva, do meio cotovelo de
larga, e com campainhas em sua parte central e superior. O arcipreste, revestido a sua vez com
capa pluvial, dirige-se em companhia do clero e do povo para o Letrán, onde todo mundo aguarda
a chegada da Papa na praça diante do palácio. E, quando o senhor Papa sabe que todo mundo
se encontra reunido, então baixa do palácio para o lugar preciso onde tem que escutar as
sentencie da Cornomanía. Nesse momento, cada arcipreste, acompanhado de seus respectivos
clérigos e fiéis, forma um círculo e começa a cantar «Eya preces de louco. Deus ad bonam
horam», e os versículos gregos e latinos que seguem. E, no centro do círculo, o sacristão dança
dando voltas, fazendo soar seu fímbolo, enquanto inclina para o chão sua cabeça cornuda. Uma
vez concluídas as sentencie, um arcipreste se sai de um dos círculos e se monta contra a corrente
sobre um asno que foi preparado antes pela cúria; um cubicular coloca sobre a cabeça do asno
uma vasilha que contém vinte céntimos; o mesmo arcipreste, voltando-se por três vezes para trás,
agarra as moedas, tantas como pode, em três punhados, e se as guarda. Continuando, outros
arciprestes, com seus clérigos, depositam coroas a seus Pés. Mas o arcipreste da Santa María de
Via Pulse oferece uma coroa e uma raposa pequena solta, que escapa; e a Papa, por sua parte,
entrega ao arcipreste um lhe beijem e médio. O arcipreste da Santa María do Aquiro dá uma
coroa e um galo e recebe um lhe beijem e quarto. O arcipreste de São Eustaquio dá uma coroa e
um gamo e recebe a sua vez um lhe beijem e quarto. Cada um dos arciprestes das demais
diaconías recebe também um lhe beijem. depois de ser bentos, partem todos. Quando se foram, o
sacristão, vestido ainda da mesma guisa, junto com um sacerdote e dois companheiros que levam
água bendita, doces e ramos de louro, visita as casas de sua paróquia dançando como ao
princípio e fazendo soar seu fímbolo. O sacerdote saúda a casa, a rocia com água bendita, coloca
os ramos de louro no lar e oferece doces aos meninos da casa. Enquanto isso, o sacristão canta
com estilo bárbaro os versículos seguintes: «Iaritan, Iaritan. Iarariasti. Raphayn, Iercoyn.
Iarariasti», e assim sucessivamente. Então o dono da casa lhes dá de presente um denario ou
mais. Isto se tem feito até a época do Gregorio VII, quem, a causa do aumento dos gastos de
guerra, renunciou a dito costume» .
Uma contra-liturgia
Esta preciosa evocação do Benito apresenta um autêntico rito de investimento e de
compensação, gerador a sua vez de um equilíbrio efêmero entre os poderes papais, de uma
parte, e o clero e o povo romano, de outra. A jocosidade do investimento se materializa nas
posturas (o arcipreste montado contra a corrente sobre um asno), mas sobre tudo na ordem dos
papéis: o último é o primeiro, e ao contrário; por isso, o sacristão luz as roupas litúrgicas próprias
do arcipreste (alvorada e roquete) e dirige a «liturgia» festiva. Evidentemente, a descrição nos faz
pensar na festa dos Inocentes [dos loucos], que se celebra anualmente a finais do mês de
dezembro, e que, em Roma, tinha lugar depois das Saturnais, antigas festas de mascarada, já
que durante dita festa de Inocentes, celebrada até finais da Idade Média, proclamava-se louco a
um bispo e a um arcebispo. Cabe dentro do possível, pois, que logo que desapareceram as
Cornomanías a finais do século XI, a sobrevivência incontrolada da festa radicalizasse as cenas
de investimento clerical, e que uma mulher pudesse disfarçar-se de Papa, possibilidade mais
verossímil ainda se se tiver em conta que detrás da aparente babeira da Cornomanía se adverte
uma corrente vizinha na paródia, cujo objetivo não é outro que a pessoa do pontífice.
Esta hipótese se sustenta no fato de que a localização cronológica do sábado «in albis» guarda
relação simétrica com a da festa do Ramos em relação à Páscoa; além disso, a festa do Ramos
(ridicularizada possivelmente com os ramos de louro que figuram na Corcomanía, à margem de
seu caráter de elemento representativo da primavera presente em tantas festas da Europa)
encenava o «adventus», quer dizer, a entrada de Cristo em Jerusalém montado sobre um asno.
Durante a alta Idade Média, a recepção solene do «adventus» expressava uma sacralidad
poderosa, dando assim lugar a uma verdadeira liturgia cerimoniosa, cujo ordo mais antigo de
quantos se conservaram foi redigido na abadia da Farfa no século X. Como vimos a propósito do
caso anterior de 1120, o povo entoa as sentencie no momento em que Calixto II efectúa sua
entrada em Roma: «foi recebido pelas sentencie dos jovens e dos meninos que levavam ramos de
distintas árvores». Do mesmo modo, o próprio cônego Benito nos proporciona o texto das
sentencie dedicadas ao Alejandro II: «nos abra as portas. Vamos até o Senhor Alejandro. Vamos
a lhe saudar e a lhe nomear e a elevar até ele os louvores, como os que acodem ao César.
Senhor, abre sua janela. Olhe quem veio. Sol, vim; lua, vim; nuvem celestial carregada de maná,
vim até nosso senhor a Papa Alejandro, vim com o ramo. Deus, lhe conceda vida, Cristo, concede
vida». A alusão ao César indica sem lugar a dúvida a coincidência e a emulação que subjazem
em torno da cerimônia de entrada a Roma o dia do Ramos: «o canto das sentencie constituía...
uma parte importante do cerimonial ao uso em Roma para a recepção do imperador». São várias
as fontes disponíveis sobre este ato, como, por exemplo, o testemunho dos Annales do Lorsch e
da Fulda, o panegírico do imperador Berenguer, a Chronica do Benito do Mont-Soracte, e os
poetas carolingios Notker do Saint-Gall e Walafrido Estrabón. As Papas, em seu afã por imitar
simultaneamente a Cristo e ao Império, apropriam-se de um rito que é cristão e antigo de uma
vez; no ano 1221, Honorio III conferiu estrutura teórica a este costume compartilhado, ao decretar
que a recepção do adventus ficasse reservada aos ungidos (reis, imperadores, Papas, bispos). O
papel que desempenha a figura da Papa no adventus, como destinatário das sentencie, passa, na
Cornomanía, a dois personagens e a dois registros distintos. Em um registro bufão, o sacristão
desempenha o papel do pontífice em sua dimensão clerical: embelezada com roupas litúrgicas, e
coroado de chifres (com a palavra «chifres» se estava acostumado a indicar a mitra de duas
pontas própria dos bispos e das Papas), coloca-se no centro do coro que entoa as sentencie,
sujeitando na mão o fímbolo que recorda a um mesmo tempo o fortificação do louco (com suas
campainhas), o bastão episcopal e a férula papal. Nesta ordem de coisas, terá que assinalar que
em alguns textos tardios se chama philobolia ao ato de arrojar flores primaveris em direção da
Papa. No registro satírico, o arcipreste também imita à Papa em sua dimensão cristo-imperial;
mas neste caso se trata de menos de um investimento de papéis que de uma transposição, já que
o arcipreste não é um personagem menor, jocosamente exaltado, e, ao igual à Papa, realça a
solenidade da chegada utilizando uma cavalgadura (no momento do adventus a Papa usa
primeiro um cavalo branco e logo uma mula). Seguindo com a imitação papal, o arcipreste toma
umas moedas de uma vasilha durante o advento, enquanto está sentado na cadeira
«estercolera»: toma por três vezes um punhado de dinheiro que lança o povo, ao tempo que
declara que nada guarda para ele, exclamação que em boca do arcipreste se converte em uma
negociação contrária, pois de fato ele sim conserva o dinheiro («habere» em ambos os casos). Do
mesmo modo, o arcipreste imita ao pontífice quando se faz coroar; mas este personagem, quer
dizer o arcipreste, sentado ao reverso sobre um asno, representa também um certo estado de
desordem, atribuído possivelmente ao papado, e que teria investido a humildade crística do
«adventus em orgulho imperial. A alusão roça a ameaça se recordarmos que o antipapa do
Calixto II, Mauricio Bourdin, foi exibido, depois de ser capturado em 1122, montado do reverso
sobre um camelo, pelas ruas de Roma. Um pouco parecido aconteceu a finais já do século X, no
ano 967, ao prefeito Pedro, antipapa do Juan XIII, quem foi passeado em uma procissão
infamante, encarapitado também do reverso sobre um asno, com a barba barbeada, e meio doido
com um odre emplumado; o percurso terminou na praça do Letrán, onde lhe pendurou pelos
cabelos do cavalo de Marco Aurelio, cuja estátua eqüestre decorava sorte praça, frente ao
palácio. O bispo Juan da Calabria correu a mesma sorte no 998, por idênticas razões. Mais
próximas no tempo do episódio cornomaníaco, e em um contexto ameaçador para as Papas,
encontram-se as revoltas antipapales de 1184, durante as quais os rebeldes cegaram aos
tabeliães do Lucio III antes de lhes obrigar a desfilar montados em burro contra a corrente. Na
cerimônia da cornomanía se misturam o investimento jocoso e a alusão ameaçadora, com o
transtorno satânico e cismático. Juana não anda longe.
O investimento como revanche dos clérigos
Não obstante, a paródia adquire tinturas ainda mais acidentados, se tivermos em conta que o
ritual oficial constitui já, por si mesmo, um investimento (séria) apoiada nos textos evangélicos: o
Senhor absoluto, Jesus, entra na Cidade (Jerusalém) montado na mais humilde das criaturas (o
asno), e é o próprio Jesus quem declara que os primeiros serão os últimos. Na Cornomanía e
seus derivados carnavalescos, o investimento, carregada de ironia, a letra tem o mesmo valor que
o espírito. Assim, a paródia remoça o rito depois de consumar seriamente seu próprio modelo,
como se o povo cristão, verdadeiro sujeito da liturgia, adotasse-se um direito de censura e de
crítica: a Cornomanía tem lugar depois do «adventus» quase imperial do dia do Ramos, quer dizer
depois das solenidades pascais, ao igual à festa dos Loucos (ou Inocentes) ou a festa dos asnos
(o 1.° de janeiro) desenvolviam-se depois da celebração do Natal. Do piada até o comentário
rigorista, existe uma ampla possibilidade de jogo no que cabem todos os graus do comentário
ritual do rito: o asno da Festa dos Asnos ou da Cornomanía é honrado através da brincadeira
cuasi pagã da humildade cristã, ou mediante a lembrança irônica do espírito evangélico, ou
inclusive com a denúncia satírica do literalismo devoto; tanto é assim, que no ano 825, Claudio do
Turín sugeria ironicamente em um irado requisitorio contra o fetichismo na Igreja, que se
venerassem as roupas velhas, as barcos e os asnos já que tinham formado parte da vida do
Jesus.
Não devemos, pois, infravalorizar a subversão virtual que aflora em sortes festas de investimento,
de cujo controle, por outra parte, não está nunca seguro nem o clero curial nem o local. Como
vimos, as fronteiras entre o jogo burlesco, a paródia e a subversão se apresentam muito
cambiantes, de maneira que, à margem do travestismo cornomaníaco, podemos assinalar que em
um texto, que se remonta aos tempos do Gregorio VII, Bonizon do Sutri conta que os sacristães
de São Pedro se disfarçavam de sacerdotes-cardenales para extrair esmolas aos peregrinos:
«Todos estes, com a barba rapada e tocados com mitra, dizem ser sacerdotes e cardeais.» Neste
caso, o elemento burlesco desapareceu para deixar passo à impostura interessada, o que
demonstra claramente a natureza equívoca desses ritos jocosos, aptos para atacar qualquer
empresa de alcance mais radical. O detalhe da barba barbeada para imitar o sacerdócio nos situa
no contexto dessa neutralização sexual que analisamos no primeiro capítulo; e, uma vez mais,
quando tentamos identificar um personagem, surge inequivocamente a figura da papisa.
Em um momento determinado, a Cornomanía propõe, pois, uma compensação ou uma revanche
frente ao poder dominante. O aspecto mais anódino desta revanche concerne ao elemento jovem,
quer dizer, aos estudantes da «scola cantorum» que no século IX, e a tenor do relato do Juan
Diácono, ridicularizam a seu velho professor, o subdiácono prior da scola. A coleta de casa em
casa depois da Cornomanía, que aparece na versão do cônego Benito, recorda todas as festas
juvenis que se desenvolvem entre a quaresma e maio, durante as que se submetem
simbolicamente à juventude. O próprio Benito rememora no mesmo texto as sentencie que os
«meninos» entoam em meados da quaresma: «A metade da quaresma, escolá-los hasteiam
lanças com estandartes e campainhas; primeiro entoam sentenciem ante a igreja e logo
percorrem as casas cantando e recebem ovos como recompensa por seus sentencie. Atuam
desta maneira a muito tempo tempo» .
A revanche dos clérigos e do povo parece mais própria do contexto romano, embora, como
demonstrou Jacques Heers , a maioria das festas burlescas que se celebravam na Idade Média
eram de origem clerical. A realeza da paródia do sacristão manifesta claramente essa revanche
efêmera. Assinalemos a este propósito, embora sem insistir no momento, que nos encontramos
aqui com uma das pistas quase apagadas da papisa: no inventário dos rastros rituais da Juana,
pudemos registrar o jejum do Témporas, cuja maternidade corresponde a papisa, segundo Juan
do Mailly, como havemos dito antes. Pensamos que se trata de uma pista, porque, de acordo com
a liturgia romana, a ordenação dos sacerdotes tinha lugar um sábado (como a Cornomanía), de
uma das quatro Témporas. Conforme veremos, a localização cronológica da Cornomanía em
relação com as Témporas deve interpretar-se como uma festa das paróquias e do clero ordinário,
quer dizer, como uma exaltação lúdica do sacerdócio. De fato, Juan Diácono indicava já que esta
festa bem podia ser a explicação do «mistério (término de dobro significado para a gente do
Medievo, pois equivalia também a "mistério") do jogo sacerdotal». Assim, em relação à alta
jurisdição pontifícia, a Cornomanía, em seu sentido de investimento médio carnavalesco e médio
sério, referiria-se a sua vez à primazia fundamental da ordenação; de ser este o caso, Juana
figuraria como patrã de dito jogo. Examinemos a seguir esta dimensão paroquial da festa.
O investimento como revanche comunitária: as diaconías
Durante o ato da Cornomanía, o clero romano recupera, frente à estrutura curial e patriarcal, sua
primitiva dimensão comunitária, sem que nenhum intermediário suprarromano se interponha entre
a Papa e seus fiéis, entre o clero e o povo. A massa congregada ante o Letrán acode agrupada
em função de suas dezoito paróquias. Essas dezoito «diaconías» contam a sua vez com uma
história complexa, esclarecida recentemente graças aos trabalhos do Otorino Bertolini . Se trata
de uma instituição estritamente cristã e urbana, sobre a que não se tem notícia alguma até as
postrimerías do século VI, sob o papado do Gregorio o Magno; portanto, não guarda relação
alguma com o grau litúrgico do diaconato, instituição por certo farto antiga, nem tampouco com a
função administrativa do diaconato regional, que é a sua vez uma forma de inspeção pontifícia
implantada em Roma oriental e em princípio de caráter monástico e foi levada a Roma por
monges gregos; com esta instituição recém importada se tentava substituir os serviços imperiais
da «annona» ou anuidade, quer dizer da cota de produção anual que garantia a provisão de
mantimentos, e que desaparece, com a presença imperial na cidade. A implantação destas
circunscrições de assistência caridosa tem lugar no século VIII, à margem das anteriores
distribuições administrativas e religiosas, e as diaconías vão surgindo pouco a pouco, ao redor de
uma igreja ou de um monastério, nas zonas realmente povoadas da Roma altomedieval. Os
primeiros «ordene romani» distinguem às Iglesias diaconales das Iglesias titulares e das «demais»
Iglesias, e ao parecer gozam de certa autonomia em relação com o papado; assim, enquanto que
as Iglesias titulares, dispersas pelas colinas segundo a geografia antiga de Roma, estão
administradas por um sacerdote (o futuro cardeal-sacerdote), e por «mordomos da Igreja romana»
(majores domus Ecclesiae Romanae), as diaconías por sua parte estão dirigidas por um sacerdote
(«o dispensador») e por um «pai» (pater) laico, designado a sua vez, e conforme parece, pela
comunidade. Estas características convertem as diaconías em verdadeiras paróquias populares
de Roma, vigentes ainda no século XII (ou pelo menos no século XI, já que o testemunho do
Benito se apóia em fontes de finais de dito século), como se desprende da Cornomanía, e mais
concretamente dos estranhos animais, emblemáticos sem dúvida, que durante a mesma oferecem
ao arcipreste coroado, que desempenha funções de Papa. No relato do cônego Benito se dá
preeminencia a três destas diaconías (São Eustaquio, Santa María in Aquiro e Santa María in Via
Pulse), das quais as dois primeiras som as de fundação mais antiga, embora é certo que a data
institucional da terceira é menos segura; em qualquer caso, o destacável é que estas três
diaconías representam o núcleo mais popular de entre as dezoito circunscrições. A convergência
das comunidades diaconales para o Letrán toma, pois, o traçado da reconstrução simbólica do
vínculo orgânico entre a Papa e seu povo, e portanto reproduz deste modo as ambigüidades que
gera o hábil e tenaz esforço de jerarquización papal. O fato é que, no século XI, as Papas
conseguem recuperar essa parcela popular para integrá-la dentro do esquema concêntrico do
Letrán, e, por este motivo, o subcolegio dos cardeais diáconos, o último em formar-se (depois do
dos cardeais sacerdotes), tem sua origem nas diaconías, que servem de justificação romana para
a existência do título diaconal, isento, como vimos, de toda função litúrgica local. A direção efetiva
da igreja diaconal continua submetida a um arcipreste e a sacerdotes. Examinemos, pois, a
apresentação desta sutil separação do poder, em uma fonte de finais do século XI, A descrição do
santuário da Santa Igreja do Letrán : «Deve estar presente aqui o archidiácono de Roma, com os
seis diáconos do palácio que devem ler o evangelho no palácio e na igreja do Letrán, e os outros
doze diáconos regionais encarregados de ler o evangelho habitualmente nas estações fixadas das
Iglesias de Roma. Estes dezoito diáconos possuem outras tantas Iglesias dentro dos muros da
cidade e portanto são cônegos da igreja patriarcal do Letrán». Esta disposição converte aos
dezoito titulares das diaconías em dignatarios da igreja patriarcal, onde desfrutam da fila de
canongía ao mesmo tempo que desempenham uma função litúrgica (a leitura do evangelho). O
texto detalha a seguir o resto das figuras necessárias para a liturgia do Letrán: subdiáconos,
coroinhas, leitores, exorcistas e portadores, quem, junto com os sacerdotes, conformam os sete
graus litúrgicos da igreja.
A aritmética papal conseguiu realizar assim uma extraordinária operação: (1 + 6) + 12 = 18! Em
efeito, ao repassar a velha e popular divisão diaconal, o papado transforma os antigos sete
diáconos regionais (século IIl), que correspondiam às sete regiões administrativas antigas com
uma função central (e não local), em um grupo de seis diáconos palatinos, presidido por um
archidiácono (antiga função eclesiástica recentemente promovida —século X— ao alta fila de
vicepapa, encarregado do papado em caso de que a Sede de São Pedro ficasse vacante). A partir
de então, os outros 12 diáconos (18 - 6 = 12) correspondem ao nova partilha administrativa e
militar (mas não religioso) que divide a Roma em 12 regiões. A nova divisão se implanta durante a
segunda metade do século X, quando o papado se faz com o senhorio-imperial da cidade; é então
quando estes doze diáconos adotam a denominação de diáconos regionais, denominação que já
não correspondia aos 6 ou 7 diáconos palatinos. A dúvida aritmética (6 + 1 = 6 ou 7?) traduz
também neste âmbito o modelo papal de denominação corporativa, analisado no capítulo anterior
(referimo-nos ao modelo denominado «no topo e por cima»). A festa que se celebra no Letrán se
parece muito a uma jornada de néscios! Esta ambigüidade que rodeia a instituição diaconal
possivelmente explique o papel desempenhado pelo «último dos diáconos» («ultimus diaconus»)
no rumor sobre o ritual da verificação do sexo das Papas. É certo que em dita narração terá que
ter em conta o efeito do investimento carnavalesco ou cornomaníaca, já que no ritual oficial o
archidiácono, agora convertido em primeira figura, ou prior (primus prior) dos diáconos cardeais, é
quem faz entrega do pálio ao eleito; além disso, e como já indicamos, utilizava-se indistintamente
a mesma palavra («attrectare») para indicar o tocamiento de verificação e o contato proibido do
pálio. Mas também é possível que o diácono, o último dos diáconos, conservou-se na memória
coletiva, noção do popular e do próximo, por contaminação com essa figura mais familiar do
«pater» da diaconía popular. Desta maneira, entre esse «pai dos pais» longínquo e este pai antigo
e próximo interviria o investimento jocoso e reivindicativo.
A paródia no calendário litúrgico
Apesar de todas as manipulações papais, entre os séculos X e XI a Cornomanía se apresenta
como a pedra de toque de um frágil edifício de proporções simétricas, que confere solidez
arquitetônica ao significado do Letrán. Por isso, é preciso seguir com atenção a descrição do
cônego Benito quando fala da série de festas romanas, ou seja: janeiro, Carnaval, Témporas de
Quaresma, Cornomanía, etc., para poder apreciar como se constrói uma contraliturgia ligeira,
estreitamente unida ao ciclo pascal, e centrada no Letrán. Retomemos a misteriosa e frágil
associação que se estabelece entre as Témporas e a figura lúdica da Juana. A origem das
Témporas é incerto, e sua definição no calendário constitui uma das mais azedas polêmicas de
quantas balizam a mudança secular, quer dizer entre o IX e o XI, já que durante essa centúria
larga que separa ambos os séculos, o costume ornamento vai se impor ao costume romana. Para
os francos, cuja posição, apresentada já no 813 durante o Concílio da Maguncia (cidade natal da
Juana!), não deixa de reafirmar-se (primeiro com o Amalario, em uma carta dirigida ao Hilduino no
825, e logo com o Raban Maur, Reginou do Prüm e Burchard do Worms) até o Concílio do
Seligenstadt, em 1022, as Témporas têm lugar na primeira semana do primeiro mês (março, pois
então o ano começava em março), na segunda semana do quarto mês (junho), na terceira
semana do sétimo mês (setembro) e na quarta semana do décimo mês (dezembro). Pelo
contrário, o costume romana, a antiga, fixada explicitamente pelo Gregorio VII no sínodo pascal de
1078, e confirmada logo por Urbano II em 1095, assim como pelos Concílios do Quedlenburgo
(1085) e da Constanza (1094), propõe que os dois primeiros tempos tenham lugar ao princípio da
Quaresma («in initio quadragesimali») e durante a semana do Pentecostés, ou dito de outro modo,
nos limites cronológicos do ciclo pascal. Desta maneira, o calendário romano conferia carta de
natureza a uma triplo conjunção de momentos cristopontificales, de tempos de ordenação
sacerdotal e de festas romanas. Este triplo ciclo se inauguraria a sua vez com o Carnaval, cuja
primeira testemunha é, como veremos, o já chamado cônego Benito, e que tem lugar justo antes
da Quaresma e da primeira das Témporas; logo vêm as Témporas de Quaresma (tempo festivo),
a festa do Ramos (momento do «adventus» papal), Páscoa, na sábado «in Albis» (Cornomanía), o
Encargo (precedida das Rogativas que dão lugar à procissão que resultaria fatal para a Juana), e
por último, Pentecostés (tempo batismal no Letrán, e segunda das Témporas). Todo este ciclo gira
em torno da Páscoa, momento de glória no Letrán, momento de ruptura do jejum, momento em
definitiva de jogo; porque, de fato, e até o século XII, o dia de Quinta-feira Santa a Papa
representava o último jantar rodeado dos 12 cardeais, e confiando o papel do Judas ao
archidiácono! Embora Benito narra com excessivo laconismo a alegria comunitária desta festa
pascal, encontramos, não obstante, em seu relato uma evocação mais concreta da mesma, que
no relato do camerista Cencio (o futuro Honorio III), autor de um Ordo de grande importância a
finais do século XII, onde se lê o que segue: «depois de celebradas as vésperas por triplicado, na
basílica do Salvador, nas Fontanas (igual no batistério do Letrán) e na Santa Cruz, retorna-se ao
pórtico de São Venancio (próximo ao batistério do Letrán); ali, a Papa, junto com os bispos,
cardeais e demais ordens, assim como com o resto, tanto clérigos como laicos, toma assento no
chão, sobre tapetes. Continuando, o archidiácono e o bodeguero lhe servem vinho clarete, a ele e
a todos quantos estão ali. Enquanto isso, chega o primicio com os cantores e entoam esta prosa
grega...» .
A conjunção dos tempos litúrgicos de ordenação e dos momentos festivos se mantém até finais
de ano: a terceira das Témporas (finais de setembro) coincide com a festividade de San Miguel,
de uma parte, e com os «Ottobrate» (oito meses depois das Témporas quaresmais) de outra
parte, rememoradas a sua vez, enigmática e rapidamente, pelo cônego Benito, mas cujo caráter
militar romano se translada à celebração da coroa e do cavalo papais . O quarto tempo cai depois
de Natal, no fim de dezembro, e coincide com a festa dos Inocentes, data para as que Benito
assinala a celebração dos «jogos comunais das calendas de janeiro» (quer dizer, finais de
dezembro). Não há dúvida de que estes jogos tomam a substituição das Saturnais antigas, ou
festas de disfarces. Já (ou ainda) no século VIII, Bonifacio se queixava à Papa Zacarías de que se
celebrassem ainda dance «ao estilo dos pagãos» («paganorum consuetudine») perto de São
Pedro, de dia e de noite. Embora, como havemos dito, o relato do Benito é mais lacônico, tem a
vantagem de dar testemunho de pervivencias curiosas no âmbito dos costumes: «A véspera das
Calendas pela tarde, os jovens saem à rua levando um escudo. Um deles vai mascarado
("larvatus"), com um porrete ao pescoço. Tocam o assobio e o tamboril; visitam as casas e se
colocam ao redor do escudo; ressona o tamboril e o mascarado toca o assobio; ao conduzir este
jogo, recebem um presente do dono da casa, a vontade deste último. Esse dia comem toda classe
de verduras. Pela manhã, dois jovens saem com ramos de olivo e sal; entram nas casas. Saúdam
as casas: "Que a felicidade e a alegria sejam com esta morada". Jogam no fogo um punhado de
ramos e de sal e dizem: "Que sejam tantos os filhos, os leitões e os cordeiros"; desejam toda sorte
de venturas, e antes de que se levante o sol comem feijões com mel ou algo açucarada, para que
o ano seja doce, sem conflito nem pena" .
A coincidência das Témporas (tempos da papisa e dos sacerdotes) com as festas romanas é
muito evidente para atribui-la ao azar do calendário. Em conseqüência, é preciso fixar-se na
elaboração antiga dessa paraliturgia, para poder advertir um intento de adesão aos ritmos
comunitários, inscritos a sua vez no ciclo pascal, e portanto no ciclo papal. O soberano das
Témporas e do investimento alegre e compensatório bem poderia ser, sem dúvida, uma papisa.
O espaço de compromisso no carnaval romano
A série de festividades romanas comporta igualmente um espaço de compromisso (mas devemos
falar de compromisso ou de indolência mútua?). O espaço papal compreende uma construção
concêntrica ao redor do Letrán com uma extensão que se projeta deste ao oeste (orientação
fundamentalmente cristã), desde o Letrán até o Vaticano, e que se materializa com a Via Sacra
(ou, popularmente, rua da Papa), ocupada habitualmente pelas procissões de coroação e de
coroação em São Pedro. Como já vimos, entre os séculos IX e XI, o espaço comunitário cai sob a
atração irresistível do Letrán, mas projetando-se com uma orientação norte-sul que figura na
descrição do Carnaval relatada pelo cônego Benito: «Sobre o jogo do Carnaval. no domingo de
renúncia da carne, os cavalheiros e os soldados de infantaria ficam em caminho depois do café da
manhã; saciam um pouco sua sede. Depois, os de infantaria depositam seus escudos e se
dirigem ao Testaccio, enquanto que o prefeito, com os cavalheiros, dirige-se a sua vez ao Letrán.
O senhor Papa baixa do palácio e cavalga com o prefeito e os cavalheiros até o Testaccio; ali,
nesse lugar, onde se originou a cidade, e de maneira análoga, o prazer de nosso corpo conhece
seu fim em dito dia. A gente participa de carreiras sob o olhar do pontífice, para que não se
produza nenhum protesto entre a concorrência. sacrifica-se um urso, quer dizer a tentação de
nossa carne; sacrificam-se touros para suprimir assim o orgulho de nosso deleite; sacrifica-se um
galo, aniquilando assim a luxúria de nossas vísceras, para viver depois casta e sobriamente no
combate de nossa alma, e para merecer dignamente a recepção do corpo do Senhor na Páscoa»
.
O monte Testaccio se encontra ao sul de Roma, fora do recinto antigo (e portanto mais afastado
ainda da pequena cidade medieval), à beira do Tíber. Apesar da interessante precisão que nos
oferece o cônego Benito («nesse lugar onde se originou a cidade»), dito lugar não tem nada que
ver com a geografia antiga de Roma, pois a colina cresceu lenta e tardiamente, na convocação
ocupada pelo «emporium» (porto-armazém de Roma), sobre escombros heteróclitos ali
depositados, e concretamente sobre montões de cerâmicas rotas e de entulhos de ânforas (daí o
nome do Testaccio). A denominação deste «monte» não aparece até finais do século VIII, em uma
inscrição da Santa María in Cosmedin, uma das dezoito Iglesias diaconales; em dita inscrição
figura a doação de uma vinha se localizada na colina, a favor da citada diaconía. Mas fora do
Políptico do cônego Benito, nenhum outro texto indica a existência dessas festas do Testaccio
com antecedência a 1256. Sobre este particular, existe um contrato de arrendamento da época,
no que se menciona o «Mons de Pálio», a colina do Pálio, onde têm lugar as carreiras (de fato, o
que sim se conhece é a carreira do Monte Palio, mas em Siena) . No festejo comunitário, o
Testaccio ocupa o mesmo lugar que o Vaticano no sistema papal; isto é, em ambos os casos se
concha um lugar que se encontra fora da cidade, e onde se originou a mesma (origem mítica da
cidade em um caso, tumba do fundador da Igreja no outro), e que se converte na meta das
grandes caminhadas de comemoração. O mito da fundação de Roma no Testaccio, freqüente nas
memórias romanas e confirmado pelo Benito, aparece curiosamente associado à figura da Juana
em um texto do século XVI, chamado pelo J. Wolf em 1600, quem o atribui a sua vez ao
Gergithius e ao Pierus (autores ambos dos que nada sabemos): as moedas cunhadas com uma
cabeça feminina com casco evocariam o nome antigo de Roma, «Cephalon» (tradução pseudogrega do Testaccio), ou aludiriam a Juana VII Papa» .
A caminhada festiva (a cavalo, como o rodeio que discorre entre o Vaticano e Letrán) transcorre,
pois, do norte ao sul, orientação que se confirma se se tem em conta a outra convocação festiva
do Carnaval, testemunhado um pouco mais tarde e mencionado implicitamente pelo Benito em um
trocadilho provável («in agone animae»: no combate da alma): no século XIII, o Carnaval romano
se titula «festa do Agono e do Testaccio» . O Agono era o estádio do Domiciano, ou circo de
carreiras («Agonale»), que ocupava o atual espaço da praça Navona (nomeie derivado da Agona
com intervenção da Nagona), e onde se celebravam corridas de touros o dia de Quinta-feira
Santa, quer dizer, três dias antes de que se iniciasse a Quaresma no Testaccio, no domingo. O
caminho do Testaccio à a Agona atravessa perpendicularmente a Via Sacra, a via da Papa,
precisamente pela praça do Pasquim, muito perto da própria Agona.
depois de proibir o Carnaval, a nova fórmula que implanta Paulo II no século XV, dentro de um
marco estritamente pontifício, risca seu percurso definitivo mais para o norte da cidade, mas
sempre sobre o eixo norte-sul, da porta Flaminia até a atual Praça de São Marcos, quer dizer ao
longo de Via Pulse (hoje chamada Via do Corso). O lugar simbólico onde se juntam estes dois
eixos se encontra, pois, no Capitólio (Campidoglio), colina com ressaibos romanos, e centro da
Comuna antipapal do século XII. Também aqui nos encontramos com o rastro liviana da papisa, já
que a procissão das Rogativas (ou da Letanía menor) adota esse eixo norte-sul, ao longo da Via
Pulse, desde São Lorenzo in Lucina até a Porta Flaminia, para alcançar, ao norte, a borda direita
do Tíber e o Vaticano pela ponte Milvius. Ao igual ao Carnaval, a festa do Rogativas combina os
dois eixos culturais de Roma; assim, Juana, figura eclesiástica e popular das Témporas e das
Rogativas, situa-se comodamente no ponto exato do equilíbrio tão simbólico como frágil que
existe entre a Papa e Roma.
Esquematización dos dois eixos festivos romanos na Idade Média: eixo pontifício, do Vaticano
ao Letrán, e eixo carnavalesco, desde o Testaccio à a Agona e à Via Pulse.
Ou possivelmente caberia dizer que o lugar da Juana se prepara precisamente neste ponto de
equilíbrio, lugar que Juana não ocupará sem dúvida até finais do século XII, quando a ruptura
simbólica entre o pontífice e seu povo elimine a indolência do ritual festivo, e lhe confira essa
forma mais secreta e selvagem da falação e do escândalo. Entre os séculos IX e XI, o diálogo
cerimonioso alcança seu máximo apogeu, devido precisamente a que o «incastellamento» do
Letrán fixou, no tempo e no espaço, o rosto visível do poder, provocando a cristalização da cultura
dispersa dos costumes romanas. E se as fontes antigas são solventes para fundamentar os
hábitos rituais assinalados até o momento, podemos dizer que a sistematização das festas
comunais romanas não se produz até o momento em que o poder adverso começa a deixar-se
sentir na cidade. Porque a que está acostumado a chamar-se cultura popular o que em realidade
descreve é um combate de resistência mais que uma sobrevivência, propriamente dita.
É verdade que, ao comparar as distintas fases de tensão que surgem entre dominantes e
dominados, provavelmente se exagera o alcance do diálogo cerimonioso cercado entre o papado
e a comunidade. Nesta ordem de coisas, a Cornomanía impede que se difunda uma fantasia
coletiva desbocada, deixando que pareça que se trata mas bem de um «gesto» de
confraternización por parte dos pontífices, e portanto estreitamente circunscrito e controlado por
estes últimos (um inciso do cônego Benito indica que o asno do arcipreste o preparava a cúria de
antemão). A festa ressurge no contexto do que poderíamos denominar um «folclore», lembrança
dos «bons velhos tempos», atendendo a uma partilha desigual, que divide o rito entre a nostalgia
exagerada e a diversão condescendente. Nesse rito, a simulação da partilha se distingue
claramente do transação ilustrado com as cadeiras curulas do ano 1099. Em um caso se delega o
acerto de uma tensão excessiva no que hoje chamaríamos contido «cultural» ou «social»; no
outro caso se atua, promete-se e se negocia, de tal sorte que o rito ocupa o lugar do verbo, da
decisão e da lei.
Não obstante, esta cultura parásita, bem por si mesmo ou por suas separações radicais, devia
resultar o bastante perigosa como para que, segundo Benito, Gregorio VII acabasse proibindo a
festa da Cornomanía. Por volta do ano 1140 este cônego, tantas vezes chamado, faz exatamente
quão mesmo muitos folcloristas de hoje: brinda-nos uma relação de lembranças. Os textos que
dirige Benito se remontam ao antecessor do Gregorio VII, Alejandro II (1069-1073), cujo nome
surge ocasionalmente nas Sentencie reproduzidas por nosso cônego em seu Políptico. Em
conseqüência, pode dizer-se que o diálogo explícito desapareceu quando a dominação papal
adotou um giro mais abstrato, menos identificável, isto é, quando se envolveu nos «mistérios do
Estado» durante o processo de transição entre a fase de feudalización (Gregorio VII) e a fase
estatal (Inocencio III).
Fim do compromisso: o espaço abstrato da denominação papal
A aspiração ao domínio universal que caracteriza ao papado do século XII fazia que o modelo
imperial-central, que tinha prevalecido até então e que tinha exaltado o espaço do Letrán,
resultasse caduco. O domínio feudo-vassalo, estendido por toda a Europa, apoiava-se na
onipresença e na mobilidade a um mesmo tempo, passando então da administração de corte
palatino à burocracia curial. A função prevalece sobre a convocação, e, conforme reza um adágio
do direito romano, a Papa «leva os arquivos em seu coração» . Esta preocupação pela
organização espacial, que transcende a primeira preocupação pela divisão, implicava
necessariamente a revalorização de São Pedro, âmbito onde se define a noção transpersonal da
«sede pontifícia» como tal. Durante todo o século X, e também a começos do século XI, a liturgia
e o se vicio coral adscritos ao Vaticano conheceram uma considerável degeneração que
contrastava llamativamente com o desenvolvimento registrado a sua vez pelo Letrán. A renovação
abraçou, pois, efusivamente o movimento de reforma iniciado na segunda metade do século XI.
No 1053, a primeira Papa reformista, Leão IX, impõe ao capítulo da basílica a direção de um
arcipreste, e, pouco depois, São Pedro se beneficiaria dessa incardinación semanal que desde
fazia três séculos se praticava no Letrán, de maneira que sete cardeais-sacerdotes se convertem
nos cardeais de São Pedro, provendo o cargo mediante uma sucessão cuja ordenação, quer dizer
a de cardeal «vaticano», tem lugar ante o altar da basílica. Algo mais tarde, em 1123, e com
motivo do primeiro Concílio do Letrán, Calixto II procede a consagrar solenemente o altar maior de
São Pedro. Por volta do 1140, um cônego de São Pedro que conhecemos bem, o muito célebre
Benito, fixa a liturgia própria do Vaticano em seu Ordo Ecclesiasticus totius anni, obra que
continuaria um pouco mais tarde Pedro Mallius. A partir de princípios do século XII, começa a
celebrar-se solenemente em 22 de fevereiro a festa da Cadeira de São Pedro.
A promoção que conhece São Pedro no século XII importa a nosso propósito, já que o poder
papal vai deixar a cidade médio vazia, alterando assim essa complexa rede urbana que se cobriu
em torno de Letrán. Do mesmo modo, dito deslocamento do poder, por um lado, confere maior
vigor à consagração litúrgica em São Pedro, e, por outro, reduz a superfície do âmbito civil,
comum à Papa e à cidade.
Desde esta nova situação, consideremos agora os três ordene do advento papal a finais do século
XII, já que sua cronologia e conteúdos respectivos apresentam grandes semelhanças. trata-se do
Ordo da Basilea, redigido sem dúvida por um cônego de São Pedro; do Ordo do Cardeal Albino
(1189), cujo texto figura nas Gestas do Pobre Estudante Albino, e do Ordo do camerista Cencio
(1192), que constitui a sua vez um fragmento de seu Líber Censuum . Por nossa parte, referiremonos ao texto do Ordo da Basilea, pois é o que está melhor editado, indicando ao fio do comentário
as variantes mais destacáveis de Albino e do Cencio.
A composição mesma do Ordo põe de manifesto um processo evolutivo de capital importância,
que tem lugar do 1099: enquanto que as duas primeiras partes, dedicadas, respectivamente, à
eleição (e a tira de posse do Letrán) e à consagração no Vaticano, ajustam-se ao modelo
estabelecido no século XI (e na alta Idade Média para a consagração), embora com maior
abundância de detalhe, surge não obstante na narração uma cerimônia até então inédita: a
coroação, ou melhor dizendo a procissão da coroação (parte III: «Como cada um fica em marcha
para assistir à coroação da Papa»). Esta novidade poderia parecer relativa, já que desde o
Nicolás II, em 1059, as Papas se Coroam; não obstante, até o século XII a coroa entrega
diretamente ao final da missa de consagração, sem que isso suponha uma demonstração
particular. Pelo contrário, o uso e a teorización do século XII estabelecem uma verdadeira
procissão de coroação, que discorre desde São Pedro até o Letrán: «Uma vez celebrada a missa,
o senhor Papa descende com todas as hierarquias da cúria romana para o lugar fixado, onde se
encontra o cavalo da Papa arreada para a ocasião, e onde o archidiácono recebe das mãos do
primeiro marechal o "regnum" (coroa), também chamado "frigium", com o que coroa ao senhor
Papa. E assim, depois de atravessar o centro da cidade pela Via Sacra que chamam Via da Papa,
descende já coroado para o palácio do Letrán» . A seu passo por esta via a Papa recebe a
comemoração dos clérigos e das Iglesias, e no bairro do Perion é aclamado pelos judeus da
cidade, enquanto o camerista e outros membros da cúria arrojam punhados de dinheiro à multidão
para afrouxar seu cerco lhe aprisionem. No Letrán se detém escutar as sentencie dos cardeaissacerdotes de São Lorenzo, e dos juizes, antes de que lhe conduzam até seus aposentos. A
terceira parte do Ordo da Basilea se refere à composição do rodeio (soldados, coroinhas,
marechais e capelães, draconarios, bispos estrangeiros e prefeitos navais, advogados e
arquivistas, subdiáconos regionais e da basílica, primicio e prior dos subdiáconos, diáconos,
cardeais, archidiáconos, Papa acompanhada de um subdiácono regional e seguido, a certa
distância, do prefeito). Esta procissão urbana, único momento verdadeiramente público da
cerimônia, tem um caráter exclusivamente curial (com exceção do prefeito, a quem se mantém a
distância), e a gestão policial está confiada ao archidiácono e ao prior da basílica.
Com esta procissão da coroação, a cúria se vincula à via pública romana do trajeto urbano, e
exclui à comunidade dos fiéis do desfile litúrgico, esse meio ativo e cíclico que lhe permite
delimitar seu território. Nas cerimônias errantas das Papas dos séculos XIV e XV pode medir-se
bem o alcance dessa mutação: a estrutura ortodoxa da procissão importa mais que seus pontos
de partida e de chegada (Vaticano e Letrán). Quando Juan XXII se faz coroar no Lyon, em 1316,
preocupa-se com encontrar dois pontos de partida e de chegada (neste caso a catedral de San
Juan, lugar de consagração, e o convento dos dominicanos, na praça Bellecoeur), para seguir ao
pé da letra o regulamento solene do desfile de coroação .
Juana como última revanche
Ante esta nova desposesión, a revanche carnavalesca já não pode adotar a via indireta
institucional da procissão cornomaníaca, agora abolida, e deve conformar-se com a da
interpretação indolente e paródica; daí o sentido burlesco de certos detalhes da procissão de
coroação. Como vimos mais acima, a maioria dos historiógrafos da papisa apresentam como
prova comemorativa da existência da Juana um desvio que se realizava perto de São Clemente
para evitar passar pelo lugar onde Juana deu a luz. Cesare d'Onofrio conseguiu desembaraçar
com solvência semelhante mistério, de maneira que nos limitaremos a segui-lo em seu relato. O
desfile papal desde o Letrán até o Vaticano (advirtamos o investimento do sentido direcional, pois
é necessário para a coerência do episódio) dirige-se primeiro para o Coliseu, tomando a atual rua
de San Juan através das ruínas do Ludus Magnus (lugar onde se treinavam os gladiadores) não
se levou a efeito até o século XVI; ali o desfile passa por um lance curto de ruela (atualmente a via
do Querceti) antes de chegar até o Coliseu pela rua dos Quatro Santos Coroados. Terá que
recordar, que o próprio cônego Benito assinalava já claramente este itinerário por volta do ano
1140 . Além disso, a partir de mediados do século XII, quando chega ante São Clemente, o
cortejo papal se dirige para o outro lado da igreja, para a direita, para seguir pela atual via
Labicana em direção ao Coliseu. Esta mudança, originado provavelmente pelo aumento do
volume procesional, interpreta-se então como um desvio. O rumor se encarrega de dar um sentido
coerente a vários detalhes: devido a sua própria estreiteza, a ruela dos Querceti provoca as
circunstâncias que aceleraram o parto da Juana, e por isso lhe chama o beco da papisa. Por outro
lado, há uma capela na esquina da rua dos Querceti, decorada com um afresco que representa a
Virgem com o Menino, que acontece converter-se em um monumento dedicado à lembrança da
Juana e de seu recém-nascido .
A sistematização dos ritos de coroação no século XII
Voltemos para ritual oficial. A procissão de coroação se converte em uma segunda tira de
posse do Letrán, privando de sentido à primeira, que já não contribui nada ao acontecimento. O
poder papal pertence ao eleito do momento mesmo em que os cardeais emitem seu voto, embora
o compartimento litúrgico e cerimonioso não se desdobra de tudo até depois da consagração.
Sobre este particular, existe uma divergência entre o Ordo da Basilea e os ordene de Albino e do
Cencio, que põe de manifesto o extravagante da situação: por um lado, o autor do Ordo, sem
dúvida cônego de São Pedro como já havemos dito, afirma rotundamente que o eleito não pode
sentar-se no trono patriarcal antes da consagração: «Resulta falso dizer, como há quem há dito,
que deve conduzir-se ao eleito até o assento maior ou ao altar da basílica do Constantino, porque
não deve sentar-se na cadeira de São Pedro até que não tenha sido consagrado e provido com o
pálio» . O que sem dúvida se desprende desta frase é uma manifestação do chauvinismo
vaticano, mas o que sem dúvida também reflete é a debilitação da necessidade e do sentido que
encerram os assentos do Letrán. Em conseqüência, o que nos dão os três ordene que é uma
interpretação metafórica e adoçada do Letrán, cujo papel a partir de então é o de representar, o
de significar, mas já não o de transformar. No ano 1099, os três assentos do Letrán ofereciam ao
eleito um cabo cada vez mais forte. O primeiro assento, situado à entrada da igreja, materializava
a tira de posse de um santuário (neste caso a igreja episcopal de Roma); o segundo assento, no
triclinium ou a basílica, representava a sua vez ao patriarcado. A terceira cerimônia, já nas
curulas, outorgava à Papa o domínio da cúria segundo a fórmula imperial-senhorial, mediatizada
pela lembrança antiga do Senado.
O itinerário papal desde o Letrán até o Coliseu. A flecha negra indica o caminho seguido até o
século XII (a «via direta»). utilizamos os nomes contemporâneos das ruas.
Nos ordene do século XII, o primeiro assento toma o nome de «assento estercolero» (assento de
lama): «Dois dos magnatas (cardeais, segundo Albino e Cencío) conduzem ao eleito ao assento
de mármore que se chama assento de lixo ("stercorata") para verificar o versículo: "Eleva ao
miserável do pó, tira o pobre da lama para que se sente com os príncipes e ocupe o trono da
glória". Quando se levanta deste assento, o eleito recebe do camerista três punhados de denarios
que joga no povo dizendo: "Este dinheiro e este ouro não me são entregues para minha desfrute;
o que eu tenho, eu lhe dou isso"» . Nesta descrição acreditam advertir o sentido original do ritual
narrado aqui pela primeira vez, e que sem dúvida queria manifestar a transformação religiosa do
eleito mediante a dominação, pára deste modo prolongar o rito imediatamente anterior, que se
refere à mudança de nome: a intervenção divina faz que o pobre ocupe o trono de glória. Em sua
transposição feudal, o rito estabelece deste modo que o eleito tome posse da Igreja com a
entrega não teológica a não ser virtualmente, a esse povo que lhe escolheu que a oferenda
simbólica do inquilino ao proprietário ou ao soberano; isto é, a Papa toma o dinheiro das mãos do
camerista (encarregado das finanças papais) e proclama a posse («habeo»), mas não toma a
propriedade («non est mihi»). Não obstante, nas ordene às que nos referimos aqui, perde-se esse
sentido, de tal sorte que o Ordo da Basilea, por exemplo (ao contrário, é verdade, dos de Albino e
Cencio), nem sequer menciona a localização do assento na soleira da basílica. Este silêncio,
unido à denominação claramente popular de «assento estercolero», supõe uma leitura bem
distinta dessa frase bíblica com a que se glosa o rito, de maneira que o único que fica é a
humilhação preliminar do eleito, fase inicial a sua vez de uma glorificação litúrgica que já não tem
político contido.
O segundo assento, quer dizer, a cadeira patriarcal, desaparece explicitamente, como já vimos, do
Ordo da Basilea. Em conseqüência, Letrán deixa de existir como lugar específico, e a cadeira
patriarcal do palácio permanece ali como uma simples cópia da cadeira de São Pedro.
As cadeiras curulas, que em 1124 se converteram em «assentos em forma de sigma», já não
transmitem mais que um vago sentido teológico, circunscrito à basílica palatina de São Silvestre:
«E quando o Senhor eleito vem à basílica de Silvestre, os juizes lhe abandonam e se sinta na
primeira poltrona de pórfido, ao lado direito, onde o subdiácono prior da basílica (da basílica de
São Lorenzo no palácio, segundo Albino e Cencio) entrega a férula ao eleito como símbolo da
correção e do magistério. Também lhe entrega as chaves da basílica e do palácio sacro do Letrán,
porque o Senhor deu a sua vez especialmente a São Pedro o poder de abrir e de fechar, de unir e
desunir. E, provido da férula e das chaves, dirige-se ao outro assento que é igual e ali faz a sua
vez entrega da férula e das chaves do prior. É neste assento onde o prior lhe rodeia um cinturão
vermelho de que pendura uma bolsa com doze selos de pedras preciosas e almíscar... E o eleito
deve sentar-se nestas duas cadeiras como se se deitasse entre dois leitos (inter duos lectos
jacere), ao objeto de recostar-se entre a primazia do Pedro e a predicación permanente do Pablo
incitando à ação. O cinturão representa a castidade e a continência, enquanto que a bolsa é o
gazofilactum com o que se alimenta aos pobres de Cristo e às viúvas. Os doze selos significam o
poder dos apóstolos. O almíscar se encontra aí depositado para que se possa perceber seu
aroma, já que como diz o apóstolo: «Para Deus, somos um aroma bom» .
A finais deste século XII, o ritual entra dentro do sistema da representação, e sai do âmbito da
ação, como já tivemos ocasião de indicar a propósito da minuciosa organização do rodeio de
coroação, protótipo dos desfiles que acompanhavam as entradas reais. Assim, os autores do
cerimonial aplicam sua competência meticulosa em matéria litúrgica ao domínio da apresentação
institucional. A procissão não cumpre nenhum encargo por si mesmo, só ensina. Também aqui os
objetos e os gestos da cerimônia do Letrán representam um conteúdo teológico general, de tal
sorte que o rito se converte em uma ilustração particular do dogma e deixa de ser uma ação de
transformação ou de negociação. Hei aqui, pois, o mais impenetrável dos mistérios de Estado:
não oculta nada, não diz nada, mas se representa perpetuamente. Precisamente, será o rumor,
malicioso ou ingênuo, gracioso ou sério, que tente recuperar a ação no rito: se os assentos
estiverem aí, e se a Papa tem que ocupá-los, não será para nada. Pois bem, sim, é para nada, já
que as cadeiras e os tronos passaram à categoria de monumentos, e o rito se converteu em uma
celebração ornamental. A férula e as sete chaves de 1099 formulavam uma proposta de regime: a
Papa, antes de sentar-se consularmente, esgrimia a dominação imperial (a férula) e a colegialidad
(as sete chaves e os sete selos multiplicavam por sete o poder jurisdicional de unir e de desunir).
A finais do século XII, as chaves são nove e passam a formar parte de um batiburrillo simbólico no
que tudo tem significado mas não representa nada; nesta ordem (ou desordem) de coisas, a férula
só significava já que o magistério papal, sem nenhum contexto preciso. As chaves carecem deste
modo de significado específico, enquanto que outros objetos referem a outras tantas virtudes
(pureza, castidade, caridade) e funcionam como simples atributos da paródia papal. A
interpretação fica, pois, aberta à gratuidade indefinida das metáforas; assim, a binaridad gemelar
das curulas convoca a única dualidade disponível na imaginária papal, a do Pedro e Pablo. nos
detenhamos por última vez ante estes assentos de tanta importância na história da Juana.
A Papa se sinta aí, diz-se no século XII (e a fórmula se conserva inalterada até o século XVI)
como se estivesse deitado entre duas camas. De que forma cabe entender este uso
surpreendente das duas curulas, uso que tanto contribuiu na formação do rumor em torno dos
assentos perfurados? Já descartamos a hipótese do Cesare d'Onofrio, segundo a qual a Papa
representava o parto metafórico para assim ilustrar o conceito do Mater Ecclesia». Acrescentemos
ao rechaço geral que essa indicação de postura intervém um século depois da menção das
curulas e sem que exista antecedente algum a respeito; em conseqüência, o uso dos assentos
deve explicar-se no contexto do século XII. Além disso, a Papa não se deita em cada assento,
mas sim faz como se estivesse entre dois leitos. Por último, e a pesar do respeito que nos inspira
a imensa erudição de monsenhor Maccarrone, tampouco encontramos satisfatória sua explicação,
apoiada no recurso da expressão «estar sentado entre duas cadeiras», pois em realidade a
proximidade do léxico não sugere nenhuma aproximação de sentido que seja verossímil.
Novos sentidos das cadeiras curulas no século XII:
1. A metáfora teológica
A impossibilidade de que a Papa adotasse semelhante postura aparece já na praxe exegética da
redação cerimoniosa do século XII: o cerimonial já não descreve um ato, como em 1099, a não
ser um cenário simbólico. O Ordo de 1273 se adapta a esta tendência do século XII, introduzindo
as cores litúrgicas no ritual. Sem dúvida, os liturgistas de dito século quiseram ver nesses dois
assentos sem função aparente (de fato assim o reconhecem) a representação dos dois apóstolos
do Vaticano. Este surpreendente deslizamento do ritual para a metáfora teológica deve entenderse em relação com o desenvolvimento de uma «paixão pelas similitudes», analisada pelo David
d'Avray a propósito da técnica do sermão, técnica que ao aparecer confere sua unidade ao
pensamento de meios da Idade Média. Nesta ordem de coisas, o cardeal Lotario, futuro Inocencio
III, escreveria no 1198, quer dizer pouco depois dos ordene que aqui nos interessam, um
comentário simbólico sobre a missa, O do Misarum Mysteriis, no que atribui à liturgia do serviço
divino a mesma função interpretativa que a que se aplica ao rito de advento nos textos de Albino,
do Cencio e do autor do Ordo da Basilea. Desta maneira, a cerimônia, ritual ou litúrgica, entra no
mundo dos textos e do conhecimento, o que supõe um alinhamento litúrgico, por empregar uma
expressão do Cyril Vogel, para a cristandade do século XII.
2. A metáfora eclesiástica: a soleira dos apóstolos
Terá que reconhecer em toda sua importância a exegese proposta pelos autores de nossos
ordene de referência: os dois assentos de pórfido representam o «primado do Pedro» e «a
predicación assídua do Pablo». Além disso, é precisamente a finais do século XII quando se
começa a acreditar na presença do corpo do Pablo no Vaticano. Segundo uma lenda que se fez
célebre no século XIII, graças a explicatio divinorum officiorum do Juan Beleth (1265), e que
Jacobo de Voragem incorporou imediatamente a sua Lenda dourada (1625), depois da conversão
do Constantino quis edificar uma igreja dedicada a cada um dos dois apóstolos, quer dizer Pedro
e Pablo, que ao parecer tinham sido enterrados juntos; mas ao proceder à separação, não
puderam distingui-los esqueletos misturados. Então, uma voz celestial indicou que os ossos
maiores pertenciam ao Pablo, e São Silvestre ordenou que se tirassem os ossos para identificálos. Do mesmo modo, em 1192 (isto é, coincidindo de novo com o momento no que se redigem os
ordene que nos ocupam), encontramos entre os comentários acrescentados por conta do cônego
Romano à descrição da basílica do Vaticano, redigida pelo já chamado Pedro Mallius, a primeira
notícia sobre um lugar «onde, por isso se conta, foram pesados seus preciosos ossos). E uma
inscrição de finais do século XIV, que figura em uma laje de pórfido colocada na cripta do
Vaticano, pretende indicar o lugar onde se realizou sorte operação. À medida que Letrán se
converte na vertente romana urbana do Vaticano, tende-se a associar à correspondência das
duas cadeiras patriarcais a analogia entre as tumbas mescladas e os assentos gêmeos. A
postura, fisicamente impossível, que se propõe neste ritual, confere, então, caráter metafórico à
entrada da basílica de São Silvestre, quer dizer a «soleira dos apóstolos» («limem apostolorum»).
De fato, sabe-se que algumas Papas da alta Idade Média se fizeram enterrar na soleira mesmo de
qualquer das Iglesias ou basílicas do Letrán, de maneira que a Papa, sentado analiticamente em
dois assentos idênticos perto de uma porta basilical, converte-se, de forma sintética, na metáfora
viva da soleira.
Ao delimitar a soleira dos apóstolos, os dois assentos se inserem na larga cadeia metafórica,
composta de altares, de cadeiras, de tumbas, etc., que em seu conjunto configura de maneira
simbólica a sede apostólica. Será Inocencio III quem, a princípios do século XIII, encarregue-se de
traduzir a términos concretos essa entretela figurada na suposta postura papal, construindo assim
o palácio do Vaticano, toda vez que se mantém a posição destacada do Letrán (converte a
basílica do Salvador em uma «catedral» pontifícia). Desta maneira estabelece uma simetria
rigorosa entre o Letrán e o Vaticano, pois o Vaticano obtém o palácio que dava glória ao Letrán, e
Letrán recupera a majestuosidad litúrgica que a sua vez tinha dignificado a São Pedro no século
XI. Mas à margem das determinações imediatas (ao Inocencio III, antigo cônego do Vaticano,
gostava de viver ali), o que em realidade se produz é uma mudança, uma mutação capital, porque
a simetria que se estabelece entre ambos âmbitos nem restaura nem equilibra, mas sim disposta
uma uniformidade abstrata ao espaço papal, configurado desde esse momento a base de células
idênticas que só adquirem vida e sentido com a presença da Papa. O poder romano perde
bairrismo e territorialidad, e por este motivo nos ordene do século XII se contempla a possibilidade
de coroação e de consagração fora de Roma. É certo que as Papas do século XIII, antes da etapa
do Aviñón, só passavam uma terceira parte de seu tempo em Roma, mas a eventualidade de uma
coroação fora da cidade não se explica unicamente com as tribulações que afetam ao papado
durante o século XII (episódio da Comuna de Roma e cismas); o verdadeiro lugar do poder papal
se encontra no comprido percorrido que separa ao pontífice da cúria, ilustrado com essa
expressão de que a Papa leva os arquivos em seu coração. Pascal II, por exemplo, «vel sedens
vel transiens», delimitava assim seu território, e Eugenio III ou Inocencio III assinalaram deste
modo seu passo pelo papado, abrindo desta maneira a via às grandes monarquias curiales da
baixa Idade Média.
Podemos medir o processo de marginalização da cerimônia do Letrán (e portanto da comunidade
romana) analisando o cerimonial de 1273, redigido pelo Gregorio X, e sobre o que falamos mais
acima. Por nossa parte, não vamos deter nos na cerimônia propriamente dita, transcrita fielmente
a partir dos ordene do século XII, e cumpridas ao pé da letra, a não ser na composição de
conjunto que oferece dito cerimonial. Em primeiro lugar, advertimos o desaparecimento da
extravagante tira de posse do Letrán, que estava acostumado a ter lugar entre a eleição e a
coroação. O cerimonial de 1273 descreve a eleição, depois da ordenação diaconal ou sacerdotal
(eventual) do eleito, e a seguir a consagração em São Pedro (ou o que corresponda em caso de
que o eleito já seja bispo), com a missa de celebração, para passar depois ao rodeio e a chegada
ao Letrán. Em conseqüência, tira-a de posse do Letrán, depois da consagração e da coroação,
conserva só um valor fóssil e sua primeira função parece ser a de proporcionar uma meta ao
rodeio solene do eleito coroado. Quer dizer, Letrán se converte em uma sucursal pontifícia, e
inclusive quando a Papa já foi eleito e coroado fora de Roma, passa primeiro por São Pedro, onde
ouça um Lhe deum, antes de dirigir-se ao Letrán. Roma já não está em Roma.
3. A metáfora jurídica: o corpo da Papa
A nosso entender, a postura da Papa recostada sobre os dois assentos de pórfido tem um claro
significado mortuário. A Papa deve sentar-se como se se deitasse entre duas camas («inter duos
lectos jacere»). A expressão «jacere in lecto» indica de uma forma bastante banal a posição
funerária que apresenta o corpo das Papas (a propósito de Leão IX: «lectulos in quo jacebat») .
Por outra parte, e como já vimos, a referência ao Pedro e ao Pablo implicava sem dúvida uma
alusão aos corpos mesclados e às tumbas as gema. Por último, o aspecto sepulcral de ambos os
assentos de pórfido se perfila com maior nitidez se tivermos em conta o testamento do Roger II da
Sicilia, redigido em 1145, onde figuram as disposições funerárias do rei para seu enterro na
catedral do Cefalú: «decidimos que a minha morte se coloquem em dita igreja dois formosos
sarcófagos de pórfido, como monumento perpétuo; em um deles repousarei eu perto do coro dos
cônegos, quem cantará as preces ao dia seguinte de meu falecimento; e colocaremos o outro
como lembrança ilustre de meu nome e para a glória da própria igreja» . No século XV, o itinerário
ritual do Letrán pode resumir-se na fórmula de um contemporâneo dos ordene, o cardeal Lotario:
«O mesmo que imediatamente se sentava (sedebat) glorioso no trono [momento do assento
estercar], jaz ("jacet") agora na tumba [momento dos assentos de pórfido]» .
A Papa encena, pois, sua própria morte, só que imortalizando-se, já que ao jazer entre duas
tumbas, a do Pedro e a do Pablo, transcende a soleira dos apóstolos, pedra viva sobre o Pedro.
Por isso dizemos que nos encontramos ante uma verdadeira encenação da imortalidade papal,
em meio de um debate capital sobre o corpo da Papa.
Em um importante artigo, Reinahard Elze chama a atenção sobre uma série de curiosos ritos
funerários muito antigos, entre os que cabe assinalar, por exemplo, o saque dos bens e dos restos
mortais da Papa recém falecido por parte do povo romano. trata-se, como dizemos, de um
estranho costume, cuja prática pode rastrear-se intermitentemente desde os primeiros séculos do
cristianismo, sem poder por isso identificar com claridade nem seu significado nem seus
fundamentos; entretanto, a repetição dos fatos e a passividade da Igreja ante uma pilhagem, que
por esperado seria facilmente evitável, impõem a idéia do rito. Como explicar-se, se não, que o
corpo do mais capitalista das Papas medievais, Inocencio III, fora totalmente despojado de suas
vestimentas em 1216, ficando nu durante a vigília mortuária, conforme nos conta Jacobo do Vitry .
É certo que do concílio da Calcedonia (461) até o Renascimento, a igreja multiplica suas
condenações de dito costume, mas é igualmente certo que com idêntica regularidade tanto as
crônicas como o mesmo Liber Pontificalis se referem a cenas de pilhagem que recordam o
«costume dos romanos» («mos Romanorum»). Ao parecer, só as Papas germanas da época
gregoriana, alheios à tradição romana, foram capazes de resistir à violência do rito. A única
interpretação oficial e explícita do rito se encontra em um canon conciliar romano, decretado
durante o papado do Gregorio o Magno, no 595 : A Igreja finge então organizar os mistérios que
ficam fora de seu controle, atribuindo a pilhagem a um excesso de devoção pelos restos mortais
das Papas, que a sua vez passam a ser considerados como relíquias.
Pilhagem e poder
Em realidade, o rito da pilhagem corresponde à interferência de duas lógicas, uma jurídicoreligiosa e outra política.
A lógica jurídico-religiosa guarda relação com o direito de espólio («spolii jus»), definido
tardiamente (século xV), mas implicitamente invocado com motivo da sucessão de um prelado, e
em particular de um bispo. Os bens eclesiásticos não pertencem o prelado, a não ser à
comunidade que o escolheu, pelo menos enquanto a Igreja não se insira na rede da feudalidad
comum, ou enquanto não constitua uma entidade jurídica autônoma. De fato, F. do Saint-Palais
d'Aussac, em sua tese sobre o direito de espólio , distingue três fases: na antigüidade cristã, os
restos mortais e os bens do bispo revertem ao clero; logo, durante a alta Idade Média, passam ao
suserano (ou prefeudal); e, por último, a partir do século XIII, o papado reclama os restos mortais
dos bispos, ou em alguns casos são as Iglesias nacionais as que o fazem. Não obstante, este
marco jurídico é insuficiente para explicar a pilhagem de objetos mobiliares, empregando para isso
recursos brutais com risco físico que não guardam proporção com o bota de cano longo. Dito de
outro modo, tudo parece indicar que a pilhagem ritual adota uma aparência mais simbólica e
política que real e jurídico.
Desta maneira, o povo e/ou o clero (já vimos que no contexto romano estas categorias são
inseparáveis) manifesta que um poder cessou ao morrer, e que o outro poder, o novo, requer a
sua vez um novo consenso. No caso do poder clerical, teológica e teoricamente eletivo, esta
reivindicação tem uma força ainda maior que no caso dos poderes laicos, fortemente ancorados
na afirmação da continuidade dinástica . Esta situação entra em crise quando, no epicentro da
Idade Média, os poderes fortes elaboram a problemática da transpersonalidad de poder político.
As soluções surgem ao longo dos séculos XIV e XV, dentro do marco do Estado, como
assinalaram E. Kantorowicz e R. E. Giesey : «O rei não morre nunca», «O rei morreu. Viva o rei»,
«Dignitas non moritur». As investigações realizadas nesta linha pelo H. Beumann e C. Brühl
permitem adiantar até o século XI a percepção clara deste problema político, tão vinculado à
prática da pilhagem. De acordo com as Gesta Chuonradi II Imperatoris , à morte do Enrique II, em
1025, os habitantes da Pavía saquearam e arrasaram o palácio real da cidade (sabemos que
Pavía foi a capital do reino da Itália dos imperadores germânicos), justificando sua conduta ante o
Conrado II, sucessor do Enrique II, da seguinte maneira: «mantivemos nossa fidelidade e nossa
veneração ao imperador até o final de sua vida; ao morrer ele já não tínhamos rei, e vai contra o
direito que nos reprove a destruição da moradia de nosso rei.» Esta foi, pois, a assombrosa
resposta que recebeu Conrado II, anunciando já os esforços posteriores dos juristas do Estado:
«Eu se que não destruístes a moradia de seu rei, porque já não tinham monarca nesse momento;
mas tampouco tinham direito a destruir a moradia real. Se o rei tiver morrido, o reino não obstante
permanece, como permanece o navio quando morre seu piloto.»
Ao separar o corpo do rei de seu pacote perecível, as monarquias o integram na imortalidade do
reino, e em dita atuação sem dúvida está presente a teoria dos dois corpos do rei atualizada pelo
E. Kantorowicz. Mas no caso do papado, a solução parece mais difícil porque, paradoxalmente, a
teoria corporativa da Igreja, bastante antiga por certo, já prevê a continuidade do poder, e além
sem necessidade de recorrer à mutação transpersonal do soberano. Por outra parte, a força da
teoria laica se nutre precisamente da concomitância da gênese do Estado e da metamorfose do
soberano, situação que no caso do rei louco, Carlos VI da França, aprecia-se com toda claridade .
Segundo o sistema hierocrático implantado por Leão (I) o Grande, cada Papa herda diretamente
do Pedro: a transmissão eletiva supõe que cada vez se funda a sede apostólica, de maneira que a
incerteza do interregno não surge, pois, somente da ausência do princípio dinástico, mas sim da
própria teoria corporativa. Por esta razão, um jurista de finais da Idade Média, Agustinus
Triumphus, pode dizer que «o rei não morre; a Papa sim morre compreende então que os clérigos
e o povo se precipitem ao vazio do interregno e manifestem com a pilhagem a devolução do poder
a um nada e ao povo cristão. Mas ainda há outro grupo que tem poderosos interesses neste
debate: os cardeais que, coletivamente, encarnam a perenidade da sede apostólica (a sede
apostólica não morre, é a Papa quem morre), assumindo a totalidade dos poderes pontifícios
durante o período de férias; daí a luta surda que enfrenta ao papado e ao colégio, e que se
materializa no retrato da eleição do pontífice. A fórmula restritiva do conclave, com o recurso às
pressões sobre os cardeais em caso de atraso, nasce com a decretal do Gregorio X, Ubi
periculum, em 1274 .
A Papa morre
Todas estas circunstâncias e disputas, unidas a transformações mais amplas das mentalidades,
explicam a obsessão pela morte que invade a corte papal dos séculos XII e XIII. Consideremos
desde esta perspectiva o prólogo do Ordo de 1273, redigido para o Gregorio X, e vejamos como
justifica a descrição da cerimônia: «O fato de que "todo o poder tem uma vida breve" afeta aos
pontífices romanos, que detêm sua primazia na hierarquia subcelestial; concluem sua vida em
muito pouco tempo e, depois de abandonar a prisão da carne, passam à liberdade que lhes
oferece a pátria de seus maiores. E, dado que uma hierarquia de tanta consideração não deve
permanecer acéfala como um monstro, os Santos pais decidiram providencialmente que o corpo
do defunto chefe se deposite em uma sepultura eclesiástica, pois outro substituirá ao chefe
defunto por via canônica para presidir "no cargo e na honra"» .
As investigações que leva a cabo atualmente Agostino Paravicini Bagliani demonstram que a cúria
romana de meios da Idade Média, valha a redundância, manifestava de distinta maneira esse
temor à morte: por uma parte, os testamentos dos cardeais refletem uma preocupação extrema
pelos detalhes funerários; por outro lado, os «intelectuais»* da cúria no século XIII (o que A.
Paravicini Bagliani chama o «círculo do Viterbo») orientam suas investigações (centradas no
âmbito da alquimia, da medicina e da física) na busca da prolongação da vida.
Do ponto de vista ritual, ordene-os do século XII, fielmente recuperados no século XIII, tentam
construir uma imagem da imortalidade corporal das Papas. A cadeira estercolera anuncia uma
glória, de uma vez que recorda que a Papa também é pó. Este primeiro estádio, de caráter público
(ante a basílica do Constantino), apresenta-se como uma concessão à espera da anulação
corporal, assim como uma adesão formal à teologia mortuária (tão contrária às ambições papais)
da Igreja. A Papa toma então a iniciativa do intercâmbio simbólico que transpõe a pilhagem .
Precisamente, quando está sentado na cadeira estercolera é quando a Papa arroja o triplo
punhado de dinheiro, exclamando: «Este dinheiro não é meu»; a permuta dos papéis (tomar ou
saquear/distribuir ou conceder) é importante, posto que situa ao pontífice eleito em uma posição
crítica, toda vez que pretende eliminar, mediante a antecipação do mesmo, o rito funerário da
pilhagem que anula a pessoa e o corpo da Papa. Neste sentido podemos nos perguntar se o
saque da casa do eleito, de que encontramos um testemunho de 1406 graças ao Jacobo do
Angelo (capítulo I), não substitui após, ao menos no que se refere às disposições contempladas
pela cúria, a pilhagem dos restos mortais. Assim, ao consentir o saque de sua antiga moradia de
homem (e também sua cela de conclavista, se for cardeal), a Papa investe o sentido do rito:
proclama, em términos quase paulinos, que se despoja do homem que foi, para acessar a uma
suprapersonalidad. A segunda fase do ritual tem lugar nos assentos de pórfido, e mostra que o
corpo da Papa viva, recentemente sustraído da corporeidad comum, está já misturado com as
cinzas dos apóstolos, chão e soleira sólidos da Igreja. No ritual de coroação no Letrán, o corpo da
Papa se desliza entre os corpos do Pedro e do Pablo: «Seu é Petrus.» O corpo da Papa entra na
construção monumental da Igreja. Porque se sinta na poltrona apostólica a Papa não morre.
Um século depois de sua aparição, o sentido e a função das cadeiras curulas trocou
completamente, embora ainda representam a supremacia papal. Sejam qual forem os graus de
compreensão do rito (certamente bastante diversos e parciais), o certo é que a importância
secreta da cerimônia e a curiosidade gestual de sua realização serviram para reforçar a réplica
burlesca ou selvagem desta encenação do poder papal.
Abandonaremos definitivamente nossas cadeiras perfurada, nos situando no mesmo ano de
seu desaparecimento, em 1513. Algumas semanas antes de sua morte, e antes também de que
seu sucessor, Leão X, utilizasse por última vez as cadeiras, Julho II concede uma audiência a seu
mestre de cerimônias, Paris do Grassis. Durante o encontro, essa gloriosa Papa do Renascimento
lhe confia seus lúgubres angustia, pressentindo sua morte próxima: «Dizia que recordava ter visto
numerosos pontífices abandonados no momento de sua morte por seus próximos, e despojados
inclusive do mais estritamente imprescindível, até o ponto de jazer ("jacuerint") indecentemente,
inclusive nus, com suas partes pudendas desentupidas ("detectis pudibundis"): tanta majestade
deixava de existir em meio da vergonha» . Apesar de todas as argúcias empregadas na
representação cerimoniosa, o rito de réplica, paciente e tenaz, continua sussurrando que a Papa
está nua. O sexo das Papas, despido grosseiramente, exaltado gozosamente, ou apalpado
imaginariamente, segue sendo objeto permanente de celebração em Roma, que nega
obstinadamente o angelimo do poder e seus vãos triunfos sobre a morte. A Papa é um homem, a
Papa morre.
Conclusão: nascimento da Juana, da revanche ao rumor
Resumamos. A partir de mediados do século XII, a comunidade romana se vê privada do contato
intraurbano com seu pastor; o povo e o clero conservaram o hábito e o gosto pelo decifração
cerimoniosa, herança de uma época (séculos IX-XI) em que o território romano, alimentado de
cerimônias oficiais e de contrarritos lhes parodie, girava em torno de Letrán. Além disso, a
revolução do rito de coroação papal no século XII só deixou subsistir conchas vazias de sentido,
cujo vago rumor do amplo oceano exegético só é audível para alguns teólogos; as cadeiras
curulas que se colocaram no Letrán a finais do século XI para abrir uma negociação de poder,
aparecem então como relíquias ou como monumentos, e em seu innamovilidad adotam o sentido
que lhes confere. Frente à engenhosidade teológica dos autores de ordene e dos peritos em
liturgio, surge a malícia ou a candura dos laicos ou dos clérigos singelos que procuram uma
função abolida e o fim dos rituais compensatórios, ricas reservas de investimentos carnavalescos
e/ou sérias, que orienta sorte busca do sentido funcional. A revanche contra um conhecimento
dominante e fechado passa por um contraconocimiento burlesco; nesta ordem de coisas, já não
se lêem os escritos com a competência comum que tinha antigamente um clérigo romano: a partir
de finais do século X, a letra minúscula curial, legível fora de Roma em todas as chancelarias,
substitui as antigas escrituras romanas ; a volta solene e ornamental dos caracteres antigos nas
cidades italianas do século XII, sensível na Roma papal, obscurecem ainda mais a intelección
comunitária, como demonstrou recentemente Armando Petrucci : o decifração zombador com as
seis P maiúsculas lhe atribui a função de comemorar a Juana. Exemplo excelente desta revanche
sobre a alienação do significado!
Mas calibremos quanta malícia se esconde detrás deste mecanismo de decifração burlesco
dos gestos e das palavras. Nos anos trinta do presente século XX, quando a França desfrutava
ainda com o anticlericalismo, um célebre cômico imitava a letra dos gestos litúrgicos próprios da
missa, imaginando-se que o sacerdote procurava seu chapéu extraviado; ao parecer, a
coincidência da imitação era admirável. Pois bem, um mecanismo idêntico é o que fica em jogo na
Roma do século XII quando se finge dúvida ante uma inscrição incompreensível, ou ante um viraje
estranho em uma ruela da cidade, ou ante um assento edil colocado nesse mesmo lugar, ou
inclusive ante uma cerimônia escura que situa à Papa em duas cadeiras idênticas, profundamente
decotadas e recordando aos sacristães barbeados e disfarçados, aos bispos dos loucos, e às
Papas de carnaval, entretêm-se procurando o rastro de uma mulher. E o encontram. Aqui está
Juana triunfante, gasta da mão pelo saber festivo dos clérigos e do povo romano.
Em meio de seus amigos romanos, Juana tagarelava sem maiores conseqüências. Necessitou
de um século completo para poder entrar, ela também, nos textos. Então, seu discurso resultou
interminável. Ouçamo-lo.
SEGUNDA PARTE
Juana militante
CAPITULO IV
Juana a Católica
(Séculos XIII-XV)
«Para verificar. trataria-se de certa Papa, ou mas bem de uma papisa, já que era uma mulher;
disfarçada de homem, e graças à honradez de seu caráter se converteu em notário da cúria, logo
em cardeal e por último em Papa. Um dia que montava a cavalo engendrou um menino e
imediatamente a justiça romana lhe atou os pés e a arrastou enganchada à cauda de um cavalo;
a uma meia légua da cidade foi lapidada pelo povo e coveira ali, onde morreu; nesse lugar se
escreveu: Pedro, Pai dos Pais, Publica o Parto da Papisa. Durante seu papado se implantou o
Jejum no Témporas, que se chama Jejum da Papisa» .
Primeira forma: um sucesso em uma crônica
Esta primeira versão conhecida da história da Juana aparece em uma pequena Crônica Universal,
que foi escrita em um convento do Metz por volta do ano de 1255.
Se não fora por temor a incorrer em certo anacronismo, ao nos referir ao texto do Metz
teríamos que falar de um sucesso, posto que, em efeito, pelo que se ecoa o autor da Crônica é de
um encontro singular, chamativo, entre um indivíduo e um meio que se excluem mutuamente. O
intruso fabrica a anedota sem perturbar a instituição, pois o sucesso varia de forma escandalosa
(o que obriga a uma investigação), mas só ligeiramente, o curso da história papal. Aqui, quer dizer
na Crônica, a variação se limita a uma retificação e à invenção de um novo vocábulo: «uma Papa
ou mas bem uma papisa (vel potius papissa), já que era uma mulher.» A história papal dissimula a
anedota, e inclui a singularidade na regularidade: a ação de nossa heroína nos propõe um sujeito
masculino (ou, se o preferirmos, um neutro animado, quer dizer masculino): facvocês...
tracvocês... lapidavocês. Em realidade, o sujeito só existe ao revelá-la engano («um dia que
montava a cavalo»), já que nem tem nome nem história própria, pois só existe no tempo do
escândalo. Desconhecemos por que ele ou ela se disfarça («disfarçando-se de homem se
converteu em notário da cúria») e ignoramos a origem de sua maternidade: o parto não nos situa
ante um comportamento imoral, mas sim permite o desvelamiento de um fato singular, de um
sucesso. Em resumo, a história da papisa é uma história de Igreja: ele ou ela se faz notário papal
e depois cardeal, seguindo uma ascensão clássica, que se justifica com uma qualidade
reconhecida e pelo general desejada em um clérigo («a honradez de seu caráter»). Ao a tirar o
chapéu transgressão, a «justiça romana» a sanciona imediatamente, enquanto que por sua parte
o povo romano remata o castigo imposto com uma inscrição, cujo texto dá testemunho da
serenidade da Igreja: «Pedro, Pai dos Pais, Publica o Parto da Papisa.» Como resultado deste
singular papado, a instituição continua funcionando: «Durante seu papado se implantou o Jejum
das Témporas», porque, como está acostumado a ocorrer nos casos estranhos, nos sucessos, o
indivíduo, embora constitui como tal o grão de sal na narração e o grão de areia na máquina, não
obstante, em realidade, não consegue alterar a instituição. Por volta do 1255, a história causa
assombro no Metz e lança a curiosidade, mas não gera contidos: o conteúdo surgirá logo, como
conseqüência de outro dispositivo narrativo distinto.
Juana entra, pois, em uma nova existência: longe já dos festejos e dos ritos de Roma,
abandona os limbos do rumor alegre ou lacrimoso para acessar ao resplendor textual e europeu.
O enigma da Juana
Até aqui, o enigma da Juana residia em seu mutismo, mas a partir deste momento, seu falatório
adquire tinturas misteriosos. A história da Crônica do Metz passa, entre 1250 e 1450, a dezenas
de textos clericais, que em nenhum momento põem em dúvida a existência da papisa: não se
tenta sequer dissimulá-la, nem tampouco desvirtuá-la, e muito menos omiti-la. As próprias Papas,
ao cumprir a observância do desvio durante sua procissão comemorativa, respeitam indiretamente
à fábula. Até a Reforma (ou pelo menos até a revolução husita), a Igreja crie e faz acreditar na
realidade de um acontecimento que em princípio parece comprometer sua reputação e que, em
conseqüência, apresentará como uma vil e áspera patranha, com assina protestante ou
anticlerical.
Esta paradoxo, que sem dúvida requer uma explicação, possivelmente nos evite por outra parte
cair na tentação determinista, o que induziria a sua vez a procurar quem se beneficiava com esta
história. A noção implícita de «benefício ideológico», variante da débil teoria do reflexo, preside
com farta freqüência a história cultural, e, neste sentido, é certo que a erudição contemporânea
reduziu muito freqüentemente a redação das vidas da Juana com o exclusivo propósito de
incomodar à a Santa Sede. Os fatos evidenciam um certo anacronismo sobre este particular, pois
até o ano 1450 aproximadamente, Juana não pertence a nenhum partido e se advém a todos.
Mas, por outro lado, a abundância de versões nos avoca a outro perigo distinto, o da falsa
objetividade. Em efeito, corre-se o risco de deixar-se fascinar por toda essa série de relatos até o
extremo de lhes conferir fila de pseudorrealidad e em definitiva de tratar o relato juanesco como se
fora uma «lenda», isto é um «tema», esses ersatz* do fenômeno que aparece sempre no âmbito
da narração. Mas, além disso, a existência mesma da série é tão duvidosa de fato como de
direito. No âmbito dos fatos, um silêncio bem pode mascarar a perda de um manuscrito, da
mesma maneira que o azar feliz da conservação pode gerar a sua vez uma densidade
documentário particular. Do ponto de vista do direito, os textos sobre a Juana são, em princípio,
só palavras, pois no discurso clerical da Idade Média o relato da Juana se recita com gravidade,
seriamente, dramaticamente, e não se modula como um simples tema literário ou historiográfico.
O caminho se apresenta, pois, estreito, já que discorre entre a análise «ad hoc» dos
acontecidos particulares, e a descrição historio-gráfica de uma anedota repetida com freqüência e
com grandes variantes. Entretanto, entre o caráter aleatório do acontecimento e a restrição dos
hábitos culturais, Juana retém uma parte fundamental da verdade e da realidade sobre a Idade
Média. nos aproximemos, pois, com prudência, à pessoa da Juana, considerando em primeiro
lugar seu contexto, sua imagem e sua força ao longo desse caminho que lhe designa a Igreja
medieval.
Uma crônica em busca de autor
Analisemos um pouco mais de perto o texto inaugural. Graças às deduções do L. Weiland em
1874, e logo do pai Dondaine em 1946 , a Crônica universal do Metz encontrou um autor: o
dominicano Juan do Mailly. Em efeito, alguns anos depois, o também dominicano Esteban do
Borbón retoma a história da Juana para incorporá-la a uma recopilação de anedotas exemplares,
que fica inconclusa a sua morte, acontecida no 1260. Em seu prólogo, Esteban do Borbón cita
entre suas fontes gerais «a crônica do Juan do Mailly da Ordem dos Pregadores» , e já no texto
propriamente dito indica que a fonte da anedota em questão é «uma crônica». Esta indicação não
deixa lugar a equívocos, pois Esteban não utiliza nenhuma outra crônica contemporânea, de
maneira que a história da papisa só pode proceder do susodicho Juan do Mailly. impõe-se, pois,
uma aproximação à figura deste pregador chamado Juan do Mailly, quem, por volta de 1243,
conclui a sua vez o primeiro tratado universal de relatos legendários sobre os dominicanos,
titulado o Abrégé dê Gere et Miracles dê Saints . Aqui, a lenda e a crônica contêm dois episódios
comuns, pelo menos, que estranha vez aparece em outros contextos (a aparição de San Miguel
no monte Gargano e a renúncia da Papa Ciríaco ao papado, para poder seguir a Úrsula e a seus
11.000 vírgenes); em ambos os textos detectamos a mesma confusão em torno da pessoa da
Papa Gerberto (Silvestre II), e o antipapa Guiberto da Rávena.
Desgraçadamente, nosso conhecimento sobre o Juan do Mailly se limita a essa dobro atribuição,
e da mesma só pode inferir um dado biográfico que o justifique. À vista do santoral borgoñón que
figura no chamado legendário, Abrégé dê Gere..., terá que escolher, como lugar de origem do
Juan, entre os Mailly disponíveis, o povo deste nome que se encontra perto do Auxerre; assim, a
fundação tardia do convento do Auxerre (em 1241) explicaria que Juan escolhesse o do Metz.
Este fluxo de brumas lorenas e borgoñonas faz que resulte ainda mais enigmática a nota rápida
sobre o episódio da papisa que aparece na Crônica, pois o exemplar manuscrito da mesma
(Bibliothéque Nationale Latin) 14 593)* leva anexo uma espécie de rascunho junto com uma
versão em limpo escritos com uma caligrafia idêntica. Na parte inferior de um dos fólios da versão
preparatória, dedicado a finais do século XI, Juan do Mailly registra esta notícia, vaga e antiga, em
uma anotação emocionante por quanto nos permite entrever ao historiador em plena tarefa: «Para
verificar (Requer).»
Por isso parece, com este manuscrito assistimos ao salto do rumor ao texto escrito: um autor
medieval, sobre tudo quando está informando a respeito de um acontecimento desconhecido ou
mau conhecido, não deixa de indicar sua fonte escrita (embora seja com um vago «legitur», como
se lê em alguns casos) ou oral, quando esta constitui alguma garantia ou alguma venerabilidade
para o que conta. No episódio da Juana, a ausência de fontes indica que esse rumor fica «por
verificar». por que, como recolheu esse ruído Juan do Mailly? Sem dúvida não saberemos jamais,
e tampouco há nenhum indício que nos permita atribuir ao Juan uma intenção em qualquer
sentido: a menção de Papas «más» em sua Crônica (Gerberto, Leão) encontra-se também, e de
forma habitual, em textos anteriores e posteriores, como teremos ocasião de ver.
A rede a Dominica
O quase anonimato do Juan do Mailly, a quem lhe conhece só por suas obras, ilustra à perfeição
o eficaz sistema de difusão de relatos e dogmas cristãos estendido ao largo e comprido da Europa
pela poderosa Ordem de Pregadores. Neste sentido, resulta gracioso constatar que Juan, este
pregador desconhecido, fora a um mesmo tempo o iniciador da história da Juana e o primeiro
compilador desses legendários dominicanos universais que difundiram por toda parte as vistas
dos Santos a um ritmo rápido e sustenido. depois da recopilação do Juan do Mailly (1243),
aparecem o Epílogo sobre a vida, do Bartolomé do Trento (1245) ; o Espelho histórico, do Vicente
do Beauvais (por volta de 1260), e a famosa Lenda de ouro, do Jacobo de Voragem (por volta de
1265), o «best seller»* da Idade Média, e do que se conhecem mais de 1.000 manuscritos . A
paixão recopiladora e divulgadora dos pregadores determinaria a rápida inclusão da lenda da
papisa em suas crônicas (Crônica das Papas e dos Imperadores do Martín o Polonês; Crônica da
Génova, do Jacobo de Voragem), e nas recopilações de exempla (Esteban do Borbón, Arnoldo da
Lieja). Esta velocidade narrativa por parte dos dominicanos se explica, sem dúvida, mais em razão
de uma lógica cultural que por desejo de projetar uma orientação político-religiosa. Os
dominicanos do século XIII ofereceram um apoio constante e fiel ao papado.
Como veremos mais adiante, a história da Juana pôde, e de fato pôde, encontrar outros leitos de
difusão, embora a entrada da narração no corpus dominicano garantia uma difusão quase
inevitável. Porque, enquanto que só o azar ou a decisão individual decidiam que um manuscrito
monástico pudesse recopiarse e dar-se a conhecer, um texto dominicano se distribuía certeira e
rapidamente. De fato, a Ordem de Pregadores se caracteriza por sua capilaridade, por sua
mobilidade e pela produção de instrumentos intelectuais facilmente transportáveis. Segundo os
estatutos de dita Ordem, um pregador se translada de convento em convento, trate-se bem de um
pregador singelo ou de um pregador geral, deslocando-se assim por toda o amplia área que
compreende cada província a Dominica. A província da França, por exemplo, abrangia a metade
setentrional do país, incluindo Lyon e Metz. Esteban do Borbón leu provavelmente o manuscrito
do Juan do Mailly no convento do Metz. Se um frade se convertia em leitor ou em prior, tarefas
ambas de natureza mais estável, então a Ordem lhe deslocava com certa regularidade de um
convento a outro . Do mesmo modo, a celebração periódica e freqüente de capítulos provinciais
ou gerais facilitava que se reunissem grandes grupos de dominicanos. Por outro lado, a
necessidade constitutiva da predição errante gerou a sua vez a produção de manuscritos
transportáveis e de fato os citados legendários do Juan do Mailly e do Bartolomé do Trento estão
em manuscritos de formato muito pequeno, e com caligrafia muito apertada. Por isso, o legendário
confeccionado pelo obscuro Juan do Mailly alcançou em seu dia uma difusão farto respeitável (até
a data se conhece uma dúzia de manuscritos), e foi recopiado na Itália, muito longe da Lorena.
Por sua parte, o legendário do Bartolomé do Trento sobreviveu deste modo em trinta manuscritos,
e foi utilizado pelo Jacobo de Voragem.
Em conseqüência, se os primeiros veículos difusores da lenda da Juana nos parecem bastante
modestos {Crónica universal do Metz, tratado dos sete dons do Espírito Santo), o certo é que
também lhe garantiram um acesso seguro ao memento histórico mais estendido de meios da
Idade Média: a Crônica do Martín o Polonês. Em menos de vinte e cinco anos (1255-1279)
decidiu-se a sorte da Juana.
Contá-lo tudo
Se em algum momento nos parece inútil nos perguntar a respeito das motivações que animaram
ao Juan do Mailly, como auditor e transmissor de um rumor, devemos nos responder que a atitude
de amplitude de espírito que presidia todo o âmbito dominicano (e inclusive fora do mesmo)
excluía qualquer classe de censura. Essa atitude se apoiava em uma confiança cega no poder da
fé e do conhecimento, o que permitia que um recopilador se enfrentasse com qualquer asserção e
com qualquer relato. portanto, e desde esta perspectiva, seria conveniente tomar-se a sério a
citada indicação do Juan do Mailly («Para Verificar, Requer»), pois é muito possível que de ter
vivido o tempo suficiente para concluir seu texto, o dominicano do Metz teria passado o relato pelo
crivo de sua análise crítica, confiriéndole assim certo tom de veracidade. Também é verdade que
dita crítica se teria feito com os recursos da época, quer dizer que se apóia acima de tudo nas
autoridades, e muito accesoriamente na concordância cronológica general. Não obstante, esta
circunstância particular permite contá-lo tudo ao amparo de um aparelho de avaliação. Jacobo de
Voragem, introdutor da lenda de São Jorge no Ocidente, prefacia sua narração com uma
advertência: «O concílio da Nicea situou sua lenda (a de São Jorge) entre os apócrifos, já que
carecemos de relato seguro sobre seu martírio» . Se pode contar tudo, qualquer anedota,
qualquer «sucesso estranho», ou qualquer lenda sem medo algum, porque o narrador dispõe de
recursos para canalizar, neutralizar e suspender o tema da verdade. A revolução intelectual do
século XII dotou à Igreja dos meios necessários para esta absorção universal do significado;
assim, a exegese bíblica, as técnicas meditativas e o domínio do decifração alegórico e figurado
permitem transformar tudo na verdade cristã.
A Igreja à conquista do imaginário
Se pode contar-se tudo, então deve contar-se tudo. A Igreja do século XIII, em pleno apogeu de
seu monopólio cultural, detém uma postura lhe totalizem, englobadora, pois pretende dar conta de
tudo. Esta vontade de dizer tudo explica sem dúvida a paradoxo da folklorización da cultura
religiosa do século XIII, detectada pelo Jacques O Goff . Jacobo de Voragem descreve
explicitamente este processo de captação do sentido alógeno que encerra a expressão «ad
majoren Dei gloriam». Em seu capítulo sobre a purificação da Virgem (Lenda de ouro) expõe de
maneira, como dizemos, explícita, a tática da Igreja ante o costume ancestral das luzes da
Candelaria: «por que ordenou a Igreja que levemos nesse dia Candelas acesas? Podemos
oferecer quatro razões. Em primeiro lugar, para erradicar um cacoete. Em efeito, antigamente os
romanos iluminavam a cidade durante toda a noite com círios e tochas, cada cinco anos,
coincidindo com as calendas de fevereiro, em honra da Februa, mãe de Marte, deus da guerra;
desta maneira, esperavam obter um filho, a cuja mãe honrava com tanta solenidade, a vitória
sobre seus inimigos. Este intervalo de tempo se chamava um lustro. Mas é difícil abandonar os
costumes e os hábitos adquiridos, e aos cristãos custava muito convencer aos pagãos conversos
de que deviam desterrar essas classes de ritos. À vista da situação, a Papa Sergio trocou o
sentido de dito costume, lhe dando um significado bom: os cristãos deviam iluminar ao mundo
inteiro com a Candelas acesas e círios benditos, cada ano, em honra da Santa Mãe de Deus.
Desta forma, a cerimônia permanecia, mas a intenção da mesma era muito distinta» .
Esta capacidade de absorção e de assimilação explica por que logo que está presente na Idade
Média essa edulcoración que logo será uma constante da cultura religiosa postridentina. Por isso,
quer dizer por essa razão, por volta do 1435, o dominicano Hermann Korner, do Lübeck, chamado
anteriormente a propósito de seu testemunho sobre o rito de verificação de virilidade, dá notícia,
como muitos da mesma Ordem, da história da Juana, seguindo a versão mais comum, a do Martín
o Polonês, embora não oculta seu assombro ao não encontrar nada, nenhum rastro da mesma na
crônica do também dominicano Enrique do Erfurt (por volta de 1350), que utiliza como fonte
secundária, condenando implicitamente a atitude pacata de seu colega, a quem nega o
precedente: «Entretanto, sobre esta mulher que ocupou o papado tão fraudulentamente, Enrique
do Erfurt não faz menção alguma, sem dúvida por medo de escandalizar a quão laicos sabem ler,
dando a conhecer que semelhante engano o tenha cometido uma Igreja de Deus que se assegura
está regida pelo Espírito Santo, pelos clérigos e pelos sacerdotes» . O temor do Enrique, pouco
compartilhado, já que a omissão da Juana nas crônicas universais é bastante incomum, dá
testemunho de uma interessante conscientiza dos perigos de alfabetização. Entretanto,
encontramos um temor mais acusado e freqüente a propósito da leitura individual da Bíblia ,
precisamente porque o relato legendário ou histórico admite a fachada da interpretação clerical,
enquanto que o Verbo divino sempre pode atravessar com seu brilho o ornato eclesiástico com o
que lhe revestem.
Em 1472, quando Platina decide relatar a vida da papisa na crônica encarregada pelo Sixto IV,
disposta a sua narração um sentido particular, um pouco perverso, sem saber que seu propósito
coincide com o da Igreja do século XIII: contá-lo tudo. Para Platina, também se trata de contá-lo
tudo, animado por uma preocupação de alcance comunitário: «Estes fatos (a verificação da
virilidade das Papas) que assinalei, contam-se corrientemente, embora os garante dos mesmos
sejam incertos e escuros; decidi oferecer os de forma nua e breve, para que não pareça que omito
obstinada e tenazmente o que quase todo mundo afirma, exposto a me equivocar com o vulgo a
respeito deste assunto, embora quão feitos relato pertencem à categoria do que pode acontecer»
.
O processo de assimilação dos temas legendários por parte da Igreja se produz de uma maneira
gradual a partir do século XII, mas alcança seu apogeu na recopilação a Dominica do século XIII.
Nada pode ilustrar melhor essa conquista a Dominica de quão imaginário a comparação entre os
trabalhos do Juan do Mailly e os do Bartolomé do Trento. Felizmente para nós, segundo a análise,
farto convincente do chamado pai Dondaine , Juan do Mailly redigiu uma primeira versão do
Abrégé quando ainda era clérigo e não dominicano, possivelmente por volta do 1230. Nnaquele
tempo, naquele tempo, Juan mantinha uma clara reticência em relação aos materiais legendários
que dirigia, e por isso assinalava sua falsidade. Assim, e a título de exemplo, ao referir-se a certos
aspectos maravilhosos da vida do Ciro e Julita, diz: «Se dermos conta destas coisas é para
rechaçar os escritos apócrifos com obras que imponham autoridade, já que se fossem feitos
certos, certamente os historiadores não os teriam silenciado» .
Juan adota a mesma firmeza de critério ante outro episódio apócrifo, do que já falamos mais
acima: «quando se ocupa do Natal do Senhor (Natal), Juan evoca uma antiga tradição cunhada
por um texto apócrifo grego do século II, o Protoevangelio do Santiago, traduzido ao latim no
século II sob o nome de «Pseudo Mateo». Segundo este texto, duas parteiras, Zébel e Salomé,
ajudaram a María na iluminação; a primeira teria proclamado imediatamente a virgindade
milagrosa da María, enquanto que a segunda, mais cética, teria se empenhado em verificar
manualmente dita virgindade, recebendo um castigo por sua incredulidade, e viu como seu braço
inquisidor ficava inerte. Jerónimo, autoridade patrística indiscutível no Ocidente, já condenou com
solvência esta versão do natal, citando a sua vez ao Lucas, para quem a própria María, sem ajuda
alguma, tinha envolto em fraldas o corpo do divino recém-nascido. Não obstante, esse relato tão
suspeito circulou por todo Ocidente, como o demonstra sua presença na iconografia, mas sem
chegar a ser admitido na categoria de dignidade textual, salvo na adaptação métrica da abadessa
Hrotswitha do século x
Juan do Mailly, com a segurança de seu domínio verificador, relata este episódio com o exclusivo
propósito de refutá-lo: «Não houve nenhuma parteira para lhe ajudar, apesar do que dizem alguns
livros e os contos de velha» .
Bartolomé do Trento, mais experiente nas técnicas integradoras dos dominicanos, pôde oferecer
alguns anos depois uma versão hábil de compromisso: «José, embora não ignorava que fora o
Senhor quem devia nascer da Virgem, seguiu não obstante os costumes de seu país e saiu a
procurar as parteiras» ; quer dizer, José recorre às parteiras, levado pelo costume humano. Uma
vez que pôde justificar a eleição do José sem atentar contra o dogma da Encarnação (pois este, e
não outro, era o ponto chave da censura do Jerónimo), Bartolomé pode contar tranqüilamente o
episódio que sinta as bases do paradigma de numerosos milagres nos que, na hagiografia
medieval, castiga-se aos céticos. Por sua parte, Jacobo de Voragem utilizará constantemente
ambos os artifícios, exemplo de astúcia, que permitem conciliar o irreconciliável e favorecem a
convergência de tradições dispersas, para maior benefício do relato cristão. O relato legendário
aparece, pois, no século XIII como o elemento essencial de uma verdadeira mestria ideológica,
que consiste em dar-se simultaneamente um objeto simbólico, sua valoração, seu uso e seu
controle. dentro da Igreja se conta todo, mas fora dela não deve contar-se nada.
Por outra parte, a narrativa permanente aparece como um dever doutrinal. A profunda
originalidade do cristianismo reside precisamente no mistério da Encarnação: Deus se manifestou
na terra, em meio dos homens, em meio de sua história, e não em um tempo original: retornou;
anunciou um Julgamento Final como conclusão, ainda de caráter terrestre, da história do mundo.
O sagrado, pois, não só se conta, mas também pelo contrário deve contar-se, já que se manifesta,
ou pode manifestar-se de repente, muito perto dos nomes. O grande modelo evangélico é primeiro
um relato: a lenda, a anedota histórica, o «sucesso estranho», podem ser portadores dos
fragmentos ou dos meteoros do sagrado. Por isso, quando no mês de março de 1429 Juana de
Arco chega ao Chinon para proclamar sua missão divina, uma comissão de clérigos presidida pelo
arcebispo do Reims examina de perto a questão; a conclusão resultante goteja prudência, pois
busca nos acontecimentos uma confirmação da inspiração divina da Juana. Mas esta última
sublinha que seria um ato de impiedade desperdiçar a ocasião de assistir a uma manifestação
celestial: «Porque duvidar dela é o mesmo que evitá-la, sem que exista aparência de mau, seria
repudiar ao Espírito Santo e fazer-se indigno da ajuda de Deus, como disse Gamaliel em um
conselho dos judeus a propósito dos apóstolos» . A narração confere, pois, um fundamento
ontológico à narração, já que ao dispor de uma essência do sagrado reúne e descobre o que de
sagrado tem o ser do mundo terrestre. Deve contar-se tudo dentro da Igreja, porque tudo
comporta um significado.
Em conseqüência, no século XIII, a Igreja aspira metodicamente à narração universal, e a
tradição oral sobre a papisa, cujo rumor nos pareceu ouvir em Roma desde mediados do século
XII, fica envolta nesse torvelinho centrípeto («vorago», término que se disposta a uma etimologia
imaginária de voragem).
Com sua entrada na rede de difusão a Dominica, a história da papisa conta já com todas as
possibilidades de adquirir sentido, de desenvolver-se e de difundir-se. O meio formalizava a
mensagem mediante uma articulação paradigmática do azar (no Metz se anota um rumor, um
viajante que passava por ali, um peregrino o contava a sua vez em Roma. Quem sabe?) e da
necessidade (o sistema dominicano convertia qualquer matéria prima em discurso reprodutível).
Azar e necessidade: as versões Enikel e vão Maerlant
A parte da necessidade no estabelecimento da história da Juana parece bastante importante,
precisamente porque o verdadeiro começo dominicano não constitui por si mesmo uma origem.
Não há dúvida alguma de que a anedota se contou em outros contextos, inclusive antes, isto é
entre 1150 e 1250, no âmbito do contingente e à margem das meditações necessárias. É possível
que nos encontremos com papisas abortadas em crônicas anteriores a do Juan do Mailly, que vão
surgindo ao azar dos descobrimentos de textos esquecidos. É certo também que os «juanistas»
(chamaremos assim aos partidários da existência real da papisa) esbanjaram seus esforços
tentando que a narração coincida com o narrado depois do achado de alguns textos alusivos
anteriores a 1250. Neste sentido, é preciso sublinhar que os «juanistas» quiseram ler a história da
Juana no Liber pontificalis, antes da edição crítica de monsenhor Duchesne, quem demonstrou
com claridade, apoiando-se em um fac-símile, que o manuscrito «Vaticanus latinus» 3762 (século
XII), fonte utilizada pelos juanistas, só recolhe a história da papisa em uma addenda marginal do
século XIV, que a sua vez recopia literalmente a versão do Martín o Polonês. O monge Mariano
Decoto (†1086) tampouco soube nada da Juana, e a edição antiga (1583) do J. Pistorio, que tanto
despistou aos eruditos até os trabalhos do Cesare d'Onofrio, publica de fato um manuscrito do
século XIV. O mesmo mecanismo editorial (sem dúvida consertado) é aplicável ao Sigiberto do
Gembloux († 1112), Otón do Freising († 1158), Ricardo do Poitiers († 1174), Godofredo do Viterbo
(† 1191) e Gervasio do Tilbury (1211).
Mas esta barreira crítica, levantada por eruditos e filólogos desde finais do século XIX, não
deve excluir a possível existência de certos cursos narrativos que tinham discorrido a sua vez rio
acima, sem chegar a desembocar no empoce dominicano. Descobrimos assim uma corrente
narrativa algo posterior a do Juan do Mailly, embora totalmente independente desta última, na
enorme crônica rimada, e redigida em antigo alto alemão por volta do 1280, pelo burguês vem
Jansen Enikel. Leiamos, pois, o episódio que aqui se narra, com toda sua carga de incerta rudeza:
«Havia uma mulher em Roma que tinha um formoso corpo e que se disfarçava de homem.
Ninguém podia adivinhar que se tratava de uma mulher. Um dia foi escolhida Papa, já que lhe
considerava como um herói agradável a Deus. Era bastante versátil, já que, sendo mulher, quis
ser homem; e assim se converteu em Papa. O que fizesse de extraordinário enquanto foi Papa
não posso dizê-lo, e sobre esse particular devo permanecer mudo. Mas há uma coisa a respeito
dela que devo dizer: a maltratou, e o que lhe fizeram, isso sim sei muito bem, pois teve que
padecer um desprezo que atentou contra sua honra, por isso teve que abandonar Roma. Ofendeu
às gente com o horrível dano que cometeu seu corpo» .
Com o Jansen Enikel nos encontramos muito perto do rumor: o narrador não sabe nada, e assim
o faz constar («dê kan ich niht gar gesagen / dâ von sô muoz ich stille dagen»). Tudo se reduz a
isto: uma mulher conseguiu converter-se em Papa, mediante o disfarce e a aventura terminou que
má maneira. No extremo oposto da Europa, e em uma data próxima (por volta de 1283), outro
burguês, Jakob vão Maerlant, relata uma anedota parecida no marco de uma crônica, também
rimada, mas esta vez em flamenco, o Spiegel Historical . Tampouco ele sabe grande coisa, mas
ouviu falar de uma estátua comemorativa (cuja existência na tradição oral está confirmada) e diz
ter procurado em vão a autentificación da história da papisa nas crônicas papais. Enikel e Vão
Maerlant podem repetir e chamar a atenção sobre o rumor, mas não tiram nada em claro da
anedota; a ambos os falta a máquina que possuem os domínios para achar significados.
Forma 2: do sucesso ao exemplum Esteban do Borbón (por volta de 1260)
Em efeito, alguns anos depois de que se desse a conhecer o relato do Juan do Mailly, Juana
surge no horizonte do Esteban do Borbón: a anedota, extraída rapidamente da Crônica do Metz,
moraliza-se e se converte em exemplum.
Conhecemos algo melhor ao Esteban do Borbón que ao Juan do Mailly, mas não muito mais.
Nasceu no Belleville-sul-Saône, não longe do Lyon, por volta de 1190-1195, assistiu à escola
capitular do Maçon e logo à Universidade de Paris, antes de ingressar no convento dos
dominicanos no Lyon em 1223, quer dizer nos primeiro anos de existência da Ordem de
Pregadores. Durante perto de trinta anos levou a vida errante de pregador geral, percorrendo a
ampla província a Dominica da França, desde a Saboya até a Lorena. Em 1226 o encontramos no
Vézelay pregando a cruzada contra os albigenses; mais tarde recebe o cargo de inquisidor
diocesano no Clermont, e logo no Lyon; esta tarefa estava acostumada recair em um dominicano.
Ao final de larga e laboriosa vida se retira a um convento do Lyon, onde morre por volta de 1261.
Esteban foi, em primeiro lugar, um pregador. A única obra que deixou, e por certo inconclusa,
tinha uma função prática: durante seu retiro no Lyon, entre 1250 e 1261, redigiu um volumoso
tratado sobre os distintos materiais a empregar em um sermão (Tractatus de diversis materiis
praedicabilibus), usualmente conhecido como Tratado dos sete dons do espírito santo, dado que o
autor dispõe os conteúdos de sua obra em sete livros, cada um dos quais está consagrado a uma
das sete virtudes que o Espírito Santo insufla ao fiel. A recopilação proporcionava aos pregadores
uma soma ordenada de entrevistas de autoridades («auctoritates»), de argumentos escolásticos
(«rationes») e de exempla, os três componentes do sermão medieval. Sabemos que o
«exemplum» é um relato breve, destinado a ilustrar através do sermão uma verdade doutrinal ou
moral . O prodigioso esforço de multiplicação da predicación realizado durante o século XIII,
principalmente pelas ordens mendicantes, necessitou uma massa considerável de exempla, e
portanto é presumível que um pregador hábil e ativo como Esteban do Borbón bebesse de todas
as fontes a seu alcance, tanto nos textos como na experiência vivida ou relatada, a anedota
registrada por seu irmão dominicano do Metz passou, pois, com toda naturalidade a formar parte
da recopilação do Esteban.
O relato que nos oferece este pregador se encontra agasalhado em um pequeno alvéolo, dentro
de um dos muitos ocos que apresenta a construção maciça do Tratado, edificado sobre o plano
das subdivisões; por esta razão de natureza quase arquitetônica achamos a referência a Juana no
livro V (sobre o dom do conselho), título «Sobre a Prudência», divisão «Sobre as preocupações
que devem tomar-se na eleição dos prelados», capítulo «Que a eleição deve ficar ao casaco de
qualquer Este usurpação é o texto:
«Um assombroso golpe de audácia, ou mais ainda de loucura, teve lugar por volta do ano 1100,
conforme contam as Crônicas. Uma mulher ilustrada e sábia na arte de redigir se vestiu com
roupas masculinas e se fez passar por homem; veio a Roma; recebeu-se bem sua energia e sua
cultura; foi nomeada notário da cúria e logo, por mediação do diabo, cardeal e depois Papa.
Grávida, iluminou durante um rodeio. Ao ter notícia dos fatos, a justiça romana lhe atou os pés
enganchando-a aos cascos de um cavalo, que lhe arrastou fora da cidade e foi lapidada pelo povo
a uma meia légua; foi enterrada no lugar mesmo de sua morte, e sobre a pedra que cobre seu
corpo se escreveu o seguinte verso: "te cuide, Pai dos Pais, de Publicar o Parto da Papisa." Hei
aqui a que detestável fim conduziu uma audácia tão temerária» .
O tema do relato já não é um acontecimento que afeta só às interioridades da história papal (como
no caso do Juan do Mailly), a não ser um delito cujas implicações aumentam sua própria
gravidade e em definitiva ampliam seu alcance. Neste sentido, a lição moral do acontecimento
aparece expressa com força antes e depois da narração: «Um assombroso golpe de audácia, ou
mais ainda de loucura ...Hei aqui a que detestável fim conduziu uma audácia tão temerária.» Mas
nesta ocasião, e ao contrário do que ocorre no texto do Juan do Mailly, encontramo-nos no centro
da história com um sujeito de verdade, uma mulher (mulier, que, por oposição ao femina
empregado por Do Mailly, designa uma categoria sócio-moral no contexto da literatura exemplar,
freqüentemente misógina), que conduz a narração em feminino («facta est notarius... distracta).
Assim aparece com toda claridade a responsabilidade pessoal da papisa, perceptível já nessa sua
premeditação, prévia a sua chegada a Roma. A cúria e o papado, meras caixas de ressonância, já
não estão implicados no acontecimento; nada se diz a respeito da obra da papisa, e, o que é
mais, Esteban insiste em situar a preparação do crime e de seu castigo fora de Roma, quer dizer,
ao contrário também do que faz Juan do Mailly: «Uma mulher, instruída e perita na arte de redigir,
vestiu-se com roupas masculinas e se fez passar por homem; veio a Roma... ao ter conhecimento
dos fatos a justiça romana... foi enganchada aos cascos de um cavalo que a arrastou fora da
cidade (extra Urbem).» Em realidade, trata-se de uma interpretação do Esteban, já que não
modifica as notas do Juan do Mailly; assim, por exemplo, em ambos os relatos se arrasta a papisa
«a uma meia légua» do lugar do escândalo. Mas além disso, em seu desejo de proteger ao
papado, Esteban investe o sentido da fórmula das seis P («Te cuide de Publicar», em vez de
«Publica»). Voltaremos sobre este ponto. A astúcia desta mulher e a ajuda do diabo desculpam à
cúria: «recebeu-se bem sua energia e sua cultura; foi nomeada notário da cúria, e logo, por
mediação do diabo, cardeal e depois Papa.» Os recursos empregados (astúcia e intervenção do
diabo), e a motivação do delito (a louca presunção) adicionam a nossa heroína à legião das
mulheres sem escrúpulo que animam a literatura exemplar.
A moral na história: Jacobo de Voragem (por volta de 1295)
Os mesmos rasgo de exemplaridade destacados mais acima estão presentes na versão que nos
oferece Jacobo de Voragem, dominicano e arcebispo da Génova, em sua Crônica da Génova,
obra que termina por volta do ano 1297. A inserção da história da Juana nesta crônica nos
interessa muito de perto, por quanto supõe a expressão de um uso ainda livre e indeterminável do
episódio, antes de que adquira fixação particular no molde histórico-jurídico que impõem os
leitores do Martín o Polonês de forma duradoura.
Jacobo de Voragem nasceu na Liguria por volta do 1230, provavelmente no Varazzo*, localidade
situada na Revisse ocidental da Génova. Ingressa muito em breve na Ordem de Pregadores, onde
realizou uma carreira mais brilhante que Juan do Mailly ou que o próprio Esteban do Borbón.
Desempenhou os cargos de pregador geral, de leitor e de prior, até alcançar depois os mais altos
postos dentro da administração da Ordem: entre 1267-1277 e 1281-1286 foi prior geral da
província da Lombardía, e inclusive chegou a desempenhar as funções de general da ordem
durante um período no que dito cargo ficou vacante. Mas antes de assumir estas
responsabilidades, por volta de 1265, tinha redigido a famosa Lenda de ouro*, com a que seu
nome passaria à posteridade. Não obstante, jamais abandonou sua atividade literária, e compôs
várias coleções de sermões modelo em 1270 e 1290. Quando se encontrava já nas postrimerías
de sua vida, em 1292, ocupou o trono arzobispal da Génova, empreendendo imediatamente a
tarefa de narrar a história de dita cidade, «para a instrução de seus leitores e para a edificação de
seus ouvintes», mas também para fazer justiça a uma cidade descuidada injustamente pelos
historiadores: «Surpreendemo-nos ante o pouco que se há dito a respeito desta cidade da
Génova, tão ilustre, tão nobre e tão capitalista» . O dobro objetivo que se propõe Jacobo de
Voragem não fica, pois, na mera retórica que caracteriza os prólogos, já que a estrutura mesma
da obra a situa em um plano de atuação claramente distinto do dos anais sobre as cidades, tão ao
uso na época. As cinco primeiras partes se ocupam da Génova como sujeito religioso coletivo,
criado (partes 1 e 2), renomado (parte 3), convertido (parte 4), em um aperfeiçoamento moral
constante (parte 5); as partes 6 a 9 constituem um verdadeiro pequeno tratado de moral política
cristã, e é só nestas três últimas partes onde Voragem se ajusta cronologicamente à história da
Génova, tomando como parâmetro a sucessão de bispos e de arcebispos que ocuparam a sede
da cidade. Importava, pois, destacar esta construção de caráter doutrinal que distingue à Crônica
da Génova, para poder apreciar melhor as razões que impulsionaram ao Jacobo de Voragem a
tratar a história da papisa do ponto de vista da exemplaridade.
A história da Juana se encontra na parte XI (Génova no tempo dos bispos), concretamente no
capítulo 8.°, dedicado aos 8.° bispo da cidade, Sigiberto. Voragem se preocupa com apresentar a
perfeita continuidade dos bispos, mas para os períodos compreendidos na alta Idade Média só
dispõe de uma lista de titulares, sem conhecer nenhum acontecimento genovés contemporâneo
dessas datas. Para cobrir este vazio documentário, Jacobo decide incluir episódios da época que
vai escolhendo das crônicas universais, e que não guardam relação alguma com a Génova.
Assim, por exemplo, o capítulo sobre o Sigiberto inclui: 1) a história da papisa; 2) uma evocação
da Papa Sergio IV, iniciador da mudança de nome das Papas, por causa de seu desafortunado
sobrenome (Vos Porchi: Cabeça de Porco); 3) o episódio da falsa acusação contra o bispo de
Orleans, Teodulfo, durante o reinado do Luis o Piedoso, e 4) o relato de um prodígio acontecido
na Brescia (uma chuva de sangue). Estes três últimos episódios já figuravam na pequena crônica
universal, que o próprio Jacobo de Voragem tinha introduzido no capítulo dedicado à Papa
Pelagio na Lenda de ouro, o que demonstra que em 1265 nosso autor ignorava ainda a existência
da Juana, apesar de sua grande erudição como colecionador de histórias e de lendas.
Ao seguir a composição lhe totalizem da Lenda de ouro, os relatos que a sua vez dão corpo à
crônica garantem, um detrás de outro, um ensino histórico (sobre a instituição da mudança de
nome das Papas; sobre a criação do responso litúrgico pelo Theodulfo, quem desde sua prisão
estabelece comunicação com o exterior através de dito responso), escatológica (o prodígio da
Brescia) ou moral (a história da papisa). Nesta versão da história da Juana, a narração vem
precedida de um comentário moral tão largo como o próprio relato. Por temor a aborrecer ao leitor,
não citaremos em sua integridade o texto da narração, pois entre outras coisas são poucos os
elementos novos que contribui em relação ao texto do Martín o Polonês, de cuja tradução nos
ocuparemos mais adiante. Embora não se pôde provar a dependência textual, dado que Jacobo
de Voragem não reproduz nenhum dos matizes do Martín, copiados constantemente durante os
séculos XIV e XV, o bispo genovés situa o papado da Juana no mesmo contexto cronológico que
seu colega (864, leitura possivelmente defeituosa de 854); e, também como ele, registra a
existência de um amante antes da eleição, além de indicar o desvio ritual nas procissões
romanas. Por último, parece pouco provável que em 1297 um leitor tão bulímico como Voragem
pudesse ignorar as versões do Martín, quando sabemos que desde 1280 estas se conheceram
rapidamente. Entretanto, a versão de Voragem descuida a identidade da papisa (Juan o Inglês,
oriundo da Maguncia) e a duração de seu pontificado, dados ambos mencionados por todos os
que leram ao Martín o Polonês. Neste sentido, queremos pensar que a perspectiva moral e
exemplar que preside a obra do Jacobo de Voragem induz a seu autor a decantar-se por uma
nova referência genérica: «Uma mulher (quaedam mulier)...» Não obstante, apresenta dois
detalhes inéditos: Voragem é o primeiro (depois do Jacobo vão Maerlant, quem fica fora da rede a
Dominica) em recordar a existência de «uma efígie de mármore que assinala esse
acontecimento». Em segundo término, segundo o arcebispo da Génova, a papisa, ao sentir os
dores do parto, entra então «em uma casa pequena da rua, onde iluminou, morreu dos dores do
parto e foi enterrada». Este último detalhe confirma plenamente a hipótese topográfica exposta
pelo Cesare d'Onofrio. Como já vimos, este erudito romano identificou os lugares cuja peculiar
configuração poderia ter albergado a lenda; e, d'Onofrio, quem desconhecia o texto de Voragem,
só pôde haver-se apoiado em uma referência muito tardia do franciscano Mariano de Florência na
obra-guía deste último, titulada Itinerário de Roma (1517). Nenhuma outra versão medieval
registra dito detalhe, que por outra parte concorda perfeitamente com as lendas romanas
recordadas a sua vez na primeira parte do presente livro, o qual nos permite supor que a inscrição
clerical do episódio cristalizou brevemente as tradições orais difundidas de Roma. Seria a força da
narração canônica a que, em última instância, conseguiu que passassem ao esquecimento as
circunstâncias estritamente romanas.
Voragem ilumina seu relato com um denso comentário moral, inspirado em uma fonte próxima à
empregada pelo Esteban do Borbón para esboçar sua própria versão, com a diferença de que no
trabalho do bispo da Génova está presente uma preocupação escolástica pela construção
demonstrativa. Escutemos a seguir o ruído surdo do pesado martillear: «Esta mulher (está mulier)
começou com presunção, prosseguiu com falsidade e estupidez e concluiu com vergonha. Tal é,
em efeito, a natureza da mulher (natura mulieris) que, ante uma ação que quer empreender,
mostra presunção e audácia ao princípio, estupidez na metade, e incorre finalmente em vergonha.
A mulher, pois, começa a atuar com presunção e audácia, mas não toma em consideração o final
de dita atuação nem suas conseqüências; pensa que realizou já costure importantes; se ainda
pode começar algo grande, depois desse primeiro momento, e logo durante o curso de sua
atuação, já não sabe continuar com sagacidade aquilo que iniciou, e isso se deve a uma falta de
discernimento. Só fica então concluir em meio da vergonha e da ignonimia quanto empreendesse
com presunção e audácia e continuasse com estupidez. E, deste modo, está perfeitamente claro
que a mulher começa com presunção, continua com estupidez e conclui com ignomínia».
Assinalemos a respeito que, à margem da sólida atitude misógina comum entre os autores da
época, e da satisfação tipicamente escolástica sobre a triplo condição feminina (presunção,
estupidez e ignonimia). Voragem parece demonstrar um ponto de vista curiosamente
maquiavélico sobre a ação, já que a leitura de seu texto produz a impressão de quase lamentar a
falta de firmeza por parte da papisa, quem, a seu julgamento, de ter procedido de outra maneira,
tivesse podido ter êxito em sua empresa. Caberia ver nesta postura o surgimento de uma
fascinação pela aventura da transgressão, perfeitamente visível já no Boccaccio, meio século
depois? Trataremos este assunto no próximo capítulo.
A papisa no alfabeto: Arnoldo da Lieja (1307)
A história da Juana tivesse podido instalar-se no marco de um estilo narrativo de corte moral, de
haver-se dado as circunstâncias adequadas; entretanto, essa forma de existência literária durou
pouco tempo, apesar de que o corpus dos exempla continuou desenvolvendo-se, inclusive até o
século XV, a base de cópias e de empréstimos, e a pesar também do êxito colhido pela
recopilação do Esteban do Borbón, através de coleções muito difundidas. A única recuperação da
história sob forma exemplar se encontra no Alphabetwn narrationum (o Alfabeto dos relatos), do
dominicano Arnoldo da Lieja, redigido por volta de 1307. Esta volumosa recopilação de 819
exempla obteve deste modo um amplo êxito (conservam-se 98 manuscritos de dita obra), devido
sem dúvida a que compreende uma classificação por ordem alfabética dos temas tratados, que se
complementa com engenhosas referências de um epígrafe a outro. A obra conheceu traduções ao
inglês e ao catalão, e nos importa assinalar de passagem que a adaptação catalã (a diferença da
tradução inglesa, que é muito literal), o Recull de eximplis e miracles, gere et faules e altres
ligendres ordenades per ABC, acrescenta um detalhe novo frente à versão canônica do Martín,
resumida aqui pelo Arnoldo da Lieja: quando, em metade da procissão, a papisa chega ante uma
imagem da Virgem, ouça que María lhe pergunta se prefere expiar sua falta na eternidade ou aqui
embaixo; Juana escolhe purgá-la imediatamente e então expira a conseqüência dos dores do
parto.
O método do Martín
Por volta de 1260 aparece uma forma bem distinta de contar o episódio da papisa, embora de
maneira embrionária, na crônica franciscana anônima do Erfurt: «Ainda houve uma pseudo-Papa
(pseudo-Papa), cujo nome e datas de pontificado ignoramos. Era uma mulher, conforme dizem os
romanos...» De novo nos encontramos aqui à instituição papal como tema do relato, com o
término «pseudo-Papa», enquanto que Juan do Mailly usava o pitoresco apelativo de «papissa»
(papisa), e Esteban do Borbón e Jacobo de Voragem omitiam (salvo na fórmula das seis P)
qualquer etiqueta institucional.
Esta integração histórica, que já não é anedota, na instituição papal se perfila claramente na
versão do Martín o Polonês (ou Martín do Troppau).
Martín Strebski, natural do Troppau, em Boêmia, ingressou na Ordem do São Domingo no
convento da Praga, que pertencia a grande província da Polônia, origem administrativa que não
geográfico do apelido do Martín. Também ele conheceu uma carreira brilhante, posto que em
1264 chegou a capelão e penitenciário da Papa Clemente IV, conservando logo ambos os cargos
com os sucessores deste último. Nicolás III lhe nomeou, em 1278, bispo do Gnessen (atualmente
Gniezno) na Polônia e o consagrou ele mesmo. Martín morreu perto da cidade italiana de Bolonha
quando se dirigia a sua sede episcopal. dentro da mais pura tradição de atualização a Dominica
de instrumentos de divulgação da doutrina cristã, Martín compôs um pequeno índice alfabético do
Decreto do Graciano, a Margarida Decreti, que citamos no primeiro capítulo a propósito de seu
artigo «mulher». Com idêntico espírito redige uma breve crônica universal, a Crônica das Papas e
dos imperadores, da que se conservaram vários centenares de manuscritos e de traduções ao
inglês, armênio, tcheco, espanhol, francês, alemão, grego e italiano. Este êxito se explica, sem
dúvida, pela concisão extrema do texto, e sobre tudo por uma construção muito hábil do mesmo
que permitiria uma consulta extremamente rápida: cada página das edições realizadas segundo o
manuscrito inicial representava cinqüenta anos de história, a razão de 50 linhas por página.
A história da Juana não figura nos primeiros manuscritos da Crônica. Segundo L. Weiland , Martín
editou três vezes sua crônica: primeiro baixo Clemente IV (1265-1268); logo em 1268, e por último
por volta do 1277. A notícia da papisa se incluiria nesta terceira e última edição. Pode também
que se acrescentasse depois de sua morte, bem em uma edição póstuma ou por conta de um
continuador dele; mas, em qualquer caso, o episódio figura em todos os manuscritos posteriores a
1280 sob o nome e a autoridade do Martín. Importa aqui, pois, ler o texto em sua integridade
(breve), texto com o que conclui uma fase da história da Juana, fixando-a e difundindo-a por toda
parte, e a que portanto confere uma garantia solvente:
«depois deste Leão (= Leão IV), Juan, inglês de nacionalidade e oriundo da Maguncia, ocupou
a sede durante 2 anos, 7 meses e 4 dias. Morreu em Roma e o papado ficou vacante um mês.
Conforme contam, foi uma mulher; durante sua adolescência foi levada a Atenas, vestida de
homem pelo que era seu amante; progredia tanto nas distintas ciências que não havia ninguém
que lhe igualasse; tanto é assim que se dedicou a ensinar em Roma o "trivium" (= as artes
literárias), e teve entre seus discípulos e ouvintes a magistrados de alta fila. E, porque sua
conduta e sua ciência gozavam de uma grande reputação na cidade, foi escolhida Papa por
unanimidade. Mas durante seu pontificado, seu companheiro lhe deixou grávida. Mas ella/él
ignorava a data da iluminação e quando ella/él se dirigia para o Letrán procedente de São Pedro,
sentiu os dores do parto entre o Coliseu e a igreja de São Clemente; deu a luz, e logo morreu,
precisamente ali onde recebeu sepultura. E como o senhor Papa efectúa sempre um desvio neste
trajeto, crie-se usualmente que o faz assim porque detesta dito acontecimento. Não ficou inscrito
no catálogo dos Santos pontífices dada a inconformidade que o sexo feminino implica neste
assunto» .
A partir de então, a história adquire reflexos de realidade, já que Martín proporciona indicações
concretas sobre a data e a sucessão. De entrada, rechaça qualquer réplica erudita ao explicar
porquê nenhuma lista de Papas menciona a Juana. Por outra parte, no texto do Martín, o episódio
se apresenta com certa coerência: a conduta da Juana tem sua origem em uma primeira
motivação (o amor). Sua carreira se explica por seu grande talento. Assim, ao encontrar uma
identidade (nome, data, conduta), Juana tem, por fim, vida individual.
Não podemos saber de onde tira Martín estas precisões, indispensáveis para que a vida da
Juana perdure no âmbito do imaginário. Além disso, a novela em torno de Juana bem pôde
fabricar-se a partir do simples acontecimento registrado pelo Juan do Mailly, respondendo às
perguntas dos móveis e das modalidades que comporta a ação da papisa.
Nesta ordem de coisas, diz-se que Juana inicia sua carreira com o ensino geral (o «trivium») e
não já com a arte do notariado, o que sem dúvida sugere uma correção do verossímil, posto que
naquela época o notariado acusava uma perda desse prestigio de que tinha desfrutado com
antecedência (séculos XI-XII), quando se inventou o estilo pontifício de redação, isto é, o
«cursus». Na autobiografia do Guido Faba, decifrada pelo Ernst Kantorowicz , compara-se ao
notário (civil, é obvio) com o curtidor, cuja tarefa exigia a manipulação de excrementos caninos
(para branquear o pergaminho) e da lezna (para costurar e esticar o suporte de seu trabalho).
Mas, como hei dito, Martín é o primeiro em adiantar uma razão solvente ao disfarce eleito pela
Juana: seguir a um amante.
O que já parece mais difícil de estabelecer é a formação de sua identidade. Martín lhe chama
Juan (e não Juana), nome eleito por numerosas Papas dos séculos IX e X, desde o Juan VIII (†
882) até o Juan XVII († 1003). Os tumultos nos que se viu envolto então o papado (destituições e
voltas de pontífices) embrulharam a numeração dos titulares deste mesmo nome. Por outra parte,
é possível que a má reputação do Juan XI e do Juan XII, as Papas da «pornocracia»,
determinasse a eleição do Martín ou de sua fonte desconhecida.
Mas o que resulta ainda mais difícil de explicar é a estranha indicação sobre sua origem
(«inglês de nacionalidade, oriundo da Maguncia»). Ao fio desta questão, queremos propor
algumas associações sucintas que em modo algum pretendem resolver o dilema, já que nos
cuidamos muito muito do demônio da analogia indefinida.
Anglicus, o Inglês. A única Papa inglesa da história foi Adriano IV (1154-1159), com quem nos
encontramos já, a propósito de seu conflito com o Federico Barbarroja. Se admitirmos o fato de
uma difusão essencialmente germânica de lenda (incluindo no término «germânico» os domínios
do Império, mais Lorena e Borgoña, culturalmente orientadas para a área germânica), podemos
pensar (embora reconheçamos que se trata de uma hipótese débil) que a intensa produção
germânica antipapal dos séculos XI e XII é responsável pelos mil pecados e raridades que se
imputaram a esta Papa inglesa. De fato, a irrupção de uma Papa procedente das longínquas
paragens nórdicas surpreendeu à cristandade, e na Crônica Pontifícia e Imperial Tiburcina (por
volta de 1256) encontramos um relato de sua vida que guarda certa relação com a lembrança de
outra carreira fulgurante, a da Juana: «Seu pai, inglês, transladou-se ao Aviñón onde ganhou a
vida com suas próprias mãos, e, a sua morte, seu filho, ainda de curta idade, entrou em serviço do
hospital de São Rufo; logo se fez cônego, depois abade e finalmente se converteu em Papa» . A
lenda converte uma vida realmente assombrosa em matéria de promoção social: Nicolás
Breakspear, filho de um humilde escrivão, quis entrar no monastério do Saint-Alban; impaciente
por ser recebido, dirigiu-se a Paris, onde viveu das esmolas antes de colocar-se ao serviço do
capítulo de São Rufo no Aviñón, onde se fez cônego e logo prior antes de que se fixassem nele
com motivo de um processo com seus cônegos, o que fez que Eugenio III chamasse Roma, onde
lhe nomeou bispo do Albano. Embora a vida do Adriano IV só apresenta uma relação longínqua
com a elaboração do Martín, o certo é que induz a tematizar um aspecto importante da história da
Juana: o papado, poder supremo sobre a terra, pode estar ao alcance de qualquer com o só
concurso da graça e o mérito. Em um mundo tão hierarquizado, a possibilidade de que um
marginalizado (um pobre, ou uma mulher) chegue à cúpula do sistema permite sonhar...
Do Anglicus (o inglês) ao Angelicus (Angélica) há algo menos que uma vocal, embora os tabeliães
medievais estavam acostumados a abreviar essa (e) entre as duas consonantes. Dizemos que há
algo menos que uma vocal porque o jogo ao que se emprestam essas duas palavras tem brasões
de antigüidade e de nobreza, já que se remonta aos tempos do Gregorio o Magno, quem, ao
contemplar aos escravos ingleses, formosos e loiros, que se exibiam no mercado de Roma, ao
parecer exclamou que lhes devia chamar «anjos» mais que «anglos», e tal foi a emoção que lhe
causaram que despertou o desejo de converter às ilhas britânicas .
Mas sigamos, porque uma vez levantada a vedação da casualidade, bem podemos nos permitir
alguns parágrafos de associação livre. A idéia da chegada iminente de uma Papa angélica
(«angelicus Papa») não era precisamente alheia às consciências da segunda metade do século
XIII, como veremos mais adiante a propósito da espera joaquinita e franciscana. Do mesmo modo,
encontraremos mais rastros desta mesma preocupação nos meios heréticos milaneses. Mas
deixemos esta questão para o capítulo seguinte, e assinalemos no momento que o trocadilho
dispunha virtualmente de um espaço de espera, e de recepção. Inclusive poderíamos imaginar
que, em sua lembrança da Juana, o discurso clerical está replicando à profecia joaquinita da
seguinte maneira: nada anuncia uma Papa angélica; todo denúncia uma Papa inglesa e feminina.
O fundamento deste reduccionismo zombador se encontra no evemerismo: em sua História
Sagrada (século III A. J. C), Evhemero faz uma revisão racional dos mitos gregos, demonstrando
que os deuses eram homens divinizados pelo medo ou pela admiração; por outro lado, a apologia
cristã, em suas lutas contra o paganismo e a heresia, ridiculariza a sua vez o evemerismo de
maneira constante.
Na Maguncia, o mistério resulta mais opaco ainda. Imersos ainda no torvelinho analógico,
caçamos ao vôo a Renania das 11.000 vírgenes, escoltadas pela Papa Ciríaco quem, segundo as
visionária Isabel do Schönau (século XII), não figura no catálogo das Papas (ao igual a Juana) por
abandonar seu posto na sede papal. O qual nos faz pensar também na Hildegarda do Bingen,
ativa no século XII não longe da Maguncia, mulher de conhecimento inspirado e de grande
esculpe espiritual, quase papal; como a tantos dos citados, voltaremos a encontrá-la no capítulo
seguinte, embora nada de tudo isto resulta convincente.
E se Martín procedia ao azar das associações, sem parar-se a calibrar seus significados?
Nesse caso, veríamos o sábio dominicano olhando as crônicas de seu tempo e tentando encontrar
a finais do reinado de Leão IV (854) os relatos que marcassem e mascarassem a presença da
Juana; assim encontraria, por exemplo, no Liber do Temporibus (o Livro dos tempos), do Alberto
Milioli, um notário do Reggio Emilia, que no 854, na paróquia da Maguncia, um espírito maligno
que se apoderou dos sacerdotes e dos habitantes da cidade, quando foi expulso dali com água
bendita se refugiou «debaixo da capa de um sacerdote, como se se tratasse de um familiar dele»
(familiaris: é assim como Martín denomina ao amante clerical da Juana) .
Mas esta data de 854, escolhida pelo Martín (?), de onde sai? Juan do Mailly anotou o rumor
sobre a papisa na parte inferior do fólio que tratava das postrimerías do século XI, aproveitando
possivelmente espaços livres, à espera de poder verificá-lo e datá-lo. Por sua parte, Esteban do
Borbón registrou o sucesso ao pé da cifra «por volta de 1100», sem que isso implicasse nenhuma
preocupação cronológica, dado que a forma exemplar não comportava sentido temporário algum.
A facilidade mesma desta metodologia poderia nos induzir a acreditar que Martín, fiel a seu
sistema de paginação, dispunha de 8 linhas para o papado de Leão IV, uma Papa sem história, do
que nada sabia; seu cálculo cuidadoso fazia aparecer, além disso, uma vacante de mais de dois
anos. Mas esta hipótese redutora e preguiçosa não justifica a intuição cronológica do pesudoPapa no século IX, sem maior precisão. Terei que imaginar que Juana, essa figura da desordem,
teve-se que alojar na época interdinástica do Império, entre os carolingios e os otonienses, como
sinal de decomposição e como uma chamada de retorno à ordem germânica?
Detenhamos aqui e agora esta serie sem fim nem razão. O perigo é iminente de continuar nesta
linha, pois corremos o risco de encontrar todas as razões do mundo para situar ao Juan o Inglês
da Maguncia no ano 854, dada a proliferação cancerígena de células microcausales coaguladas e
sem articulação. É neste ponto onde começa esse perigo da historiografia que é a casualidade
contextual. Conhecemos sobradamente seus estragos quando estudamos, nos manuais escolar,
as «causas» de 1789 ou de 1914: tudo converge e portanto nada se explica. O acontecimento
desaparece sob as capas do contexto, que, entretanto, só existe por si mesmo.
É preciso, pois, retornar a certezas mais racionais, examinando a realidade do texto do Martín
o Polonês e o uso histórico que dito texto gerou. Porque, em honra à verdade, Martín não se
contente proporcionando uma identidade e uma coerência à figura da papisa, mas sim atribui uma
função ao relato de sua vida, neutralizando assim uma vez mais o veneno do rumor.
Do exemplum ao caso jurídico-histórico: Martín o Polonês (por volta de 1279) (Forma 3)
O episódio foi tratado como se fora um caso da história, e o jogo sutil dos gêneros assim o
manifesta. Em tanto que pseudo-Papa (chamado sem número de ordem na sucessão do Pedro), o
sujeito do relato atua em masculino (Iohannes Anglicus... mortuus est), e em sua condição de
indivíduo particular se apresenta como feminino (ductA... sepulta). O relato, em soma, representa,
dentro da história papal, um caso de não legitimidade, ressaltado aqui pela femeneidad do sujeito,
e em outros contextos por motivos diversos. Esta orientação histórico-jurídica se adverte com
identidade claridade na forma em que se desculpa a cúria. Para o Esteban do Borbón, tratava-se
sobre tudo de proteger a pureza do âmbito romano, e neste sentido Martín parece esforçar-se por
afirmar a preteridad da premeditação: Juana se deixa seduzir a uma idade temprana («in aetate
puellari»: em sua adolescência), muito longe de Roma (seu amante lhe leva desde a Maguncia até
Atenas), e depois da eleição romana, o pai da criatura era esse mesmo amante (e não um
romano). Inclusive a própria eleição parece algo perfeitamente regular e sincero: «porque sua
conduta e sua ciência gozavam de uma grande reputação na cidade, foi eleita Papa por
unanimidade (concorditer).» A conclusão que se extrai da notícia não guarda já relação alguma
com a moral (ao contrário do que acontece nos textos do Esteban do Borbón e do Jacobo de
Voragem), a não ser com o tema da legitimidade papal: depois de assinalar o desvio das Papas
durante as procissões (lição positiva e institucional), Martín conclui seu relato com uma referência
à invalidez do reinado (lição de direito canônico aplicado): «Não lhe tem inscrito no catálogo dos
Santos pontífices por causa da disconformidad que supõe o sexo feminino nesta matéria ("propter
mulieris sexus quantum ad hoc deformitatem": o vocabulário é claramente jurídico)». Martín
resolve um caso: um indivíduo ineligible, embora seja eleito legalmente, não goza de nenhuma
legitimidade. A lição teria sua importância um século depois, no momento do Grande Cisma.
Um dos primeiros cronistas em seguir o caminho esboçado pelo Martín o Polonês foi
Godofredo do Courlon, quem, em sua Crônica da Abadia do Saint-Pierre-o-Vif, no Seus, concluída
por volta de 1290, relata o episódio da papisa em términos muito parecidos, com um título
indicativo de dita orientação jurídico-histórica: «Engano à Igreja romana (Deceptio Ecclesiae
Romanae)» 38. Pela primeira vez, a exposição do caso aparece acompanhada da indicação da
medida preventiva que se feito necessária pelo abuso de confiança, pois, em efeito, Godofredo
menciona o uso da cadeira perfurada, destinada à verificação da virilidade das Papas, como
vimos no primeiro capítulo.
portanto, na soleira do século XIV, o estilo narrativo do caso orienta a história da Juana para
um uso da mesma em sentido jurídico-histórico, que, contrariamente ao emprego exemplar, retém
o relato dentro do âmbito eclesiástico, pelo menos enquanto os debates sobre a autoridade papal
sigam sendo matéria interna da Igreja romana.
Acreditar na Juana?
A história da Juana dentro do discurso da Igreja bem poderia deter-se aqui, já que da narração do
Martín até 1450, aproximadamente, o relato canônico se repete, parafraseia-se e se resume sem
grandes mudanças ao longo de inumeráveis crônicas. Não se expõe tampouco nenhuma duvida a
respeito da existência da papisa; a apresentação quase jurídica do caso Juana lança a nossa
heroína às controvérsias dos séculos XIV e XV, sem que fique em dúvida seu estranho passado.
Esta adesão geral parece singela e clara, porque se fundamenta em uma lógica cultural sólida;
assim, o acontecimento inquietante e escuro atribuído aos laicos Jansen Enikel e Jacobo vão
Maerlant dificilmente podia comportar nem sentido nem prestígio, do momento em que a anedota
estava evocada a crescer e multiplicar-se graças à rede a Dominica de difusão, onde nada se
perde e tudo tem sentido. Para que isto fora assim só bastava que o fluxo passasse por um
grande transformador: em 1280 foi Martín o Polonês; 20 anos antes tivesse sido Jacobo de
Voragem. Recordemos, por exemplo, que a lenda de São Cristóbal Cristóforo, procedente dos
longínquos limites hispanos da liturgia mozárabe através de vias misteriosas, apareceu na Lenda
Dourada, e invade após todo Ocidente, passando por verídica até nossos dias (concretamente até
que Juan XXIII a eliminasse brutalmente do calendário cristão). Como vimos, este processo de
difusão não se reduz a uma reprodução automática: no laboratório dominicano, a história já tinha
sofrido uma primeira transformação de caráter exemplar, ao objeto de depurar a de seu conteúdo
inquietante. Por sua parte, o trabalho do Martín o Polonês a sustrae de um contato possivelmente
perigoso com o público de fiéis (o sermão que acolhe o exemplum), para lhe proporcionar um
lugar na história eclesiástica, essencialmente reservada às gente da Igreja. Em soma, um sujeito
coletivo, autor (origem e garantia, segundo o dobro sentido latino da palavra autor) do episódio,
constituído pela ordem a Dominica, e localmente individualizado em sujeitos secundários
eminentes (Juan, Esteban, Jacobo, Martín) fixou a anedota ao dirigir-se a um sujeito coletivo
ouvinte (a Igreja) depois de receber uma forma adequada e propícia para a difusão. A adesão se
perde por volta de 1450, com o desmoronamento progressivo dos dois sujeitos coletivos sob os
assaltos prereformistas (a revolução husita).
De todos os modos, não podemos evitar uma questão essencial: acreditaram as gente do
medievo (quer dizer, os homens da Igreja entre 1280 e 1450) na história da Juana? No momento,
nossa análise não pode abandonar a ambigüidade:
— Por um lado, não expõe o tema da crença: Juan do Mailly registra o rumor e discrepa sobre
sua veracidade («Requer», «para verificar»). Esteban do Borbón situa a história em um âmbito
moral onde o sentido importa mais que a verdade: ao lado de anedotas que apresenta como
autênticas, relata numerosas fábulas esópicas; quando narra a história do leão, do lobo e da
raposa , sabe que a fábula não é certa do ponto de vista referencial, a não ser metafórico. É farto
provável que, para o Esteban, a vida da Juana a presunçosa revista mais reflexos de realidade
que a do leão abusivo, mas também é certo que neste amplo espectro da veracidade exemplar,
sua crença, ou a de seu leitor, não é pertinente. No caso do Martín, já havemos dito que o aspecto
jurisprudencial da narração induz à neutralização do tema da crença.
— Por outra parte, a história eclesiástica pretende dizer o que é verdade; a precisão da notícia
do Martín (nome, data, inserção na série exata das Papas, lugares de nascimento e de escândalo,
razões da ausência da Juana nos catálogos) gera um «efeito de realidade». Mas, além disso,
encontramos aqui de novo a forte binaridad da que tentamos fugir: no 854, Juana-Juan reinou ou
não reinou! Por outro lado, até 1450, ninguém tinha pretendido que não tivesse reinado. A
neutralização da crença traduziria simplesmente um esforço de aclimatação, quer dizer uma certa
argúcia com a crença.
Mas em realidade, o tema apresenta mais complexidades ainda. Sem dúvida, nunca saberemos o
que na verdade se acreditava entre 1280 e 1350, pois apenas se conseguimos apreciar mais que
aquilo que se oferecia como crença. Sabemos acaso nós o que nós mesmos acreditam? Que
parte corresponde à crença, entre o que é conhecimento direto ou o indireto («O gato está no
felpudo», ou «A água ferve a 100 graus centígrados»), os gostos ou as certezas estéticas, as
conivências morais ou sociais, os costumes de pensamento ou de linguagem, tão fáceis de
sacudir, tão fáceis de reconstruir? Esse alcatrão móvel, que rapidamente se incrusta no postigo do
real, atua com freqüência como morteiro da crença.
Não obstante, tentemos discernir qual é o tema objeto da crença medieval.
Excursus comprido, mas necessário, sobre a fé na Idade Média
O pretender a estas alturas atribuir à história (neste caso à crônica das Papas e imperadores
composta pelo Martín o Polonês) um estrito caráter de veredicto parece anacrônico. A história, ao
igual à anedota ou a lenda, diz uma verdade possível, facultativa e permutável. Na história papal
temos um exemplo singelo. A Papa do ano mil, Silvestre II (Gerberto do Aurillac) tem uma
existência histórica bem estabelecida. As crônicas medievais (sem maior precisão cronológica, já
que a data de redação não é pertinente aqui) alternam regularmente duas versões opostas de sua
vida: Silvestre foi uma boa Papa, sábio e cuidadoso com os bens da Igreja; formou a dois grandes
monarcas (Roberto da França, chamado o Piedoso, e Otón da Alemanha), a quem ensinou a
respeitar a sua Santa mãe a Igreja. Ou, Silvestre foi uma Papa diabólica, que assinou um pacto
com Satã, entregando sua alma ao Maligno em troca do domínio das artes maléficas, e que além
disso tentou rachar a venerável instituição da Igreja. Seu castigo ilustra a derrota do diabo: ao
Gerberto lhe predisse que morreria em Jerusalém, e em conseqüência o ímpio pontífice se
guardou muito muito de realizar a santa peregrinação, embora morreu esmagado sob as ruínas de
San Juan de Jerusalém, uma igreja romana que se desmoronou sob os golpes da divina
providência.
É importante destacar que ambas as versões se referem a feitos e não a julgamentos ou
valorações, de maneira que nos encontramos novamente ante a binaridad do verdadeiro e do
falso. Aqui, quer dizer nesta partilha, a polêmica não intervém para nada, ao contrário do que
ocorre no caso do Gregorio VII (Hildebrando, também conhecido como Brandellus ou Merdellus),
a quem seus adversários da corte imperial acusaram de toda sorte de pecados. Porque a partilha
das versões se produz de uma maneira quase aleatória, inclusive quando o cronista dispõe de
duas versões. Nada o prova melhor que a crônica papal do dominicano Leão do Orvieto, escrita
por volta de 1315. O próprio Leão afirma que Martín o Polonês é sua fonte principal, e de fato, o
capítulo que dedica a Juana é uma cópia textual da notícia do Martín. Nesta mesma ordem de
coisas, o que segue do Martín (1278-1315) parece-se bastante a uma crítica em relação ao
papado, já que, como veremos mais adiante, o capítulo que escreve sobre o Bonifacio VIII está
redigido em términos verdadeiramente ferozes. portanto, sobram-lhe razões para recopiar ou
resumir o texto do Martín quem, depois de muitos outros, transcreve deste modo a versão
malvada da vida de Silvestre II. Para isso escolhe a versão mais elogiosa das existentes, mas
sem explicar as razões de sua eleição. Nunca poderemos conseguir penetrar na consciência de
Leão do Orvieto, dominicano cuja personalidade permanece escura e do que só conhecemos algo
de sua carreira dentro da Ordem e uma única obra, que chegou até nós também em um solo
manuscrito, sem dúvida autógrafo . Mas o que sim parece certo é que Leão, como tantos outros
autores, concebia a história como um recipiente narrativo, alheio a toda verdade dada ou
comportada.
A tradição narrativa (histórica ou legendária) não constitui o corpus fechado e delimitado do
verdadeiro, nem sequer do provável; o que a história oferece é um material indeterminável que
adquire tinturas de verdade mediante uma série de operações significativas que são, a sua vez,
contratos de vericidad.
Como vimos, a forma mais singela destas operações vincula ao redator da narração com seu
leitor ou com seu ouvinte, quem recebe uns elementos que ele deve avaliar a sua vez. Jacobo de
Voragem não duvidava na hora de relatar um episódio fabuloso ou apócrifo, e assim o indicava a
seu leitor. Um século mais tarde, por volta de 1340, quando o dominicano Pedro Impregno se
refere a um Natal de São Esteban, que não figura nos textos canônicos, diz: «quis mencionar aqui
esta história apócrifa, deixando ao leitor a tarefa de julgar» .
Por outro lado, o recopilador se autoconfiere um índice de verdade, situando assim o relato em
uma escala dobro de valoração: em relação com sua fonte (escala de garantia) e em relação com
o uso que faz de seu texto (escala de implicação).
Percorramos a primeira escala. Na cúspide encontramos o revelado, reduzido a um texto
escritural, embora a questão exposta pelos apócrifos contribui com limites incertos a dito domínio.
A seguir se encontra o que chamaremos o autorizado, quer dizer, aqueles relatos narrados pelos
pais da Igreja beneficiários de uma autoridade indisputável, mas onde também parece difícil
estabelecer os limites com claridade. Segundo uma antiga tradição, confirmada posteriormente
pelo Migne, a patrología termina com São Bernardo; mas se tivermos em conta que não se pode
rechaçar totalmente a um pai, então o último seria o Venerável Beda. Logo passamos ao
autentificado, em cujo caso a autenticidade do episódio procede de um contrato de crença que se
negocia cada vez. Isto é, quem oferece a garantia é o próprio narrador, que arrisca sua própria
credibilidade (ao dizer: «vi», «constatei») ou a da testemunha, vivo ou textual, que interroga.
Quando Guiberto do Nogente autentifica em De Veta Sua (1115) a lenda do rei Quilio, está
confirmando uma tradição oral (uma «história») com inscrições da igreja do Nogent . O valor moral
e religioso do testemunho equivale, pelo menos, ao da confirmação apoiada nos textos, paridade
destacada já a princípios do século XIV pelo franciscano inglês Juan Lathbury quando informou
sobre um milagre da Virgem: «Porque o ouvi que um homem digno de fé, em cuja palavra acredito
(ouadhereo") tanto como em um caderno ("quaterno"). Em outro momento, e a propósito de outra
lenda, o mesmo John Lathbury diz: «Um cavalheiro venerável, cuja Santa vida dá autenticidade a
suas palavras, contou-me isso com espírito devoto» . Resulta significativo que em ambos os
casos a anedota mencionada seja, em realidade, muito antiga (mas sabia o franciscano?). O meio
importa mais que a tradição. Não obstante, terá que destacar deste modo um término essencial do
contrato de crença: o significado, já que também ele confere autenticidade; quer dizer, a intenção
do cavalheiro («devote»: com espírito devoto) importa tanto como os bons costumes. Pela mesma
razão que, na história do rei Quilio, esse pagão que, só e sem apoio algum (como pretende
Guiberto), encontra a fé incluso antes da Paixão de Cristo, o significado no que se projeta o
próprio Guiberto confere autenticidade ao relato, e portanto terá que respeitar a ambivalência que
se desprende da frase do Guiberto quando afirma que os textos das inscrições «roborant fidem»:
a um mesmo tempo, confirmam a confiança («fidem») que terá que outorgar, e fortificam a fé
(«fidem»). Este mediante contrato entre a testemunha e o recopilador (ou o redator), o
autentificado se destaca sobre a massa imensa e instável do alegado («dicitur», «fertur»), em cujo
caso nos encontramos com a postura do Pedro Impregno ou do Jacobo de Voragem, assinantes
ambos de um contrato com o leitor. Alegado-o que se oferece, embora seja sem garantias, não
fica excluído do âmbito legendário como ocorre com o fabuloso, posto que determina uma zona
escura e forte de crença, a da história verdadeira no fundo (além da veridicción formal, que todo o
comporta, no trasfondo). Aproxima-se então ao rumor, uma forma oral e instável do alegado, e
onde as garantias se esfumam («certamente, naturalmente», diz-se com uma piscada) e portanto
mais fortes: aqui o contrato beneficia nitidamente ao «bom entendedor»; a lenda do Judas do
século XII, por exemplo, é um exemplo perfeito da proximidade que existe entre o rumor, alegadoo e o autentificado. E quando a Igreja quer dissipar um rumor se vê obrigada a recorrer a uma
contra-autentificación. Tal é o caso da Papa Inocencio IV, quando, em 1247, dirige aos bispos da
Renania a bula Lacrimabilem ludaeorum ao objeto de afirmar que a história da partilha ritual do
coração de um menino cristão pelos judeus é uma fábula .
Paralelamente, uma segunda graduação compreende o índice dos relatos segundo a natureza de
seu uso; assim, e seguindo uma ordem descendente, distingue-se a liturgia ou a paraliturgia
(referimos às colações monásticas ou às leituras de refeitório), a leitura devota transcrita (quero
dizer o que se julga digno de ser recolhido por escrito, e que portanto goza de um prestígio
importante), os sermões (onde cabe distinguir entre a forma oral, mais livre, e seu trasposición ou
reescritura), a celebração institucional (a que cabe integrar as crônicas eclesiásticas), e, por
último, a controvérsia ou a discussão moral (a que se referem os exempla não teológicos). Os
últimos graus do uso narrativo neutralizam a questão da autenticidade e da significação da lenda.
Além disso, a história da papisa se inserida em categorias que se encontram na parte inferior
dessa dobro escala de verdade, dentro do relato histórico alegado. Não se rechaça porque não se
apresenta como irrechazable. No contexto do discurso clerical da Idade Média, o relato vale tanto
por seus efeitos como por suas causas: verdadeiro a momentos, significativo ou ilustrativo, o certo
é que roça os limites do psicanálise; mas, inclusive nesse caso, o relato retomado e reinterpretado
sem cessar, encerra uma verdade que não é nem literal nem original, a não ser secundária e
construída; assim, o relato transitivo e transicional tem mais atividade que representação.
Esta plasticidade da verdade não guarda relação alguma com uma inconsistência que
redundaria em um relativismo generalizado; como havemos dito já, ressurge à luz das condições
particulares da Revelação no cristianismo: a verdade não está cristalizada em um texto porque
Deus veio ao mundo para revisar o antigo pacto. Tal é o drama e tal é a grandeza da Encarnação
cristã: a verdade se mescla com a história no tempo, sem precedê-los nem dominá-los. Durante a
época de Cristo se manifestou com a celeridade de um meteoro, sem que pudesse determinar-se
com exatidão que fragmentos e que traços luminosos lhe pertenciam; terei que esperar ao século
VI para que o decreto pseudogelasio tente fixar o corpus da Revelação. É verdade que a herança
mística e espiritual arrasta às Papas e aos doutores da Igreja pela singladura do meteoro, mas
não há nada seguro neste sentido, como se desprende dos debates sobre a infalibilidade papal,
que começam no século XIII e concluem em 1870! É possível que alguém nos reprove que neste
ponto nos deslizamos da verdade narrativa para a verdade doutrinal, mas não é fácil distinguir
entre estes dois âmbitos dentro de um universo cujo texto institucional é nada menos que um
relato de vida.
O mistério da Encarnação multiplica, pois, as possíveis fontes de verdade, de maneira que a
incerteza e a intolerância que encontramos na Igreja medieval (um florilegio narrativo e doutrinal
dos doutores ortodoxos confirmaria esta qualificação aparentemente provocadora) são também
conseqüência dessa superprodução de verdade. Por isso, em não poucas ocasiões se confundiu
com excessivo ardor (às vezes violento e literalmente incandescente) a convicção e a teimosia
doutrinal, pois a verdadeira teimosia ao espírito da verdade se encontraria mas bem nessa atitude
de indiferença que aconteceu ao dogmatismo postridentino.
Em conseqüência, e à vista do exposto, devemos entender a crença, ou melhor dizendo a fé,
medieval como uma série de contratos assinados entre um sujeito (individual ou coletivo) e um
fiador extraordinariamente variável pela amplitude de sua projeção (Deus autor), cujo único
constituinte indispensável é a Sagrada Escritura, em que podem incluir-se os pais, a tradição, o
Papado e o Espírito Santo (que sopra onde ele deseja).
A verdade da Juana não é, pois, uma verdade deposta, mas sim está constantemente incluída,
ajustada, modulada, mas em nenhum caso rechaçada. Assim, esta verdade passa a um discurso
clerical indefinidamente flexível e conjuntivo, muito modalizado (a maioria dos narradores
resenham a história servindo-se de «dicitur»... «fatentur», «conforme se diz»), e ao mesmo tempo
segmentado: a anedota se fragmenta e se recompõe conforme o requeira o sentido que lhe queira
dar. Desde esta perspectiva, o melhor exemplo do dito seria a segunda versão atribuída ao Martín
o Polonês: a papisa não morre sob o maço da justiça romana, mas sim, uma vez deposta,
arrepende-se, e seu filho chega a ocupar o bispado da Ostia. depois da morte piedosa da Juana
se produzem numerosos milagres em sua tumba. Nesta versão, o caso da Juana se inserida na
grande tradição hagiográfica das pecadores arrependidas , pois dito discurso clerical pode
englobá-lo tudo e assimilá-lo também tudo. Em términos hegelianos diríamos que se trata de um
discurso sem negatividad, sem reversos, enquanto não se encontre o discurso oposto de uma
oposição forte e competitiva, e até que dito discurso não se choca com a Reforma.
O século XIII multiplicaria ainda mais as virtualidades de manifestação nova da verdade, com
um movimento alternativo de expansão e de contração.
Desde finais do século XII, o Espírito Santo sopra com expirações redobradas. Mas não é este
o lugar mais adequado para confeccionar o inventário amplo e impressionante dos diferentes
profetismos que afloram em plena Idade Média, esses autênticos «poderes informais», por
empregar a sagaz expressão do André Vauchez . Por isso, mencionaremos somente a enorme
ressonância que em seu dia obteve a obra profética do Joaquín do Fiore (por volta de 1140-1202),
esse cisterciense calabrês que obcecou as consciências medievais. Joaquín anunciou para o ano
1260 a chegada do fim do mundo e da última revelação: depois do livro do Pai (Antigo
Testamento) e do livro do Filho (Novo Testamento) devia escrever o livro do Espírito Santo, esse
Eterno Evangelho que em 1254 acreditou redigir o franciscano Gerardo do Borgo São Donnino.
Com o profetismo, a verdade cristã se difundia mediante engaste sucessivos, sistema expansivo
no que, como veremos, a papisa encontrou seu sítio.
Pelo contrário, o âmbito da verdade garantida podia contrair-se, no sentido de que, como
demonstrou o pai Chenu , do século XII a teologia se configura como ciência. Nesta ordem de
coisas, podemos dizer que ali onde o espírito profético acrescenta, a ciência teológica recorta,
chegando inclusive a ameaçar o venerável texto da Revelação, como assinala por sua parte
Bernard Guenée a propósito do Bacon e do Pedro do Ailly. O franciscano Rogerio Bacon (12101292) «tinha estabelecido com numerosas provas que em sua tradução latina da Bíblia,
constituída pela Igreja em versão oficial da Santa Escritura, que era a Vulgata, o ilustre doutor
(Jerónimo) equivocou-se ou não havia dito tudo ou tinha acrescentado ao texto» . O contrário do
Rogerio Bacon, em sua condição de leitor, só lhe vinculava ao autor do texto hebraico ou grego, e
excluía à venerável tradutor. Evidentemente, seria absurdo por nossa parte transformar ao ilustre
e sutil Bacon em um integrista reformado, pois embora seu grande conhecimento constituía uma
honra para os doutores da Igreja, o certo é que seu desejo de aprofundar em dito conhecimento
tinha que ver com a vontade de fortalecer sua própria fé com novas ataduras. B. Guenée
conseguiu identificar a resposta que recebeu Rogerio Bacon, um século mais tarde, do prudente e
ortodoxo teólogo Pedro do Ailly (1351-1420), em sua Carta aos novos hebreus: «A obrigação de
acreditar em uma autoridade humana não é absoluta: com isso não arriscamos nossa salvação
(nulla auctoritas humana firmiter est credenda de necessitate salutis)... Para salvar-se, o que terá
que acreditar de forma absoluta é a autoridade da Igreja cristã (auctoritas ecclesiae christianae a
quolibet firmiter credenda est de necessitate salutis)» . A postura que adota Pedro do Ailly permite
salvar a figura do Jerónimo, cuja tradução conta com a garantia da Igreja, embora logo que
delimita o campo da verdade: onde?, em que textos reside a autoridade da Igreja? (nos concílios
antigos? nos concílios atuais? na Papa? na cúria? nos pais da Igreja?). A questão que aqui se
expõe não é fútil, e de fato rasgará à Igreja do século XIV.
A formulação do Pedro do Ailly confima nosso modelo de escalas e sistêmico, da veracidade
na Idade Média: segundo este teólogo, a verdade do Jerónimo é provável por si mesmo, embora
resulta uma verdade absoluta dentro do sistema da verdade eclesiástica. A crença medieval não
se centra analiticamente em tal ou qual objeto, daí que a adesão a Juana apareça em sistemas de
verdade tão exclusivos como os do Ockam, Wyclif, Juan Hus ou Dietrich do Niheim. Mas, além
disso, Pedro do Ailly chega a definir a fé vigorosa como componente necessário para alcançar a
salvação: não há salvação sem uma fé justa e boa. A originalidade de semelhante concepção
radica em conjuntar o possível e o necessário; dando a volta a uma formosa fórmula do Daniel
Melo, poderíamos dizer que a fé religiosa medieval se estabelece quando «o possível aspira ao
necessário para escapar do aleatório» .
Fortuna da Juana
Esta excursão larga pelos domínios das crenças medievais nos permitiu apreciar em suas justas
proporções o imenso êxito alcançado pela história da Juana, história situada pelo Martín o
Polonês no nível mais desço da escala da fé, mas entre um conjunto setorial manipulado sem
cessar (a história eclesiástica) para fundar sistemas de salvação. A versão do Martín se difunde,
pois, ampliamente nos discursos da Igreja até o 1450 aproximadamente; como veremos, esta
soleira coincide com uma quebra profunda no seio da organização católica. Juana nos ajudará a
avaliar o significado deste giro. Mas a força dos hábitos mentais tinha ainda fôlego suficiente para
seguir contando a vida da papisa para cá e acolá, dentro da própria Igreja católica, até finais do
século XVI, inclusive quando se multiplicavam os rechaços, e inclusive quando os reformistas se
apropriavam da história a modo de argumento antirromano. Por volta do 1550, o dominicano
Bartolomé da Carranza († 1576) cita a Juana em seu Summa omnium concilorum («Soma de
todos os concílios»), embora é certo que seu comentário desvaloriza o relato: «fala-se deste
assunto corrientemente mas com a só garantia de autores incertos e escuros» (a fórmula pertence
a Platina, mas foi deslocada do rito de verificação incluso em vida da Juana) , embora se mantém
o relato. Em 1576, Juan Rioche, franciscano do convento do Saint-Brieuc, em Bretanha, menciona
o episódio dando crédito a sua veracidade: «Embora Platina e a Soma dos Concílios (a obra do
Bartolomé da Carranza) afirma que não terá que acreditar nele, a Igreja universal dá testemunho
deste acontecimento .
Acertos
Resultaria tedioso analisar todas as aparições clericais da vida da Juana entre 1280 e 1450 (ou
1500) que formam um corpus representativo de extensão indefinida. Por isso, contentaremo-nos
assinalando rapidamente as grandes linhas da difusão alcançada pelo texto do Martín o Polonês.
Às vezes, os cronistas se contentam a sua vez com recopiar literalmente o texto canônico. Tal é o
caso do dominicano Leão do Orvieto (por volta de 1315), do beneditino inglês Ranulfo do Higden
em seu Polychronicon (por volta de 1330) , dos interpoladores anônimos do Liber Pontificalis
(principio século XIV) e da crônica do Ricardo do Poitiers.
Por outro lado, os autores se limitam freqüentemente a oferecer uma menção breve da história,
em que resumem com traços enérgicos os supostos do relato do Martín. De fato, este é
precisamente o procedimento empregado pelos interpoladores do século XIV, que copiavam
crônicas antigas (Mariano Decoto, Sigiberto do Gembloux, Otón do Freising, Godofredo do
Viterbo, Gervasio do Tilbury, etc.). Este tipo de resúmenes, inumeráveis, produz-se até o século
XVI (Chronica do monastério do Hirsau do beneditino alemão Juan Tritemo (1462-1516) ou as
Eneadas do veneziano Marco-antonio Sabelico (1436-1506)).
Também caberia citar as muito numerosos adaptações vernáculas que surgem especialmente
nos países germânicos. Dado que a relação deste material é tediosa por sua aridez, remetemos a
crono-bibliografia sobre a Juana que apresentamos ao final do livro a modo de anexo.
Por último, estão os cronistas que parafraseiam ao Martín, sem modificar os conteúdos
essenciais de seu relato. Do trabalho destes parafraseadores só referiremos a algumas variantes
significativas, passando deste modo pelas deformações que introduzem os copistas, por enganos
em ocasiões importantes (o dominicano Jacobo do Acqui, por volta de 1370, fala de 19 anos de
papado da Juana!), ou por acertos estilísticos (a versão de Platina, de 1472, não contribui nenhum
dado novo, exceto a elegância de seu latim de humanista).
Considerando o conjunto destas fontes, podemos advertir certa preocupação comum por
racionalizar quanto se refere à identidade da Juana. Os leitores do Martín se interrogaram a
respeito da dobro denominação da Juana (o Inglês da Maguncia), que encerra uma contradição
geográfica. O ilustre dominicano Bernardo GUI (1261-1331), no catálogo das Papas que publicou
na margem de seus volumosos Floresça Chronicarum, por volta do 1315, copia ao Martín, mas
substituindo o «Anglicus» (o inglês) pelo «Teutonicus» (o alemão). Não obstante, os intentos de
racionalização não obtiveram nenhum êxito, dado o arraigo e a autoridade do Martín o Polonês (a
menos que se sospechara/temiera uma excessiva germanización de dita papisa!) . Depois,
numerosos autores resolveram a contradição sem modificar o apelativo, mas omitindo um dos
dois elementos; assim, Juana é o inglês para o Tolomeo da Lucca, Antonio de Florência, Juan
Rioche, etc., ou o «maguncino» no Eulogium historiarum ou para o Dietrich do Niheim.
A previsão cronológica que propõe Martín sugere a inserção numérica e nominal da Juana no
catálogo papal, embora o dominicano se apressa a indicar que a papisa não figurava em dito
catálogo (o que justificaria sua ausência em documentos anteriores). A papisa foi batizada pelo
Martín com o nome do Johannes» (Juan), nome que se corresponde a sua vez com a face
institucional e masculina-neutra do personagem. Toda a tradição católica conservou este nome, e
só aparece em sua versão feminina da Juana nos textos laicos e novelescos dos que nos
ocuparemos no capítulo seguinte. As únicas exceções são Wyclif e Juan Hus, quem se refere em
suas obras a Ana e ao Inés, respectivamente. Ambas as exceções, a do inglês e a do boêmio, têm
que ver com um movimento prerreformista do método católico, sobre o que voltaremos mais tarde.
Baste citar no momento o comentário que nos fez Robert-Henri Bautier sobre o particular: «o fato
de que em alguns textos lhe chame (a papisa) Ana ou inclusive Inés terá que atribui-lo à
deformação que intervém nas mesmas condições que rodeiam o caso da rainha da França, Ana
do Kiev: para alguns cronistas do século XI, Ana se converte no Inés e para outros na Juana» .
Mas para nossos cronistas católicos, Juana segue sendo Juan, a Papa-mulher.
A promoção nominal da Juana se produz rapidamente, já que o dominicano Tolomeo da Lucca,
discípulo tardio e continuador de Santo Tiram do Aquino, erudito respeitado, em sua História
Eclesiástica (por volta de 1312), confere-lhe o título do Juan VIII, e lhe atribui o lugar 107° na linha
de sucessão papal, antes de parafrasear quase textualmente o texto do também dominicano
Martín . Por sua parte, Bartolomé da Carranza e Juan Rioche mantêm sorte titulación, enquanto
que em outra tradição aparece com o nome do Juan VII; tal é o caso do Eulogium Historiarum
(1362-1366), crônica inglesa, ou a já citada História das Papas de Platina (1472). Em realidade, a
atribuição de um sítio entre os Juanes não expor nenhum problema historiográfico, pois bastava
condensando a dois Juanes anteriores em um só (afirmando de passagem que a volta de uma
Papa exilada tinha criado sorte confusão), ou eliminar a um Juan duvidoso ou cismático. Inclusive
hoje, a erudição contemporânea, embora por um lado se mostra categórica no tema dos Juanes,
por outro alberga dúvidas no que se refere aos Esteban, aludindo neste sentido a uma numeração
dobro (Esteban III/Esteban IV). Mas sorte integração não obteve o reconhecimento universal, e
muitos autores rechaçaram ambas as atribuições, ou pelo menos uma delas, a numeral ou a
nominal. Em 1340, o franciscano Juan do Winterthur apresenta em sua Crônica uma lista de 197
Papas, até o Gregorio X: «excetuando a Linho e ao Cleto, assim como a uma mulher que não foi
computada» .
A esta aspiração por conseguir certa coerência histórica, veio a acrescentar uma busca da
confirmação referencial. Martín já tinha indicado a via (?), ao assinalar como testemunho
permanente da história da Juana o desvio romano que realizavam as Papas, e do que nos
ocupamos abundantemente na primeira parte. Os cronistas repetiram constantemente esta
menção, verificada por outra parte pelo próprio ritual, até o reordenamiento das ruas que
conduziam ao Letrán. Como resultado de sua volta fracassada a Roma, no 1368, Urbano V se
negou a efetuar dito desvio, embora sua atitude implicava menos um rechaço da realidade da
Juana, que o desejo, quase necessidade, íntimo de comemorar sua própria figura na lembrança
de uma cidade, Roma, que ansiava reencontrar com toda sua pureza primitiva, depois de tantos
anos no Aviñón: «De ali (desde o Letrán), retornou ao palácio (do Vaticano) pacífica e
tranqüilamente, cavalgando através da cidade e seguindo o caminho mais direto, sem trocar de
direção em lugar algum, embora este tivesse que ver com essa mulher louca da que se diz que
um dia ocupou o pontificado e iluminou a seu feto nessa mesma rua; conta-se que alguns de seus
predecessores (de Urbano V) sim efetuaram dito desvio». O certo é que tanto o texto do Martín
como a disposição material das ruelas que rodeiam São Clemente fixam o começo do desvio;
assim, em 1486, e pelo que conta em seu Jornal, o mestre de cerimônias papais Juan Burchard
quis suprimir o desvio comemorativo com ocasião de uma procissão encabeçada pelo Inocencio
III; a pesar do apoio que lhe emprestou o bispo da Pienza, Burchard não pôde evitar que caísse
sobre ele a cólera violenta do Rinaldo Orsini, arcebispo de Florência.
Os leitores do Martín completaram sua informação assinalando a sua vez a existência da estátua
de mármore (Jacobo de Voragem, por volta de 1295; Sigfrido do Balhusen, por volta de 1304; etc).
O anteriormente chamado Dietrich do Niheim aponta que dita estátua existia ainda em sua época
(«adhuc»), enquanto que Martín Lutero pretende havê-la visto durante sua viagem a Roma em
1510, e assim o faz constar em seus Bate-papos de sobremesa (tischreden). Mas Dietrich do
Niheim ainda acrescentaria outra prova de caráter referencial, já que, em sua Crônica dos
imperadores alemães, a história da Juana constitui uma glosa da escola grega de Roma, onde
exerceram o magistério São Agustín e Juana.
A fórmula das 6 P e o esquecimento da tradição franciscana.
Não obstante, em um momento cedo desaparece da literatura juanista um parâmetro
referencial. Este esquecimento merece que nos detenhamos avaliá-lo ampliamente, já que nos
põe sobre a pista de uma reinterpretación total da história clerical da Juana.
Recordemos que Juan do Mailly, e logo seu leitor Esteban do Borbón mencionam uma
inscrição lapidária com seis P iniciais, que comemorava a iluminação da papisa. Martín, leitor a
sua vez do Esteban, descartou essa comemoração de seu próprio relato; portanto, era muito
possível que o detalhe desaparecesse, do momento em que Martín «substituía» e aperfeiçoava a
versão do Esteban no âmbito da rede a Dominica de difusão. Não obstante, e como já vimos, por
volta de 1260, aparece uma versão franciscana da história da papisa, completamente
independente da tradição a Dominica, em uma crônica composta no Erfurt: «Houve ainda outra
pseudo-Papa, cujo nome e data de papado ignoramos. Em efeito, era uma mulher, e pelo que
contam os romanos de uma grande beleza, de uma ciência considerável, e, sob uma aparência
enganosa, de conduta perfeita. ocultou-se sob um disfarce masculino até que foi escolhida Papa.
No curso de seu pontificado, concebeu e, quando ficou grávida, o demônio revelou o fato a todos
publicamente em um consistório, lançando à Papa o seguinte versículo: "Papa, Pai dos Pais,
Publica o Parto da Papisa" (Papa, Pater Patrum, Papisse Pandito Partum)».
Esta versão do episódio contava com menos possibilidades de difusão, apesar de apresentar
um grau de elaboração quase idêntico ao do Juan do Mailly: a rede a Dominica, através do
Esteban do Borbón e do Martín o Polonês (1260, e logo 1280) deixou atrás aos franciscanos,
ordem muito pior equipada para a difusão dos textos.
A única referência conhecida da versão do Erfurt se encontra no Compendium historiarum
(compêndio de histórias) do Sigfrido do Balhusen (ou do Meisnen), quem por volta de 1304
recopia a notícia do Erfurt, contentando-se acrescentando uma menção da estátua de mármore,
mais precisa que a do Jacobo de Voragem: «Após, em Roma se acostuma, em uma praça da
cidade, uma figura (symulacrum) vestida com roupas papais, esculpida sobre uma parede de
mármore, com uma imagem de menino». Sigfrido, clérigo que não franciscano, e autor bastante
escuro, tomou esta notícia devido sem dúvida a seu desconhecimento da obra do Martín o
Polonês, e também à proximidade geográfica entre a Turingia (lugar originário da Crônica do
Erfurt) e seu Misnia natal, que no século XIII se achavam reunidas sob o margraviato dos Wettin.
Entretanto, a obliteração a Dominica da tradição franciscana não foi total. Em 1290, uma crônica
franciscana, muito estendida pela Alemanha e continuada em várias ocasiões, as Flores
Temporum (as flores dos tempos), reproduz quase textualmente o relato do Martín. Dez anos
antes, as Flores tivessem podido desempenhar o papel do Martín assim que se refere à história
da Juana; mas depois da atuação do Polonês terei que ajustar-se à tradição canônica. Não
obstante, o autor anônimo acrescenta a esta notícia a entrevista da fórmula das seis P, segundo a
versão do Erfurt, completada e perfilada; retoma o texto e o anunciado satânicos, mas com uma
encenação diferente: «Ficou grávida do amante de que falamos; então se dirigiu ao maligno lhe
suplicando que dissesse quando quereria o demônio retirar-se dela. O diabo lhe respondeu com
os seguintes versículos: "Papa, Pai dos Pais, Publica o Parto da Papisa / E eu te anunciarei
quando me retirarei de seu corpo"».
O episódio em questão nos interessa à margem do problema que expõe a filiação dos textos, pois
nos devolve o misterioso texto das seis P que acompanhava a Juana desde sua entrada no
mundo do documento escrito. nos detenhamos um instante neste texto, nos servindo da definição
dos três níveis da existência textual proposta pelo Jean Moinho e Jean-Jacques Nattiez: nível
neutro (nível da existência imanente do texto); nível poiético (nível da fabricação do texto); e nível
estésico (nível da recepção do texto).
O texto da fórmula
O texto em si mesmo se apresenta como uma fórmula mnemotécnica: retém-se o potente patrão
fônico (seis P) e a narração associada (uma Papa deu a luz). Encontramo-nos muito perto do
modelo analisado pelo A. B. Lorde e J. Rychner a propósito da narração épica oral: transmite-se
uma matriz rítmico-fônica sem fixar o detalhe léxico e semântico. Por outra parte, os autores que
aqui nos importam se mostram sensíveis a este aspecto rítmico: falam de versos, de versículos ou
de versificação («versiculus», «versus», «versifique»). Do mesmo modo, produzem-se duas
aparições concomitantes (1255-1260) no Metz e no Erfurt, que disfarçam de maneira distinta
(Petre/Papa, Prodito/Pandito) o mesmo patrão fonético-temático, difundido provavelmente de
Roma até os limites da Europa. A fórmula se associa então ao grito de alarme («Requer», «Para
verificar»; «Fuit et alius pseudo-Papa», «Houve ainda outra pseudo-Papa»). Mas os continuadores
transbordam a fase do estupor moralizando a fórmula, encarregada em um caso de conjurar e já
não de denunciar (Esteban), e no segundo caso (Flores) de romper um pacto implícito assinado
com o diabo. Em um terceiro caso, o do Martín, a fórmula desaparece, dado que a integração
histórica suprime o pânico sonoro da própria fórmula. O grito se converte em texto, e, em
conseqüência, a memória se aferra à cronologia e já não à estrutura fonético-temática.
A fabricação da fórmula
Tentemos agora (análise poiético) nos remontar à fabricação do texto repartido em qualquer
parte na Lorena e na Turingia. Não dispomos de testemunhos que nos permitam apresentar
diretamente dita produção. Em um alarde de engenhosidade filológica, Ignaz von Döllinger propôs
em seu dia a reconstrução de um processo, tomando como referência um modelo contrastado
com uma crônica medieval. trata-se de uma inscrição achada em Roma, com a seguinte lenda:
R.R.R.F.F.F. Segundo os métodos de decifração epigráfico atuais essas iniciais significariam:
Ruderibus Rejectis Rufus Festus Fieri Fecit («depois de limpar as ruínas, Rufo Festo mandou
levantar esta construção»). Ao parecer, os habitantes da Roma medieval, à espreita sempre de
sinais proféticos, interpretaram sorte inscrição como um terrível aviso da Sibila: «Roma Ruet
Romuli Ferro Flammaque Famique» («Roma se derrubará sob a espada do Rómulo, o fogo e a
fome»). Este modelo, aplicado a uma inscrição com seis P, permite reconstruir um texto primitivo
possível, asociable cronologicamente à antigüidade tardia; trata-se de uma inscrição também
lapidária em que se comemora um donativo devotado por um devoto da Mitra: «Propria Dinheiro
Posuit (ofereceu seus próprios denarios) Patri Patrum (ao Pai dos Pais, título com o que se
designa, em várias inscrições bem conhecidas, ao ministro dos mistérios da Mitra) P (inicial do
autor desconhecido do donativo).
O esquema proposto pelo Döllinger parece bastante convincente, embora lhe poderiam
reprovar que designasse como «autor» da fórmula de 1250 (?) a um sujeito (o povo?) que, além
de ser cúmplice, resulta incompetente na hora de decifrar um texto autêntico. Não obstante,
Döllinger se adiantou ao Cesare d'Onofrio, quem, a propósito do rito, suspeita a existência de um
«texto» primitivo (a Papa é a mãe da comunidade de fiéis) e de descifrador ignorante e literalista
(a Papa deu a luz). Em conseqüência, o espírito filológico implica uma entropia geral do sentido, e
portanto a progressiva degradação do mesmo.
A explicação proposta no capítulo anterior sem dúvida não difere muito da do Döllinger» pois
sugeria uma leitura satírica da inscrição antiga, que participava dessa crítica carnavalesca do
Papado atacando a um veículo de opacidade dominante: a reutilización solene de materiais e
caligrafias antigas. Mas em um esquema binário (texto primitivo e auténtico/desciframiento
ingênuo) e atemporal, dita explicação tentava contrastar o modelo Jouhaud com um espectro de
leituras contemporâneas, parciais e hierarquizadas embora convergentes (texto inicial/reutilización
erudita/reutilización autoritária não erudita/desciframiento satírico não erudito/lectura cúmplice);
todas estas leituras concorrentes construíam conjuntamente um sistema simbólico, representado
pela papisa.
Mas se em vez de nos fixar na forma epigráfica nos centramos em seu conteúdo narrativo, então
podemos aspirar a reconstruir outros âmbitos possíveis de produção. assinalamos já que as
versões franciscanas põem a fórmula em boca do diabo: tanto na crônica do Erfurt como nas
crônicas mais tardias (crônica do Saint-Gilles, crônica do Engelhusius), o texto transcrevia um
grito de triunfo do diabo. Este detalhe aparece com maior claridade ainda na crônica da abadia do
Kempten, na Baviera, onde a fórmula se traduz ao alemão, sem nenhuma preocupação pelo
fonetismo das seis P: «OH você, Papa, que devia ser um pai por cima dos outros pais, te vais
desvelar com sua iluminação («Ou du papst der du solt senn ein Vater unter aliem andern Vatern
hie du wirst offenbahren in deiner Geburt dass...») que você é uma papisa e que por isso te vou
levar em alma e corpo comigo e a minha sociedade» .
Por outro lado, esta glosa sobrenatural do acontecimento aparece associada à Virgem na
crônica do Enrique do Munich: Juana, ao passar diante de São Clemente, dirige um Ave María à
imagem da María que está grafite no muro exterior da igreja. E a pintura responde a Juana que,
porque foi elevada por cima das mulheres, seu corpo e seu fruto serão malditos («du pist gesegen
ueber allens weib de sprach daz püd sou sei dein Leib verfluocht under aliem weiben die suend
solt seu niht mer treiben»). Enrique do Munich, autor por desgraça desconhecido, ao tempo que
utiliza as flores franciscanas (como se desprende de sua referência à duração do passado: 3
anos, 5 meses e 2 dias, como nas Flores) introduz a um novo ator da sanção (a Virgem), assim
como uma qualificação também nova do crime (elevar-se por cima da condição feminina). Este
tipo de sanção sobrenatural, indicada mediante um discurso breve milagroso, poderia estar
indicando a aparição de fragmentos de uma cultura «popular» no discurso clerical, de tal sorte que
o tratamento franciscano do relato, menos «romano» que o tratamento dominicano, leva esta
estampagem, reveladora por outra parte da implantação realmente popular da Ordem de São
Francisco. Dita hipótese se confirma à vista do desenvolvimento mesmo do relato; nas Flores de
1290, a fórmula adquire sentido no contexto de um pacto implícito entre a Juana e Satã: Juana
tem que trocar sua salvação em troca de publicar sua maldade, de maneira que a iluminação
significa a um mesmo tempo o triunfo do diabo (a publicação da maldade) e seu desprezo pela
Juana. Na versão catalã do Alfabeto dos relatos, do Arnoldo da Lieja (é sabido o grau de
penetração dos franciscanos na Cataluña), a imagem da Virgem deixa que Juana escolha entre a
sanção imediata (publicação do pecado e morte) e a sanção celestial (condenação). No universo
dos contos acham constantemente esse esquema da alternativa entre o sofrimento imediato, mas
temporário, e a condenação tardia, mas irreversível, o que em realidade representa uma
transcrição narrativa das eleições disponíveis entre as grandes categorias de investimentos
existenciais. Desde esta perspectiva, compreenderiam-se as razões do êxito excepcional
registrado pelo relato no mundo sud-germânico, onde o episódio eclesiástico encontrou e assumiu
uma forma corrente da narrativa popular, caracterizada pelo tema da ambição desenfreada das
mulheres (Enrique do Munich) e pelo esquema de eleição entre a inmediatez perigosa e o futuro
prometedor.
Esta hipótese, que não podemos excluir de tudo, tem seus limites. O folklorismo, como lhe
ocorre à filologia, postula um sujeito coletivo e atemporal (o povo já não é ignorante, a não ser
narrador), simplesmente invirtiendo o mecanismo de difusão, de maneira que é a Igreja a que se
converte em espelho inconsciente e deformador do texto autêntico e primitivo.
Mas a estranha particularidade que distingue à tradição franciscana nos convida, ao passar da
produção à recepção da fórmula, a renunciar à busca insegura do sentido «original», em troca do
sentido adventício, mas historicamente identificável. Desviando a análise metódica da fórmula das
seis P, reintroducimos aqui aquele princípio do benefício ideológico que rechaçávamos ao começo
do presente capítulo, porque estávamos constrangidos pelos limites da análise estritamente
imanente e cultural da difusão do relato. Análise que nos indica como, baixo que formas narrativas
e mediante que combinação de azar e de necessidade podia difundir uma lenda no discurso
clerical, mas que não nos dizia por que esta lenda era precisamente isso, uma lenda.
Os franciscanos e a pseudo-Papa
Releiamos a notícia da crônica franciscana do Erfurt. O autor dispõe de tão pouca informação
como o próprio Juan do Mailly na mesma época (1255-1260); mas para este último, prevalece a
curiosidade («Requer», «para verificar»). Entretanto, ao franciscano lhe invade o temor: o diabo
enunciador da fórmula se manifestou dentro da própria cúria, dirigindo-se à Papa. A estrutura
fonética da fórmula evidencia o caráter satânico da mensagem: pensamos nessas cinco /R/ que,
segundo São Luis, esfolam a garganta do cristão e «representam os restelos do diabo». O
cronista, ao contrário do que acontece ao Juan do Mailly, tem uma certeza: «Houve ainda outra
pseudo-Papa». A expressão assombra: para o Martín o Polonês, Juana não é uma pseudo-Papa,
a não ser uma Papa eleita ilegitimamente; os juristas devem determinar qual é seu estatuto,
problema este farto delicado que, como vimos, não conseguiu resolver o cardeal Giacobazzi a
finais da Idade Média. Mas os cronistas, e sobre tudo depois do Tolomeo da Lucca, que
chamavam a papisa pelo nome do Juan VII ou Juan VIII, tinham resolvido a questão: para eles,
Juana tinha sido uma Papa de verdade.
Para um franciscano de 1260, a palavra pseudo-Papa encerrava um significado tão denso como
preciso, que era necessário esclarecer ao preço de um último desvio (mas Juana é a patrã
romana do desvio).
A princípios do sigloXIII, Francisco não quis criar uma instituição nova, a não ser converter a toda
a sociedade à mensagem autêntica do Cristo pobre. Seu testamento mantém integralmente seu
propósito inicial: exigia dos irmãos (franciscanos) a obediência absoluta à Regra, a observância
estrita da pobreza e o rechaço de qualquer privilégio. Até sua queda em 1239, o irmão Elías fez
que se respeitasse o espírito do Testamento. Mas o Papado, desde o Gregorio XI até o Juan XXII,
tentou de maneira cíclica que esta ordem anônima se integrasse na estrutura eclesiástica,
apoiando-se nas tendências de dita ordem que se emprestavam ao compromisso, e que mais
tarde se chamariam inclinações «conventuales». É preciso calibrar bem o alcance extremo da
fascinação que exerceu sobre o conjunto da cristandade a fração «integrista» (os «zelanti», os
«espirituais», como se diria mais tarde): ao afirmar sua fidelidade ao Francisco, e à pobreza de
Cristo, dita fração cristalizou as imensas aspirações escatológicas e reformistas dos fiéis. A
política papal, de 1230 a 1330, mostra-se flutuante com em relação à Ordem, em parte porque a
política como tal dependia em grande medida das opções espirituais de cada pontífice, mas em
parte também porque o jogo político e eclesialógico, dentro da própria Igreja, dependia de outros
grupos, ao tempo que riscava configurações em troca permanente. Os «zelanti» franciscanos
representavam por um lado uma ameaça para a instituição da Igreja, dado que propiciavam o
fermento dos sucos da heresia urbana; e, por outro lado, com sua disciplina, sua centralização,
sua dependência direta de Roma (reforçada com a bula Ordinem vestrum do Inocencio IV em
1245, e a bula Quanto Studiosius do Alejandro IV em 1247), a Ordem oferecia uma aliança muito
valiosa contra as pretensões centrífugas das Iglesias nacionais, dos bispos, dos professores
universitários ou dos próprios cardeais da cúria. Desde esta perspectiva, resulta compreensível,
pois, que essas oscilações papais suscitassem verdadeira perplexidade nos espirituais, dispostos
a ver sopro sobre esse Papado cambiante ou ao Espírito Santo ou ao espírito maligno. Por outra
parte, a defesa do Estatuto (ou do Testamento do Francisco) constituía uma obsessão para eles,
já que procedia da certeza de que a salvação da Igreja dependia desse texto onde se recolhia a
perfeição cristã. Em um elogio da perfeição do estatuto dos irmãos menores, um espiritual
afirmava que «este estatuto... requer obras mais perfeitas e mais difíceis que o estatuto papal; é
mais perfeito e meritório que o estatuto papal».
Entre 1254 e 1260 (momento preciso da elaboração da história da Juana no contexto do
discurso clerical), dita tensão alcança seu ponto culminante. Enquanto que, até a data, o Papado
tinha apoiado constantemente a independência das ordens mendicantes frente aos bispos, tanto
na predicación como na confissão (fontes ambas de considerável prestígio e autoridade, e
também de ganhos), em 1254, e apressado pela pressão dos bispos, Inocencio IV se viu obrigado
a restringir sorte liberdade em sua bula etsi animarum. A Papa morreu poucos dias depois de que
se promulgasse a bula, e alguns franciscanos quiseram interpretar o sucesso como um justo
corretivo celestial, assim como uma prova do satanismo do pontífice falecido. O sucessor do
Inocencio IV, Alejandro IV, anulou a bula, mas a ameaça seguiu planejando sobre a ordem.
Recordemos que o concílio do Lyon, celebrado em 1274, chegou a suprimir todas as ordens
novas, salvo a dos franciscanos e a dos dominicanos, enquanto que carmelitas e agustinos só
obtinham um apoio provisório. O perigo papal era, pois, permanente.
O mesmo ano da bula, quer dizer em 1254, as ordens mendicantes (dominicanos e
franciscanos) tiveram que sofrer ainda outro ataque, o dos professores seculares da Universidade
de Paris, quem tolerava mal a posição privilegiada que desfrutavam dos professores mendicantes.
Ao parecer, estes últimos se beneficiavam a um mesmo tempo da liberdade dos regulares, dos
privilégios próprios dos universitários -e do prestígio associado aos grandes doutores do momento
(Tiram do Aquino, Sorte e Alberto Magno).
O detalhe desta ofensiva careceria de interesse aqui se não fora porque Guillermo do SaintAmour, o professor parisino que dirigiu o ataque, arremeteu então contra o franciscano espiritual
Gerardo do Borgo São Donnino, quem em 1254 (ano decididamente decisivo para as ordens
menores) tinha publicado uma Introdução ao Evangelho eterno. Em dita obra, o franciscano
acossado retomava e sistematizava as profecias do Joaquín do Fiore, quem, como havemos dito
antes, anunciava o fim do mundo para 1260. É certo que a Idade Média conheceu numerosos
fracassos escatológicos75, antes e depois do século XIII, mas não houve nenhum outro autor
profético que causasse uma impressão tão forte entre os fiéis como Joaquín. De fato, sua obra,
remoçada, difundida, completada e comentada abundantemente pelos franciscanos, inseria-se em
um sistema exegético complexo e coerente, que se apoiava a sua vez na grande cultura teológica
do abate calabrês. Por outro lado, sua percepção da chegada do fim do mundo adquiria um
sentido muito particular em uma época em que até os espíritos mais elevados estavam
penetrados dos princípios da economia histórica da salvação, cujas bases, como demonstrou o
pai P. Chenu, sentaram-se no século XII. Nesta ordem de coisas, Brian Tierney sublinhou a sua
vez o fato de que, por volta de 1250 precisamente, a eclesiología histórica adquire carta de
natureza no âmbito da teologia. Além disso, o tratado do Gerardo do Borgo São Donnino
apresentava aos franciscanos como apóstolos do iminente reino do Espírito Santo, dado que os
escritos e a regra do Francisco constituíam o Terceiro Testamento, o do Espírito Santo. Assim,
Francisco assumia o papel do Anjo do sexto selo do Apocalipse.
O mesmo ano da publicação do tratado do Gerardo, em 1254, Guillermo do Saint-Amour replicou
com o texto De periculis novis simorum temporum («Dos perigos nos tempos recentes»), no que
ridicularizava o medo e o entusiasmo escatológico dos franciscanos, atitudes ambas que em
opinião do professor parisino constituíam os verdadeiros perigos da época. Mas o assalto dos
professores de Paris fracassou em 1257 obrigado, ao enérgico apoio que Alejandro IV emprestou
aos irmãos menores, reforçando inclusive sua posição na Universidade com a bula Quasi lignum
vitae. Não obstante, o ano 1254 tinha demonstrado a quão espirituais a Igreja exterior podia estar
encabeçada por uma Papa maléfica (Inocencio IV) e também por uma Papa espiritual (Alejandro
IV); distinção que, por outra parte, guardava estreita relação com as profecias joaquinofranciscanas, segundo os quais a chegada do fim do mundo estaria precedida pelos reinados de
uma pseudo-Papa e de uma Papa angélica. Um dos três grandes inspiradores do movimento
espiritual (junto com Anjo Clareno e Hubertino de lhe Case), foi Pedro do Juan Olivi (1248-1298),
quem, um pouco mais tarde, vincularia da seguinte maneira o anúncio escatológico com a
atualidade eclesiológica: «O (= o Anticristo) estabelecerá como pseudo-Papa a um falso religioso
quem dogmatizará contra a regra evangélica e imporá uma dispensa enganosa (a dispensa se
aplica ao voto de pobreza absoluta, constantemente minado pelas Papas depois da bula Quam
elongati, publicada em 1321 pelo Gregorio IX).
A crônica do Erfurt, datada por volta de 1260, parece, pois, refletir o medo real que existia ante a
possibilidade de que uma pseudo-Papa usurpasse a Santa Sede. O narrador não põe em dúvida
a existência da pseudo-Papa feminina e se limita a perguntar-se a respeito da precisão de data e
de duração de papado, precisão de importância capital para o cômputo escatológico. A breve nota
franciscana insiste sobre a oposição das aparências e da realidade («latuit»: se ocultou us
«publique»: publicamente; «in ypocrisi magne vete»: e sob a aparência enganosa de uma conduta
perfeita). A fórmula das seis P cristaliza esta oposição, exigindo à Papa («Papa») (forma neutra
institucional) que descubra o parto da papisa («papessa»: o mesmo indivíduo em sua realidade
satânica feminina). Nesta versão aterradora, o diabo mais que denunciar provoca, já que ao
desdobrar ao pseudo-Papa em uma Papa e em uma papisa, consegue que ambas as figuras se
poluam reciprocamente melhor. A versão das Flores temporum, interpretada mais acima como
folclórica, também (e sobre tudo) desenvolve o sentido do triunfo satânico na Igreja: a posse
diabólica do corpo da Juana forma parte do plano diabólico, pois o Maligno ocupou esse corpo
para publicar seu triunfo.
O anunciado dominicano se apresenta então com um significado bem distinto: a inscrição
lapidária (não satânica) dirige-se ao Pedro, em sua condição de figura matricia e eterna da Igreja
que um mero embora deplorável incidente não pode sacudir; por isso, a inscrição, cujo valor
preventivo sublinha Esteban do Borbón, inca à vigilância. O texto da fórmula, inscrito sobre pedra
e no Pedro (como diz o jogo de palavras institucional do Jesus), afirma a solidez do Papado, além
do contingente.
Para a neutralização a Dominica, apesar da poderosa rede de pregadores, não podia eliminar
do todo um aspecto capital da vida secreta da papisa; a aventura da Juana, que se relata por volta
de 1260, servia de ensaio general para o grande drama dos franciscanos, avocados a um grande
futuro até o ano 1330.
A Papa angélica e pseudo-Papa: a junta de 1294
No ano 1294 tem lugar um acontecimento capital que contribuiria um sentido novo ao caso da
Juana —tal e como o tinha definido Martín o Polonês em sua qualidade de jurista—, ao dar uma
nova forma ao casal pseudo-papa/papa angélico.
Em efeito, em 1294, e depois de 27 meses de sede vacante por falta de acordo na eleição de uma
Papa, o conclave decide levar a cadeira pontifícia a um ancião de 85 anos de idade, Pedro do
Morrone, beneditino dos Abruzzos e fundador de uma comunidade eremítica, que vivia retirado do
mundo desde fazia oito anos, a cristandade, depois de tantos debates sobre a pobreza, punha
como sua cabeça visível ao Celestino V, o homem que melhor encarnava a volta à letra de Cristo,
mas também o administrador menos hábil que caiba imaginar. O tortuoso e ardiloso cardeal
Benito Cayetano conseguiu que abdicasse rapidamente, para lhe acontecer, em 13 de dezembro
do mesmo ano, com o nome do Bonifacio VIII. O acontecimento despertou grande inquietação no
seio da cristandade, que se perguntava: pode abdicar uma Papa que foi designado pelo Espírito
Santo?, ou, o que fazer com uma Papa inadequada, mas eleito canonicamente (caso da Juana)?
Logo se chamou o Celestino V a Papa angélica, e em função de uma aproximação inevitável,
Bonifacio VIII bem podia passar pela «pseudo-Papa» que desaloja com artimanhas à Papa
angélica. De fato, Jacobo do Todi lhe chamou «pseudopresul» (pseudo-prelado).
A sucessão tumultuosa de duas Papas tão opostas, constitutiva por si mesmo de um paradigma
concreto (o prelado vs. o eremita; a autoridade vs. a humildade, etc.), provocou posicionamentos
cortantes, embora seja verdade que numerosos fiéis se mantiveram à margem dessa busca da
Papa «má» (Celestino ou Bonifacio). Jacobo de Voragem, por exemplo, em sua Crônica da
Genova, redigida pouco tempo depois do acontecimento, adota uma postura institucional
reconhecendo a um tempo os méritos e as incapacidades do Celestino V. Por sua parte, o bispo
Bohemundo do Tréves, em sua gesta episcopais, ilustra sorte postura comparando o casal
Celestino/Bonifacio à formada pela María e Marta, e depois com o Raquel e Leoa. A comparação
não é casual, pois durante a Idade Média esses casais bíblicos de mulheres freqüentemente
ilustravam o complemento necessário de uma atividade industriosa e ingrata mas necessária
(Marta, Leoa), e da meditação iluminada mas a sua vez inativa. Neste sentido, não podemos por
menos que admirar o uso sutil e retorcido que faz Bohemundo da narração bíblica: na Gênese,
Jacob quer desposar-se com a formosa Raquel e não com sua irmã Leia; mas Labán, pai das
duas irmãs, substitui a uma por outra mediante engano. Vemos, pois, que o papel de Bonifacioleia (servidor fecundo e desgracioso) justifica-se, ao tempo que sugere o emprego do engano em
detrimento do Celestino-Raquel. Por um lado, a substituição forma parte dos planos divinos, e, por
outro, não impede o matrimônio ulterior do Jacob com o Raquel, matrimônio fecundo tardiamente
e portador de novas esperanças. A virtuosidad «dialógica» do Bohemundo de vertigem e deve nos
dissuadir de qualquer consideração sobre a pretendida esterilidade do lugar comum na Idade
Média.
A idéia franciscana da pseudo-Papa tinha penetrado o suficiente na Igreja como para que não se
adotou o costume de classificar às Papas em bons e maus. Arnoldo da Lieja, em seu estilo
compacto de autor da Exempla, antes de evocar um episódio da vida do Gregorio o Magno, anota
«bonus Papa» («boa Papa»); a avaliação dos pontífices formava já parte dos costumes
eclesiásticos.
Mas, por uma dessas raridades que tanto abundam na história, o mais destacado dos
franciscanos espirituais, Pedro do Juan Olivi, apoiou ao Bonifacio VIII. Este apoio que o enfrentou
com os principais espirituais, tem sem dúvida sua explicação em uma concepção radical da
infalibilidade papal, cuja análise nos ocupará mais adiante. A esta circunstância terá que
acrescentar considerações de caráter tático, já que ao início de seu pontificado Bonifacio VIII se
erigiu em defensor dos espirituais, e, quatro anos antes, em 1290, foi delegado pela Papa
franciscano Nicolás IV para apoiar a causa dos irmãos menores em Paris. Como revanche, a
maioria dos dominicanos tomaram partido contra Bonifacio VIII. Pregadores influentes, como Juan
Quidort (Juan de Paris), autor de um temível tratado contra Bonifacio VIII e as pretensões
hierocráticas que dita Papa propugnaba contra o rei da França, Felipe o Belo, inclinavam-se por
uma restrição do crescente poder de um Papado, de que tinham menos necessidade que os
próprios franciscanos. Os pregadores do convento do Saint-Jacques de Paris assinaram as
condenações fulminantes que Felipe o Belo lançou contra Bonifacio VIII. As tendências fioespirituais (ou pelo menos reformadoras) de alguns dominicanos, menos cimentadas que as da
Ordem de São Francisco, não tinham sofrido os ataques papais, de maneira que bem podiam,
ditos pregadores, mostrar sensibilidade ante a imagem eremita e austera do pontífice abruzzés.
Tal é o caso do Roberto do Uzès, um dos primeiros em dar testemunho do rito de verificação da
virilidade das Papas, quem, como vimos, associa suas terríveis visões ao acontecimento de 1294;
em sua visão XXXIIa («Sobre a usurpação e o furto de uma Papa soberana») interpreta da
seguinte maneira as escuras cenas de violência: «Depois, e ao cabo de vários dias, soubemos
que o senhor Papa Celestino tinha renunciado ao Papado e tinha retornado a sua vida de eremita;
vários dias depois, soubemos que Benito era eleita Papa».
O possível paralelo esboçado entre a Juana e Bonifacio, estes dois usurpadores ardilosos, está
presente no texto de Leão do Orvieto. Este dominicano, do que só se conhece sua modesta
carreira na ordem (leitor e viceprior no Orvieto, entre 1287 e 1295; visitador dos conventos da
Toscana em 1304; prior do Tivoli, Curtinha e Arezzo, onde morreu por volta de 1315), sem dúvida
logo que tomou parte nas lutas italianas entre o Bonifacio e os cardeais Colonna, mas em sua
Crônica sobre os tempos e as gestas das Papas romanas, onde, como vimos, reproduz a notícia
do Martín sobre a Juana, relata o Papado do Celestino nos seguintes términos: «Quis reconduzir
aos cardeais a seu antigo estatuto; todos os cardeais deviam cavalgar em singelos asnos. Por
esta razão, um dos cardeais, que se chamava professor Benito Cayetano, homem ardiloso em
todos os âmbitos e cheio de malícia, enviou, durante a noite, a uns meninos ao telhado da
mansão onde repousava o pontífice; estes chamavam o pontífice e lhe diziam que se encontrava
em um estado perigoso, a ponto de perder sua alma, e que só poderia salvá-la abdicando. Então
o pontífice, para ouvir essas vozes que ele acreditava procediam dos anjos, e depois de consultar
aos cardeais, abdicou, e o professor Benito Cayetano, inventor deste engano, foi eleito para o
pontificado supremo».
A anedota conjuga o aspecto angélico e inocente da boa Papa Celestino com a astúcia ambiciosa
e enganosa do que, mediante o disfarce angélico, obteve o pontificado.
Mas, mais à frente do antagonismo entre franciscanos e dominicanos, e além das lutas entre o
sacerdócio e a realeza, o atentado do Anagni (1303) que põe fim violentamente ao Papado do
Bonifacio VIII e as pressões sobre o Celestino V, sacudiram gravemente a instituição papal. Os
partidários de uma e outra Papa apelavam, respectivamente e cada um por sua parte, à
necessidade da salvação da Igreja como justificação ao feito de que pudesse ficar fim a um
pontificado. Juana, protótipo de uma Papa ilegítima por servir-se da astúcia ambiciosa ou por
exemplificar a uma Papa prejudicial para a boa conduta da Igreja, servia a todas as causas. Esta
brecha pela que passava Juana se converteria, três quartos de século mais tarde, em um cisma.
Juana, patrã da infalibilidade papal
A carreira da Juana não se detém aí e, graças a uma paradoxo prodigiosa, a papisa contribuiu à
colocação da noção da infalibilidade papal. Brian Tierney desmontou com brilhantismo o
mecanismo desta construção ideológica, processo que seguiremos sem perder de vista a Juana.
O primeiro ponto do estatuto para os franciscanos espirituais era o da pobreza absoluta prescrita
pelo Francisco, e chave de seu papel escatológico. Desde 1231 tiveram que opor resistência aos
paulatinos acertos introduzidos pelo Papado e pelo ramo «conventual» da ordem. São Sorte
(1221-1274) tentou uma reconciliação entre os «zelanti» e os conventuales, redigindo uma vida
adoçada do Francisco, glosando livremente a Regra e fazendo que no capítulo da Narbona (1260)
aprovasse-se o «uso pobre», o emprego moderado («usus pauper») dos bens; esta via intermédia
(«via medeia») não pôde manter-se depois da morte de Sorte em 1274, e os franciscanos
conventuales atacaram a doutrina mesma da pobreza.
Como reação, Nicolás III (1227-1280) promulgou em 1279 a bula Exuit qui seminat com a que
impunha a volta ao espírito e à letra do testamento do Francisco. Os espirituais se sentiram muito
agradecidos, interpretando a decisão papal como resultado da inspiração divina. Pedro do Juan
Olivi tentou então situar o texto do Nicolás no âmbito de uma tradição intocável, sagrada,
afirmando que a Papa, herdeiro do Jesus e do Pedro, não podia errar em matéria de fé. Desta
maneira, contribuía uma solução radical ao velho problema da delimitação em assuntos de fé,
motivo permanente de debate (devia o cristão considerar como matéria de fé unicamente as
Escrituras, ou as Escrituras e a Tradição? Dos escritos dos Pais e/ou dos primeiros textos
conciliar? E/ou da doutrina papal?). Os espirituais se somaram resolutamente à obra doutrinal das
Papas, afirmando assim, por primeira vez, a infalibilidade papal. A bula Exuit qui seminat não era
simplesmente um texto louvável, mas sim se tratava de um texto absolutamente santificado pela
infalibilidade. Mas então, como condenar as posturas dos sucessores do Nicolás III que
duvidavam ou duvidariam da bula ou do estatuto da ordem? Simplesmente retornando à
escatologia dos anos 1250: qualquer Papa hostil ao estatuto se autodesignaba como pseudoPapa, «ipso dito». Por direito divino, a Igreja universal e sua cabeça, a Papa, não podiam
equivocar-se nunca; mas de fato, uma pseudo-Papa, um pseudo-concilio, uma pseudo-cúria, uma
pseudo-igreja, podem obliterar a vida santificada da verdadeira igreja, que então pode, a sua vez,
e sem chegar a desaparecer jamais, reduzir-se, a julgamento do Pedro do Juan Olivi, a alguns
fiéis e a algumas mulheres e meninos.
Esta assombrosa construção teológico-eclesiológica (que não deve reduzir-se a uma argúcia
argumental) aparece claramente, em relação a Juana, na obra do Guillermo do Ockam. Ockam,
sem dúvida o maior filósofo do século XIV, nasceu a finais do século XII no condado do Surrey, na
Inglaterra. Ingressou muito em breve na ordem franciscana e realizou seus estudos na
Universidade de Oxford entre 1312 e 1318. Seu comentário sobre as Sentenças do Pedro
Lombardo em Oxford (1318-1320) conduziu-lhe uma série de complicações que dariam um giro
definitivo a sua carreira. Em efeito, a cúria convocou ao Aviñón para que se explicasse a propósito
de determinadas posturas teológicas que pareciam suspeitas. Ockam chegou ao Aviñón em 1324
onde permaneceu quatro anos. Ali conheceu o Miguel da Cesana, general da ordem, igualmente
convocado como suspeito de heresia, já que, desgraçadamente, o tema da pobreza tinha
ricocheteado de maneira dramática. Clemente V (1305-1314), ao tempo que apoiava ao Ubertino
de lhe Case, tentava renovar a reconciliação de São Sorte, justificando o emprego moderado dos
bens, em sua bula Exui de paradisio (1312). Por sua parte, Juan XXII, eleito em 1316, canonista
estrito e pouco místico, mostrou-se em principio a favor dos espirituais, mas logo lhe irritaram com
seu extremismo: em 1317, exigiu a submissão aos conventuales (bula Quorumdam exigit), e em
1318 foram queimados quatro espirituais. Hubertino de lhe Case abandonou a ordem, e Anjo
Clareno se refugiou com seus discípulos, os «fraticelli», nas montanhas da Itália central. Não
obstante, a resistência se mantinha viva, já que o ministro geral da ordem, Miguel da Cesana, em
um princípio conventual, aconteceu com a corrente espiritual. Juan XXII tomou a decisão de
terminar com esse ciclo de compromissos e de condenações, e de esvaziar o debate com uma
decisão de fundo: em 1322 publica a bula Quia Nonnumquam, em que demonstrava que tanto
Cristo como os Apóstolos tinham desfrutado de posses. O capítulo geral franciscano, reunido na
Perugia esse mesmo ano, contradisse explicitamente ao Juan XXII quem, como bom
administrador, replicou a sua vez com a bula Ad conditorem canonnum (1322); desta maneira
suprimia a ficção jurídica da posse papal dos bens franciscanos: definitivamente aos fundamentos
teológicos do debate com a bula Cum inter nonnullos (1323). Miguel da Cesana, que tinha
chegado Aviñón para explicar-se, fugiu em companhia do Guillermo do Ockam em 26 de março de
1328, acusando à Papa de heresia. Ambos os franciscanos se instalaram então na corte do Luis
da Baviera, no Munich, onde se encontraram ao Marsilio da Pádua, resolvido opositor do pontífice
do Aviñón. Na corte bávara, Ockam redigiu uma série de libelos contra Juan XXII, antes de morrer
no Munich em 1350 .
Em 1322, Ockam tinha redigido a Opus Nonaginta dierum («A obra de 90 dias», chamada assim
pela duração de sua redação). Este tratado consiste em um imenso comentário (mais de mil
páginas impressas nas edições atuais) da bula Quia vir reprobus, lançada fulminantemente em
1329 contra Miguel da Cesana e seus companheiros. No capítulo 124 e último, Ockam chega ao
lance final da bula, onde se declara hereges aos espirituais; neste ponto, o franciscano volta a
acusação contra a Papa, estabelecendo cuidadosamente o crime de heresia como um engano
explícito, manifesto e renovado. A falta da Papa coincide precisamente com todos esses critérios,
de maneira que se faz necessário apelar à cristandade e evitar qualquer contato com a Papa, já
que o cristão que trate ao Juan XXII como a pontífice não poderá escapar a sua vez da acusação
de heresia:
«E de quanto precede os acusadores (= impugnatores, os assaltantes, os verdadeiros cristãos,
os espirituais) concluem que o acusado («impugnatus», Juan XXII, a quem não lhe chama de
outro modo em nenhum momento ao longo de todo o tratado) deve ser evitado («vitandus»), por
necessidade da salvação, por todos os que sabem que ele é herege. Mas aqueles que ignoram
que ele é herege, não porque amassem uma ignorância crassa e preguiçosa estão em modo
algum desculpados do pecado mortal mais grave. Aqueles que ignoram que ele é herege, se
amassarem uma ignorância verossímil e invencível por razão da ignorância do fato parecem
desculpados de comunicar com o acusado e de lhe obedecer. Quanto a esta questão de evitar ou
não, vale o mesmo a propósito do acusado e da mulher que se acreditou era um homem e que foi
elevada ao pontificado. Em efeito, aqueles que, logo, souberam que eram uma mulher, não
deviam lhe considerar Papa. Mas aqueles que ignoravam e amassavam uma ignorância
invencível, que a faziam passar por Papa, ficavam desculpados, por sua ignorância, de lhe haver
considerada Papa. O mesmo vale para o acusado, já que não tem maior autoridade verdadeira
que a que tinha essa mulher que, como dizem as crônicas, foi venerada como Papa pela Igreja
universal durante dois anos, sete meses e três dias» .
Hei aqui, pois, a Juana, arrolada pelo Ockam como protótipo do Juan XXII, como imagem da
pseudo-Papa que pode criar uma ilusão. A inexistência do Juan na Igreja (a verdadeira Igreja) é
tão real e está tão dissimulada como a da própria Juana. Mas esta ilusão factual, esta confusão
dos sentidos, não empana para nada a certeza de que a Igreja universal e a Papa (o verdadeiro)
não podem equivocar-se jamais:
«E se alguém diz que a coisa (= a inexistência real do Juan XXII) não pode existir porque a
Igreja universal não pode equivocar-se, a isto os acusadores respondem que no âmbito da fé e
dos costumes, a Igreja não pode equivocar-se; mas, que no âmbito do fato, a Igreja militante pode
errar e ser enganada. É assim que se equivocou venerando a uma mulher como Papa» .
Ockam continua com outros exemplos: Anastasio II, Silvestre II, e em total 27 Papas teriam
enganado à Igreja. Juana constitui a primeira referência e principal porque, nesse caso, a
ignorância do fato se comprova claramente, sem necessidade de referir-se a uma escala de
delitos ou de faltas.
Ockam retomaria este tema dez anos mais tarde, em seus Octo quaestiones de potestate pape
(«Oito questões sobre o poder da Papa») (1340-1342). No capítulo 17 de dita obra demonstra que
é lícito levar a Papa até a justiça e apelar suas decisões em caso de heresia, porque a «Papa» já
não pertence ao corpo da Igreja: «portanto, nenhum herege é a verdadeira cabeça da Igreja,
inclusive se se pensa que o é; ao igual à mulher que se acreditou era o pontífice durante dois
anos tampouco era a verdadeira cabeça da Igreja, apesar de que todos o tenham pensado» .
A argumentação franciscana transcendeu ampliamente os limites da mera subversão espiritual. O
esquema institucional que articulava a infalibilidade e a impostura, e que nos encontramos em um
contexto completamente distinto —a Rússia zarista dos séculos XVI ao XVIII—, brilhantemente
analisado pelo Claudio Sergio Ingerflom , teve no carmelita Guido Terreni uma aplicação
protopontificia e absolutista imediata. Do mesmo modo, um século mais tarde, e a pesar do
grande trauma do Cisma, os dois grandes pilares da monarquia papal no século XV, Tiram da
Torquemada e Antonino de Florência, recuperaram a argumentação franciscana e sua ilustração
juanista.
O ilustre cardeal dominicano, Tiram da Torquemada (1420-1498), em seu Summa da Ecclesia
(«Suam sobre a Igreja» utiliza términos muito próximos aos que empregasse Ockam em suas Oito
questões: «Posto que está estabelecido que um dia o conjunto dos católicos teve por Papa a uma
mulher, não resulta incrível que um dia um herege possa ser considerada Papa, embora não seja
a verdadeira Papa ("verus Papa")» .
um pouco antes, a princípios do século XV, o arcebispo dominicano de Florência, São Antonino,
tinha incluído a história da papisa (segundo a versão do Martín o Polonês) em sua Crônica, e a
comentava utilizando a distinção ockamista entre o fato e a fé, distinção de importância capital
para a difusão da história da Juana: «Mas se a história é certa, não é prejudicial para a salvação,
já que durante esse tempo a Igreja não ficou privada de sua cabeça, que é o Cristo; Ele a
sustentou na corrente da graça; e os efeitos últimos dos sacramentos que ela ( a papisa)
administrava tiveram efeito para quem os aceitou dela com devoção, porque os receberam da
graça. É certo que esta mulher, como de fato nenhuma outra mulher, não podia levar o estigma de
nenhuma ordem sagrada, nem de distinguir a eucaristia; também é certo que não podia praticar
"de facto" a ordenação nem absolver os pecados; e portanto os fiéis nada receberam que ela. Não
obstante, Cristo supria com sua graça os sacramentos de quem os recebia dignamente; e a
ignorância do fato ("ignorantia facti") desculpava-lhes da falta» .
Esta distinção entre o fato e a fé podia conduzir a separar a obra (inspirada pelo Espírito Santo)
de seu autor (um indivíduo usurpador presente fisicamente, mas cuja falta de graça a supre o
Espírito Santo ou o mesmo Cristo). Nesta ordem de coisas, Leão do Orvieto, depois de chamar
usurpador ao Bonifacio VIII, e depois de assinalar que gotejava maldade e astúcia, orgulho,
avareza e avidez, declara que «compôs o sexto livro das lhes Decrete que contém numerosas
coisas boas e úteis» . Em conseqüência, poderíamos nos perguntar se a referência do Juan do
Mailly ao Jejum do Témporas (instituído pela papisa, e conservado pela liturgia católica) não
ilustraria esse desdobramento. Há autores que inclusive atribuem a Juana a composição dos
prefácios da missa; Martín Lefranc, por exemplo, preboste da Lausana por volta de 1450, e
secretário das Papas Félix V (o antipapa Amadeo VIII da Saboya) e do Nicolás V, menciona em
términos elogiosos a susodicha atividade litúrgica da Juana, isto é os prefácios, em seu poema
francês O campeão das damas: «Mas deixemos os pecados, diciendo/Que era clériga
ilustrada/Cuando ante os mais cualificados/De Roma teve a saída e a entrada/Todavía te pode
mostrar/Numerosos prefácios que dictó/Hermosa e santamente engalanados/De os que jamais
duvidou a fé» .
Juana nas fronteiras
A construção do Ockam e dos espirituais não determinava uma partilha entre a ortodoxia e a
heresia, mas sim alimentava, ou em qualquer caso desenvolvia, um espectro permanente no
processo de avaliação: os pontificalistas mais ardentes reduziam o engano do fato a alguns
acidentes isolados; para os espirituais, entretanto, ditos enganos eram cada vez mais freqüentes à
medida que se aproximava o fim do mundo; e, por último, só bastava vinculando entre si as
imposturas para que se convertessem em história, e chegar assim à conclusão herética de que a
Igreja aparente constituía uma mentira permanente, e, em definitiva, um impedimento para a
verdadeira Igreja. Do cisma bávaro à secessão herética não havia mais que um passo, e foi Wyclif
quem franqueou a barreira, tomando à desgraçada Juana como refém.
Trinta anos depois do Ockam, Wyclif (1330-1384) conheceu um destino bastante análogo ao do
franciscano inglês, mas com a diferença capital de que ele, Wyclif, não ingressou na ordem de
São Francisco. Pelo resto, também se educou em Oxford, também contou com o amparo de um
monarca antipapal, neste caso o rei da Inglaterra, e também foi condenado. Suas respectivas
eclesiologías apresentam rasgos comuns e ambas se apóiam em uma oposição entre a Igreja
aparente («visível» segundo Wyclif) e a Igreja real. Mas enquanto que para o Ockam dita oposição
é contingente e pode reduzir-se no momento em que à cabeça da Igreja se encontre um pontífice
como Nicolás III, para o Wyclif se trata de um problema permanente que reforça o desdobramento
eclesiástico. Mas, o que é mais, Wyclif entende que a predestinação faz que o papel da
instituição, quer dizer da Igreja, seja por completo secundário. De maneira que, enquanto que o
nominalismo do Ockam lhe permitia essa bela construção católica que fazia que se deslizassem
um sobre outro os planos da realidade eclesiástica, integrando assim todos os dogmas cristãos, o
rude e sumário realismo do Wyclif lhe conduzia sem duvidá-lo à separação, à secessão, ao
rechaço da transubstanciación, e, em definitiva, à dura tautologia reformada (escolhido-los são os
Escolhidos). A partir de então, o papel da papisa, que Wyclif chama Ana, consiste em provar a
decadência progressiva da Igreja romana. Em 1382, e em um opúsculo contra a cruzada
(Cruciata) organizada por Urbano VI o iniciar o Grande Cisma, Wyclif relata o episódio da papisa
para negar todo poder espiritual à cúria: «Nas crônicas apócrifas se destaca freqüentemente que
a assembléia dos cardeais foi enganada a propósito do sexo de uma Papa, escolhendo como
Papa a Ana, quem estava grávida; seja como for, o certo é que se pode enganar à assembléia de
cardeais até o ponto de escolher Papa a um demônio que odeie a memória de Cristo e transtorne
a Igreja» . depois de recordar o precedente do Judas, Wyclif concluía afirmando que só os atos de
um homem autorizam uma «hipótese provável» sobre seu poder espiritual; em conseqüência, a
Igreja não goza já de nenhuma graça. A Juana do Ockam flutuava sobre o plugue de cortiça do
«fato», e o feliz nadador franciscano, levado pela corrente da graça crística e eclesiástico pôde
evitá-la, como de fato «evitou» ao Juan XXII; mas a Ana do Wyclif amarra seu lastro satânico à
Igreja e lhe faz sombra.
Juan Hus (1369-1415) radicaliza ainda mais a postura do Wyclif e termina de comprometer a
nossa papisa. Utilizou a história da Juana, a quem chama Inés, em sucessivas .ocasiões;
tomemos a última, a mais dramática, a que figura em sua defesa a raiz do processo que se seguiu
contra ele na Constanza em 1415, e que pudemos conhecer graças ao relato emocionante de seu
discípulo Pedro do Mladonovic : em 8 de junho de 1415, o tribunal verifica a autenticidade de
certas proposições extraídas do tratado do Hus, Da Eclesia («Sobre a Igreja»); de acordo com o
capítulo 14.° da acusação, que se refere a sua vez ao capítulo XIII, ao parecer Hus tinha
pretendido que o pontífice só era o chefe de uma igreja particular, salvo no caso de que estivesse
destinado Por Deus. Hus se reafirma no dito com o seguinte argumento: «É evidente, de outro
modo a fé cristã seria embusteira, como quando a Igreja foi enganada pelo Inés.» O mesmo dia,
Hus repetiria seu argumento quando se estava examinando o primeiro artigo de seu tratado contra
Estanislao do Znojmo. Mais tarde, e a propósito de artigo 4.°, o acusado acrescentaria: «Graças a
seus discípulos repartidos por todo mundo, Cristo governa melhor a Igreja sem essas cabeças
monstruosas (= a Papa e os cardeais). De outro modo, como teria podido a Igreja, em tempos do
Inés, ver-se privada de cabeça, se não tivesse sido porque vivia de seus membros, que são quem
goza da graça de Cristo?» Repete a mesma formulação no curso da audiência celebrada em 18
de junho. Em 6 de julho de 1415, Juan Hus morria devorado pelas chamas da fogueira.
O perigoso desenvolvimento da maquinaria franciscana, que contribuía a um mesmo tempo à
instauração da infalibilidade papal e ao rechaço radical da legitimidade sagrada de Roma, tem-nos
feito cruzar, quase sem nos dar conta, o momento crucial do Grande Cisma (1378-1415).
Entretanto, foi então quando Juana desempenhou seu último papel católico; era um papel mais
modesto que o que tinha desempenhado na grande dramaturgia franciscana, já que Juana teve
que contentar-se com o emprego jurídico (e já não eclesiológico) criado para ela pelo Polonês.
Durante este período no que os juristas enfrentados rivalizavam em virtuosidad demonstrativa, o
caso da Juana só tinha o valor de uma ilustração. Os professores de Oxford, a quem em 1399 a
universidade de Paris sugeria que se sustrajeran da obediência, apoiando-se em casos
precedentes (Anastasio II, Calixto II), replicavam que o direito diz o que deve ser, não o que é .
Sigamos, pois, essa última etapa da carreira clerical da Juana.
Juana no Cisma
Em 7 de abril de 1378, Bartolomé Prignano é eleita Papa com o nome de Urbano VI. O conclave,
detento de suas divisões internas, debate-se em muito dúvidas; por sua parte, o povo romano se
impacienta e inquieto ante uma possível marcha ao Aviñón exige uma Papa italiana e ameaça.
Estalam as revoltas, e o conclave treme até o ponto de disfarçar de Papa ao velho cardeal
Tebaldesqui para aplacar a exigência popular. Mas Urbano VI, eleito em um clima de divisão e de
obrigação, e, o que é mais, em ausência do poderoso cardeal francês, Juan da Grange, logo
desagrada à cúria por sua baixeza, que deseja livrar-se dele e lhe ameaça a demitir; Urbano se
nega. Mas Juan da Grange, de volta já a Roma, promove a eleição de uma nova Papa na pessoa
do Roberto da Génova, quem toma o nome de Clemente VII. Ao não poder ocupar a sede de
Roma, Clemente teve que instalar-se no Aviñón, dando assim lugar ao Cisma. As nações cristãs
se dividiram entre as duas obediências (urbanistas e clementista, romana e aviñona), mas o rasgo
tem raízes mais profundas, posto que está instalado no coração mesmo das consciências cristãs.
Entre 1378 e 1415, toda a cristandade discutirá sobre a legitimidade e o poder papal em um
debate sem fim, e Juana aparecerá nos argumentos mais variados. Porque, de fato, a papisa se
disposta a todas as soluções que contemplem a conclusão do insuportável cisma, conclusão que,
segundo os contemporâneos, poderia alcançar-se através de três vias: a Via factis, a Via
cessionis e a Via conventionis.
— Via facti (Via de fato). Em um princípio se pensou que cada partido podia esmagar ao outro.
Esta denominação bélica (o «fato») citava implicitamente a aventura da Juana em sua versão
ockamista: uma Papa ilegítima refletia o fato, e não a fé ou os costumes. antes de que Martín o
Polonês fizesse morrer a Juana nos dores do parto, Juan do Mailly e Esteban do Borbón
apresentavam como um fato normal sua lapidação sem julgamento de mãos do povo e da Igreja
de Roma.
— Via cessionis (Via do retrato). Em 1395, a corte da França, que em seu dia impor a obediência
clementista à Universidade de Paris, deixou-se convencer por esta última de que a solução da
crise passava por retirar sua adesão às Papas do Aviñón (Clemente VII, e logo seu sucessor
Benito XIII). Esta «sustracción de obediência» (que segundo Bernard Guenée deve traduzir-se por
«negativa de obediência» o que permite medir melhor seu terrível alcance) , levava, de fato, à
deposição da ou das Papas, em caso de que não se obtivera sua abdicação; mas esta via
pertencia ao âmbito jurídico.
A história da papisa sugeria que a cautela era necessária por partida dobro. Por um lado, podia
anular uma eleição pontuada de ilegalidade; e, por outro, devia sobressair o interesse da Igreja e
autorizar a destituição em caso de escândalo. O primeiro argumento se remontava a 137, quando
os cardeais franceses fizeram prevalecer seu critério sobre a eleição de Urbano VI: uma eleição
imposta pela pressão popular, e obtida sob o império do temor («timor»: caso canônico de
nulidade de decisão), carecia de valor.
Vários anos mais tarde (e antes de que a França abandonasse às Papas do Aviñón), Felipe do
Mézières recorria precisamente à lembrança da Juana para sustentar idêntico argumento no
Sonho do velho peregrino (por volta de 1386). Felipe, antigo conselheiro do Carlos V da França, e
antigo chanceler do Chipre, consagrou os últimos anos de sua vida à devoção e à redação desta
magna obra, onde pregava a necessidade de uma reforma geral da cristandade, incitando não só
a volta às cruzadas, mas também também à resolução do cisma. No primeiro livro da obra, o
Velho Peregrino, por nome Ardente Desejo, escoltado pela Boa Esperança, parte em busca da
Rainha Verdade até o fundo do deserto egípcio, para convencer a de que retorne a viver entre os
homens e ficar com eles. Reina-a aceita pôr a prova à Cristandade percorrendo o mundo, para
encontrar um lugar digno de sua estadia. A busca do assentamento ideal, tão imensa como vã,
desenvolve-se, pois, da Índia até os Países Baixos, e o passo por Roma oferece a nossos
viajantes o espetáculo de um desfile de homens com cabeças de animais. Verdade não pode
suportar por muito tempo a presença das três deidades que ali se veneram: a Ambição, a Simonía
e a Avareza. Pouco depois, chegam ao Aviñón, onde se encontra um consistório dominado à
maturação pelo Orgulho, a Avareza e a Luxúria. Esta última, Luxúria, ao lhe descrever a Verdade
seu ascendente sobre a corte papal, diz-lhe: «Senhora reyna, como lugar-tenente de nosso Pai
[Deus] em aquesta corte da Rorama, eu fize reynar a uma mulher, quem era vinda da Inglaterra» .
Pouco depois, Ardente Desejo se serve desta alusão para sugerir a sua vez um programa que
resolva o cisma: «para que finalizem portanto as grandes duvida e perigos da sorte divisão e dos
argumentos sutis dos Ytalianos e até de outros da parte contrária.» Em efeito, os cardeais podem
desfazer uma eleição papal em caso de engano ou de pressão física: «Aqueles têm um poder tal
que se ao escolher ao soberano pastor são enganados de algum modo, já que são homens, por
ignorância, como o foram pela mulher que foi Papa, ou por razoável medo e manifesta opressão,
como em nosso caso aconteceu, ou por simonía e outros casos vários escriptos em decretos e
divina escriptura, os ditos cardeais têm pleno poder para retratar suas dificuldades sem autoridade
de outro, e facer nova ou novas eleições válidas segundo o direito divino e positivo» .
Em um contexto diferente, e longe dos assuntos próprios da França e do Aviñón, encontramos de
novo este tipo de argumento, quando se tratar de rechaçar a outra Papa supernumerário. Dietrich
do Niheim, algo dignatario da Igreja, e que já tinha dado conta da história da Juana em sua
História das gestas dos imperadores romanos , apresentava assim o direito a desfazer uma
eleição papal, ao dirigir-se ao Juan XXIII (1410-1415), quem tinha acontecido ao Alejandro V
como «terceira Papa» eleita a abdicar depois do fracasso da operação: «E se o senhor Papa diz:
"celebrou-se em Pisa em um concílio verdadeiro, santo e justo; o que ali se decidiu é santo e justo
e os dois que foram rechaçados (Gregorio XII o romano e Benito XIII o aviñonés) não devem ser
escutados". (Resposta) "O concílio pode ser santo e justo, mas a eleição que do mesmo resulta
pode ser nula por numerosas razões, por um defeito na pessoa ou na forma, se o eleito é inepto,
ou insuficiente em seu saber, ou criminal" ». A fórmula final do Dietrich corresponde exatamente à
desqualificação jurídica da Juana por parte do Martín o Polonês. É mais, uma das versões da
Juana pelo próprio Martín mencionava o fato da destituição da Juana. Por sua parte, o Eulogium
Historiarum (por volta de 1366) confirmava este fim jurídico («ipsa deposita est») . Mas inclusive
neste debate jurídico, a Juana franciscana conservava suas posições. Quando os professores da
Universidade de Cambridge se negaram, em 1399, a sustracción da obediência, empregaram, a
propósito de Urbano VI, a linguagem eclesiológico dos espirituais, e não o vocabulário jurídico dos
canonistas: «Não podemos supor que homens de tanta autoridade (= os cardeais) tenham
proposto a toda a cristandade um falso (fabum) vigário de Cristo...».
A segunda justificação do retrato, que contempla a primazia da paz da Igreja em caso de
escândalo, foi desenvolvida a sua vez pelo Juan do Gerson (1363-1429), essa figura capital da
Igreja francesa de finais do século XIV. O dia da festividade da Circuncisão de 1403, Gerson
prega no Tarascón ante o Benito XIII, sucessor de Clemente VII, seqüestrado desde 1398 pelo
poder francês, sob a influência da Universidade de Paris e de seus dois grandes doutores: o
próprio Gerson e Pedro do Ailly, com dito sermão, Gerson tenta, uma vez mais, induzir à Papa à
abdicação: «Segunda consideração. Tudo poder, dentro da hierarquia eclesiástica, está orientado
para a paz salvadora... Conforme parece, a paz salvadora pode romper-se com a persistência de
um poder eclesiástico, no caso do Juan, por exemplo, enquanto que a destituição de dito poder
devolveria a paz; nesse caso, rechaçar dito poder é fazer bom uso do mesmo: conservá-lo-se
converte em um abuso. Por outra parte, não se encontra nenhum poder que não se submeta à lei
divina e natural, que não seja suscetível de pecado, de supressão, de suspensão e de abdicação»
. Tradicionalmente, viu-se neste Juan, ao que se refere Gerson em seu sermão, a nossa papisa,
embora dita interpretação não parece tão clara, pois Gerson podia estar pensando igualmente no
Juan XII, expulso pelo Otón no 964, embora esta identificação tampouco nos convence de tudo.
Seja como for, o certo é que a brevidade da alusão tinha que incluir, embora fora de forma
adventícia, a lembrança da Juana .
Em outro momento posterior deste mesmo sermão, a referência a Juana está presente de
maneira explícita a modo de exemplo perfeito de uma situação, na qual a Igreja, em seu conjunto,
equivoca-se, a risco de condenar-se. O fiel («todo homem capaz de raciocinar», segundo o
próprio Gerson) tem, pois, o dever de fazer sua a salvação da Igreja: «E estas circunstâncias, que
contribuem a dissensão à presente cisma, são tais que o objeto essencial do conflito implica não
só o engano de tal ou qual pessoa a risco de sua própria salvação, mas também o engano ou o
engano no seio mesmo da Igreja, como quando, faz muito tempo, honrou como Papa a uma
mulher» .
Mas Juana, com sua perpétua agilidade, também servia para combater o fideísmo anti hierárquico
do Gerson, o que contribuía a uma debilitação do Papado, inclusive se Gerson não tinha as
perspectivas «pre-gálicas» exibidas pelo prelado francês Simón do Cramaud em seu tratado
Sobre a sustracción de obediência (1396) . Em efeito, o franciscano Juan do Rocha, que tinha
vindo ao concílio da Constanza em qualidade de vigário do ministro geral dos franciscanos da
Observância (herdeiros longínquos dos Espirituais), lançou contra Gerson, durante a sessão de 25
de outubro de 1415, a idéia da necessidade absoluta da hierarquia eclesiástica, com
independência da qualidade pessoal das Papas. Neste caso, Juana já não apresenta o engano ou
o engano, a não ser outro mal, de maior envergadura, qual é o da suspensão da ordem:
«Primeiro, o estatuto hierárquico da Igreja perde toda sua certeza e toda sua segurança se não
haver nenhuma Papa; e este estatuto também foi incerto quando Juan da Maguncia reinou como
Papa» .
— Via conventionis (a via do acordo conciliar). Desde o começo do cisma, teólogos de ambas as
partes tinham proposto uma solução ao cisma pela via do concílio geral (Vicente Ferrer e Nicolás
Eymeric por parte dos clementistas, e Conrado do Gelnhausen e Enrique do Langenstein por
parte dos urbanistas). Por volta de 1408, fartos já da situação, numerosos cardeais e prelados se
reuniram em uma terceira partida conciliarista que, em 1415, colheu o fruto de seus esforços
convocando o concílio da Constanza. A idéia conciliarista não era nova no século XV, mas o
cisma fez que acontecesse primeira fila das teorias que limitavam o poder das Papas, ocupando o
lugar da ideologia oligárquica desenvolvida entre os séculos XI e XIII pelos grandes canonistas,
em torno do sacro colégio cardenalicio. Embora Ockam nada tinha de conciliarista, o certo é que
sua dialética eclesiológica influiu nos teóricos do concílio do período cismático. Porque, em efeito,
distinguiam entre a potestas habitualis (o poder habitual, substituam-lhe) e a potestas actualis
(poder atual); só a comunidade dos fiéis ou a Igreja mesma detêm o primeiro poder: a Papa só
dispunha do poder «atual», e portanto podia ser desposeído pela Igreja, representada a sua vez
pelo concílio. Encontramos aqui a distinção do Ockam entre o fato (terá que aproximar o «factum»
e o «actus», quer dizer, o ato ao que se reduz o poder papal) e a fé, entre o indivíduo investido (às
vezes travestido) e a instituição sagrada, de acordo com um esquema que, por uma nova ironia da
história, investe com exatidão a teoria dos dois corpos do soberano (como que uma teoria,
indefinidamente reversível, não é uma coisa, a não ser um vocabulário atualizado
permanentemente no discurso). Juana, mulher e Papa, representava muito bem a dualidade
desse poder, e Dietrich do Niheim, o conciliarista mais resolvido de seu tempo, foi também o
biógrafo mais prolixo e mais convencido da papisa.
Juana e os cães de Deus
Entre 1250 e 1450, Juana foi uma fiel sirva da Igreja, a que serve e seguiu com sua ágil
dialética pelos desvios sinuosos do discursos católico, detento a sua vez das garras do tempo e
também da urgência. A papisa, mãe das paradoxos e dos investimentos, recebeu toda sorte de
mímicos por parte dos dominicanos (Juan, Esteban, Martín, Jacobo, Arnoldo, Bernardo, Tolomeo,
etc.); mas foram seus velhos rivais, os franciscanos, iniciadores farto balbucientes em
comparação com os hábitos pregadores, quem proporcionaria a Juana o fio de um argumento e o
agudo de uma suspeita. A hipótese da rivalidade poderia, possivelmente, superar o âmbito
específico da habilidade dialética, para nos situar ante uma dramática orquestração dos temas
dominicanos por parte dos franciscanos.
Mas possivelmente também fora preciso matizar esse enfrentamento, destruindo parte do que
havemos descrito mais acima como a rede a Dominica, seu instrumentalidad, pois a continuidade
cultural sem dúvida mascara quão vazios de fato existem. Não há nenhuma medida entre a
transcrição de um rumor, que se produz em um convento do Metz ou do Lyon, e sua inscrição em
uma história das Papas redigida a sua vez por um capelão pontifício. Neste sentido, descuidamos
um detalhe importante: a Papa que protegeu ao Martín o Polonês, e o mesmo que lhe consagrou
bispo em 1278, no momento preciso da redação da terceira (?) edição da Crônica (em que figura
Juana), chama-se Nicolás III, quer dizer a Papa mais autêntica aos olhos dos franciscanos, como
já vimos.
Dizemos que é importante porque o pontífice e o dominicano representavam, respectivamente e
ao mesmo tempo, a regra da autenticidade (Exuit qui seminat) e a narração original da impostura.
Dita proximidade faz vacilar a imagem dos dominicanos como mediadores prudentes, se
aceitamos magnificar o significado dessa junta que se produz em 1278. Martín conta à Papa
angélica, perto da Papa angélica, até que ponto a dignidade suprema está próxima de sua
subversão total. Desde esta perspectiva, desempenha o papel de um louco pela Papa, que alude
ao investimento possível (de fato, como diria Ockam, a Papa é uma mulher) para assim realçar
melhor o investimento que se faz necessária (investimento de fé, diria aqui Ockam: a loucura em
Cristo; uma mulher também pode, em caso de que a Igreja desfaleça, constituir-se em última
depositaria da graça, como dizia a sua vez Pedro do Juan Olivi). Nesta ordem de coisas, vem a
nossa mente a figura do louco Ramón na novela Blaquerna, do franciscano Ramón Llull (12331315), ou Raimundo Lulio, como se prefiro: «Chega a corte papal um homem com os cabelos
rapados, com um gavião e um cão»..., que diz: «Para elogiar a Deus e condenar os vícios da corte
de Roma, Ramón o Prudente (o Sábio) tomou estado de louco.» O cão do Ramón, atributo
tradicional do louco Por Deus nos recorda que os franciscanos não foram em modo algum os
únicos em reivindicar o estatuto dos loucos, dos «bufões de Deus» («Joculatores Dei»); já que,
além disso, os dominicanos conservaram cuidadosamente a lembrança da etimologia que davam
no nome de seu fundador: «Domini Canis» («o cão de Deus»).
O acontecimento capital desta crônica da Juana a católica adquire neste ponto um caráter mas
bem opaco, posto que nos propõe o seguinte interrogante: a narração de 1278, procede da
necessidade cultural da transmissão a Dominica, quantitativamente estabelecida, ou da eleição
ideológica de uma história «espiritual» (dominicano-franciscana) qualitativamente significativa? A
apresentação seriada dos relatos, no cabeçalho do capítulo, prima a primeira hipótese, enquanto
que a contextualización das juntas de 1254,1278,1294 e 1378, que opera em torno das
sucessivas variantes que constituem a série narrativa, sugere-nos a segunda hipótese. De
maneira que nos encontramos de novo ante o dilema exposto inicialmente e que não resolvemos.
E, entretanto, todo o sentido da Juana depende da solução a dito dilema.
Só o final da carreira católica da Juana, a partir de 1450, pode deter estes ciclos recorrentes de
aparições e de hipótese. Mas antes de que a expulsassem fora do discursos clerical, tenso e
cansativo, no que Juana, mulher apaixonada, sempre encontrou desfrute pessoal, a papisa soube
escapulir-se fora da igreja para afirmar que ela era, acima de tudo, mulher e não somente pseudoPapa...
CAPITULO V
A papisa e suas irmãs
Desde 1450, Juana passaria pelas mãos de centenas de milhares de homens que além de
conhecê-la desfrutaram com ela. No curso de seu desenvolvimento cósmico, fora já do recinto
romano e da oficina clerical, a papisa entra no âmbito do jogo e se converte em uma figura do
Tarot, esse jogo de naipes inventado em meados do século xV, entre a Ferrara e Melam. É então
quando a papisa invade o mundo, pois se chegou a estimar que só na França se fabricou mais de
um milhão de jogos no século XVII. Atualmente, a venerável casa Grimaud segue imprimindo a
figura da Juana...*
A papisa recuperava assim sua carnavalesca existência inicial, embora o horizonte, ao ampliar-se,
tinha trocado de tonalidade. Já não refletia a púrpura romana, mas sim surgia prenhe de matizes
variados e contrastados. No carnaval se substitui e se investe, enquanto que no jogo se dispõe e
se compõe. A mutação da Juana, convertida agora em figura de naipes, coroava e propiciava seu
passo ao âmbito da alegoria.
Juana como alegoria
No Tarot, a papisa, quarto dos «triunfos», significa, pois, um triunfo, um lucro. distribui-se e se
disposta ao jogo de maneira decisiva. Sua figura representa uma dominação feminina fingida ou
construída vitoriosa ou perdedora, combinada com outras figuras em uma série indefinida de
ações (as «mãos» ou as «vazas»), variadas e recomeçadas sem cessar. Vejamos o que significa
para nós o Tarot, em si mesmo alegórico: trata-se de uma particular construção do papel feminino,
em relação com o saber, com a ambição, com o amor, e com o sagrado, no espaço distributivo da
ficção lúdica, fantasmagórica ou literária, que se toma como ocasião e ocorrência de uma alegoria
existencial.
A data indicada ao princípio deste capítulo pode despistar ao leitor, pois 1450 não proporciona
uma sucessão lúdica ao discurso clerical, suspenso provisoriamente nessa mesma data, a finais
do capítulo anterior. A leitura alegórica da Juana duplica sua leitura eclesiológica, mas não a
substitui, pois uma e outra se separam insensivelmente. Por volta de 1360, Boccaccio tinha
desviado à «verdadeira» papisa da Igreja para a literatura, mediante pequenas transformações.
Acrescentava alguns detalhes mais aos que proporcionavam os cronistas eclesiásticos, e seu
relato podia passar perfeitamente por uma singela amplificação. De fato, a construção mesma que
faz Boccaccio da vida da Juana reflete um tratamento muito distinto da história, «literária», que
tentaremos definir mais adiante. No momento, assinalemos somente que da papisa de igreja a
papisa «laica» se aprecia uma dobro mutação: na tematización da figura e na forma de adesão
que registra sua história.
Em primeiro lugar, Juana se introduz em um sistema de oposição de papéis (sexuais, sociais,
morais) e abandona a galeria papal, onde só serve já de elemento diferencial e anormal do
pontificado. Com o Boccaccio passa a formar parte de uma série de 106 «mulheres brilhantes», e
no Tarot entra na também serie reduzida dos «triunfos», dos lucros, representados por condições
ou cenas que simbolizam a vida humana, bem longe do círculo clerical.
Em segundo término, [o que pretende] o jogo literário ou lúdico não quer dizer a verdade (ou uma
verdade), como a crônica, a não ser significar (pelo menos antes de que o jogo caia no estereótipo
do «gênero», ou no automatismo da regra).
Como se produz este passo, ou melhor dizendo, este trânsito? Deve descartar-se qualquer
resposta singela e falsa. Poderia pensar-se que foi suficiente transpondo a soleira, bordando»,
como de fato se passou da vaga lembrança de um conde carolingio morto pelos bascos, à figura
do Rolando. Mas nem Rolando nasce tampouco de semelhante deslize, nem Juana encontra em
dita trasposición sua conversão «laica». Este espaço de acolhida (algo assim como a «literatura»
ou a «ficção») não existe como tal na Idade Média. A imaginação lúdica medieval nem imita o real
nem rompe com ele, de maneira que a presença da Juana no Boccaccio ou no Tarot não significa
o desalojamento da papisa histórica, a não ser justamente o contrário, quer dizer, que se tomou
notícia de seu sentido multiplicando-o.
A papisa, extraída de seu contexto eclesiológico, contempla como se desenvolvem seus rasgos
individuais: seu femineidad disfarçada, sua sabedoria, sua sexualidade, sua ambição obtida e logo
fracassada. Assim, pouco a pouco, converte-se em uma figura livre, ambivalente (inclusive
embora seu sentido fique circunscrito a tal ou qual contingência particular), em um tipo simbólico
aberto a distintos graus de adesão.
Juana se converteu, pois, em uma imagem poderosa e turbadora, e é significativo que fora
precisamente a produção alegórica a que gerasse a sua vez uma criação iconográfica, ausente da
tradição clerical. dentro da representação figurada da Juana, e antes de que nos invada a maré
luterana que nos ocupará no capítulo seguinte, é preciso deter-se em duas fontes: as imagens do
Tarot e as miniaturas que iluminam os manuscritos do Boccaccio. Para não nos extraviar pela
série contingente das narrações laicas (ou simplesmente não eclesiológicas) sobre a figura da
Juana, tomemos como estas pontos de partida duas séries de imagens, pois são como pontos de
emergência das leituras alegóricas da história da papisa.
O acesso a Juana se faz difícil. Até o momento, limitamo-nos a seguir certas lógicas rituais ou
textuales que nos guiavam por um caminho historicamente balizado com referências sucessivas,
inclusive quando o desvio às vezes parecia mais seguro que o caminho reto. Aqui, ao abandonar
a poderosa estrutura eclesiástica, vemo-nos obrigados a errar de uma imagem a outra, sem
garantia alguma, e durante um período de tempo no que se alternam a lentidão do processo
simbólico (produtor do tipo) e a instantaneidad da figura (produtora da presença). Em primeiro
término tomaremos o Tarot, baralharemos as cartas e as distribuiremos para observar as
configurações que revelam, tentando a um tempo indicar as regras do jogo. [Parece-nos
preferível] a incerteza de semelhante procedimento às aproximações arbitrárias da cartomancia,
que glosa cada figura por separado.
A invenção do Tarot
Examinaremos em primeiro término (e sem preocupações cronológicas) a aparição figurativa da
papisa no jogo do Tarot. Para isso, serviremo-nos do tratado enorme, erudito e singular que o
grande lógico de Oxford, Michael Dummett consagrou, como passatempo intelectual, ao Tarot .
Os jogos de naipes aparecem tardiamente no Ocidente, e os primeiros testemunhos estão
datados por volta do 1375. A origem do jogo de naipes, embora tão incerto ainda como discutido,
situa-se ao parecer no mundo islâmico. Por sua parte Ocidente, ao receber o suporte material do
jogo (as cartas) confere-lhe duas características essenciais: a jerarquización das «honras» (rei,
dama e pajem) e o princípio da vaza (do turno de jogo). A invenção do Tarot, datada entre o 1430
e o 1450 aproximadamente, apresenta-se como um desenvolvimento particular do jogo ordinário.
Neste sentido, Michael Dummett demonstrou sobradamente que até o século XVIII (até o
calvinista ginebrino Court do Gébelin, precisamente), o Tarot não comportava nenhuma dimensão
ocultista ou astrológica. Ao igual ao jogo ordinário, o Tarot se compõe de quatro cores, cada um
dos quais consta a sua vez de dez cartas numerais (do 10 ao ás, em ordem descendente) e de
quatro «honras» (em lugar de três como no jogo ordinário): o rei, reina-a, o cavalheiro e o pajem.
Mas a especifidad do Tarot (onde intervém Juana) reside na existência de 22 cartas
suplementares que constituem triunfos permanentes, enquanto que em um jogo ordinário se erige
em triunfo a uma das cores, bem por efeito do azar, bem por acordo prévio; em conseqüência,
essas 22 cartas suplementares recebem o nome de «triunfos», quer dizer, o que na linguagem
corrente contemporânea se conhece como «tarots», ou «ocultos» nas derivações astrológicas
tardias. Os 22 triunfos (que em realidade são 21 triunfos mais o louco) do Tarot estão
representados por figuras humanas ou alegóricas, cujo tema variou no transcurso da história, mas
cuja estrutura essencial permaneceu inalterada. podem-se classificar em três séries aproximativas
segundo o tema figurado: as filas (Papa, papisa, imperador, imperatriz e bufão); alegorias morais
(amante, carro, roda da fortura, ermitão, enforcado, justiça, moderação e força), e símbolos
cosmológicos (morte, diabo, casa-dios, estrela, sol, lua, mundo e julgamento). Estas figuras
hierarquizadas não recebem sua correspondente numeração (de 1 a 21) e lenda até o século
XVII; mas se nos negamos a confiar na grande estabilidade do jogo desde sua criação, então
temos que considerar um texto de finais do século XV, escrito na Ferrara (lugar de nascimento do
Tarot), que proporciona, em italiano, uma lista numerada dos triunfos .
Juana no Tarot
A papisa se inscreve na quarta fila, na ordem ascendente, entre o imperador e a Papa.
Tecnicamente, os triunfos forçam até o extremo uma tendência estrutural do jogo de naipes, que
introduz o desequilíbrio hierárquico (os lucros) no equilíbrio aleatório (partilha simétrica das cores
e distribuição igual das cartas). Desde este ponto de vista, a eleição e a classificação hierárquica
de tal ou qual figura é tão arbitrária como a presença do Montesquieu em um bilhete de 200
francos, já que poderia ser substituída pelo Diderot, ou iluminar bilhetes de 10 ou de 500 francos.
Não obstante, posto que de quem se trata aqui é da papisa e não do Montesquieu, a presença da
Juana sugere um exame dos temas representados pelas figuras dos triunfos.
No século xV, os triunfos não constituem um sistema legível; em efeito, não conhecemos
nenhum uso antes do século XVIII que nos permita considerá-los nem em sua totalidade nem em
sua ordenação de conjunto. Entretanto, as figuras tampouco nos parecem arbitrárias; quer dizer,
que pela mesma razão, se Montesquieu tiver um valor convencional de 200 francos, é porque sua
eleição procede de uma norma cultural implícita, definida a sua vez por uma série de
determinações: lhe escolhe entre os «grandes homens», e a conotação de gravidade, de herança
cívica, faz que lhe confira precedência frente a Diderot, para um uso estranho e lento (distinto do
que se faz do selo postal, por exemplo). Nesta ordem de coisas, a eleição das 21 figuras no
século XV responde igualmente a vagas constrições de seleção; assim, pode advertir uma
dialética da ordem (social, moral, cósmico) e de sua transgressão (a distribuição, fonte de lacunas
e de transtornos), intimamente vinculada ao tema da roda da fortuna, de tanta importância nesse
«outono da Idade Média» sumido na melancolia . Reconhecemos também esse gosto pelas
imagens de caráter simbólico que se desenvolve ao mesmo tempo que a moda pelas «divisas»,
isto é as imagens falantes que comportam o significado do que a heráldica clássica se limitava a
assinalar e classificar . Mas, além disso, podemos incluir deste modo neste pacote elástico do
«contexto» a tendência humanista a mesclar as referências culturais (alegorias, cristãs e antigas,
personagens reais e imaginários). Por último, a princípios do século XV se multiplicam os jogos
didáticos com imagem: «"Os deuses e seus atributos" do príncipe adolescente Felipe María
Visconti, duque de Melam; "Nosso Senhor e os Apóstolos", "as sete virtudes", "os triunfos da
Petrarca", "os planetas"... o jogo de "Governo do mundo" [que] tinha sido inventado pela Papa Pio
II e os cardeais Nicolás da Cusa e Juan Bessarion quando se reuniram na Mantua por volta de
1459» .
dentro de um contexto temático e cronológico muito próximo a nossos tarots se encontram os
famosos «tarots da Mantegna» (que não são nem tarots nem da Mantegna). Trata-se de 50
vinhetas dispostas em 5 séries de 10, que se identificam com letras, da E à, invirtiendo assim
(posto que se segue uma ordem alfabética ao reverso) o sentido da numeração geral do 1 aos 50.
A partilha das figuras parece mais sistemático que o do Tarot (hierarquia das filas: E, as Musas; D,
as artes e as ciências; C, os princípios morais e cósmicos; B, os planetas e as esferas; A), embora
compreenda quase todos os triunfos do próprio Tarot, pelo menos aproximadamente. A série dos
triunfos não tem um sentido, a não ser sentido, por empregar a expressão do Merleau-Ponty ao
referir-se à história; de maneira que provavelmente seja esta indeterminação —sentido, sem
mais— o que constitua o objetivo mesmo da série como metáfora do mundo.
A papisa adquire uma fila dentro da microjerarquía humana reduzida em abstrato a um esboço
das três ordens (guerreiros, sacerdotes e produtores: o «bufão» recebe freqüentemente o nome
de «mercado» ou o «artesão»). Uma Papa, bom, mas uma papisa? A resposta não se encontra
em uma suposta comodidade dos pares, dos casais, posto que «o bufão» permanece solteiro; por
outro lado, a presença de uma abadessa (com fila quase episcopal na Idade Média) tivesse
resultado possivelmente mais decente. Em conseqüência, a eleição da papisa pode explicar-se só
em função de duas razões, muito contraditória: uma cultura e outra contextual.
Por uma parte, a femenización da Papa procederia do investimento malicioso que se desdobra
em um jogo (a papisa é a única figura irredutível a qualquer das vinhetas sérias do pseudoMantegna). O investimento se produz ao longo de todo o jogo, de maneira que as cores do
coração e do ouro (ou suas equivalentes) investem os valores numéricos habituais (ordem
descendente do 1 aos 10, e não do 10 ao ás); o bufão, o mais fraco de todos os triunfos, permite
conseguir uma prima de pontos se vontade a última vaza, em cujo caso o vendedor (o mercado) é
quem pagamento («ultimo pagat», dizia-se na Alemanha jogando com o nome do bufão
«bagatto»). Neste lote benigno de investimentos lúdicos, a presença da papisa tampouco tem por
que surpreender. O grande conservadorismo das tradições de jogo, que conservou até nossos
dias as regras e as figuras do século XV, ajudou à manutenção da papisa, apesar de que no
século XVIII o gosto clássico a substituiu pelo Juno no Tarot do Besançon, e a pesar também de
que desaparecesse, junto com seus companheiros de representação, nos jogos fantasistas ou
ocultistas que se produziram com o passar do século XIX.
Mas o contexto de produção dos primeiros tarots proporciona um sentido particular à eleição
temática que teve lugar na Ferrara entre 1430 e 1450, aproximadamente.
O jogo Visconti-Sforza
Os três primeiros jogos que se conservaram estão formados por magníficas cartas iluminadas,
pintadas sobre um fundo estampado de ouro e de prata, e especialmente confeccionada para a
família Visconti-Sforza. O jogo mais antigo, sem dúvida prototípico, e que atualmente se conserva
na coleção Cary da biblioteca do Yale, foi encarregado pelo Felipe María Visconti (t 1447), como
se desprende dos brasões e divisas («A bom direito») que figuram nos naipes . O sétimo triunfo,
«o amante», apresenta além disso as armas da casa da Saboya, o que poderia implicar que o
matrimônio do Felipe Visconti com a María da Saboya, celebrado em 1426, pôde ser motivo do
encargo e da invenção. O estudo mais recente realizado sobre este particular atribui a fatura de
sortes cartas ao pintor Francisco Zavattari. Por desgraça, do maço de cartas que se conserva do
primeiro jogo (67 de um total de 89) falta precisamente a papisa, cuja figura encontraremos em um
segundo jogo, conservado a sua vez parcialmente em três lugares distintos: a biblioteca Pierpoint
Morgan de Nova Iorque, a Academia Carrara do Bérgamo e a coleção particular Colleoni. Este
segundo jogo foi pintado entre 1451 e 1453, aproximadamente, pelo Bonifacio Bembo (segundo
Roberto Longhi) ou pelo Francisco Zavattari (segundo Giuliana Algeri) . O decifração dos brasões
e divisas permitiu identificar ao personagem que o encarregou: trata-se do Francisco Sforza,
duque de Melam como resultado de seu matrimônio com Branca María Visconti em 1450.
Como havemos dito, neste segundo jogo Visconti-Sforza sim há uma papisa, representada da
seguinte maneira: está sentada em um trono e leva na mão direita o bastão papal rematado com
uma cruz estilizada, enquanto que com a esquerda sustenta um livro fechado. Luz tiara papal de
triplo coroa e viu um hábito marrom, muito singelo, apertado na cintura por uma franciscana de
nós; sobre os ombros, uma capa da mesma cor marrom. O rosto, voltado ligeiramente para a
esquerda, surpreende por sua doce gravidade. Não há, pois, nenhum elemento que conote nem
zombaria nem investimento. Por outro lado, a peculiaridade do hábito, quase franciscano, entre
signos papais, permitiu que Gertrude Moakley proponha uma hipótese interessante sobre ditos
naipes. Em um estudo iconológico bem documentado , esta investigadora norte-americana pôde
encontrar os modelos de certas figuras antropomórficas deste jogo na própria família SforzaVisconti. Assim, a papisa recordaria a memória da Manfreda do Pirovano, prima irmã do Mateo
Visconti, vigário imperial em Melam a princípios do século XIV.
A papisa Manfreda
Manfreda pertencia aos humilhados (Umiliati), esses laicos constituídos em ordens religiosas
de caráter urbano, muito ativos no norte da Itália, reconhecidos e respirados pela Igreja, mas
sempre ao bordo da heresia. De maneira que o hábito marrom de quão humilhados viu Manfreda,
a imitação do dos franciscanos, ficaria justificado. Mas, por que apresenta Manfreda com fila de
papisa?
O fato se explica à vista de sua surpreendente carreira de herege, pois Manfreda foi queimada
pouco depois de 1300, por ser discípula direta da heresiarca Guillerma.
Entre 1260 e 1271, chega a Melam uma mulher com um menino de curta idade, que se chama
a si mesmo Guillerma (ou Guillermita, Guillermina, etc.), e se faz passar por oriunda de Boêmia .
Seu discípulo, Andrés Sararita, morto na fogueira ao mesmo tempo que Manfreda, tinha afirmado
no curso de seu processo ante a Santa Inquisição que sua professora era a filha do rei de
Boêmia, Przémisl, e de sua mulher Constanza. Sua mensagem messiânica advertia da chegada
do fim do mundo, que estaria precedida pela chegada dela, da Guillerma, encarnação do Espírito
Santo.
Guillerma colheu certo êxito nos ambientes aristocráticos de Melam, e entre os humilhados,
constituindo uma associação de fiéis que vestiam o hábito marrom dos humilhados. Guillerma
exibia estigmas e possuía o dom de curar; morreu em 1282, e foi enterrada no cemitério
cisterciense do Claraval (o que demonstra a ambigüidade de sua situação). ao redor de sua tumba
se levantou uma capela com um altar, presidido por uma imagem da Guillerma, e se iniciou um
culto: os dias de aniversário de sua morte e do traslado de seu corpo, e o dia do Pentecostés
(festa do Espírito Santo) acendiam-se lamparinas, cantavam-se hinos e se recitavam letanías. Ao
ter notícia deste culto heterodoxo, a Inquisição se inquietou e mandou abrir um processo em 1300:
30 discípulos foram achados culpados, o que dá uma idéia do êxito da Guillerma, êxito confirmado
por outra parte no mesmo processo, onde se menciona um banquete da seita ao que acudiram
129 fiéis, recrutados entre as melhores famílias de Melam. Entre estes fiéis encontramos ao
Francisco Garbagnate, futuro professor de direito da Pádua e membro de uma família aliada dos
Visconti. A Inquisição ordenou queimar os ossos da Guillerma e enviou à fogueira aos três
discípulos mais destacados: Manfreda do Pirovano, Andrés Saramita e Jacoba dei Bassani (outra
humilhada).
O processo de 1300 permite precisar com bastante exatidão o estatuto pontifício da Manfreda,
sobre tudo se completarmos essa informação com a que nos proporciona a bula Dudum ad nostri
apostolatus, editada em 23 de março de 1324 pelo Juan XXII (decididamente casal decisivo de
nossa papisa) e as indicações do Reinaldi em seus Anais eclesiásticos. Juan XXII interveio muito
pouco depois do processo, sem dúvida porque a seita vivia ainda no rescaldo da fogueira, e a
Papa aproveitou esta ocasião para atacar a seus inimigos gibelinos do milanesado. Acusou ao
Mateo Visconti de ter protegido a sua prima Manfreda, e a seu filho Galeazzo de herege, assim
como a seu aliado Francisco Garbagnate. Digamos de passagem que tampouco nos surpreende o
fato, muito possível, de que os Visconti-Sforza do século XV, em todo momento resolutamente
antipapales, alimentassem a lembrança da Manfreda.
«Manfreda afirmava que o Espírito Santo se encarnou na pessoa de uma tal Guillerma, e que esta
Guillerma se beneficiou do encargo divino» . O corpo da Guillerma se confundia com o de Cristo,
mediante uma dobro e sucessiva encarnação: primeiro a do Verbo e logo a do Espírito. Guillerma,
morta e ressuscitada, apareceu-se antes de sua ascensão aos céus e tinha designado a Manfreda
como seu vigário, quer dizer como a verdadeira Papa. De fato, Guillerma tinha abolido à Papa e
aos cardeais, pois, segundo ela, Bonifacio VIII não tinha nenhum direito «porque não tinha sido
criado justamente» (uma vez mais, Manfreda pisa nos rastros da Juana).
Esta nova encarnação feminiza radicalmente o cristianismo: Manfreda nomeou cardeaismujeres, entre as que se encontrava sua faxineira Taria. A papisa assegurava a totalidade do
serviço divino na capela da Guillerma e na igreja da María Madalena de Melam; pregava,
distribuía a comunhão e se fazia beijar as mãos e os pés. Do mesmo modo, Manfreda redigiu, ou
mandou redigir, um novo Evangelho: «Ao igual aos discípulos de Cristo, escreviam evangelhos,
epístolas, profecias... Andrés (Saramita), ao trocar as chamadas, tinha escrito seus evangelhos,
epístolas e profecias assim: "Naquele tempo, o Espírito Santo disse a seus discípulos..."» .
Não podemos por menos que admirar as paradoxos farto irônicas que nos oferece a história: a
aventura da Juana, com toda probabilidade produto da imaginação, engendrou a sua vez uma
crença «verídica», enquanto que um episódio real e comprovado como o da Manfreda só perdura
em um jogo de naipes...
O assunto revestiria uma importância limitada (neste caso à aristocracia milanesa dos séculos
XIV e XV), se não deixasse entrever inferências de major impregnado. Advirtamos em primeiro
lugar que a chegada da Guillerma teve um eco bastante longínquo em terras e em términos muito
próximos aos de nossa Juana. Nos Anais de Encher, encontramos registrada no ano 1301 o rastro
do «passo» da herege pelo Bingen: «O ano precedente, veio da Inglaterra (nossa orelha juanista
fica rígida) uma virgem muito bela e muito eloqüente que dizia que ela era o Espírito Santo
encarnado para a redenção das mulheres; e ela batizou às mulheres no nome do Pai, do Filho e
do Seu próprio. Ao morrer, foi levada a Melam e incinerada ali. O irmão Juan do Wissburgo, da
ordem dos irmãos pregadores, contava a alguns que ele tinha visto suas cinzas».
impõe-se, pois, a necessidade de cruzar a história eclesiástica da Juana com o episódio
místico da Manfreda e Guillerma, com independência de seu tema comum (veio uma papisa), e
sem nos deter em questões de influências mútuas, farto difíceis de estabelecer. Neste sentido,
parece muito provável que o autor anônimo de Encher tivesse ouvido falar da Juana quando
registra nos anais o «passo» da Guillerma; pelo contrário, a aventura das pontífices milanesas
desempenhou sem dúvida um papel importante na reabilitação «novelesca» da Juana, da que nos
ocuparemos mais adiante.
Mas o que é mais fundamental é o triunfo obtido na Ferrara no século XV, posto que supõe a
coroação da carreira inspirada Por Deus de uma papisa: aqui os signos se investem, e a
impostura deixa o sítio à autenticidade. Deixaremos, pois, o triunfo a sua posteridade lúdica, já
que, por si mesmo, o triunfo tem que ver com a moda estética, e com o orgulho de ser Visconti, no
sentido de que a prima Manfreda passa a ocupar um lugar na galeria gloriosa de homens
eminentes. Manfreda representa a inspiração celeste ali onde outras figuras evocam o triunfo das
artes, das armas e das leis. A posteridade da papisa no Tarot a deixava reduzida às dimensões
plainas de um naipe.
Mudança de escala
Mas, entretanto, o historiador pode optar aqui por radicalizar a situação juanista dos hereges de
Melam. Se Guillerma for, em efeito, a filha do rei de Boêmia, nascida em 1210 e chegada a Melam
por volta do 1260, então podemos reconstruir seu itinerário: portadora de sua identidade divinopontifícia, teria contornado o arco alpino por volta do 1250 pela Turingia, Renania, Alsacia, Lorena
e Borgoña. Se admitirmos a transposição, este trajeto explicaria a precoce vivacidade que adquire
a lenda da papisa na Turingia, sua aparição textual por volta de 1260 no Metz e na Borgoña, a
lembrança depositada nos Anais de Encher e a origem maguncino de nossa heroína. A longínqua
Praga se confunde com o horizonte da Inglaterra.
perfila-se uma nova configuração. A papisa teria nascido ao mesmo tempo de uma triplo matriz:
da paródia romana dos séculos XII-XIII, da construção dominicano-franciscana do falso Papado
(1260-1280), e, por último, da transposição de uma heresia inspirada feminina (1250-1300). Esta
triplo espera impede a identificação de uma origem única, permanentemente nublado pela
interferência de outras possíveis gênese, dando assim uma forma irônica à revanche do fato sobre
a hipótese.
Dita incerteza nos empurra, pois, neste capítulo a desenvolver essa terceira hipótese. A história
da Juana, à margem de seu embargo eclesiológico, também narra a história da aspiração
feminina a desempenhar um papel central no universo cristão. Mas então nos vemos obrigados a
modificar os princípios que presidem nossa investigação. Até aqui, ambas as hipótese se
apoiavam em vestígios que a análise utilizava a sua vez para reconstruções documentadas
(partindo de cadeiras e de ritos, partindo de textos dominicano-franciscanos). Mas aqui nos falha o
rastro, pois a partir do Guillermo terá que salvar o vazio de dois séculos para encontrar de novo o
eco débil da papisa milanera. Só alguns textos tardios nos proporcionam uma versão «feminista»
da história da Juana. Mas, neste sentido, terá que recordar também essa evidência que é a
dominação cultural da Igreja medieval: as versões eclesiológicas puderam afogar qualquer
evocação laudatória de uma encarnação feminina de Deus ou de uma Santa papisa.
Em altares de uma razão de método, abandonaremos as diligências em busca de indícios, para
englobar o acontecimento de 1300 no quadro das aspirações femininas à supremacia religiosa.
Dito de outro modo, procederemos a efetuar uma mudança de escala histórica, de tal sorte que
Juana se converterá no detalhe de um afresco onde cobra sentido (um sentido). Perderemos em
rigor, mas na verdade possivelmente não, e, em qualquer caso, a oscilação entre a pertinência
dos indícios e a contingência do quadro favorecerá, esperemo-lo, uma focalización variada e um
olhar estereoscópica sobre a Juana.
mantém-se a iluminação indireta do quadro ante a resistência de uma profunda e original
tendência do cristianismo: a conversão de uma ordem masculina em uma ordem virtualmente
feminina. Assinalemos, com o Jack Goody , a violência com a que o cristianismo sacudiu a uma
sociedade romana profundamente masculina e agnática. A proibição da adoção e do concubinato
efeminou as estruturas jurídicas da sociedade, situando a origem do homem em sua mãe, e já não
em seu pai. Nesta ordem de coisas, convém evidentemente evocar a poderosa presença da
Virgem, único ser humano que na verdade participa do divino. Os canonistas se referem com
certa regularidade a esse momento do Pentecostés no que a Mãe de Deus dirigia, de fato e de
direito, a Igreja, como papisa original. Uma intensa devoção Mariana, isenta de toda vulgaridade
sulpicista, é a que sustentou o extraordinário renascimento do século XII. Ao longo de toda a
Idade Média, a teologia Mariana, centrada na aparição progressiva do dogma da Imaculada
Concepção da Virgem, tendia a construir, frente aos princípios renovados da transmissão
masculina, uma genealogia partenogenética do divino.
Não se trata, pois, de identificar mediante uma paradoxo fácil um pretendido «feminismo»
eclesiástico, desmentido por muitos dados, mas sim de tomar notícia da força de uma metáfora
maternal, a de um matriarcado imaginário, no que se apóia a imagem que a própria Igreja se dá a
si mesmo.
falamos que uma resistência porque a ordem masculina soube resistir; basta nos referindo à
interpretação paulina do Evangelho, ou ao rechaço do feminino, tal como adiantamos no primeiro
capítulo. portanto, o que desejamos apresentar neste segundo capítulo são as difíceis aparições
da noção do matriarcado espiritual, dentro e fora da Igreja, assim como o desenvolvimento da
cortina de fundo sobre o que pôde destacar-se Juana, como figura da volta da Mãe das Mães
cristãs.
Penetraremos nesse amplo quadro realçando o dobro jogo que, por volta de 1280-1300,
proporcionam-nos a história romana e milanesa. Porque de fato, Juana a impostora e Manfreda a
inspirada esboçam, fora do discurso eclesiológico, duas figuras opostas e fundamentais: a da
bruxa e a da profetisa.
A papisa como bruxa
De acordo com as versões franciscanas, Juana atuava por conta do diabo, com esse
mimetismo perverso de quão sagrado caracteriza as obras de Satã; neste sentido, a teorización
do Pedro do Juan Olivi e do Guillermo do Ockam conferia uma forma institucional a dita ameaça
diabólica.
Por outro lado, o primeiro intérprete da história da Guillerma, a Papa Bonifacio VIII (a quem
encontramos já como dobro da Juana, e ele mesmo acusado de bruxaria pelo Nogaret, o
conselheiro do Felipe o Belo) , em sua bula Nuper ad audientiam de 1 de agosto de 1296, fala das
práticas guillermitas nos seguintes términos: «Têm pequenas reuniões noturnas ("conventicula") e
afirmam que as orações são mais eficazes quando quem as oferece são pessoas com seu corpo
nu; as mulheres se despem, assim como os homens desta seita maldita» .
Pouco depois do processo inquisitorial, uma lenda, sem dúvida de origem clerical, recolhimento na
crônica (perdida) do Antonio do Retanate (1302), recuperada em 1503 pelo cronista milanés
Bernardino Faço coro, apresentava as reuniões da seita, na «sinagoga» do Andrés Saramita,
como orgias sexuais. Entre 1371 e 1375, o pregador Gabriel do Zamorei da Parma reitera esta
versão em seu sermão Do Fide . Esta interpretação papal e clerical do episódio reveste uma
importância capital, pois recorda as formas prototípicas do sabat noturno (em opinião do Norman
Cohn, rebatida neste ponto por Cario Ginzburg; voltaremos logo para este importante debate) .
Para o N. Cohn, o sabat das bruxas, elemento essencial na grande perseguição dos séculos XV e
XVI, nasce da diabolización progressiva dos hereges. No Ocidente, o protótipo se encontraria nos
hereges de Orleans pelo Adhémar do Chabannes (século XI); tratava-se de um grupo formado em
torno de alguns cônegos de Orleans, quem, como tantas outras seitas extremistas, propugnaban
uma piedade e um ascetismo radicais, ao tempo que rechaçavam certos dogmas essenciais que
eles consideravam arrivistas (a virgindade da María, a eucaristia, o batismo e a intercessão dos
Santos); diziam estar habitados pelo Espírito Santo quem lhes guiava (observemos o parentesco
com os guillermistas). Foram queimados em 1022. O episódio teria permanecido na marginalidad
polimorfa e repetitiva da heresia, se Adhémar do Chabannes não tivesse informado a respeito de
suas práticas diabólicas ; consumiam as cinzas de um menino morto e se entregavam a toda sorte
de vícios depois de unir-se a Satã, sem deixar de imitar a verdadeira fé. Por volta de 1090, o
monge Pablo do Chartres acrescenta o tema da promiscuidade sexual à descrição das reuniões
canibalescas . um pouco mais tarde, por volta de 1115, Guiberto do Nogent aplica a mesma
descrição a grupos sectários camponeses da região do Soissons, complicando-a com destreza: os
hereges consomem a modo de eucaristia o fruto mesmo de suas libertinagens incestuosas .
Para Cario Ginzburg , a tradição da reunião profanadora não pode, por si mesmo, explicar a
presença da bruxa agressiva e dotada com poderes sobrenaturais, tal como aparece nas
cordilheiras alpina e apenina por volta de 1350, e sugere, a sua vez, que esta forma específica é o
resultado de um «compromisso histórico» entre uma imagem clerical (seita hostil, diabólica,
profanadora) e uma imagem folclórica, a que conduz a seus famosos «Benandanti», e que tira
cena a indivíduos capazes de transladar-se ao mundo dos mortos e de retornar do mesmo para
contribuir com prosperidade à comunidade .
A bula do Bonifacio VIII permite, possivelmente conciliar ao N. Cohn e C. Ginzburg,
acrescentando um terceiro término aos dois agentes do sabat propostos pelo Ginzburg, mas
também é certo que dita cena se inscreve na tradição Adhémar-Pablo-Guiberto onde se efemina:
Guillerma e suas irmãs tomam a iniciativa e a direção da conduta lúbrica. Do mesmo modo, o
pacto diabólico adquire uma amplitude de majores proporcione: ali onde os de Orleans e os do
Soissons cediam à profanação em troca de um pouco de dinheiro ou de ilusão, Guillerma
construiu uma Igreja universal apoiada no investimento dos sexos. Por nossa parte, sugerimos
considerar a conduta guillermita como um dos pontos de origem da bruxaria feminina. Sabemos
que até o século XIII a Igreja não acreditou na realidade da bruxa, e a tratou como se fora uma
criatura imaginária fruto das superstições populares. Mas, do momento (coincidência ou causa?)
no que, sob o impulso dominicano-franciscano, acredita-se na ofensiva satânica que se abate
sobre a Igreja por mediação da mulher (Juana), então a usurpadora diabólica se converte em uma
realidade tanto para Roma como para Melam. Uma das primeiras intervenções judiciais no
tratamento do sabat «objetivo» (quer dizer, que existe realmente para os juizes) teve lugar entre
1384 e 1390, em Melam: «duas mulheres reconheceram ter rendido culto, duas vezes por
semana, a Madonna Oriente» (também chamada Diana ou Herodías), ao render-se à «sociedade»
ou ao «jogo» . As sectárias da Guillerma (e as adoradoras da Dama Oriente) dizem estar
inspiradas; e, ao igual aos Beneandanti do Friol e seus antepassados europeus, negam
airadamente ter trato diabólico, pretendendo pelo contrário ser portadoras do autêntico caminho
da salvação. Neste contexto, encontraríamos um terceiro agente do sabat, surto nos meios
«feministas» (é preciso empregar este término, até a risco de incorrer em um anacronismo que
por outro lado é mais léxico que real) radicais do cristianismo urbano, à margem da mística
feminina e profética que se desenvolve desde finais do século XII no Flandes, no norte da Itália e
na Renania. Voltaremos mais tarde sobre este assunto.
No lado oposto, a Igreja começa a acreditar nas bruxas. trata-se de um fato conhecido e
descrito abundantemente. Por isso, repitamos somente que a história da Juana, tão importante em
torno dos anos 1278, 1294 e 1330-1335, encarnou um temor cuja análise nos ocupou no primeiro
capítulo: o da subversão feminina do sagrado. O século XIII descobre, em condições dramáticas,
que o temido atentado feminino se produz na cúspide do sagrado terrestre, no pontificado. A
ameaça de uma invasão do poder pôde, pois, contribuir à elaboração vigorosa e objetiva da figura
da bruxa. Mas é preciso deter-se brevemente, se acaso como confirmação, por desgraça tardia,
no caso de uma prima da papisa: Juana de Arco.
As duas figuras da Juana de Arco
Não insistiremos no farto fácil (desconfiemos, uma vez mais, das sereias da analogia)
paralelismo que oferecem as duas Juanas: duas mulheres que, saídas de um nada, chegam,
mediante seu verbo fascinante e um disfarce masculino, à cúpula do poder, morrendo a causa do
mesmo. Mas o que importa aqui sobremaneira é a dobro imagem que projeta Juana de Arco.
É certo que os documentos disponíveis parecem bastante enviesados: as atas de ambos os
processos (o de condena em 1431 e o de reabilitação em 1456) refletem duas submissões
opostas e sucessivas; a primeira ao rei da Inglaterra e da França Enrique VI, e a segunda ao filho
do rei da França Carlos VII . Não obstante, e ao fio de deposições, pode detectar o transtorno de
fundo provocado pela Juana de Arco, ou em tudo caso por sua figura (a verdadeira Juana
permanecia tão inacessível como a papisa). O processo de 1431 deixa entrever, detrás das táticas
e os servilismos, o temor da bruxa. Recordemos que este processo ocorreu exclusivamente a
cargo da Igreja, sob a autoridade do Pedro Cauchon, bispo do Beauvais, com assistência do
viceinquisidor da França, o dominicano Juan O Maistre. Podemos distinguir dois planos de
percepção da Juana, referidos a sua vez a duas fases cronológicas: no momento do interrogatório
(9 de janeiro 1431-15 de março 1431) e durante a posta a ponto dos 70 artigos da acusação,
redigidos pelo promotor Juan do Estivet (17-31 de março 1431), prepondera a tendência
«objetiva»; quer dizer, parece que efetivamente se acredita na Juana bruxa. Depois, quando o
tribunal (essencialmente Pedro Cauchon), com a ajuda dos teólogos, determina sua postura, para
submeter a seguir à universidade de Paris, e à vista da redação definitiva dos 12 artigos de
acusação, então desaparece a idéia de bruxaria, chegando-se à conclusão da idolatria (por
superstição), o cisma (rechaço da Igreja), a apostasia e a heresia. Quando o professor Pedro
Mauricio, doutor em teologia, comenta as conclusões dos universitários parisinos, o término de
presunção (tão importante nas versões clericais da história da papisa) reitera-se sem cessar:
«existe superstição e adivinhação, asserção presunçosa e vã jactância» .
As duas Juanas compartilham o mesmo trato esotérico da presunção: uma mulher pretende,
contra a lei e dos cánones, dominar a Igreja; encontramos aí um desses escassos pontos sobre
os quais o tribunal pretende convencer a Juana, empregando para isso uma distinção
cuidadosamente explicada à acusada, entre a Igreja triunfante (Deus, os Santos e os bemaventurados) e a Igreja militante «nosso Santo Pai a Papa, vigário de Deus na terra, os cardeais,
os prelados da Igreja e o clero e todos os bons cristãos e católicos; esta Igreja, bem reunida, não
pode errar e está governada pelo Espírito Santo» . Mas Juana declara que ela só obedece a
Deus.
detrás desta lógica judicial e eclesiológica, suficiente para satisfazer aos ingleses, e necessária
para a declaração da culpabilidade, adivinha-se o terror, o rapto esotérico da Juana (das Juanas),
como impostor agressivo, como substituto satânico da Igreja. O impostor toma o lugar do
ocupante legítimo, enquanto que o cismático ou o herético pretende ocupar um lugar distinto
(melhor, mais autêntico ou saudável); o impostor é o mesmo mas investido, enquanto que o
herege é o dobro. Com este esquema tentamos explicar a gênese do anti-semitismo no século XII,
momento no que o judeu começa a ocupar no âmbito das narrações legendárias e dos rumores, o
lugar do cristão, concretamente em matérias de sexualidade e de economia, lugar que tinha ficado
estreito dadas as constrições eclesiásticas no terreno matrimonial e agiota . As figuras geme as da
papisa (versão franciscana) e da bruxa («objetiva») variam o esquema sem modificar sua
estrutura.
Este esquema induz a um tipo de crença autônoma que chamaremos, por oposição à crença
verídica (analisada no capítulo precedente), a crença fantástica. Esta crença não repousa em
nenhuma gradação nem em nenhuma suspensão, mas sim vincula constantemente o real e seus
signos a um tipo, a uma imagem (o judeu, a bruxa, o impostor), encontrando invariavelmente em
dito vínculo confirmação. Nada ilustra melhor este mecanismo que os 70 artigos contra Juana
redigidos pelo Juan do Estivet: sem ter em conta as negociações da Juana, constróem o retrato
perfeito da bruxa. Em 27 de fevereiro de 1431, Juana diz claramente que jamais há poseído
mandrágora (essa raiz convertida em mágica pelo esperma de um enforcado, e muito utilizada em
bruxaria) e que não acredita em seus poderes. Vejamos a seguir o que escreve Juan do Estivet
(parte que não conservaria a sua vez Pedro Cauchon): «Artigo VII. A sorte Juana às vezes tinha o
costume de levar uma mandrágora em seu seio, esperando desta maneira obter próspera fortuna
em riquezas e em coisas temporárias, afirmando que uma mandrágora desta classe tinha vigor e
efeito» .
É verdade que Juan do Estivet, promotor da ação, desempenhava o papel de um procurador e
portanto se inclinava a inculpar à acusada. Pelo contrário, a tarefa própria do Pedro Cauchon, e
de maneira acessória a da Universidade de Paris, consistia em achar términos aceitáveis, serenos
e racionais de perseguição. Mas o temor da bruxaria supera a partilha dos papéis judiciais, de
forma que aqui a fronteira passa entre uma racionalidade atenta e graduada (a da Igreja,
representada pelo Pedro Cauchon, recentemente reabilitado pelo Franqois Neveux com toda
justiça) , e uma fascinação horrorizada e brutal, perceptível no Guiberto do Nogent no século XII,
ou no Roberto do Uzès no século XIII. O medo fantástico que inspira Juana de Arco é
perfeitamente perceptível no próprio duque do Bedford, durante o assédio de Orleans, pois
segundo ele o êxito da Juana era «produzido em grande medida pela mescla de falsas crenças e
de louco terror que eles (os soldados ingleses) receberam de um discípulo e espião do Inimigo
(Satã), chamado a Donzela que tem feito uso de falsos encantamentos e de feitiçaria» . O
anônimo universitário que redige o Jornal de um burguês de Paris, em seu comentário da derrota
sofrida ante Paris em 8 de setembro de 1429, depois de uma ação empreendida pela Juana o dia
do Natal da Virgem (contra os costumes religiosas), fala de «uma criatura que tinha forma de
mulher... que chamavam a Donzela. Quem era? Só Deus sabe» . E em 30 de maio de 1431, no
momento do suplício da Juana, o verdugo levantou seu vestido para que todos vissem que esta
criatura era na verdade uma mulher.
As implicações do esquema fantástico explicam sem dúvida a obsessão que preside todo o
interrogatório: virtualmente cada dia se interroga a Juana sobre o vestido masculino que se
empenha em conservar; e também cada dia lhe pede que desvele seu segredo. Os juizes, ante
este mistério do disfarce e ante o segredo que a mantém, interrogaram minuciosamente os
signos, que tentam identificar no estandarte da Juana (onde se encontram as inscrições, acima ou
abaixo?, etc.), nos anéis da Juana e em suas cartas. A defesa da acusada corrobora as suspeitas,
pois não diz ela mesma que, às vezes, põe a seguir do «Jesus-María», com que inicia suas
cartas, uma cruz para indicar que deve entender-se o contrário do sentido literal da missiva? O
inocente código de uma jaqueta improvisada se converte na prova e na manifestação do
investimento blasfemo generalizado.
A articulação entre a imagem da bruxa jaqueta e a da papisa (Juana-Manfreda) está presente
em dois momentos do processo. Em 1 de março de 1431, o tribunal lhe pergunta «o que há dito
de nosso senhor a Papa e do que ela acredita que é a verdadeira Papa» . A pergunta dos juizes
demonstra até que ponto o traumatismo do cisma (reabsorvido em 1415-1417), prolongando as
colocações franciscanas de 1278-1335, afetava às consciências cristãs. Embora o processo
coincidisse com um período de vacante papal (Martín V tinha morrido em 20 de fevereiro de 1431
e Eugenio IV não seria eleito até em 3 de março), a situação não justificava a inquietação do
tribunal. É verdade que a eleição do Martín V em 1417 durante o concílio da Constanza,
reconhecida universalmente, não tinha evitado que alguns elementos irredutíveis dessem por sua
conta um sucessor ao Benito XIII, na pessoa de «Clemente VII», e que havia uma terceira Papa
que se fazia chamar «Benito XIV», mas nenhum destes dois pretendentes podia já rasgar
Ocidente. Também neste terreno Juana tinha semeado suspeitas, pois o conde do Armañac,
chefe da partida do Carlos VII, tinha ideado, em união do rei da Castilla, uma tortuosa manobra de
apoio a «Clemente VII», e tinha procurado a aprovação da Juana de Arco. Esta última cometeu a
imprudência ou teve a vaidade de dizer que refletiria sobre o particular, apresentando-se assim
como fiador virtual da autenticidade papal, em nome de Deus: «No momento estou muito ocupada
no assunto da guerra. Mas quando você (= o conde do Armañac) saibam que eu estarei em Paris,
enviem uma mensagem até mim e lhes farei saber tudo sobre o verdadeiro em quem (= a Papa)
devem acreditar e isto, eu saberei pelo conselho de meu legítimo e soberano senhor» . Achamos
outro indício, mais grave ainda, dessa vontade manfredina de ser Igreja no lugar da Igreja que
animava a Juana, segundo a visão fantástica da jaqueta bruxa. De acordo com o artigo XI do Juan
do Estivet (igualmente ignorado pelo Pedro Cauchon), Juana tinha presumido ante o Baudricourt,
que depois de sua missão teria três filhos: a gente seria Papa, o segundo imperador, e o terceiro
rei. «Ao que o capitão disse: "Eu, com gosto te faria um; já que esse homem seria de tanto valor,
que não quisesse melhor" Ao que ela respondeu: "Gentil Roberto, nada de nada, não é o
momento, o Espírito Santo se encarregará"» . Em 1431, Juana, virgem papogéneta, fecundada
pelo Espírito Santo, ilumina retrospectivamente o espanto milanés de 1300.
Juana como feiticeira
Desta maneira, a própria virgindade da Juana de Arco, ao igual à castidade aparente da papisa,
oculta seu reverso, quer dizer seu desejo de conceber prole mediante o estupro e de povoar o
mundo com pequenos demônios. Mas esta temática só aparece nas frestas do processo, em uma
história escura de processo com promessa de matrimônio, nas suspeitas de que Juana se alojou
em casa da Vermelha», em um bordel do Neuchatel, ou nas injúrias do Juan do Estivet («Esta
puta excomungada»). Mas dispomos de um testemunho eloqüente sobre a imagem da Juana de
Arco como falsa virgem semeadora de bastardos satânicos, na primeira peça escrita pelo William
Shakespeare: Enrique VI. Não há dúvida de que a obra foi composta em 1592, um século e médio
depois do processo, mas põe claramente de manifesto uma percepção insular de quem fez soar o
sino das esperanças inglesas na França. Por isso, precisamente, este texto testemunha a
permanência fantástica da imagem da mulher que se disfarçou com o propósito de transtornar o
mundo, porque o drama do Shakespeare, escrito em pleno apogeu da caça de bruxas, e apoiado
nas crônicas do Holinshed, Hall, Fabyan, Grafton e Stowe, põe claramente de manifesto o medo
que existia ante a falsa virgem e seus excessos subversivos.
A Donzela (Shakespeare nunca a nomeia de outro modo) apresenta-se ao golfinho da França,
Carlos, como uma filha de pastor iluminada pela desgraça da Virgem. Mas esta versão clássica da
história da Juana logo adquire o colorido dos matizes, inquietantes, sedutores e provocadores. A
Donzela se alegra da beleza que lhe outorgou instantaneamente a Virgem (?): «Enquanto que
com antecedência eu era negruzca, curtida / Esta beleza que pode ver em mim me foi
concedida»; e, imediatamente, propõe ao golfinho, a modo de prova de sua missão, um combate
singular no que ela vence a seu adversário, quem a sua vez se submete amorosamente: «Por ti,
eu ardo em um desejo impaciente / conquistaste que um só golpe meu coração e meu braço» .
Juana investe os ordens; o golfinho oferece seus serviços a pastora, e a Donzela as rechaça em
términos que nos recordam o «testemunho» do Roberto do Baudricourt sobre suas elevadas
aspirações prolíficas: «Devo me negar aos ritos do amor /.. .Quando tiver expulso a todos os
inimigos / Então pensarei em alguma recompensa» . Ao igual à papisa, Juana de Arco investe a
atitude ascética: passa do celestial ao terrestre mediante a exaltação da carne. A Donzela
prossegue sua carreira empregando a astúcia: tenta retomar Ruán disfarçando a seus homens de
comerciantes. Lorde Talbot, chefe dos exércitos ingleses, vê nesta traição («treason», «trichery»,
«hellisch mischief») a obra de uma feiticeira («Pucelle, that witch, that damned sorceress»* .
Ao fracassar sua artimanha, Juana prova de novo com sua arma favorita, a sedução carnal, e
consegue enganar ao duque da Borgoña, aliado da Inglaterra. Instantaneamente, o duque se
confessa vencido: «Ou ela me enfeitiçou («bewitchen») com suas palavras / Ou o amor natural
(«nature») aguardava-me bruscamente»* . Mas a valentia jaqueta dos ingleses lhe arrasta, e
Juana, em última instância, recorre ao demônio: «O Regente é o vencedor e os franceses fogem
/Socorredme, pois, encantos mágicos, periaptos / E vós, espíritos seletos que me aconselham / E
me indicam o que deve ocorrer»; os demônios comparecem para grande satisfação da Juana:
«Esta pronta e rápida aparição testemunha / Seu habitual diligencia para comigo» . Mas os
demônios silenciosos se esparramam sem aceitar a eucaristia satânica que lhes oferece Juana:
«O sacrifício de meu corpo e de meu sangue («Cannot my body nor blood-sacrifique»** /No me é
de tanto valor como sua ajuda habitual» .
Então os ingleses capturaram à Donzela, quem revelou publicamente sua natureza carnal, lhe
proliferem e agressiva de bruxa, ante o duque dos York. Compareceu seguida de seu pai, quem
se ofereceu a acompanhá-la na morte; mas Juana renegou violentamente dessa paternidade: «te
largue, decrépito! Vilão, ignóbil mendigo / É de sangue mais nobre da que eu descendo. Não mais
do que é meu amigo é você meu pai.» Este renego conduz à Donzela a afirmar uma santidade
apoiada na linhagem e na eleição: «Saibam, em primeiro lugar, a quem condenastes / Não é de
um rústico pastor de quem descendo / Já que minha ascendência está em uma linhagem de reis /
Fui virtuosa e Santa, escolhida do alto / Para obrar os maiores milagres na terra / Por inspiração
da graça celestial.» Esta proclamação não fez racho nem no duque dos York nem no conde do
Warwick; então, a Donzela, cambiante como todas as bruxas, declara-se grávida: «Juana, revela
então a debilidade que débito / Te garantir o privilégio da lei. / Estou grávida, que são uns
assassinos» . Imediatamente, Warwick pensa, com horror, que um bastardo do Carlos VII, mas a
Donzela lhe desengana nomeando ao duque do Alençon e o horror não diminui («Esse conhecido
Maquiavelo»); então Juana implica ao Renato do Anjou. Mas esta multiplicação das vítimas da
Juana termina por escandalizar aos rústicos ingleses, quem ordena o suplício antes de receber a
maldição da Donzela. Juana de Arco é, pois, como a papisa ou como Manfreda-Guillerma, uma
variante do tipo da feiticeira, cópia investida da virgem, destruidora da ordem natural e divina.
Nada exemplifica melhor essa tendência da crença fantástica a oscilar do positivo ao negativo, do
mal ao bem, e à inversa, que esse embargo carnal da Juana de Arco. Frente à imagem da
feiticeira, falsa virgem que desencadeia o desejo generalizado, encontra-se a da profetisa, da
Santa diretora, virgem «virginante», indutora da castidade. Dunois, companheiro de armas da
Juana de Arco, atesta em 1456 em Orleans, em vista do processo de reabilitação: ele acredita na
inspiração divina da Donzela por três razões milagrosas. Em primeiro lugar, lhe reconheceu sem
lhe haver visto jamais (ao contrário da feiticeira que produz bastardos, a Donzela legitima assim
ao Dunois, o bastardo de Orleans, integrando-o no plano de ação divino); aqui, o milagre tem que
ver com a ciência infusa. Em segundo lugar, quando a própria Juana caía ferida, curava-se
imediatamente (dom de força). E, por último, o que resulta mais assombroso e milagroso para o
Dunois, é que Juana faz que os guerreiros sejam castos: «O e outros, quando estavam em
companhia da Donzela, não sentiam nem vontade nem desejo de ter comércio ou trato com uma
mulher, o que lhe parece coisa quase divina» . O duque do Alençon, pai suposto do bastardo da
Juana segundo Shakespeare, reitera a sua vez a impressão milagrosa criada por esse raciocínio
casto; diz que em várias ocasiões dormiu ao lado da Donzela, sobre a palha, e que «às vezes viu
a Juana preparar-se e às vezes ele via seus seios que eram formosos; entretanto, nunca teve com
ela concupiscência carnal» .
Não devemos desvalorizar esta ambivalência da imagem sobre a oposição dos usos (inglês vs.
francês, clérigos vs. laicos, etc.); quer dizer, que um mesmo arquétipo (no sentido literal, e não no
sentido astro-lógico-jungiano), o da mulher «assombrosa» (indutora de transtornos sexuais e
políticos, dotada de um conhecimento chamativo, dominadora), distribui-se em dois tipos (a
feiticeira e a profetisa), que a sua vez orientam os temas arquetípicos. É evidente que no caso da
Juana a polarização nacional intervém na oscilação ou a concorrência entre ambas as
interpretações; mas, em última instância, o apoio que os cistercienses emprestaram em um
princípio a Guillerma demonstra claramente a realidade da ambivalência, que por outro lado, está
presente em outros muitos assuntos de feitiçaria. Neste sentido, é provável que a profetisa cristã
produzira tanta fascinação como seu reverso, a bruxa.
A profetisa cristã
O tipo benéfico da profetisa desempenhou um certo papel no desenvolvimento biográfico da
Juana a papisa, já que encontramos seu rastro na figura do Tarot (fora do contexto Visconti, a
papisa conserva o livro como atributo) e no episódio milanés da Manfreda, que ricocheteia sobre a
Juana. E, além disso, Juana deve sua carreira a um conhecimento vizinho no milagroso.
Recordemos que Martín o Polonês sublinhava que nenhum homem podia lhe igualar em
sapiência; e este saber, que por si mesmo não constitui uma impostura, desvia-se não obstante
de sua Santa função para servir à conseqüência de fins ambiciosos e fraudulentos. Entretanto, a
forma em que se adquire dito conhecimento distingue a papisa da profetisa: Juana aprendeu,
enquanto que a profetisa recebe o conhecimento como um dom divino.
O tipo da profetisa importa como o conhecimento da Juana, já que a «alegoria» (o tipo, a
imagem) forma parte de uma linguagem simbólica, articulado, e formado a base de oposições
binárias. A leitura clerical do episódio juanista ajudou a acantonar a papisa dentro do tipo maléfico
(se excetuarmos as alusões à obra benéfica da papisa no texto do Juan do Mailly —o jejum do
Témporas— e no do Martín Lefranc —os prefácios da missa—), mas a falsidade imputada a
Juana só é perceptível com referência ao que desfigurou.
O profetismo feminino gozou de grande predicamento em todo o âmbito do Mediterrâneo
clássico, tanto por parte do judaismo como das religiões chamadas «orientais» e do mundo grego
e latino. Conhecemos as figuras famosas da Pythia* do Delfos e das Sibilas, e pelo que se sabe a
mais antiga oficiava no Eritrea da Ásia Menor. A erudição romana tardia (Varrón, Lactancio)
enumera até dez sibilas, desde a Persia até a Itália. Os oráculos sibilinos desempenharam um
papel importante em Roma, desde que, segundo Plinio e Dionisio do Halicarnaso, Tarquinio o
Velho compara o texto de suas profecias à Sibila do Cumas. Um colégio de sacerdotes tinha como
tarefa específica as conservar e organizaria para sua consulta, a última das quais teve lugar a
instâncias do Juliano o Apóstata, no ano 363, antes de que Estilicón destruíra os Livros Sibilinos
por volta do 408 .
O passado do profetismo feminino, pagão ou judeu, ao cristianismo pôde realizar-se com
bastante facilidade; de fato, e até finais da Idade Média, honrou-se às Sibilas, ao tempo que se
venerava a inspiração divina de algumas grandes místicas. O fato tem sua explicação em uma
série de razões de caráter geral, que expomos a seguir a grandes rasgos, antes de lhes dar uma
forma mais concreta:
1) o modelo grego de profecia feminina resultava muito conveniente para o cristianismo, dado
seu dobro condição inspirada e textual: a profetisa, à maneira do Juan Evangelista, autor do
Apocalipse, recebe um sopro divino (pneuma) e produz um texto enigmático de fixação duradoura
e propício para a glosa;
2) o cristianismo, religião da revelação revisão, tinha tendência a incluir e inserir as tradições
antigas na nova doutrina, como pudemos constatar a propósito das tradições narrativas: Cristo
não veio para abolir a não ser para cumprir;
3) em seus começos, a religião cristã apresenta um aspecto feminino muito acusado em sua
composição sociológica. O lugar comum hagiográfico da esposa ou da filha cristã de um notável
pagão tem um fundamento real. Durante as perseguições, a virgem mártir constitui a figura mais
obtida do cristianismo;
4) a mensagem cristã de investimento celestial das hierarquias terrestres privilegia às mulheres,
os meninos e os pobres;
5) A Virgem María, mulher comum entre os humanos, oferece a mais alta mediação entre o céu
e a terra; ela é o receptáculo da encarnação e do saber (a Anunciação) que a prepara. depois da
Paixão e da Ascensão, é ela quem garante, perto do Juan, a autenticidade da tradição
comemorativa do Novo Testamento.
Uma má profetisa, a Pythia
Mas nos encontramos aqui, uma vez mais, a grande ambivalência que subjaze na produção de
tipos metafóricos, se considerarmos a diferença de trato que recebem a Pythia e a Sibila por parte
cristã, essas geme as da profecia feminina grega, apanhadas no torniquete que, desde tempos
remotos, separa à profetisa da feiticeira (conservemos esse anacronismo para designar ao
personagem, ainda virtual, da mulher que oculta sob uma aparência enganosa um grande poder
demoníaco).
O caso da Pythia foi objeto de uma admirável análise por parte da Giulia Sissa, em seu recente
livro sobre o Corps Virginal . Esta autora demonstrou como o oráculo do Delfos tirava cena a uma
virgem que devia receber em um corpo intacto e disponível a palavra apolínea recebida modo de
embaraço casto. À metáfora banal de uma «inspiração divina» (sopro, pneuma), acrescenta-se ou
se substitui a menção de uma emanação divina surta da terra e aparentada às fumigações
ginecológicas que, na medicina grega, colocam em seu lugar correto os órgãos de reprodução.
compreende-se que a proximidade com o tema Mariano do cristianismo (virgindade, embaraço
divino, saber sobrenatural) resultasse muito forte como para não albergar certa suspeita
demonológica. De fato, dois Pais da Igreja, Orígenes e Juan Crisóstomo, escandalizaram-se da
ação profética da Pythia, sem lhe dar a explicação evhemerista (que consiste em explicar os
milagres pagãos com o engano), tão freqüente no âmbito da apologética cristã, da antigüidade até
meios da Idade Média. A Pythia é uma excelente manifestação da posse demoníaca obscena
(como a feiticeira «objetiva»), e sobre este particular dispomos do comentário do Orígenes a
respeito da atitude da Pythia que se oferece ao pneuma telúrico em seu trípode: «Não está aí a
prova do caráter impuro e viciado deste espírito? Se insinúa na alma da adivinha, não mediante os
poros disseminados e imperceptíveis, muito mais puros que os órgãos femininos, a não ser
através do que ao homem casto não lhe está permitido olhar e ainda menos tocar.» A femineidad
do meio prova o satanismo da mensagem: «Se Apolo do Delfos era o deus no que acreditavam os
gregos, a quem devia escolher ele, a sua vez, como profeta, se não ser a um sábio ou, em seu
defeito, a um homem que progredisse pelo caminho da ciência? por que não escolheria para
profetizar a um homem antes que a uma mulher? E, admitindo que preferisse o sexo feminino,
dado que provavelmente só desfrutava de poder e de agradar no seio das mulheres, como não
escolheu a uma virgem antes que a qualquer outra mulher como intérprete de sua vontade?» .
O comentário do Juan Crisóstomo é mais impressionante até: «A Pythia está sentada no trípode
do Apolo, com as coxas separadas. Um espírito maligno ("pneuma poneron") sobe de abaixo,
penetra em sua vagina e a cheia de loucura. Com os cabelos pulverizados, e expulsando espuma
pela boca, comporta-se como uma bacante. E é tal seu estado que fala! Eu sei que sentastes
vergonha e avermelhastes ao escutar este relato», «desculpa-se o Pai da Igreja. Já que sabe
quão eficaz é visualizar umas coxas, uma boca, um cabelo, para que a possessa notificação a seu
professor» .
Giulia Sissa identificou nesta interpretação da Pythia do Delfos uma ruptura essencial. Orígenes
se indigna porque não se escolheu a uma virgem, quando a virgindade parece constitutiva da
atuação oracular. Mas em realidade não se trata da mesma virgindade pois, segundo o
descobrimento magistral do G. Sissa, os gregos não acreditavam na virgindade material, isto é na
existência do hímen. portanto, a Pythia pode abrir-se ao pneuma divino. Sua virgindade garante
sua capacidade sucessiva de recepção e de oclusão, e em conseqüência de receptividade e de
secretismo, nesse contexto da analogia grega da palavra e da sexualidade. Pelo contrário, para
os Pais da Igreja, a possibilidade de comunicação sexual representa precisamente a prova da
impostura e do demonismo.
O personagem da Pythia e as relações assombrosas que põe em jogo entre virgindade,
procriação e profecia ficaram provavelmente no esquecimento muito rapidamente, fora da
patrística grega. Mas no pensamento cristão se acusou o impacto da produção virginal. O rude
espírito jurídico dos romanos e dos germanos teve dificuldade em assumir que uma virgem tivesse
engendrado a boa nova, até o ponto de que no século IX alguns hereges da Germania estavam
convencidos de que María tinha concebido a Cristo pela orelha. A Igreja soube reconduzir esta
ansiedade estendendo constantemente a divinização da María, ela mesma concebida imaculada
segundo o dogma anunciado por Pio IX em 1854. O terrível Oskar Panizza levou esta lógica até
suas últimas conseqüências, propondo com ânimo de brincadeira que dita bula se chamasse a
Imaculada Concepção das Papas (1892) .
A sacralidad profética da María, virgem e mãe, fonte de inquietação e de desequilíbrio, exigia
um contrapeso. Este papel de contraponto o desempenhou a Pythia e passou logo a papisa (e às
bruxas), em sua condição de falsa virgem, de mãe por estupro, e cujo saber oculta em vez de
desvelar. O paralelo entre ambas pode parecer forçado; entretanto, quão romanos fingiram tomar
a imagem da Virgem com o Menino por um retrato da Juana fizeram gostosamente uso do
mesmo. Assim, no século XIV encontramos a um Dietrich do Niheim falando do menino da Juana
como seu «promogenitus», término evangélico aplicado tradicionalmente ao Filho da Virgem.
Volta da Sibila
Enquanto que a Pythia cristalizava o fantasma da virgindade sábia e demoníaca, as Sibilas,
entretanto, foram totalmente aceitas no universo cristão, como o demonstram os trabalhos do
Bernard NcGinn . A diferença de trato tem que ver sem dúvida com o estatuto textual e não sexual
da revelação sibilina, pois esse estatuto se refere mais ao azar das tradições que à realidade
grega da profecia. Nesta ordem de coisas, a evocação da Sibila do Cumas pelo Virgilio no sexto
livro da Eneida oferecia uma garantia de autenticidade, já que o cristianismo antigo e medieval
considerava o Virgilio como um precursor pagão da Boa Nova, inclusive se, por essa eterna
ambivalência que rodeia a todas as grandes figura fantasmáticas, outra tradição queira ver nesse
quase profeta a um necromántico satânico . Mas, por cima de tudo, e apesar das destruições
ordenadas pelo Estilicón, dispunha-se de vários livros de oráculos sibilinos que anunciavam com
bastante precisão a chegada de Cristo. Esta preciencia não tem em realidade nada de
surpreendente, já que a erudição contemporânea estabeleceu que ditos textos, embora
incorporavam textos antigos, eram não obstante fruto da pluma de autores judeus e cristãos, entre
o 150 A. J. C. e o 300 d. J. C. Para os apologistas judeus e cristãos, tratava-se de desviar,
animados por um desejo missionário, uma tradição prestigiosa do mundo grego ou romano. A
partir de então, os primeiros Pais da Igreja (Juatino, Atenágoras, Hipólito, Tertuliano, Clemente da
Alejandría, Teófilo da Antioquía, Eusebio) salpicaram seus escritos com entrevistas sibilinas. A
implantação da Sibila no Ocidente passou pela via indireta, tão necessária como suficiente, do
Agustín, embora ele mesmo desconfiasse de qualquer profetismo.
A tradição sibilina não se interrompeu jamais no Ocidente, ficando assegurada pela vigorosa
substituição dos enciclopedistas cristãos, desde o Isidoro de Sevilha (século VII) até o Vicente do
Beauvais (século xIII), passando pelo Raban Maur (século IX). Este êxito, cujo apogeu se registra
no século XIII, momento, como vimos, de recuperação e de ordenação da herança históricolegendária, pôde conseguir-se ao preço da edulcoración que permitia a integração do profetismo
feminino no saber cristão. Atendendo à terminologia proposta mais acima, a adesão às Sibilas
revelava então a presença da crença verídica mais que a crença fantástica. A Sibila entrava na
medida e na avaliação relativa; assim, por exemplo, Pedro Lombardo em suas Sentenças, e a
propósito da Sibila, dedica-se a julgar o grau de fé necessário para a salvação: acaso uma
preciencia confusa da vinda de Cristo é suficiente para a eleição? Tiram do Aquino se beneficiou
de uma verdadeira revelação . Estes interrogantes teriam capacidade no esforço por acomodar o
mais à frente (entre paraíso, inferno, purgatório e limbos), cuja amplitude desde finais do século
XII teve ocasião de demonstrar Jacques O Goff .
Esta integração adquiria os traçados de uma disposição arquitectonica onde la/las Sibila(s) faziam
casal com os profetas masculinos. A iconografia favoreceu primeiro a uma Sibila única, a do
Eritrea da que falava Agustín; então acompanha ao profeta por excelência, ao David, como no
famoso texto do Dies Irae escrito por Tiram do Celano, o companheiro de São Francisco: «Dia de
cólera, esse dia / Que reduzirá ao mundo a cinzas / Como o testemunham David e a Sibila ("Teste
David cum Sibylla"») . Depois se compuseram galerias de Sibilas em relação com os profetas do
Israel, como a que realizou Miguel Anjo a modo de arremate para os afrescos da Capela Sixtina.
Um autor de finais do século xV, Felipe Barbieri, aumentou seu número de dez (lista do Lactancio)
a doze, para assentar melhor o paralelo entre os profetas e os apóstolos, nessa triangulación
(antigüidade pagã, Antigo Testamento, Novo Testamento) que substitui a «tipología medieval»
(devolução do Antigo ao Novo Testamento).
Esta sábia integração, tão oposta à loucura amorosa da profetisa grega, permitia a assimilação de
tradições locais e folclóricas, como por exemplo a que se contava em Roma: a Sibila tiburcina
tinha mostrado a Augusto, a noite de Natal, a Virgem com o Menino, Aparecida em «ara caeli»
(altar do céu). Esta lenda institucional da igreja romana do Araceli sobre o Capitólio, antigamente
documentada (século VIII), foi legitimada a sua vez pelo Inocencio III em seu segundo sermão
sobre o Natal, retomado pelo Bartolomé do Trento e logo pelo Jacobo de Voragem . A
companheira pagã dos romanos assumia, em relação à Virgem, o papel do João Batista em
relação a Cristo. Não obstante, a imagem da profetisa, da mulher inspirada, era muito forte para
não suscitar outras versões, fora do edifício eclesiástico ou em sua soleira.
Loucuras da virgem prudente
Por um lado, a Sibila recuperou o aspecto ambicioso e encantador que tinha desqualificado às
papisas e às pitonisas. Esta orientação aparece tardiamente no século XIV no centro da Itália,
com a Sibila do Apenino encerrada em uma gruta sobre o lago Pilato no Piceno; segundo a
crença popular, tratava-se da Sibila do Cumas, encerrada ali até o dia do julgamento final por ter
declarado (sempre a presunção das papisas) que seria ela e não María quem engendraria ao
Filho de Deus. Na novela Guerrin Maschino, do Andrés do Barberino (principio século XV), a Sibila
apenina se transforma em profetisa tentadora, e logo no Paraíso da Rainha Sibila, do Antonio da
Sai (1430), apresenta-se como reina do reino subterrâneo e sedutora de cavalheiros .
Por último, a Sibila, espelho limpo da revelação na tradição clerical, desde o Agustín até Tiram do
Celano, retomou seu poder ativo de profecia a partir do século XI. Dois corpus distintos, de origem
incerta, confirmam este novo papel.
As profecias da Sibila tiburcina, ampliamente difundidas, encontram-se por primeira vez em
manuscritos do século XI. De maneira significativa, a Sibila recubre sua própria biografia, da qual
lhe tinha liberado a tradição puramente clerical: filha do Príamo e da Hécuba, é bela e jovem; este
último detalhe é importante, posto que a tradição clerical projetava a imagem de uma mulher de
idade. Porque é precisamente a neutralização da sedução juvenil da Pythia do Delfos a que tinha
extraviado ao Orígenes, proporcionando à Igreja, por uma curiosa paradoxo, o modelo de uma
Sibila maior: segundo Diodoro da Sicilia, a Pythia era, na antigüidade, uma virgem jovem; depois,
Echecrato o Tesaliense, que tinha vindo para consultar o oráculo, apaixonou-se por ela por causa
de sua beleza (como Carlos VII ante a Juana de Arco, segundo Shakespeare), raptou-a e a violou:
«os do Delfos, a conseqüência desse escândalo decretaram que, a partir de então, a profetisa já
não seria uma virgem, a não ser uma mulher de mais de cinqüenta anos, embora leve roupas de
jovencita para recordar a memória da antiga profetisa» . Esta «descorporación» da profetisa nos
devolve possivelmente, no mundo grego, à origem da inspiração oracular, comum ao Dafne, à a
Pythia e a Casandra: o deus Apolo persegue vírgenes jovens e belas que resistem, mas a quem
ele dá, em troca de uma posse não carnal, o poder oracular e a imortalidade (sem a juventude
perpétua). Vemos, pois, do paganismo até o cristianismo, a conexão de temas estreitamente
vinculados ao redor da profetisa: a perigosa sedução virginal, o conhecimento em troca da
juventude. Pela mesma razão que, desde muito cedo, a Igreja impõe limites mínimos de idade
(inaplicáveis na Idade Média por razões sociais) para os escassos ordens que confere às
mulheres (diaconisas, cônegas, abadessas), empenha-se em apresentar às sibilas como
mulheres de idade, correspondendo assim às figuras grisalhas e barbudas dos profetas do Israel.
Mas o resplendor da sedução juvenil associada ao saber feminino subsiste, como o testemunha
também com resplendor a Sibila do Delfos grafite pelo Miguel Anjo.
A Sibila tiburcina surge, pois, adornada com sua beleza, ante o Senado romano durante o
mandato do Trajano, para explicar aos senadores o sentido dos nove sóis com os que todos eles
sonharam: «Professora e Senhora ("Magistra et Domina", que nos recorda irresistivelmente ao
atributo da Igreja, "Mater et Magistra", com uma conotação de dominação, além disso), já que seu
corpo é grande e muito formoso, tão formoso que não vimos nunca igual nas mulheres, nós lhe
rogamos que descubra o que o sonho que todos tivemos a mesma noite revela sobre o futuro» .
Segundo a Sibila, os nove sóis indicam as nove gerações que precedem ao Fim do Mundo; a
menção das duas últimas gerações, profundamente crípticas, reescritas e glosadas
constantemente ocuparam um primeiro plano entre os grandes textos proféticos da Idade Média.
redigiu-se um segundo grupo de textos, a Profecia da Sibila do Eritrea, no século XIII sobre
estopas antigas, e se distribuiu sob a forma que lhe deram os meios joaquino-franciscanos, por
volta de 1250; o adaptador poderia ter sido Juan da Parma, ministro geral dos franciscanos. Os
principais autores proféticos dos séculos XIII-XIV (Arnoldo do Villeneuve, Anjo Clareno, Juan do
Roquetaillade) glosaram dito texto. Em conseqüência, encontramos de novo ao redor da Sibila
«livre» às mesmas pessoas que se ocuparam da Juana nos mesmos márgenes da Igreja.
Quatro configurações
Façamos agora um breve esquema com as disposições de imagens femininas enumeradas até
o momento. Para isso terá que partir do assombro ingênuo do Orígenes escutando sua
consideração sobre a estranha figura da Virgem María. por que Deus não confiou sua mensagem
exclusivamente a homens prudentes? Que pinta a mulher na Revelação? Ou, simplesmente, por
que as mulheres? Nicole Loraux demonstrou que já Hesíodo se interrogava em términos análogos
sobre o episódio da criação da mulher , expondo então uma pergunta que nos devolve ao eterno
masculino. A Igreja proporcionou uma resposta ao acantonar a María em seu papel maternal e à
Sibila (e em conseqüência às santas e às devotas) em sua função de espelho da revelação. Mas
a terrível pressão que a Igreja exerceu sobre a sociedade dos séculos XI e XII em matéria de
sexualidade (celibato dos sacerdotes, proibição de matrimônios consangüíneos) engendra
tensões que rompem essa barreira masculina, fazendo surgir o tipo da Senhora (Domina)
onipresente, forte e protetora, próxima e inacessível: a Virgem monástica do século XII, a Dama
da literatura galante, a Sibila da espera escatológica, inspirada-a dos grupos místicos. Este tipo,
que cristaliza as esperanças e os temores, oscila amplamente sobre seu contrário, a Feiticeira, a
Virgem louca, a Sedutora. A papisa desempenha seu papel nesta parte: fruto do discurso clerical,
ilustra a impostura da falsa virgem, os perigos do saber autêntico utilizado perversamente. No
marco seguro da história eclesiástica, Juana diz que o saber disfarça tanto como o próprio
disfarce, e lhe encarrega de acautelar contra a tentação inspirada que revolta às mulheres de
meios da Idade Média. Graças a ela, devemos saber igualmente que a sedução desdobrada pela
iluminada, satânica ou não, pode vir da carne. Flanqueada por duas imagens, a da Virgem Santa
e a da Virgem louca, Juana monta guarda no recinto das inspiradas.
Entretanto, os ardores do Sopro e da Carne não deixam de minar esta construção. O tipo
reversível da mulher inspirada não podia dissolver-se pelo mero efeito de um discurso
eclesiológico, que além se mantinha a um nível débil e graduado de crença (o que chamamos
crença verídica); sobre a silhueta da Juana, desenhada com firmes traços negros, a heresia
feminina e inspirada ilumina com seu colorido a miniatura da papisa do Santo Espírito. E do século
XII as profetisas não deixaram de pulular.
O discurso religioso de meios da Idade Média teve que fazer um sítio, entre a «feiticeira» e a
Escolhida, à mulher inspirada, domesticada como Juana, mas orientada para o bem. Em resumo,
a polarização sexual do sagrado oferecia quatro configurações possíveis: uma dominação
masculina (ilustrada pela história papal ortodoxa), uma dominação feminina (brevemente ilustrada
pelo episódio milanés da papisa), uma subversão ou um excesso femininos do modelo masculino
(conjurados com a aventura da Juana) e uma subversão ou um excesso masculinos do modelo
femininos (a profetisa da Igreja). Dado que o esquema e a partilha sexual dos papéis sofreu o
controle masculino e clerical (só pôde surgir por um período breve a postura de dominação
feminina durante o parêntese herético de Melam), as contrafiguras se orientam para a dominação
varonil: a subversão feminina (Juana) só perdurou na memória como fracasso e como perigo (cujo
temor se prolonga na imagem da feiticeira); quão única teve êxito, como veremos, foi a subversão
masculina do prestígio sagrado feminino que dobra a imagem vigorosa da profetisa para a
instituição masculina (neste caso a Igreja).
portanto, o que convém explorar é esta quarta configuração, mas não pelo simples (e
autêntico) prazer da exhaustividad combinatoria, mas sim porque sorte configuração constitui uma
réplica a Manfreda e a Juana. Frente ao contra-Papa mulher, é preciso tentar identificar a figura
de uma contra-profetisa, de uma profetisa contradictoriamente integrada no modelo masculino.
Para a Igreja, a tarefa não resultava singela, dada a grande força com que se manifestava o
misticismo feminino no Ocidente a partir do século XII. Os márgenes de manobra eram, pois, bem
estreitos, pois como assinalou Peter Dronke , Angela do Foligno e Margarida Porrete, essas dois
amantes de Cristo do século XIII, geraram uma mística comparável. A primeira teve uma acolhida
fervente por parte dos franciscanos, enquanto que a segunda morreu na fogueira em 1310.
Uma profetisa na soleira da Igreja: María Robine
María Robine oferece outro exemplo dessa posição feminina no extremo do que aceita a Igreja.
Entre as profetisas que se multiplicam durante o Grande Cisma (Brígida da Suécia, Catalina de
Siena), María Robine pode aparecer como uma dobro da Juana de Arco um quarto de século
antes. Chegou ao Aviñón nos anos 1330, portanto ao princípio do Cisma; esta camponesa
analfabeta e enfermo, oriunda da Gascuña, chegou em peregrinação à tumba do jovem cardeal
Pedro do Luxemburgo, morto em aroma de santidade. Experimentava com regularidade visões de
tipo apocalíptico, e Clemente VII, a Papa da obediência aviñona, recebeu-a favoravelmente. Em
1387-1389, a Papa participa das orações sobre a tumba do Pedro do Luxemburgo que provocam
a cura da María. O favor papal continuou com o sucessor de Clemente VII, Benito XIII, quem,
mediante uma bula de 1395, concedeu-lhe uma renda, e portanto um estatuto quase oficial de
profetisa.
As revelações feitas a María Robine, que foram cotadas e reunidas, tomaram cada vez uma
aparência mais política e escatológica, e em 1398, María mandou escrever uma carta dirigida ao
Carlos VI para opor-se, em nome do céu, a sustración de obediência projetada pelo governo real,
e também para promover a reforma religiosa e moral do reino. Seguindo um modelo duradouro,
presente do visionário que contribuiu à primeira crise de loucura do Carlos VI em 1382, até «o
Martín o Arcanjo», o iluminado que apostrofou ao Luis XVIII , passando pela Juana de Arco, María
chega a Paris em junho de 1398 para visitar soberano. Na capital francesa encontrou a hostilidade
dos professores da Universidade de Paris (o que explica o processo da Juana em 1431) e não
pôde ver o rei. De retorno ao Aviñón, teve outras revelações que a induziram a lançar uma crítica
virulenta contra a corte papal, e concretamente contra os prelados, ante os que exaltava a Igreja
verdadeira como uma congregação dos justos. Este tema da Igreja verdadeira, alheia às
influências diretas, próprio do Wyclif e logo depois de Hus, gozava, como vemos, de uma grande
popularidade no momento no que o Cisma tinha reavivado os interrogantes sobre a verdade da
Igreja abertos a finais do século XIII.
María Robine encarnava perfeitamente a ambivalência da visionária: Clemente VII e Benito XIII
a utilizaram como fiador místico da autenticidade aviñona, insuficientemente defendida pelos
argumentos eclesiológicos; mas ao mesmo tempo, e pela porta aberta à escatologia, soprava o
vento violento da reforma antipapal. Graças a sua morte rápida, acontecida em 1399, María
Robine se livrou provavelmente de terminar na fogueira, como Margarida Porrete ou Juana de
Arco.
O Grande Cisma punha de manifesto o fracasso de uma Igreja hierárquica e masculina.
portanto, o Espírito Santo devia sopro aos fiéis singelos, e entre eles aos mais singelos, às
mulheres. Ao estudar a espiritualidade das profetisas, muito numerosas neste período religioso
conturbado. André Vauchez destacou que esta expansão do papel religioso feminino reativava,
como reação, o temor masculino e clerical, tal e como se desprende do Formicarius do Juan Nider
(escrito entre 1430 e 1435). Neste primeiro grande tratado de demonologia da Idade Média «se
evoca em particular o caso das mulheres "que sob a aparência de homens dizem ter sido
enviadas Por Deus", formulação que basta já para provar que se trata de uma categoria de
pessoas bem definida e não de um caso isolado» .
Para encontrar um caso mais «puro» (menos político, melhor aceito) de profetisa de Igreja, terá
que retornar a um período mais antigo.
O caso no que se observa a maior tensão entre os pólos masculinos e femininos do sagrado
medieval é o da Santa Hildegarda. Deteremo-nos brevemente no mesmo, já que evidência a
máxima projeção dos direitos proféticos da mulher dentro da Igreja. Em certo sentido, Hildegarda
foi uma quase papisa, e em nosso comentário nos serviremos da formosa antologia editada,
composta e também comentada pelo Peter Dronke .
Hildegarda do Bingen, profetisa maior da Igreja
A vida da Hildegarda do Bingen (1098-1178) coincide com um momento de renovação teológica e
clerical (digamos o século de São Bernardo, para abreviar), que sem dúvida lhe evitou um
enfrentamento com a Igreja. Hildegarda desfrutou de um estatuto extraordinário de profetisa uma
vez cumpridos os quarenta anos, momento no que dá a conhecer suas revelações, coincidindo
com sua eleição como abadessa do Disibodenberg em 1136. Soube conquistar a estima e a
admiração do poderosos arcebispo da Maguncia, e o sínodo do Tréveris (novembro 1147fevereiro 1148), presidido pela Papa Eugenio III, aprovou a redação e a publicação de suas
revelações; o próprio São Bernardo, presente no Tréveris, tinha elogiado a tarefa da Hildegarda.
Em 1150, Odón de Paris escrevia a Hildegarda para lhe manifestar sua admiração e lhe pedir que
se pronunciasse sobre o tema da «deidade» de Deus, objeto de violentas disputas durante o
concílio do Reims entre São Bernardo e Gilberto da Porrée. Este enfrentamento deu lugar a um
debate capital, pois se tratava de decidir sobre a possibilidade de elaborar uma teologia lógica,
«científica» . Desta maneira, quer dizer com a petição do Odón de Paris, Hildegarda se convertia
em uma muito alta autoridade da Igreja, um pouco análoga a do próprio São Bernardo. Sem
ostentar nenhum título em particular, o abade do Claraval foi, durante a primeira metade do século
XII, o fiador ao que sempre se consultava em matéria de fé; de fato, sabemos que, em uma de
suas cartas, Bernardo assinala que diziam dele que era a verdadeira Papa.
Este paralelo entre o Bernardo e Hildegarda reforça a hipótese vagamente formulada no
capítulo anterior: a implantação maguncina da Juana, obra do Martín o Polonês, pôde transcrever
uma reputação de «papisa», difundida em torno de Hildegarda, como ênfase ingênua ou por puro
assobio. Mas ainda há outro indício perturbador; por volta de 1260, os sacerdotes, cônegos e
abades de Colônia (seguimos, pois, na Renania) pediram a seu arcebispo que expulsasse aos
dominicanos da cidade, amparando-se em uma profecia da Hildegarda que anunciava, para o
seguinte século, a chegada a Colônia de falsos pregadores. O assunto não era absolutamente de
tom menor (se é que pode chamar-se assim!), já que Colônia constituía o assentamento central da
imensa província germânica dos pregadores; neste sentido, é possível que os pregadores
sentissem uma animadversión póstuma pela Santa Hildegarda. Podemos, pois, imaginar ao
Martín o Polonês, de caráter claramente criativo e zombador, criticando a Hildegarda sob o nome
da Juana. Nesta ordem de coisas, devemos dizer que se descuidou em demasia o «te prive joke»*
na cultura clerical da Idade Média, pois o certo é que a Igreja medieval ri com mais freqüência do
que se diz. Acrescentemos a isto que os pregadores tiveram que enfrentar-se duramente com os
herdeiros (legítimos ou não) da Hildegarda, quer dizer com esses grupos compactos de místicos e
de beatos que abundavam à maturação na Renania, e que se encontravam sempre nos limites da
heterodoxia e da insubmissão .
Hildegarda aconselhava aos principais dignatarios do mundo cristão, e manteve
correspondência com as Papas Eugenio III, Anastasio IV e Adriano IV, assim como com vários
monarcas (Conrado III, Federico Barbarroja, Enrique II da Inglaterra, Leonor da Aquitania e Irene,
imperatriz de Constantinopla). Inclusive se permitiu repreender duramente ao imperador Federico.
Por outro lado, Hildegarda desenvolveu uma atividade pastoral (predicación itinerante, sermões
aos monges, bispos e laicos) reservada aos clérigos masculinos.
Este aura da «sibila do Rin», como a chamou, não se reduziu só ao prestígio da virtude ou da
santidade individual, já que as mais destacadas personalidades lhe consultavam não por simples
deferência, mas sim porque sabia. Deus lhe revelou uma mensagem com valor de salvação
universal, de maneira que Hildegarda se converteu em uma profetisa de muito diferente corte ao
das pequenas amantes do Jesus, quem, desde a Angela do Foligno até a Teresa da Avila, só
oferecem ao mundo ao jornal íntimo de sua particular relação amorosa. Entretanto, Hildegarda
persegue a redação dos contratos humanos com Deus e porá bom cuidado em publicar tudo, e
inclusive se seu considerável obrar não é do todo fruto da escrita revelação, seu conhecimento de
Deus lhe abre não obstante o universo inteiro. Estranha vez encontramos na Idade Média
semelhante enciclopedismo ativo: o campo que percorre Hildegarda cobre a cosmologia, a
medicina, a poesia mística, a física, a ética, a dramaturgia e a música.
Mas o estatuto preeminente da Hildegarda surpreende ainda mais se tivermos em conta que, em
seu caso, não está acompanhado de uma renúncia de sua condição de mulher, a não ser
justamente o contrário. O certo é que, em sua relação privilegiada com o divino, Hildegarda
alcança uma espécie de neutralidade sexual, de «omnisexualidad», por retomar o feliz neologismo
cunhado pelo Fernando Camón . Assim, por exemplo, em uma de suas visões, a Sabedoria
(«Sapientia» se dirige a ela com o término de «criatura humana» («homo» em latim comporta um
significado genérico, por oposição a «vir»); e quando Hildegarda se vê como Moisés ou como
Daniel se está refiriendo a um papel inspirado que não implica nem sua própria virilización
nenhuma investimento dos empregos, do masculino ao feminino (a diferença do que ocorre com a
Guillerma ou Manfreda).
A feminilidade e o sagrado na Hildegarda
Entretanto, o profetismo da Hildegarda tem raízes profunda e especificamente femininas; a
recepção das visões, até que faz quarenta anos (idade da neutralidade sexual) situa-se em um
meio de mulheres. Nos fragmentos que se conservam de sua autobiografia, Hildegarda afirma que
Deus «fixou» seu olhar nela quando ainda se encontrava no seio de sua mãe; teremos que voltar
logo sobre esta concepção quase apolínea de dom da Pythia. Da idade de três anos, Hildegarda
experimenta, pois, visões divinas, e sua única interlocutora é seu nodriza, quem a informa
negativamente (pois ela mesma não vê nada) sobre sua eleição. Hildegarda, conduzida ao
convento aos oito anos de idade, silencia durante muito tempo suas visões, antes de lhe falar das
mesmas à abadessa, quem a sua vez faz que as anote um monge. A feminilidade da atividade
visionária da Hildegarda não se limita a estas circunstâncias, pois procede de uma necessidade
na história da salvação. Quando informa a respeito de seu nascimento e de sua eleição —sua
eleição Por Deus, entende-se—, Hildegarda indica o contexto de ambos os acontecimentos: «Em
efeito, no ano 1100 da Encarnação de Cristo, a doutrina dos apóstolos e a ardente justiça que Ele
tinha instalado entre os cristãos e os espirituais começavam a embotar-se e cediam frente à
indeterminação. Neste tempo nasci eu e meus pais suspirando ofereceram a Deus» ; o dom da
Hildegarda tende a suprir o desfalecimento dos homens (homines et viri), afundados no torpor
institucional. Em sua autobiografia, Hildegarda põe de manifesto essa abulia do povo cristão que
só pode romper-se com o choque da palavra nova, feminina-divina; esses cristãos adormecidos
dizem: «De onde vêm e quais são estes propósitos que sustenta essa mulher como se viessem de
Deus? Resulta-nos bem duro viver de forma distinta a como o fizeram nossos pais ou nossos
contemporâneos» . Segundo o esquema cristão do investimento dos valores, corresponde a uma
mulher sem saber algum o receber a Sabedoria; sem humildade nem vaidade, Hildegarda
proclama o aspecto divino desta herança feminina dos fracos: «compreendi os escritos dos
profetas, dos evangelistas e dos outros Santos, e de certos filósofos, sem nenhum ensino humano
(«sine ulla humana doutrina») e comentei alguns destes textos, quando logo que conhecia as
letras, eu que só tinha recebido a instrução de uma mulher ignorante («indocta mulier») .
Hildegarda parece ter consciência clara dessa oposição entre a ciência masculina embotada e o
saber feminino ativo, que lhe expõe à suspeita da impostura, e descreve da seguinte maneira o
escândalo masculino que provoca, em uns términos que recordam bastante o assombro do
Orígenes antes o saber inspirado da Pythia: «Então o antigo equívoco me perseguiu com
numerosas brincadeiras, de maneira que muitos ("multi", masculino) disseram: "Mas o que é isto?
Que semelhantes mistérios sejam revelados a esta mulher tola e inculta ('stulte et indocte femine'),
quando há tantos homens inteligentes e cultivados? Isto vai resolver na fumaça". Já que muitos
("multi") perguntavam-se, sobre o tema da revelação, se procedia de Deus ou da secura
(inaquositate) dos espíritos aéreos que enganam a tantas pessoas».
Uma sexualidade feminina mística
Esta última referência física nos situa na via da feminilidade essencial que inspira a Hildegarda. Já
observamos que Deus tinha «fixado» de maneira apolínea a revelação no feto mesmo que se
desenvolvia no ventre da mãe da Hildegarda, e esta forma oracular de relação com Deus aparece
claramente quando o visionário descreve o processo das revelações: «Um homem muito formoso
e muito tenro me apareceu em visão de verdade. Contribuiu-me tanto consolo que seu visto se
pulverizou por meu ventre como um aroma de bálsamo» .
Hildegarda desenvolve uma verdadeira erótica do conhecimento, uma erótica que, antes da
queda, consuma a penetração: «E Deus lhe deu (ao Adão) todas as criaturas para que as
penetrata com sua força viril ('virili vi eas penetret’); teve conhecimento disso e as conheceu».
Para a Hildegarda, a metáfora bíblica («conhecer») adquire valor literal, posto que o ato do
conhecimento consiste em uma boa correlação dos elementos internos do homem: «E o homem
(a criatura humana, ''homo", e não "vir"») extrai do fogo a sensibilidade (e/ou a sensualidade:
"sensualitatem") e o desejo, do ar os pensamentos e a meditação, da água a ciência e o
movimento» . O saber é o resultado da boa circulação do fogo na água através do desejo e da
sexualidade: «Quando Adão viu a Eva, ficou cheio de sabedoria» . A física medieval da separação
(o homem quente e seco, a mulher fria e úmida) transforma-se aqui em uma biologia da mescla
harmoniosa.
Mas, depois da queda, esta mescla não pode efetuar-se, dado que se dispersa o fluxo vital do
conhecimento: «Deus criou ao homem para que todos os seres animados se submetessem a ele.
Mas quando o homem transgrediu o preceito de Deus, trocou tanto seu corpo como seu espírito.
Em efeito, a pureza de seu sangue trocou de curso, e em lugar desta pureza expulsou a espuma
da semente. Se o homem tivesse permanecido no paraíso tivesse conservado esse estatuto
permamente e perfeito. Mas todo isso, depois da transgressão, trocou em um sentido bem distinto
e amargo. O esperma. Em efeito, o sangue do homem, quando bole no ardor e no calor do prazer
expulsa uma espuma que chamamos semente, como a panela que colocamos perto do fogo faz
bulir, sob o efeito do calor do fogo, a espuma da água».
O calor seco do homem quão único produz já é a espuma da reprodução; mas para a
Hildegarda, a natureza do prazer feminino e sua orientação para a procriação permite que a
mulher conserve no ato amoroso esse gosto do paraíso que assegura uma comunicação com
Deus e com o mundo; a mulher retém solidamente em seu ventre a semente, o fruto, a imagem
desse vaso que era Pythia segundo as recentes análise da Giulia Sissa.
No ato sexual, a mulher sabe captar através do fogo de seu próprio desejo o fluxo do desfrute e
do conhecimento, e o aprende; concebe: «Mas quando a mulher se une ao homem (advirtamos
que a mulher é o sujeito da ação), então o calor de seu cérebro, que implica o prazer, faz circular
o gosto de dito prazer ("gustum ejusdem delectationis") durante o acoplamento e provoca a efusão
de semente. E depois de que a semente tenha cansado em seu sítio, o susodicho calor do
cérebro retém com ele e conserva a semente e imediatamente os órgãos sexuais da mulher se
contraem e todas as partes dispostas a abrir-se durante o tempo da menstruação se fecham
então, da mesma maneira que um homem robusto fecha sua mão sobre um objeto» .
Frente à imagem do calor contínuo, sem fim, do desejo viril, do fluxo espumoso e disperso do
esperma masculino ou das menstruações femininas (que, segundo ela, eram responsáveis por
numerosos males quando se antecipam ao ciclo normal), Hildegarda propõe o calor benéfico do
desejo feminino, breve, mas orientado para a criação e a criatura: «Mas o prazer do homem,
comparado com o prazer da mulher no calor do desejo, é como o fogo dos vulcões, que
dificilmente pode extinguir-se, comparado com o fogo de lenha que se extingue facilmente. O
prazer da mulher, comparado com o prazer do homem, é como o calor suave do sol que produz
frutos; é como o fogo alegre da lenha, já que produz docemente o fruto da procriação» . depois da
queda, o desejo do homem lhe propulsa, errante, pelo universo que lhe escapa, enquanto que a
mulher permanece no recinto feliz e paradisíaco do celeiro (outra aproximação à sexualidade
feminina segundo os gregos): «O grande prazer que habitou no Adão quando Eva saiu dele [aqui
é o homem quem procria na felicidade] e a doçura do sonho que então lhe envolvia, investem-se
no momento da transgressão, de forma contrária a esta doçura. Hei aí por que o homem sente
ainda dentro dele essa grande doçura; corre para a mulher como o cervo à fonte [imagem
danaidiana do desejo sem fim], enquanto que a mulher vem a ele como se ela fora a era do
celeiro, que recebe numerosos golpes e entra em calor quando se golpeiam nela os grãos» .
A sexualidade feminina, real e metafórica (a virgindade não distingue à religiosa de suas irmãs
laicas), é uma acolhida e também um embargo do mundo e de Deus (concepçãoconceptualización), enquanto que a sexualidade masculina se dispersa na perseguição (desejo
sem fim, ciência vã). Admiremos, pois, esta bela exaltação da sexualidade feminina, cujo
equivalente não voltaremos a encontrar antes da Idade Contemporânea, e que teve um alcance
difícil de determinar, mas indiscutível, no âmbito das místicas da baixa Idade Média.
Mas a exaltação que fez Santa Hildegarda da mulher não se limitou à especulação místicobiológica.
As tiaras da Hildegarda
Hildegarda, dotada de uma personalidade altiva e vigorosa, empunhou o leme de sua própria
comunidade monacal e decidiu abandonar o convento dobro do Disibodenberg, para instalar-se
em um lugar a escassa distância (o Rupertsberg sobre o Rin), mas tão desolado que o primeiro
assentamento resultava risível. Hildegarda se comportava como uma «mãe do deserto», o que em
modo algum supunha uma humilhação do papel da mulher na Igreja; tanto é assim, que uma visão
recolhimento em sua primeira recopilação, o Scivias, animou-lhe a destacar a honra da mulher na
história da salvação através de uma vestimenta tão chamativa como a dos sacerdotes. Vejamos a
seguir de que maneira descreve Hildegarda esse traje das monjas, para conhecimento do monge
Guiberto do Gembloux: «Sobre o tema das coroas, vi que todos os ordens eclesiásticos exibem
símbolos deslumbrantes em relação com o brilho celestial, mas que a virgindade [como ordem
eclesiástica] não exibia nenhum sinal deslumbrante, a não ser um véu negro e a imagem da cruz.
Também vi o que devia ser o emblema da virgindade: a cabeça da virgem se cobrirá com um véu
branco, em lembrança do branco vestido que a criatura humana ("homo") levou e perdeu no
paraíso. Sobre sua cabeça se colocaria um aro ("rota": roda, figura do universo natural e divino na
cosmologia da Hildegarda) de três aros juntados em um sozinho, imagem da Trindade; a este aro
se acrescentam outros quadros: o primeiro leva a frente o cordeiro de Deus, o segundo leva a
direita uma querubim, o terceiro à esquerda um anjo, e o último, por detrás, uma criatura humana;
todos estes aros giram para a figura da trindade» . O hábito das monjas da Hildegarda, com esta
espécie de triplo tiara e essa ornamentação simbólica, recorda irresistivelmente o traje papal:
desta maneira, Hildegarda coroa papalmente sua apologia do papel sagrado da mulher.
A presença da Hildegarda neste capítulo tem por objeto ilustrar, dentro do esquema da partilha
sexual dos papéis sagrados, o perfil masculino da figura da profetisa. No que se submete
Hildegarda à ordem masculina? Pelo contrário, o que é o que distingue a Hildegarda da Manfreda
ou da Guillerma? Possivelmente muito pouco, sobre tudo se tivermos em conta o provável giro
esquerdista que sofreu a teologia da Manfreda do Pirovano durante o processo inquisitorial, nossa
única fonte de informação. Mas a diferença capital estriba em que Hildegarda optou por
permanecer dentro da Igreja romana: sua carreira de mulher de Igreja se acomodou por completo
às tradições canônicas; não falou em público nem escreveu até a idade de quarenta anos, idade,
precisamente, da «neutralização sexual» da mulher na Igreja. Este passo a palestra pública se
realiza de forma gradual e com um requerimento constante e escrupuloso da aprovação
eclesiástica, primeiro por parte do arcebispo da Maguncia, e logo da Papa, a raiz do sínodo do
Tréveris. Sua marcha ao Rupertsberg está precedida de uma petição de autorização episcopal.
Por outra parte, Hildegarda não questiona em nenhum momento a ordem social; neste sentido,
a uma cara da cônega Tengswindis, quem lhe perguntava por que só admitia em seu convento a
mulheres de alta fila, Hildegarda lhe respondeu que a hierarquia terrestre respondia a um desejo
de Deus, e que o granjeiro perito não mesclava no mesmo curral aos bois com os asnos, os
cordeiros e as cabras. dentro destes limites institucionais respeitados, Hildegarda podia, pois,
exaltar à mulher dentro da Igreja; a domesticação masculina da força profética feminina se
limitava a essa consideração do respeito da Igreja romana .
O caso da Hildegarda, personalidade de exceção, exemplifica o grau máximo ao que podia aspirar
a figura da profetisa no marco masculino da Igreja. Mas a esta forma autêntica de participação,
encontram-se outras formas oblíquas e metafóricas de promoção controlada da mulher, entre elas
a economia da salvação. Este aspecto retórico aparece claramente no século XII, com a devoção
cisterciense ao Jesus ou ao abade como mãe, segundo a análise da Carolina Bynum. Esse
recurso verbal permite expressar «um desejo de afetividade no exercício da autoridade e na
criação de uma comunidade, e um ritmo complexo que associa a renúncia do mundo com o
fortalecimento dos vínculos dentro da comunidade e entre a alma e Deus» . Do mesmo modo, São
Francisco, em seu tratado De religiosa habitatione in eremo, aconselha a seus irmãos que se
estabeleçam em grupos de quatro no deserto: duas «mães Martas» se ocupavam das atividades
necessárias, enquanto que os dois «filhos» se entregavam à contemplação. O fato de que se
invistam os papéis ao cabo de certo tempo demonstra perfeitamente que a referência materna em
realidade não concede nada à mulher, pois só se trata de um trocadilho .
Um parecido de profetisa: a mulher no sistema do Roberto do Arbrissel
Inclusive quando a feminización afeta à realidade, e não só à linguagem, refugia-se no
parecido: um caso ambíguo e interessante é o que nos proporciona a ação fundadora do Roberto
do Arbrissel (por volta de 1045-1116), criador da ordem do Fontevrault.
Conhecemos a famosa fórmula do Michelet a propósito do Roberto do Arbrissel: «Abriu de novo
às mulheres o seio de Cristo.» Uma das originalidades do Fontevrault consistia no investimento
dos papéis sexuais: ao longo de sua vida e em seu testamento, Roberto impôs uma direção
feminina a dobro ordem (masculina e feminina) do Fontevrault. Por outra parte, quem se beneficia
da atenção do Roberto é a própria mulher como tal, já que se preocupou de aceitar ao mesmo
tempo a cortesãs (meretrizes) e a aristocratas de alta fila (Petronila do Chemillé, primeira
abadessa da ordem; Hersenda do Montsoreau, primeira prioresa; Ermengarda, mulher do
Guillermo VII do Poitou; Inés do Chateaumeillant; Filipa, ex-mulher do Guillermo, logo Guillermo IX
da Aquitania; Bertrada do Anjou, segunda esposa do Felipe I, rei da França).
Mas Jacques Dalarun demonstrou que essa promoção procede de uma instrumentalidad ascética
masculina: Roberto, filho de sacerdote, cresceu na atmosfera áspera da reforma gregoriana e quis
combater o «incesto dos sacerdotes»; assim, a coabitação com as mulheres revelava um desejo
de expiação e servia de prova, quer dizer, de ordalía da castidade mais sublime. Esta orientação
aparece com toda nitidez nos escritos do Roberto: «É pelo que, pensem bem, tanto como vi, que
se desejam permanecer em seu dever, obedeçam ao mandato das sirva de Deus, para a salvação
de suas almas» . Na Vida do Roberto, composta pelo Andrés, um de seus companheiros, há uma
formulação muito parecida que acentúa esse aspecto de serviço galante (desenvolvido na mesma
época em términos profanos pelo trovador Guillermo da Aquitania, marido da Ermengarda,
precisamente), e que se refere à obediência masculina: «Ordenei-lhes obedecer todo o tempo de
sua vida às sirva do Jesucristo, para a salvação de suas almas, e lhes servir por amor de seu
marido Jesus» .
Um milagre, localizado pelo J. Dalarun, permite ilustrar a mutação do papel feminino dentro da
Igreja durante esse começo do século XII: observamos o trânsito da exclusão horrorizada do
sagrado (quão mesma perdura no direito canônico e que se endurece, por pura reação, em um
certo profetismo masculino, como vimos no primeiro capítulo) à integração raciocinada no
universo clerical. No curso de seu predicación itinerante, Roberto chega com sua tropa mista de
discípulos à igreja do Menelao (Menat, no atual Puy-do Dóme), por volta do ano 1114. A tradição
local proibiu o acesso às mulheres, sou pena de uma morte imediata enviada pelo céu. Roberto
entrou apesar da ameaça, e o castigo não se produziu; então os habitantes clamaram vingança a
São Menelao, mas Roberto lhes dirigiu um sermão que apagou o engano: «Deixem, boa gente,
não façam em vão rogativas tão néscias! Saibam, pelo contrário, que os Santos não são inimigos
das esposas do Jesucristo. Porque o que dizem é uma coisa absurda e a pureza da fé católica
conhece justamente o contrário; como ficou dito no Evangelho dessa piedosa pecador, a que
beijou os pés do Redentor, e os lavou com suas lágrimas, e com seus cabelos os secou, e com
ungüentos perfumou a seu muito digno professor . Este conceito expiatório e um tanto
especulativo da mulher é bem distinto da atitude de separação que advertimos na anedota que dá
pé à proibição e em que figura um dos avatares primitivos e prototípicos da Juana a disfarçada,
em uma atmosfera próxima à dura misoginia dos Pais do deserto. A anedota é a seguinte: em
uma vida antiga de São Calais proibiu que as mulheres visitassem seu monastério, ao objeto de
que seu rosto permanecesse oculto à tentadora. Ao parecer, no desejo que tinha expresso uma
rainha por ver seu rosto, Calais tinha reconhecido uma tentação do diabo para lhe perder: «depois
de sua morte, uma impudica, uma filha da Eva, emudecida pela serpente da lubricidade, tenta
entrar, apesar da proibição, no santuário onde repousa o corpo de São Calais. Para conseguir seu
propósito, barbeia-se os cabelos e se disfarça de homem. Logo que penetrou no santo lugar,
perde a vista e é traída por uma perda de sangue que alaga o chão» .
No Menelao, depois de exorcisar a imagem satânica da tentadora disfarçada mas traída por
seu ventre (Juana, sempre Juana), a pecador entra na igreja, mas esta vez para honrar ao Marido
e sob a direção espiritual do homem. Esta integração vigiada, ao tempo que nos afasta da
profetisa, situa-nos ante uma forma mais precisa e mais general de recuperação do profetismo
feminino, que se exerce na direção das visionárias a partir do século XII. Isto é, um modelo
estável e duradouro associa a uma mulher inspirada, freqüentemente analfabeta, com um diretor
de consciência que lhe serve de guia, de promotor e de exegeta, toda vez que se oculte detrás
dela.
A profetisa domesticada
O modelo alcança sua máxima expressão no século XIII, concretamente nas ordens mendicantes,
que, mediante sua inserção urbana e sua independência frente à instituição paroquial e episcopal,
podia escutar vozes populares inspiradas. O esquema de investimento crística, reativado pelos
franciscanos, induziu, como vimos, aos espirituais a afirmar que a verdade de Cristo podia
refugiar-se, em última instância, entre os pobres, os doentes, os meninos e as mulheres. A partir
do século XIII, e inclusive fora da dramaturgia escatológica dos espirituais franciscanos, circula «a
convicção de que o intermediário privilegiado da revelação divina era jovem, pobre e feminino» .
Um exemplo tão chamativo como extremo de dita convicção, assim como do marco masculino e
clerical a que aquela faz referência, é o que nos brinda a pequena profetisa da Santa María no
Cigoli, a finais do século XIV, e que foi estudado pelo Daniel Borstein : se trata do caso de uma
menina de dez anos, quem, oculta e separada dos fiéis, fala por boca de um sacerdote. Desde a
Hildegarda até esta jovencísima visionária, a profetisa, órgão de Deus, converte-se em uma
simples peça do instrumento clerical e masculino. Mas em vez de multiplicar os exemplos fáceis
que ilustram dito modelo (uma mulher profetisa aparente está acompanhada de um homem douto
e dono de sua voz) passaremos diretamente ao extremo do período que nos ocupa no presente
capítulo, quer dizer ao século XVI, fora já da Igreja, para atender essa situação da que surge uma
nova Juana.
Guillermo Postel e seu papisa Juana
Guillermo Postel (1510-1581) foi um desses grandes iluminados do Renascimento que mesclaram
a mais ampla erudição com o hermetismo mais sincrético. O êxito de sua reputação e de sua
carreira impede que lhe reduza à loucura comum, atribuível aos inventores de sistemas
teosóficos, tão abundantes no século XVI. depois de realizar sólidos estudos (adquiriu o grau de
professor em artes em 1530), acompanhou em 1535 ao embaixador Juan da Forest a
Constantinopla, de onde se trouxe numerosos manuscritos assim como um conhecimento fluido
das línguas orientais. A sua volta, compôs a primeira gramática da língua árabe em francês, e
chegou a ser leitor de matemática e de «línguas peregrina» no Colégio Real. Obteve o benefício
de um decanato no Anjou. Depois se transladou a Roma, onde ingressou na Companhia do Jesus
da que logo foi expulso, dado que se dedicava já a expor seu sistema político-religioso,
proclamando em voz alta os dois princípios que sustentam sua obra: a primazia do concílio sobre
a Papa, e o direito de primogenitura do rei da França sobre a monarquia universal. Em 1547,
instala-se em Veneza, onde se entrega a uma tradução glosada do Zohar, ao tempo que
proporciona, no hospital de San Juan e São Pablo, direção espiritual a uma «devota» analfabeta,
a Mãe Juana. Esta mulher, da que só temos notícia pelo próprio Postel, dizia ser Papa e esposa
do Jesus, como nos conta o que se converteria em sua exegeta: «Disse-me, me enchendo de
maravilha, que ela, até sendo mulher, era a Papa angélica e Reformador do mundo. O que,
considerando eu que ela era mulher e que não estava cheia do Espírito Santo e da substância do
Jesus, duque soberano da Igreja, escandalizou-me. Mas quando ela me disse: "Vou sarete IL mijo
figliovolo da minha substanzia e dava quella do mijo sposo Jesu generato"*, então compreendi
bem o que ela tinha querido dizer por si mesmo, já que era para mim» .
Convencido por esta mensagem de que o eleito era ele mesmo, Postel parte de novo para o
Oriente, para Terra Santa, e retorna a França em 1551. Em 1552 se proclama Papa com o nome
do Pedro II; apesar de suas extravagâncias, Postel não conseguiu interessar à Igreja: a Inquisição
o declarou louco («amens»), e foi preciso que escrevesse contra Paulo IV em Roma em 1559 para
que lhe metessem no cárcere durante um tempo. Catalina do Médicis lhe ofereceu o posto de
preceptor do Hércules-Francisco do Valois. Morreu apaciblemente em 1581.
Por volta de 1550, Juana, que fazia chamar-se também Jechochannah («Graça do Senhor» em
hebreu), havia falecido não sem antes delegar sua imortalidade ao Postel, quem se proclamou, de
acordo com o indicado por seu papisa, primogênito da Mãe Juana e de seu marido Jesus, quer
dizer Caín, filho do novo Adão e da nova Eva. A partir de então, e em numerosas publicações,
parece retomar a mensagem da Manfreda do Pirovano; como se desprende, por exemplo, do
título de sua obra mais famosa, editada em Paris em 1553: Três merveilleuses Victoires dê
Femmes du Mouveau Pode et comment elles doivent À tout lhe pode commander et mesme À
ceulx qui auront a monarchie du pode vieil.
Mas esse «feminismo» manfredino aparente oculta, de fato, o modelo ao que nos referimos mais
acima, o da manipulação masculina da iluminação. Para o Postel a Mãe Juana representa uma
fonte de humilhação («Estando o Espírito de Deus oculto sob a mais abjeta criatura do mundo,
como quis aparecer minha Mãe ante o mundo») . Em seus Rétractations do Guillaume Postel
touchant os propos do Mere Jeanne (onde, a pesar do título, Postel não renega absolutamente de
seu sistema), o autor decifra o sentido de seu elogio das mulheres: «Pois não querendo escutar
pelas sortes mulheres (o que São Agustín chama a Razão Inferior da mulher tanto em um como
em outro sexo) mais que a razão natural» . O acontecimento de 1547 se decifra da seguinte
maneira: Jesus, figura feminina e masculina, veio por duas vezes: primeiro sob aspecto masculino
(que designa a forma, a inteligência, a autoridade, o «animus») para recuperar aos humanos
através da Paixão; depois, em 1547, Ele veio para manifestar, através de uma delegação
feminina, a «restauração» do ser humano, de sua parte inferior, «feminina» (o princípio feminino
tem que ver aqui com a matéria, com a razão natural e inferior, com a execução, com o «anima»).
Quão único faz a Mãe Juana em 1547 é iluminar ao Postel: «A Mãe do Mundo pôs seu espírito em
mim para esse fim, para que, como o novo Adão, seu Marido criou na Judea o Papado segundo a
ordem do Melquisedec chamado Sem, filho do Noé, também ela em mim (dado que a mulher não
deve na Igreja, pela autoridade que durou até aqui, ensinar) criasse o Império ou Monarquia do
direito do Jafet, irmão do dito Sem, como se instituiu no século de ouro. E quem não me cria se
arrependerá mais tarde» .
Inclusive no texto das Victoires dê Femmes, Guillermo Postel propõe, com uma mescla de cinismo
e de ingenuidade, o princípio que regula esta conduta masculina na direção das mulheres, cuja
inspiração interpreta como um esforço vão por alcançar a razão do varão: «E quanto a elas, que
por causa de sua imperfeição, sentem o desejo de querer unir-se a uma natureza superior, formal
e mais perfeita, não devem ser por isso tão recriminadas como o são os homens, já que os
homens, contra a natureza da perfeição, e ao obedecer às mulheres, tendem para o que é
imperfeito, enquanto que elas, elas se inclinam para o que é perfeito, que é o homem» .
A Mãe Juana e Santa Hildegarda se situam nos dois extremos da integração da profetisa no
discurso masculino. Mas além disso, e isto é o importante, advertimos que ambos os extremos se
tocam em muitos aspectos, já que as figuras respectivas da profetisa, da feiticeira, da usurpadora
e da inspirada se mesclam e se sobrepõem, todas elas expressam, desde distintos pontos de
vista, e desde situações diferentes, uma das grandes aporías do cristianismo medieval: Como dar
uma forma masculina (legal, legítima) a uma palavra que foi anunciada e concebida por uma
mulher e transmitida por um discurso coloque-sexual? A menos que esse contínuo assalto
feminino das instituições masculinas não seja uma forma essencial do sagrado cristão.
Em nossa busca de uma Juana, sábia e dominadora, encontramo-nos com uma verdadeira
legião (Manfreda, Juana de Arco, Hildegarda, Petronila, Gunda, Mãe Juana e todas suas primas),
variantes elogiadas ou desprezadas, temidas ou respeitadas, livres ou encadeadas, a mercê de
projeções e de rechaços, de compromissos e de condenações. A imagem do Tarot que
comentamos até aqui se acomodava muito bem a esta presença cíclica, ameaçador e desejada; a
papisa, necessária e virtualmente distribuída, toma ou se deixa tomar no momento desejado ou
temido. A história só pode comentar e classificar suas aparições decisivas sem as elevar a fila de
lei, e a errabundez da Juana, fora do discurso cronográfico, só se deixa guiar covardemente por
algumas regra institucionais.
A imagem do Tarot permitia que funcionasse uma simulação do real; mas se afastarmos um
pouco mais a papisa do acontecido (real ou fantástico), então poderemos construir esse simulacro
que chamamos literatura, e que obteremos pela via indireta da segunda representação
iconográfica da papisa na Idade Média.
Juana entre as damas deslumbrantes
Há dois manuscritos prestigiosos, datados em torno do 1400, executados para a corte
borgoñona e ricamente iluminados, que têm cada um deles uma miniatura onde se representa ao
parto da Juana durante a procissão romana; trata-se de duas exemplares da tradução francesa do
Du Mulieribus claris do Boccaccio. Sobre o Tarot (com um retrato grave ou alegre), Juana perde a
ambivalência de sua representação; mas aqui a imagem já não pinta o oculto de um enigma, a
não ser sua resolução: as roupas deslumbrantes dos personagens (cardeais, bispos, monges)
indicam a publicidade da cena. O menino da Juana atravessa seu hábito pontifício e salta para
baixo, como símbolo anunciador e denunciador da queda de sua mãe, de cuja presença nos
informa a silhueta vacilante e ainda pesada da Juana. Os miniaturistas optaram por descrever o
acontecimento e o brilho .
Neste sentido, não traem o espírito do Boccaccio. Em 1361, Boccaccio redige em latim, em seu
retiro do Certaldo, uma galeria de retratos femininos, seguindo o modelo antigo de homens
ilustres, gênero que nesse mesmo momento renovava seu amigo Petrarca, como indica o próprio
Boccaccio em sua introdução.
Boccaccio se ocupa de mulheres mais deslumbrantes («claris») que ilustres, de maneira que
conservaremos a tradução literal do título, contra o que se feito tradicionalmente. Em efeito, seu
panteão de 106 mulheres extrai sua unidade da energia feminina mais que da grandeza moral ou
social. O fato de que se sirva do latim (em vez do italiano como no Decamerón) e a eleição das
escolhidas corroboram plenamente esta impressão. Porque quando em 1361 Boccaccio renuncia
à língua italiana, seu propósito é exaltar a herança antiga e mediterránea da força da alma; assim
é que as mulheres cristãs ocupam um lugar pouco importante nas Mulheres deslumbrantes:
depois da vida inicial da Eva, há nada menos que 39 capítulos (II-EXTRA GRANDE) dedicados às
heroínas da mitologia e da poesia antigas; e, continuando, outros 60 capítulos (XLI-C) ocupam-se
de mulheres notáveis da história profana antiga, às que se unem três mulheres tiradas da Bíblia
(Atalía, Nicola e Mariana). Só os seis últimos capítulos apresentam a mulheres da Idade Média
cristã, embora dois destes capítulos foram acrescentados posteriormente, durante o verão de
1362, a conseqüência de um desejo galante. Boccaccio tinha sido convidado a Nápoles pelo
senescal Nicolás Acciaivoli, e então quis dedicar Mulheres deslumbrantes à irmã de seu anfitrião,
Andreola, algema a sua vez do conde Bartolomé II da Capua; foi então quando escreveu o
capítulo CV sobre a Cammiola, uma sienesa que se ilustrou na Mesina (delicada alusão a
Andreola, outra toscana que vivia no sul). Redige deste modo um novo capítulo sobre a rainha
Juana de Nápoles, soberana do reino ao que se dirigia Boccaccio. Estes detalhes demonstram
que a inclusão da papisa nesta série a projeta em um universo incomum para ela; assim, em
1361, Juana sai da Igreja para entrar na literatura e na feminilidade.
Neste novo contexto, Juana tem que medir suas forças com outras mulheres de exceção; quer
dizer, que a questão eclesiológica ou a preocupação do sagrado carecem já de importância, pois
os temas religiosos ou morais ficam neutralizados com essa lembrança da façanha feminina que
põe sobre a cena tanto a jaquetas como a cortesãs.
O novo estatuto da Juana resulta difícil de definir. Boccaccio não pretende passar por
historiador, de maneira que ao tempo que se serve com uma desenvoltura consciente de suas
fontes, às que às vezes não reconhece nenhuma veracidade, outorga-se a si mesmo o direito de
inventar. Terei que falar então de uma existência literária da Juana? Não tentaremos justificar a
«literaridad» de Mulheres deslumbrantes, já que sorte tarefa seria muito infeliz; basta para nosso
propósito indicar que neste texto Boccaccio não pretende fazer acreditar, a não ser significar. fazse, pois, necessário, imaginar um terceiro tipo de crença na Juana, e colocar, ao lado da crença
verídica e da crença fantástica, um acordo de leitura: o leitor advertido (e só ele, já que pode lerse qualquer texto literário segundo formas de crença não previstas) disposta sua adesão ao
acordar ao texto uma exemplaridade significante e metafórica: não acreditam na existência
histórica do vice-cônsul de Margarida Duras, mas aderimos a sua existência enquanto dura uma
leitura, e sobre tudo enquanto estimemos que representa a verdade do homem fulminado pelo
amor. Todas estas considerações, um tanto plainas e antihistóricas, parecem-nos entretanto
necessárias para situar o novo estatuto da Juana no Boccaccio, e em conseqüência para medir a
complexidade de sua situação a partir de 1360: nas consciências medievais, Juana é de uma vez
uma Papa inauténtico (crença 1), uma verdadeira feiticeira ou uma verdadeira profetisa (crença 2)
e uma heroína verossímil e exemplar (crença 3).
É hora de ler o texto do Boccaccio; a glória de seu autor, a importância da ocasião e o encanto da
narração justificam uma tradução integral deste curto capítulo de Mulheres deslumbrantes.
A papisa Juana do Boccaccio
«Juana a inglesa, Papa. Juan, homem por seu nome, foi, entretanto, uma mulher por seu sexo.
Sua temeridade inaudita a fez célebre no mundo inteiro e lhe deu a conhecer na posteridade.
Alguns dizem que sua pátria de origem foi Maguncia; mas desconhecemos seu nome de pilha,
embora para alguns se chama Gilberto antes de seu pontificado. O que para muitos parece
seguro é que esta virgem foi amada por um jovem estudante e se diz que lhe amou até o ponto de
abandonar o pudor virginal e o temor feminino fugindo secretamente da morada paterna para
seguir a seu amante depois de trocar de roupa e de nome; a seu lado, durante seus estudos na
Inglaterra, fez-se passar por clérigo aos olhos de todos e se entregou a Vênus e aos estudos.
Depois o jovem foi arrebatado pela morte; e como lhe tinha reconhecido talento e a doçura da
ciência lhe atraía, conservou seu hábito e não quis ficar outros vestidos nem apresentar-se como
mulher; assim, prosseguiu seus estudos com interesse e perseverança, e progrediu tanto nas
artes liberais e na teologia que a estimava muito por cima de todos outros. Então, dotada de uma
ciência extraordinária, que aumentava com a idade, deixou a Inglaterra por Roma; ali, ensinou
durante alguns anos o trivium e teve insignes ouvintes. E como brilhava, além de por sua ciência,
pelo resplendor de seus costumes e por uma piedade notável, todos acreditaram que eram um
homem. Era, pois, ilustre e, quando a Papa Leão V pagou a dívida de sua carne, os muito
veneráveis Pais a escolheram com um acordo unânime para o Papado, inclusive antes da morte
da Papa; tomou o nome do Juan. Se tivesse sido um homem, teria sido Juan VIII. E, entretanto,
não teve medo de subir à cadeira do Pescador de homens, nem de tocar, manipular e mostrar
todos os objetos sagrados do mistério, o qual não está permitido a nenhuma mulher na religião
cristã; durante alguns anos uma mulher ocupou o topo do apostolado e dirigiu o vicariado de
Cristo na terra.
»No céu, Deus teve piedade de seu povo, e não suportando que uma fila tão insigne estivesse
ocupada por uma mulher, nem que presidisse a uma nação tão considerável, nem que a
manchasse com semelhante engano, abandonou a que ousava com seus atos ilegítimos e que
não tinha permanecido entre Suas mãos. É pelo que, a instigação do diabo que lhe tinha
empurrado a semelhante falta e lhe insuflava audácia, aconteceu que ela, que, em sua vida
privada, tinha conservado grande honestidade de costumes, caiu no ardor do prazer, uma vez
elevada ao supremo pontificado. A que durante tanto tempo tinha sabido dissimular seu sexo não
carecia de recursos para satisfazer sua lascívia. E, de fato, quando foi encontrado o que
secretamente conheceu sucessor do Pedro e aliviou o ardor de seu desejo, ocorreu que a Papa
concebeu.
»OH crime indigno, OH paciência invicta de Deus! O que, pois? A que tinha sabido durante tão
comprido tempo fascinar os olhos dos homens, faltou-lhe o talento para ocultar sua iluminação
incestuosa. Em efeito, estava muito próxima do término; vindo do Janículo, celebrava uma
procissão sagrada; dirigia-se para o Letrán e se encontrava entre o Coliseu e a igreja da Papa
Clemente quando, sem ter chamado a uma parteira, iluminou publicamente e revelou com que
astúcia tinha enganado durante tanto tempo a todos os homens, exceto a seu amante. E então,
rechaçada pelos Pais às trevas exteriores, morreu com seu miserável fruto. Detestando sua
impureza e em memória de seu nome, até nossos dias, os pontífices supremos, ao conduzir a
procissão das Rogativas com o clero e o povo, amaldiçoam o lugar da iluminação, situado a
metade do trajeto e, para evitar dito lugar, desviam-se por vias transversais e por ruelas e, depois
de deixar atrás esse lugar detestável, retornam a seu caminho e concluem o que empreenderam»
.
O trabalho do Boccaccio
Boccaccio se ajusta bastante ao esquema narrativo do Martín o Polonês, desenvolvendo-o
segundo uma técnica de ampliação que poderia nos incitar a entender o esforço literário em
términos de ornamentação. Consideremos, por exemplo, a alusão ao desvio, onde a retórica do
quadro (do ekphrasis) só acrescenta seu virtuosidad. Por nossa parte, poderíamos acrescentar
uma retórica do comentário moral, da glosa da ação («Ou scelus indignum»).
Entretanto, a atmosfera narrativa é bem distinta; não nos deteremos nas divergências menores
que se explicam tanto pela liberdade que se outorga Boccaccio a si mesmo, como pelas
aproximações da transmissão manuscrita do texto do Polonês, constantemente copiado e
emendado, como já havemos dito. A transformação de Leão IV em Leão V, de Vaticano do
Janículo, pode indicar uma leitura defeituosa por parte de um copista ou do próprio Boccaccio,
pois em realidade essas alterações não significam nada. O conhecimento prehumanista do
Boccaccio pôde substituir deste modo a estadia de estudos em Atenas por uma fuga na Inglaterra,
resolvendo assim de repente o mistério do Juan inglês; porque Boccaccio conhecia muito bem a
cultura grego-romana e sua sobrevivência medieval para ignorar que a Atenas do século IX não
podia oferecer ensino alguma a Juana. Por outro lado, este detalhe desempenhará seu papel na
refutação da história da Juana durante a Idade Moderna. Mas há outro detalhe que nos parece
misterioso; trata-se do nome do Gilberto com o que Boccaccio batiza a Juana em seu estado
masculino pre-papal; é possível que constitua um testemunho da existência de versões
desaparecidas, a menos que um copista-glosista tenha misturado as histórias das Papas más,
assinalados com o sufixo «-bertus», às vezes satânico na Idade Média (pensemos no Roberto o
diabo). Nesta ordem de coisas, vimos, por exemplo, como Juan do Mailly investiu os nomes e as
atuações do Gerbertus (Silvestre II o necromántico) e do Guibertus (Guiberto da Rávena, o
antipapa de Pascal II); assim, pois, Gilbertus se encontra muito perto, gráfica e connotativamente.
A transformação do Juan (Johannes) na Juana (Johanna) no título do capítulo, de capital
importância para o desenvolvimento da história, é sem dúvida responsabilidade direta do
Boccaccio: nas Mulheres deslumbrantes, Juana devia apresentar-se com nome de mulher, posto
que é mulher entre mulheres.
Paixões da Juana
Mas todas estas transformações e apliques em modo algum alteram o relato de" Martín o Polonês
mais do que o fazem as adaptações cronográficas clericais, citadas no capítulo anterior. Não
obstante, a narração do Boccaccio sim introduz uma inovação considerável ao compor a história
com duas tendências, algo assim como «Grandeza e queda da Juana». Enquanto Juana não
aceitou o Papado, Boccaccio a considera com a mesma simpatia que sente por todas as mulheres
que, fazendo ornamento de uma nobre energia, superam sua própria condição (até o ponto de
abandonar o pudor virginal e o temor feminino); aqui, o amor (a predileção) recíproca justifica a
audácia («a scolastico juvene dilectam quem adeo dilexisse ferunt»). O amor e a paixão do saber
constróem a força desta mulher, e o golpe fatal que lhe arrasta à perdição só pode produzir-se por
causa da morte do amado (inventada pelo Boccaccio). O fato de que prossiga com seus estudos e
conserve seu disfarce expressa uma espécie de fidelidade por parte da Juana: a ambição durante
o celibato (Boccaccio sublinha a castidade inconsolável da Juana) deriva o amor perdido para seu
elemento complementar, a paixão do saber. Boccaccio, grande admirador da cultura feminina,
reconhece a Juana um campo de conhecimento mais amplo que o próprio Martín o Polonês, quem
limitava as competências da papisa ao «trivium» (gramática, lógica e dialética) das artes liberais;
Boccaccio acrescenta por sua conta a disciplina reina: a teologia. Graças aos trabalhos do
Jacques Verger , sabemos que as faculdades de artes (o que corresponderia mais ou menos a um
segundo ciclo de nossos liceus) registraram uma perda constante de prestigio ao longo da Idade
Média, frente às faculdades superiores (teologia, direito e medicina). Mas, inclusive neste âmbito,
a malícia do Martín o Polonês proporcionava uma inflexão significativa: os dominicanos não
seguiam pelo general o ciclo de artes que tinha perdido seu valor propedeútico, e que eles
substituíam com sua formação geral, nos «studia» de sua ordem; é possível, pois, que a intenção
do Martín seja lançar um invectiva contra essas faculdades de clérigos que oferecem um saber
superficial de sedução e de engano, e não fundamentos sólidos de conhecimento.
Mas esse alto grau de conhecimento que Boccaccio atribui a Juana, repartido para o exterior,
investe os valores, pois arrasta a Juana à usurpação e o estupro. Frente à «predileção» recíproca
dos estudantes, Boccaccio propõe o ardor do prazer («in ardorem libidinis»), e o desejo abrasador
(literalmente, o comichão: «exurientem pruriginem») que induz a Juana a encontrar um amante
famoso pelo Boccaccio como um mero objeto sexual («adinvento qui... exurientem pruriginem
defricaret»). Há uma palavra que importa aqui por quanto indica a aparição de um valor em meio
deste século XIV: «privata»: «ela, que em sua vida privada tinha conservado sua honestidade de
costumes»: «privata», que se refere ao estatuto da Juana antes de seu Papado. Mas a palavra
comporta uma conotação tão moral como social: o amor da Juana e sua fome de saber só podiam
e deviam cultivar-se na esfera privada.
Resulta difícil avaliar o sentido que Boccaccio dá à segunda vertente ou tendência da vida da
Juana: ou nos encontramos ante uma adesão necessária por parte do autor à versão clerical da
história (Juana se serviu que uma argúcia imperdoável e profanou o trono do Pedro), ou ante a
limitação que o próprio Boccaccio confere à ação de uma mulher (a superação da condição
feminina não requer uma substituição de papéis). O terceiro capítulo de Mulheres deslumbrantes,
dedicado ao Semíramis, reina de Agarraria, convida-nos a nos inclinar pela segunda hipótese:
Semíramis perde a seu marido Nino, quando seu filho Ninia é ainda muito jovem para assumir a
direção do reino. Semíramis recorre então à astúcia e ao disfarce (e neste texto encontramos o
lote completo das expressões já conhecidas que descrevem a atuação da Juana: «astu quodam
muliebri», «mentita sexum»): aproveitando seu grande parecido com seu filho, ainda imberbe, fazse passar por ele. Boccaccio elogia a empresa, tanto por suas motivações como por seus
resultados: Semíramis se disfarçou para salvar a dinastia e o reino; quando julgar que o perigo
passou, restabelecerá a verdade, seu êxito como monarca feminino é deslumbrante e canta a
glória do sexo feminino: «como se queria demonstrar que não é o sexo, a não ser o caráter o que
destina ao poder», leva mais longe que seu defunto algemo as conquistas de Agarraria, até
Etiópia e a Índia. Mas, ao igual a Juana, provoca sua queda entregando-se à licença, cosi fã
tutte*: «Em efeito, arde, como as demais mulheres, no comichão contínuo do desejo» («assidua
lubidinis prurigine», a palavra é quão mesma para a Juana), e acrescenta a seu próprio filho à lista
de seus numerosos amantes .
Mas esta debilidade libidinosa da mulher não nos devolve à figura da feiticeira, e neste sentido
terá que sublinhar a distância extraordinária que separa ao Boccaccio das versões religiosas da
história da Juana: o saber e o disfarce pertencem à vida laica, amorosa e boa da Juana, isenta de
todo satanismo mediante contrato diabólico) e a sedução (a beleza do diabo que troca de repente
a Juana de Arco segundo Shakespeare) para dominar e investir o bem. A falta da Juana é
conseqüência de sua passividade (deixa-se coroar, abandona-se ao estupro), como se a morte do
amante amado tivesse matado a mola que enfaixava sua energia. Se tivermos em conta
(preocupação vã) as receitas do «feminismo», duvidaríamos a propósito do Boccaccio entre duas
avaliações: alguém elogiaria a quem elogia a energia feminina que sabe superar as condições
naturais e sociais, e que só se perde pela fascinação que sente pelo modelo masculino; e a outra
assinalaria um elogio muito moderado da femineidad que só alcança a excelência dentro do
âmbito estritamente feminino e da relação com o homem.
A transformação da Juana em heroína da literatura tem pelo menos a mesma importância que
sua reabilitação «feminista» (ou pseudo-feminista). Como havemos dito, este trânsito se efectúa
mediante uma neutralização das implicações ideológicas do personagem: já não se trata de
conhecer o grau de pontificalidad que representa Juana, nem tampouco o alcance de seu
satanismo; a galeria feminina do Boccaccio, apesar da exegese que lhe possa aplicar, tampouco
problema-giz seja o tema da mulher, seja que, conforme confessa ele mesmo, Boccaccio mescla
o verdadeiro com o fictício de um capítulo a outro. A composição de conjunto trata os relatos como
elementos de um paradigma, como variações sobre um mesmo tema (como se converte a mulher
em deslumbrante?). Boccaccio desenha caracteres, e, como vimos a propósito da Juana e do
Semíramis, a construção de cada relato se apóia no princípio aristotélico da tragédia: uma lenta
ascensão para a catástrofe. Na história da Juana, o elemento papal marca a maior distancia
possível entre a queda e o êxito, entre a aparência e a realidade; em resumo, a papisa representa
uma figura literária (trágica ou romântica) ideal.
Posteridade do Boccaccio
A versão profundamente laica do Boccaccio teve um êxito considerável, como se desprende
dos numerosos manuscritos que da mesma se conservaram, e das traduções a diversas línguas
(entre elas a tradução francesa do Femmes éclatantes, ilustrada com as miniaturas às que nos
referimos mais acima). Os humanistas europeus citaram abundantemente o texto do Boccaccio
(Godofredo Chaucer, Lorenzo do Primierfait, Juan Sachs, Alvaro de Lua, Alfonso da Cartagena).
Numerosos adaptadores e continuadores redigiram Mulheres Ilustres, como é o caso do carmelita
Felipe do Bérgamo (Giacomo Filippo Foresti), quem em 1497 publicou na Ferrara um De plurimis
claris selectisque mulieribus, onde figura um capítulo dedicado a papisa, redigido em um espírito
muito boccacciano. Não obstante, terá que assinalar que o feminismo anterior à carta da Cristina
do Pizan, de princípios do século XV, obrigou-lhe a que excluíra a Juana de sua Cidade das
mulheres apesar de que em dito texto Felipe do Bérgamo toma bastante emprestado do
Boccaccio . Por sua parte, Juan Texier do Ravisy (ou Ravisius Textor) leva, em 1501, a laicización
até uma espécie de neutralidade antropológica, ao enumerar em seu Officinae prima pares às
mulheres disfarçadas, com independência de suas motivações: Semíramis, as santas cristãs
(Teodora, Marinha, Eufrosina e Pelagia), Juana de Arco, e por último Juana a papisa (enfrentadas
entre si como «Johanna gallica» e «Johanna anglica»).
A narração do Boccaccio tinha difundido uma nova colocação no que Juana já não se
combinava nem com as Papas, nem com as feiticeiras, nem com as profetisas: enfrentava-se ao
mundo e aos homens como uma heroína forte e desgraçada, e entrava em uma existência literária
que só seguiremos mais adiante, quando a censura das Reformas despoje a Juana da
ambigüidade que arrastava no texto do Boccaccio, para deixá-la na fronteira incerta que separa a
novela da história. Esbocemos simplesmente as direções que, a finais da Idade Média, ofereciamse a seu passo feminino, direções todas elas balizadas com textos ainda escassos.
A partir da narração do Boccaccio, o biógrafo da Juana pode já confeccionar a novela da
revanche feminina. A princípios do século XVI, Mario Equicola do Alveto afirmava em seu tratado
Mulheres que a Providência tinha querido que Juana ocupasse a cadeira de São Pedro para
demonstrar que as mulheres não são inferiores aos homens. Um romance de finais do século XIII,
o Romance de Silêncio, escrito pelo Heldris do Cornualles , poderia servir de modelo. O rei da
Inglaterra deseja proibir a transmissão das heranças às mulheres. O barão Cador, herdeiro do
Cornualles, que só tem uma filha, disfarça-a e a educa como se fora um menino, e lhe chama
Silêncio. Natureza e Cultura cercam uma disputa a propósito de dita educação, mas Razão a
sarjeta a favor de Cultura: uma mulher pode acessar às mesmas competências e aos mesmos
direitos que os homens graças à educação. As subseqüentes aventuras de Silêncio assim o
demonstram: abandona o domicílio paterno, converte-se em um histrião ilustre no continente, para
retornar logo a corte da Inglaterra onde leva a cabo uma difícil tarefa (a captura do Merlín), e
desmascara ao amante da rainha disfarçado de monja. Apesar de seu trágico final, é possível que
a narração do Boccaccio sugerisse esta orientação, retomada, como se verá, por algumas cria
novelas contemporâneas.
Uma segunda leitura da história da Juana, obstinada a seus conteúdos novelescos e trágicos,
preparava a novela da ambição amorosa travada pelo destino ou pela lei do mundo. Ao nos referir
à vida legendária e real da Papa Adriano IV, já assinalamos que a Igreja era quão única oferecia
uma possibilidade de ascensão social por méritos na Idade Média; em conseqüência, o percurso
clerical da Juana não era absolutamente impossível e permitia albergar sonhos.
A Juana que nos apresenta um manuscrito anônimo do século XIV, conservado na abadia do
Tegernsee (nessa Baviera que tão bem acolheu a papisa) não é de origem modesta, embora sua
decisão de romper com sua família para viver com seu amante a situa no grau mais desço da
escala social, que ela subirá de novo por seus próprios meios, com a energia de uma
conquistadora. traduzimos aqui esse curioso texto que acentúa as tendências do texto do
Boccaccio, inclusive embora pareça impossível provar que exista uma dependência entre os dois
textos. Aqui não se condena a Juana absolutamente, e o fato de que o amante da papisa, Pircio,
acompanhe-lhe constantemente em seu percurso e de que ele mesmo chegue a cardeal elimina
os aspectos de degradação moral. Este casal de bons gestores da Igreja, de não ter sido pelo
desconhecimento dos ciclos da gestação, tivesse podido concluir em paz e em prosperidade sua
carreira eclesiástica e amorosa. As morais versificadas ao final do texto tematizan esse poderio do
saber ou da prudência que permite subir os degraus da sociedade humana. O único engano desta
Juana (chamada Jutta, embora tanto na Baviera como em outros contextos esse nome alterna
com o da Juana) reside em sua falta de legitimidade social. O final versificado conclui com uma
variante da fórmula das seis P em que, significativamente, o «Pater Patrum» se converte no Pater
Pauperum» (o Pai dos Pobres); desta maneira, o autor nos recorda ironicamente que a usurpação
por parte da Jutta, uma pobre voluntária, não é a mais grave, e que, inclusive escondida, só é
aparente. Leiamos a seguir a reabilitação social e novelesca da Juana.
A papisa do Tegernsee
«trata-se da Papa Jutta que não foi alemão, como pretende equívocamente a crônica do
Martín. A jovem Glancia foi a filha de um muito rico cidadão da Tesalia; toda sua atenção se
concentrava na sabedoria. Gozava de um espírito agudo e de um caráter dócil. As freqüentes
leituras desenvolveram essas qualidades e em pouco tempo alcançou uma grande reputação. E a
realidade superava os louvores. Havia, nas escolas, um jovem chamado Pircio, que tinha sua
idade; conheceu as grandes condicione para o estudo da jovem, as riquezas de seu pai, sua
simplicidade e sua sabedoria. O amor aproximou dos que pela idade se uniam; falaram de
matrimônio, mas os pais se negaram. O amor e o desejo mútuo aumentaram entre ambos, e com
o progresso dos dias e da idade chegaram aos beijos e aos abraços impaciente. Por fim, um dia,
foram-se a um refúgio e se uniram ardentemente. depois de entregar-se ao jogo de Vênus,
falaram de fugir. Ela, entre as mulheres, ele, entre os homens, queriam sobressair na virtude e no
estudo; decidiram, pois, partir a Atenas. Um e outro se proveram de todas as riquezas que
puderam; ela adotou as roupas e as maneiras de um homem; o traje, mas também o espírito os
fazia extraordinariamente parecidos o um ao outro. Sem tardança, dirigiram-se a Atenas onde
estudaram durante compridos anos; ela adquiria cada vez mais sabedoria tanto em teologia como
na ciência das artes; do mesmo modo, ele se iluminou com toda a sabedoria. foram-se a Roma;
ali ensinaram em todas as faculdades; iam a lhes escutar não só estudantes, mas também
também doutore em todas as ciências, e quanto mais se afundavam estes ouvintes nas
profundidades de seu saber, mais riquezas abundantes extraíam. Todos, incluídos os doutores de
todas as faculdades, adoram-lhes; todos os cidadãos lhes veneram. Roma inteira elogia seus
méritos, sua modéstia, sua virtude e sua sabedoria, cuja glória se difunde por toda a terra.
Finalmente, à morte da Papa, a mulher é designada por uma eleição unânime, sem exceção; ante
a súplica dos romanos, é elevada até a cúspide do apostolado. Seu amante Pircio é renomado
cardeal; levaram uma vida prudente e, sob seu governo, toda a Igreja se regozijou. Mas porque as
sementes do adultério estranha vez se fixam, ou se elas germinarem não se desenvolvem, ou
inclusive, se elas se desenvolverem, não duram, aconteceu que a mulher que não tinha concebido
nunca até então, uma vez papisa, achou-se grávida; ignorando os ritmos acostumados da
gestação, dirigiu-se à igreja de San Juan do Letrán com todo o clero para celebrar uma missa
solene. Mas entre o Coliseu e a Igreja de São Clemente, assaltada pelos dores, caiu, iluminou a
um menino e morreu em seguida. As Papas evitam sempre esta via e antes da coroação se
verifica sempre manualmente os órgãos viris de uma Papa.
»Olhe a que graus elevam a virtude e a sabedoria / Os pequenos, altivos se convertem,
protegidos pela sabedoria; mas de nada / Serve toda nossa sagacidade ou nosso artifício contra
Deus / Olhe o poema que segue.
»Para aprender todas as leis, a jovem peregrina / Glancia a deslumbrante trasgredió as leis dos
homens partindo a Atenas / Com um jovem homem ela se fez homem e Cupido, mas este Cupido
/
Revolta às massas e insígnia aos doutores da Cidade / Em Papa se converte e ao engendrar a
um menino, morreu perto do clero /.
«Moral. Nada cresce mais que quão prudente goza do direito / Nada rebaixa tanto como o
homem que não goza de nenhum direito. Papa. Pai dos Pobres, a Papisa Produziu um
Papaizinho» .
A história deste casal de Igreja, prefigurada pela do Abelardo e Eloísa, anuncia a aventura de
um monge e de uma monja que, muito mais ao norte da Alemanha, e contra os poderes
estabelecidos, governaram uma Igreja.
E é precisamente o êxito deste monge, Martín Lutero, que, por uma nova ironia da história,
reintegraria à força a papisa dentro da Igreja católica: o jogo existencial que oscilava entre o sério
e a diversão, retornaria ao âmbito da polêmica para, em última instância, levar a Juana,
denunciada ou renegada, à fogueira da história, da que só sairia pela fumata do imaginário.
TERCEIRA PARTE
Morte e transfiguración da papisa
CAPITULO VI
Juana na fogueira
(Séculos xV-xVII)
Em 1411 começa na Praga o Apocalipse segundo Juana: em meio de uma procissão circula
pelas ruas da cidade um jovem disfarçado de prostituta e meio doido com os ornamentos papais.
A cerimônia a tinha organizado Voksa do Valdstejn, um favorito do rei de Boêmia Wenceslao IV,
para testemunhar assim o furor do povo e do rei contra a Igreja romana que acabava de condenar
ao Juan Hus, por instigação do Dietrich do Niheim .
A cena entra na história da Juana, já que anuncia, com um século de adiantamento, a assimilação
polêmica dos luteranos entre o Papado e a Grande Prostituta do Apocalipse (Apoc. 17), com o
concurso narrativo do episódio da papisa. Quatro anos depois, durante o concílio da Constanza,
Juan Hus esgrimiria contra Roma a história da Juana : pela primeira vez, a papisa passava
publicamente ao arsenal argumental de um herético (Ockam só era cismático, enquanto que
Wyclif só citava a Juana em um pequeno tratado polêmico mas sem trascendencia).
A dúvida de Ns Silvio Piccolomini (1451)
Pela primeira vez, e nesta mesma Boêmia hussita, a Igreja duvida sobre a existência da Juana.
Em 1451, o bispo de Siena, Ns Silvio Piccolomini (quem acessaria ao Papado sete anos depois
com o nome de Pio II), encarregado de uma embaixada em Boêmia por conta do imperador
Federico III, relata ao Juan Carvajal, cardeal de Santo Anjo, antigo legado pontifício em Boêmia, a
missão que tinha realizado na república herética do Tabor (ao sul do país), em uma carta larga e
apaixonada. Na missiva, o bispo reproduz (ou transcreve) o debate que sustentou com três dos
chefes da república, «Nicolás, que eles chamam seu bispo, de vida ignominiosa; Juan Galechus,
quem acabava de fugir da Polônia, por medo ao fogo, e Wenceslao Coranda, antigo servidor do
diabo, quem afirma que o sacramento do altar não é mais que uma figura e uma metáfora» .
depois de uma larga exortação em que glosa a angústia dos taboritas, Ns lhes propõe a única via
de salvação e de paz: «Isto é o que eu lhes ameaço fazer, taboritas: "lhes apresentar com sua
doutrina ante o romano pontífice; façam o que ele lhes ordene, sem lhes desviar a consolação do
espírito, a paz e a salvação da alma". Nicolás: "Obedeceríamos à majestade apostólica e nos
submeteríamos com toda devoção se não mandasse coisas contrárias à lei divina." Ns: "No que
concerne à fé, jamais se viu que a sede apostólica errasse ou aprovasse dogmas perversos."
Galechus: "Mas houve um engano manifesto no Inés." Ns: "De que Inés fala você?" Galechus: "
Dessa mulher que a sede romana honrou como a um homem e colocou no topo do apostolado."
Ns: "Mas nesse caso não houve engano nem de fé nem de direito, a não ser ignorância de um
fato. E além disso a história não é segura." Nicolás: "Mas houve vários pontífices romanos
criminosos, que agora purgam sua pena nos infernos." Ns: «Ignoro-o. Não obstante, se um deles
pôde pecar, é porque, desviado por nossa fragilidade, como ocorre aos humanos, tem cansado.
Mas o que eu pretendo afirmar é: a um pontífice romano incuestionado nunca lhe ouviu afirmar
publicamente uma doutrina falsa"» . O debate, muito gorduroso, continua em torno da
infalibilidade papal, e depois sobre as divergências em matéria de sacramentos entre católicos e
taboritas.
Este diálogo aplica a Juana-Inés o tratamento eclesiástico estabelecido pelo Guillermo do
Ockam (distinção entre o fato e a lei), reiterado quase ao mesmo tempo do episódio taborita pela
Torquemada. Não obstante, a postura católica pivota ligeiramente sobre este eixo fixo: quando
Antonino de Florência ou Torquemada se referem a Juana, também eles esgrimem o argumento
factual e modalizan a crença («conforme se diz»); mas sua atitude reflete certa tendência a aceitar
a existência da papisa. Por sua parte, Ns parece inclinar-se para a revogação da dúvida {«neque
certa historia est... quam Agnetem... nescio...»). Nada trocou: a papisa continua no coração
mesmo do debate sobre a infalibilidade papal, e entretanto se produziu uma mutação decisiva
entre, por um lado, Dietrich do Niheim, quem, como vimos, é a um tempo historiógrafo da Juana e
perseguidor do Juan Hus, e por outro lado, Ns Silvio Piccolomini, primeiro juanoclasta (ainda
indeciso, é certo) e adversário dos taboritas; o certo é que neste debate eclesiológico são os
adversários da Igreja romana os que pronunciam o nome do Inés. Dito de outro modo, a história
da papisa passa do estatuto de caso, de exemplo, ao de prova. Juana, presente sempre na
primeira fila da batalha eclesiológica, indica a distância considerável que produz a revolução
hussita, e que se traduz em uma «territorialización espiritual», por empregar a feliz expressão
aplicada pelo Lucien Febvre ao luteranismo . Em 1411, Juan Hus passava ainda por ser um
herético ordinário; mas em 1451 aparece já como o chefe póstumo de outra igreja, em outro
território.
A partir de então, o discurso eclesiástico já não pode nem englobar nem neutralizar. A
totalidade católica se desfaz: os argumentos e os casos já não são compartilhados por todos,
repartidos entre dois campos. O efeito desta mutação só se deixará sentir de uma maneira lenta e
gradual, depois de que apareça o movimento luterano, e em conseqüência terá que esperar a
1562 para poder ler o primeiro rechaço sistemático da história da Juana por parte dos católicos, o
que, por outra parte, não impedirá, como vimos, que o franciscano bretão Juan Rioche se refira de
novo ao episódio da papisa a finais do século XVI. Mas a dúvida estava descartada, e este
rechaço expulsará a Juana fora da Igreja, abandonando-a à mãos dos luteranos.
Roma e a Germania: da invectiva à paródia
Retornemos a muito importante procissão que tem lugar na Praga em 1411, pois não constitui um
mero expoente tcheco do carnaval romano. O carnaval, ou sua forma mais social e política da
Cornomanía, seguem sendo ritos inclusivos que investem os valores e as filas em um tempo
limitado e cíclico, e modalizan uma integração, enquanto que a procissão da Praga se apresenta
como uma manifestação de exclusão, que utiliza o investimento como uma figura exacerbada de
rechaço e de condenação. Na Alemanha do século XV encontramos formas intermédias, que
utilizam os ritos carnavalescos de forma violenta e profanatoria, a risco de ser condenados por
parte das autoridades: em 1441 se passeia por Colônia um relicário paródico, com fantoches de
carnaval, um hisopo e banderolas; em 1467 foram condenados 17 cidadãos em Frankfurt por
representar uma paródia análoga. Em 1503, um grupo de jovens passearam pelo Habsburgo a
uma cabra sobre uma almofada, decorado com cintas, e um sacerdote de paródia a batizou. Só se
precisava um conteúdo mais forte e agressivo para que na Praga ou na Sajonia acontecesse com
verdadeiros ritos de protesto. R. W. Scribner encontrou o rastro de uns vinte carnavais
antipapistas celebrados na Alemanha, entre 1320 e 1540 .
A representação da Igreja na figura de uma prostituta («meretrix») tem raízes muito antigas,
bastante diferentes da sátira romana e comunal analisada na primeira parte; a partir já do século
IX encontramos o gênero da Invectiva contra Roma, esplendidamente estudado pelo Josef
Benzinger . Esta invectiva, que se serve de um vocabulário mais religioso que sócio-político (a
diferença do anticlericalismo romano), tomou um auge considerável a finais do século XI como
resultado das Lutas de Investiduras, que inaugura o grande enfrentamento entre o Papado e o
Império, um enfrentamento que se prolonga quase ininterrumpidamente até o Carlos V e
concretamente até o terrível saque de Roma em 1527 . A persistência do conflito gerou uma
espécie de ódio vizinho no étnico entre Roma e a nação alemã, de que encontramos abundantes
pisa no luteranismo. Na continuação da crônica imperial do Ekkehard de Aura a cargo do Frutolfo
do Michelsburgo (por volta de 1130), este ódio recíproco se cita de forma explícita: «Este fato (= o
fracasso das cruzadas) confirmou que os romanos nos tratavam como a inimigos, tanto como nós
lhes odiamos» . Os três enormes volúmenes que compõem O de lite das Monumenta Germaniae
Historica, consagrados às polêmicas entre Roma e o Império, conduzem uma enchente de libelos
e opúsculos mutuamente insultantes, onde deságua todo o furor europeu amparado no poderio
imperial. Esta estrutura binária de oposição (nós: a nação alemã e seus aliados gibelinos; eles:
Roma e os güelfos), singela e violenta, recebia, mediante um processo de legitimação mútua
(religiosa e política), distintas classes de rechaços do poderio da primazia romana, denunciada
como uma tirania que traía o espírito evangélico. Um exemplo surpreendente (embora, contra o
habitual, de origem inglesa) da inserção do anarquismo herético na invectiva contra Roma se
encontra no famoso tratado do Anônimo dos York (também chamado o Anônimo Normando),
escrito por volta de 1100. O autor se pergunta a quem deve obedecer o cristão em Roma;
mediante uma sucessão de alternativas juntadas, descarta uma série de obediências malvadas,
que nos remetem todas a um aspecto concreto da Igreja romana: em Roma terá que obedecer ao
Letrán, a nenhuma outra igreja; e ali, aos homens e não às pedras; entre os homens, aos
membros de Cristo, não aos membros do diabo; entre os membros de Cristo, a uma pessoa, não
ao conjunto; nesta pessoa, ao apostólico (ao enviado), não ao homem; lhe obedecerá se é
enviado por Cristo e por nenhum outro. Mas inclusive assim, isto é, desencardida de seus
elementos romanos, a obediência à Papa carece de sentido: «Mas se é enviado por Cristo, qual é
a finalidade? Ou nos é enviado para nos dar a conhecer a mensagem de Cristo e nos ensinar, ou
para outra coisa que ignoramos e que não afeta à mensagem de Deus; neste caso, não devemos
nem sequer lhe escutar. Mas se nos é enviado para nos transmitir a mensagem de Cristo e nos
ensinar, resulta supérfluo, já que dispomos dos Escritos proféticos, evangélicos e apostólicos ( o
Antigo Testamento, os Evangelhos e as Epístolas) que contêm toda a mensagem de Deus; e nós
temos um conhecimento mais completo destes escritos que ele» . A única tarefa justificada do
apostólico (este adjetivo sustantivado se emprega com freqüência durante a Idade Média para
referir-se à Papa, insistindo no sentido etimológico: o enviado) consiste, pois, em evangelizar aos
pagãos; a Igreja romana não tem nenhuma legitimidade sagrada, bem ao contrário: «Ela inclui
poucos escolhidos e filhos de Deus, mas muitos réprobos e filhos do diabo; podemos chamá-la-a
Igreja de Satã e não a Igreja de Deus.» mais de 400 anos antes do Lutero, a binaridad etnopolítica
(a Europa do Norte e o Império contra Roma) encontrava um armação religioso igualmente binário
(a Igreja de Deus contra a Igreja de Satã) apoiado no rechaço violento do Papado.
O investimento retórica e carnavalesca podia penetrar, pois, com bastante facilidade neste molde.
Bonizon do Sutri (t 1091), imperialista virulento, encenou um desses investimentos clássicos na
evocação dos mundos ao reverso (o caçador caçado, etc.), a propósito da imagem do Pastor: «Se
o próprio guardião se converter em lobo, quem haverá para proteger o rebanho?» . Este
investimento convertia o bem em mau, Roma em Babilônia, como havia dito já no século XII
Sigiberto do Gembloux: «Houve antigamente mais confusão em Babilônia que hoje na igreja» . A
figura da Grande Prostituta de Babilônia surge já, embora com acanhamento, por meio da
alegoria, como nessa passagem do Planctus ecclesiae in Germaniam do Conrado do Megenburgo
(1337), quem associa a condenação da perversão romana e a recriminação germânica: «A
prostituta que é o orgulho e a vangloria dos prelados da cristandade oprime à águia (= o Império
germânico)» .
Boêmia ou a heresia como território
Que novidade se produz no século XV? Em que sentido marca um marco a mascarada de
1411? Simplesmente a retórica se faz realidade; a representação carnal da Prostituta assinala e
anuncia que a Igreja autêntica, essa congregação de fiéis, que investe e transtorna a Igreja
romana para recuperar a imagem reta do cristianismo, já não se constrói a base de meditações
franciscanas nem de invectivas germânicas, a não ser na realidade de um país. Juana se encarna
(ainda implicitamente) para separar-se melhor do Corpus Christi vivo que se faz carne na Praga. A
heresia se convertia em país: os recentes trabalhos do Frantisek Smahel e do John Martin
Klassen demonstraram que a revolução hussita favoreceu (ou ocasionou) a aparição de uma
nobreza nacional tcheca, contra a realeza e a Igreja; em 1412, Juan Hus enviou uma carta aos
dignatarios do reino que preparava ideologicamente a liga hussita antirrealista de 1415. Neste
sentido, a orientação do Hus diferia completamente da do Wyclif, quem, para situar a sua Igreja
autêntica, só pedia o amparo antipapal do rei da Inglaterra. Mas os monarcas podem maltratar às
Papas sem cair na secessão religiosa, com a que pouco podem ganhar e da que, entretanto, têm
muito que temer.
À margem das tragédias (o aplastamiento sangrento dos extremistas urbanos e dos taboritas),
o certo é que a paz da Kutna Hora, assinada em 1485, instalou um reino fortemente controlado
pela nobreza, que conservava os princípios adquiridos da doutrina do Juan Hus. Assim, uma
igreja que até então tinha sido invisível, faz-se visível, e no referente ao âmbito sacramental se
manifesta clara e rapidamente. Desde 1414, antes do processo e execução do Juan Hus,
Jacobelo do Stribo e Nicolás do Dresden propugnaron a comunhão sob as duas espécies (o que
dará lugar ao utraquismo) com uma finalidade evidente: o sacramento sob as duas espécies
suprime a barreira sacerdotal entre os fiéis e Deus. Os hussitas redigiram rapidamente uma
liturgia em língua tcheca, e a partir de 1420 os taboritas escolheram já eles mesmos a seu próprio
bispo.
Ns e Juana entre os selvagens
A Igreja romana se resintió profundamente desta secessão, como se desprende da citada carta
de Ns Silvio Piccolomini escrita em 1451, em que o bispo de Siena descreve o horror que lhe
produziu seu descobrimento do Tabor, essa cidade-Igreja do sul de Boêmia onde se reuniam os
extremistas do movimento hussita, os continuadores de Žižk.
Ns chega ao Tabor em qualidade de teólogo, para converter-se em etnólogo da
monstruosidade: «Eu acreditava que este povo só se separou de nós a causa do rito da
comunhão (= sob as duas espécies), mas agora descubro um povo herético, infiel, que se revela
contra Deus, sem pensamento nem religião» . Ns descreve uma população estranha e
monstruosa, um Estado de hereges, de uma vez organizado e anárquico, étnico e federal. A
novidade resultava prodigiosa: uma espécie de islã (entendamos com isto uma religião
constituída, escândalo incompreensível em uma era cristã) tinha crescido no coração da Europa
cristã. É certo que no século XIII se organizou uma cruzada contra os lhes provar, mas os
albigenses, embora se implantaram com certa densidade, nunca pretenderam destacar e de fato
sua aparência externa era bastante débil. É preciso ler alguns fragmentos deste descobrimento da
alteração total da heresia, para compreender de que maneira Juana se converteu em um monstro
entre monstros, e também de que maneira se proveu para a guerra religiosa.
Ns vê, pois, «...uma massa rústica e sem ordem, embora urbana... uns foram nus, outros só
levavam posta uma camisa e por último os havia com uma túnica de pele... as têmporas ao
descoberto, com orelhas recortadas e narizes cortados com uma ferida vergonhosa... Nenhuma
ordem ao caminhar, nenhuma moderação verbal. Receberam-nos com um rito bárbaro e
selvagem, nos oferecendo pescados, veio e cerveja. Ao entrar na praça, vimos um lugar que não
sei como chamá-lo, ou cidadela ou um asilo de heréticos; em efeito, tudo o que a cristandade
entende como monstros de impiedade e de profanação se encontra reunido aqui e acha refúgio
neste lugar onde há tantas heresias como indivíduos e onde cada um é livre de acreditar o que
quer» . Esta selvageria se traduz no âmbito religioso com o rechaço de toda ordem, de todo rito:
«Esta seita pestífera e abominável é digna do maior suplício. Rechaçam ao primado da Igreja
romana ou a existência de um clero qualquer... Destroem as imagens de Cristo e dos Santos,
renegam do fogo do purgatório..., oferecem a eucaristia sob a espécie do pão e do vinho aos
meninos e aos loucos... Não benzem água alguma e não têm cemitério consagrado; enterram os
cadáveres de seus mortos nos campos junto aos das bestas, como assim se merecem... burlamse da consagração das Iglesias e realizam o sacramento em qualquer parte... Condenam os
dízimos» . A partir de então, as coisas se esclarecem para Ns: Tabor, reverso radical da Igreja, é
uma autêntica criação diabólica: «compreendestes que classe de cidade é esta, quais são os
costumes deste povo, qual é o lugar desta praça forte, o que é este senado de heréticos, qual é
esta sinagoga do mal, este domicílio de Satã, este templo do Belial, este reino de Lúcifer» .
Terá que tomar-se a sério a emoção experimentada por Ns Piccolomini, pois o prelado não tem
nada nem de inquisidor nem de profeta. trata-se de um grande humanista, autor da delicada
novela História de dois amantes, muito próximo a esse meio intelectual e cético descrito no
primeiro capítulo a propósito de Platina. Embora entrou tardiamente nas ordens (em 1446, à idade
de 41 anos), desembrulhou-se constantemente nas altas esferas da Igreja, e participou do concílio
da Basilea como secretário do Amadeo VIII da Saboya, quem se proclamou Papa com o nome do
Félix V. depois de reconciliar-se com a ortodoxia do Eugenio IV, foi renomado rapidamente bispo
do Trieste (1447), e logo depois de Siena (1450), antes de ser eleita Papa em 1458. A selvageria
que encontra no Tabor fere precisamente essa ordem mediterrâneo, jurídico e civilizado, em cujo
marco tinha construído sua personalidade e sua carreira literária e eclesiástica. Ns, um homem do
pre-Renascimento humanista, acredita no progresso da humanidade, e sua própria concepção da
infalibilidade papal assim o demonstra. Para ele, as variações do dogma, fora da própria
intangibilidad da fé, representam um madridaje com a evolução constante e benéfica das
sociedades. Por isso, a seu julgamento, a república taborita oscilou da imitação literal do
cristianismo primitivo até um tribalismo militar que vive só da pilhagem, e que desdenha o trabalho
artesanal; em conseqüência, entende que no Tabor se investiu o curso da civilização. Os términos
nos que se dirige ao rei de Boêmia, Jorge do Podiebrady refletem sorte concepção: «Antigamente,
esse reino foi muito florescente, o mais rico de entre os reino ocidentais; agora é uma região
miserável, desvastada, destroçada. por que? Porque nossa verdade não pode mentir, quando diz
com palavras do evangelho: "Todo o reino, dividido em si mesmo, será assolado, e a casa se
derrubará sobre a casa". Vós, boêmios, não só estão divididos entre vós, mas também lhes
separastes que a grande maioria da Cristandade» . Paradoxalmente, Ns expressa seu horror pelo
obscurantismo em tudo profético; a queda do Tabor em 1452, depois de 30 anos de vida
republicana, poucos meses depois da visita do Piccolomini, deveu confirmar sua concepção
progressista de uma vez que apocalíptica da história da humanidade.
O caso Piccolomini ilustra de que maneira pôde a Igreja católica, da cúspide de seu
refinamento doutrinal, deslizar seu discurso sutil e lhe englobem para a expressão da ruptura e da
exclusão; quer dizer, para o que mais acima chamamos a crença fantástica. Neste sentido, é
possível que a explicação da diabolización do herético e da feiticeira não se encontre em um
misterioso e arcaico rearmamento de fanatismo, mas sim mas bem no resultado ou melhor
dizendo no fundamento desse medo que invade o século XV, e que é o medo a grande revanche
por parte de umas forças do mal que tinham sido domesticadas com a cristianização da Europa
nativa, étnica, quão mesma agora é capaz de produzir seu próprio discurso e sua própria Igreja.
Acaso não foi esta uma razão importante na surpreendente intransigência que mostrou Roma
frente a Lutero, entre 1517 e 1520? Em qualquer caso, Pio II não tinha esquecido o horror que
sentisse sendo Ns Piccolomini, e, contra toda razão, em 1464 derrogou quão compacta garantiam
um compromisso bastante razoável entre os hussitas e a Igreja católica.
Ao chocar com a história, o discurso católico estala em mil pedaços; o debate entre Ns e os
taboritas, literalmente análogo a muitas outras disputas da Idade Média (com o Berenguer, no
século XII, a propósito da Eucaristia; com os espirituais franciscanos nos séculos XIII e XIV, sobre
a eclesiología e sobre o cristianismo primitivo) desenvolve-se dentro dos muros de uma cidade
herética, o que representa uma diferença capital frente a situações anteriores. Agora, laicos,
poderosos e organizados, devolvem à Igreja a letra da Escritura, o detalhe da história eclesiástica.
Neste sentido, a Igreja acaba de perder esse domínio da argumentação que lhe permitia tudo; a
partir de agora, e no que se refere a seu tesouro doutrinal, deve selecionar entre o que lhe permite
continuar e o que significa um lastro. Juana forma parte de este último, junto com os monstros
domésticos e familiares com os que até então tinha jogado a eclesiología católica. Qualquer
retrocesso, qualquer distância desaparecem, e o inventário das figuras e das doutrinas se reparte
em duas colunas: a de Deus e a de Satã. De metáfora, Juana se converte em metonímia, «pares
pró toto», quer dizer, é uma parte de Satã e portanto é uma parte do discurso herético.
Juana e a Grande Rameira
A papisa formou, efetivamente, parte da herança hussita legada aos luteranos. Consideremos em
primeiro lugar, antes de reconstruir filiações e derivações, um texto fundamental por quanto
conferiu carta de natureza ao novo estatuto da Juana. Nos anos 1540, o luterano Martín Schrott
deu a conhecer um opúsculo violentamente antipapista, titulado Sobre a terrível destruição e
queda do Papado (Von der Erschrocklichen Zurstorung und Niderlag dess gantzen Bapstums),
que continha uma ilustração representando a uma mulher vestida de Papa, tocada com a tiara de
triplo coroa, encarapitada em uma besta monstruosa de sete cabeças cornudas, e dado a beber
um cálice a uma série de monarcas (entre eles o imperador da Alemanha) ajoelhados diante dela.
Em uma cartela retangular, dentro da própria imagem, pode lê-lo seguinte: «Inés, uma mulher da
Inglaterra, chamada Juan VII no ano 851» («Angnes ain Weib au Engelant Johanes der Sieben'
genant. A 851») .
A imagem ilustra a passagem do Apocalipse, 17, que fala da Grande Rameira: «E eu vi uma
mulher sobre uma besta vermelha, e cheia dos nomes de blasfêmia, com sete cabeças e dez
chifres. E a mulher estava envolta em púrpura e em grão ornado de ouro, de pedras preciosas e
de pérolas; levava na mão uma taça de ouro repleta da abominação e do lixo de sua fornicação. E
sobre sua frente estava escrito: "Mistério: Grande Babilônia, mãe das fornicações e das
abominações da terra. E eu vi a mulher embriagada com o sangue dos Santos e com o sangue
dos mártires do Jesus. E o anjo me disse: por que te assombra? Eu te direi o sacramento da
mulher e da besta que a leva e que tem sete cabeças e dez chifres. A besta que você viu foi e não
é e subirá do abismo e será morta... E este é o sentido, que contém a sabedoria. Sete cabeças:
são os sete Montes sobre os quais a mulher habitará e são sete reis. Cinco morreram; outro vive e
o último ainda não veio" 21».
As cores e os ouros, monopoliza-cáliz-a, e sobre tudo os sete Montes que constituem o reino da
prostituta, permitiam uma assimilação bastante fácil da mulher com a Igreja romana, assimilação
que como vimos tem sua precedência nas invectivas contra Roma e na procissão da Praga de
1411. Inés (cujo nome latino pode resultar de uma femenización-investimento do «Agnus» que
combate à Besta, assinala a filiação hussita) justifica a aplicação histórica da profecia apocalíptica
ao Papado. A gravura do Schrott retomava um modelo ilustro que, por si mesmo, limitava-se à
assimilação do Papado à Rameira, sem explicitar o elo juanista. Em setembro de 1522, aparece
no bastión luterano do Wittenberg a tradução do Novo Testamento redigida pelo próprio Lutero em
seu refúgio do Wartburgo; seu amigo Lucas Cranach ilustrou o texto (do único Apocalipse, o que
indica o papel essencialmente agressivo da imagem), estabelecendo minuciosamente um
paralelismo entre Roma e Babilona, e a Papa e o Anticristo ou a Rameira: a destruição de
Babilônia (Apoc. 18) inclui uma representação do castelo do Sant Angelo de Roma; a besta (11, 18) que devora às testemunhas de Deus, é um dragão com patas em forma de garra, e coroada
com a tiara papal; e a aparição da Rameira sobre a Besta (Apoc. 17) representa-se com forma de
uma mulher, vestida com roupas contemporâneas, e tocada com a tiara. Resulta impossível saber
se a intenção do Cranach era evocar a papisa, já que de fato a função ilustrativa da gravura
impedia de indicar o episódio da Juana. Não obstante, terá que assinalar que na edição seguinte
(dezembro 1522), a tiara papal da prostituta ficou reduzida a uma simples coroa, enquanto que
outros gravados não sofreram nenhuma mudança; acaso a alusão resultava muito precisa, muito
«metonímica», em um momento no que o luteranismo era ainda muito frágil e dependente do
Império? Em qualquer caso, mantém-se a papalización gráfica da Prostituta na edição do Novo
Testamento publicada em 1523 na Basilea, com ilustrações do Hans Holbein o Jovem, e logo com
a Bíblia completa do Lutero, editada no Wittenberg em 1534 .
Estas imagens, ampliamente difundidas (pensemos no alcance da Bíblia do Lutero), formam parte
do imenso material de propaganda iconográfica que o luteranismo distribuiu pela Europa durante
os trinta primeiros anos de sua existência (1520-1550), e que foi objeto de uma admirável análise
por parte do R. W. Scribner no For the Sake of Simples Folk. Santinhos, cuja impressão chegou a
alcançar até os 1.000 e os 1.500 exemplares, difundiram os temas essencialmente polêmicos e
antipapistas do luteranismo, utilizando formas populares e tradicionais (mundo investido, imagens
de peregrinação, carnaval, etc.) e reduzindo os textos evangélicos a oposições singelas (bien/mal,
papa/pastor, Roma/Babilonia); sua simplicidade e sua brutalidade superavam com freqüência a
produção polêmica escrita e inclusive a apologética da predicación. O próprio Lutero conhecia
bem essa força que contém a imagem, e em 1545 escrevia: «publiquei essas figuras e essas
imagens cada uma das quais representa todo um volume dos que ainda terei que escrever contra
a Papa e seu reino» . A imagem permite captar importantes heranças medievais, nascidas ao fio
dessas crenças «fantásticas», dificilmente perceptíveis no discurso. Assim, por exemplo, em um
santinho sobre a Origem e o nascimento do anticristo (Vom Ursprung und Herfunkft dê Antichristi)
pode ver-se a dois diabos ocupados em amontoar monges e monjas dentro de uma grande Cuba
sangrenta, enquanto, a seu lado, há outros dois que vão fabricando um corpo com a «sagrada
forma» dessa massa, para logo lhe insuflar vida; é um corpo nu, ventrudo e meio doido com a
tiara papal que se converterá no Anticristo depois de cobrar vida. Esta imagem, inominável em
términos doutrinais, surge a sua vez da grande tradição a que nos referimos no capítulo anterior;
isto é, da hóstia diabólica dos heréticos, e que sataniza à Papa como havia diabolizado aos
hereges do Soissons descritos pelo Guiberto do Nogent, no século XII. O poder da imagem reside,
pois, em sua indeterminação essencial: a imagem representa e metaforiza a um mesmo tempo,
sem que haja nenhum indício que permita estabelecer o limite entre a invectiva e o mito, entre a
brincadeira e a crença.
Sinais do Anticristo
A simplificação binária da imagem e da violência antipapista do Lutero introduziram rápida e
ampliamente a assimilação da figura da Papa ao Anticristo, inimigo eterno e presente do
evangelismo. Por sua parte Juana, quintaesencia do Papado, testemunho vivo do investimento
satânico que reinava em Roma, e encarnação da Rameira de Babilônia, entrava em formar parte
da rede de figuras que, a sua vez, multiplicavam de maneira vertiginosa a forma medieval do
Anticristo.
A lenda do Anticristo, apoiada em alusões fugazes e pouco consistentes da Bíblia (Daniel,
Tesaloniciensis II, Apocalipse), desenvolveu-se ampliamente ao longo da Idade Média, como
reflexo investido da figura de Cristo. Segundo a lenda, o Anticristo tinha nascido em Babilônia,
fruto do Diabo e de uma rameira, e foi educado por feiticeiras e magos; aos trinta e três anos se
transladou ao Jesusalén, onde se fez a circuncisão, denunciou a usurpação de Cristo, reconstruiu
o Templo, proclamou-se Deus e reinou durante três anos e meio (duração do Papado da Juana
segundo as primeiras versões franciscanas). Deus enviou contra ele ao Enoc e ao Elias, a quem
assassinou, ao tempo que maquinava uma falsa morte e uma pseudo ressurreição; mas morreu
derrubado pelo arcanjo Gabriel ao tentar a Ascensão do Monte dos Olivos . As grandes incertezas
que subsistiam sobre a relação exata de suas datas de nascimento e de morte com o Fim do
Mundo, e sobre sua natureza precisa (indivíduo, retorno cíclico de indivíduos, população?, pois
Juan, em sua segunda epístola, falava de vários anticristos) convertiam-lhe em um ser sempre
ameaçador, e de uma plasticidade indefinida (a mesma com a que se moldaram numerosos
adversários da Papa, como Federico II, denunciados como Anticristos). Cada vez que se produzia
um momento de tensão, abriam-se novas especulações sobre a chegada do Anticristo, como
vimos a propósito da junta de 1360, apoiando-se no cálculo e na observação dos prodígios, pois,
segundo a versão mais corrente da lenda, a vinda do Anticristo devia acompanhar-se de 15 signos
ou sinais. A finais do século XV e começos do XVI, o tema anticrístico da queda de Babilônia e da
chegada do Fim do Mundo registra uma importante atualização; assim, neste contexto, os
agustinos de Veneza, inspirados pelo general de sua ordem, Gil do Viterbo (com quem nos
encontramos já a propósito de sua denúncia católica de Roma e de sua lembrança da Juana),
editam em 1519 o comentário do Joaquín dá Fiore sobre o Apocalipse. Entre 1490 e 1520, um
mesmo sopro de vituperação e de esperança se estende por toda a Europa, por Florência
(Savonarola, Marsilio Ficino), pelo Orvieto (Lucas Signorelli), pela Alsacia (Sebastián Brant, e o
Livro dos cem capítulos, Tomam Murner) etc. A contribuição específica do Luteranismo consiste
em situar precisamente em Roma o reino do Anticristo.
Lutero tinha arrojado este descriframiento romano do Anticristo como resultado de seu
excomulgación em 1520, através de um comentário sobre a «Bula do Anticristo», e com a redação
de um Opúsculo sobre o cativeiro babilônico da Igreja (De captivitate babylonica Ecclesiae). A
imagem popularizou esta interpretação; em maio de 1521, Lucas Cranach gravou uma Paixão do
Cristo e do Anticristo, que consiste em uma série de 13 páginas dobre de imagens nas que se
enfrentam as cenas da vida de Cristo e a das Papas, glosadas com textos do próprio
Melanchthon, o discípulo mais próximo ao Lutero. Uma edição latina dobrou a edição alemã, e o
texto se publicou depois no Erfurt e no Estrasburgo; por último, o mesmo Cranach decorou em
1536 a grande sala do castelo do Torgau com a dobro cena final da coleção (ascensão de Cristo e
queda ao inferno da Papa-Anticristo) .
O Renascimento, muito sensibilizado aos signos anticrísticos por causa da hipertrofia do
simbolismo medieval em combinação com a extraordinária expansão da astrologia, conheceu «um
despertar da teratología e uma espécie de enlouquecimento augural», por utilizar a expressão do
André Chastel, quem assinala que «se contaram até 56 autores e 133 opúsculos a base de
presságios e de cômputos astrológicos para os anos 1520-1530» . De todos esses signos
anticrísticos, só nos deteremos no que melhor amostra o processo de bestialización e de
feminización pelo passou a denúncia da Papa (e a satanización da Juana), quando os luteranos
monopolizaram esses prodígios. Em 1496 se extraiu do Tíber um cadáver monstruoso (uma burra
com torso humano, cujos membros pertenciam a diversos animais), e que na Alemanha lhe
chamou a Papa-burra de Roma («Dia Banstesel zu ROM»); o prodígio foi representado em
Boêmia pelo gravador Wenzel von Olmutz a finais do século XV, com uma exegese antipontificia,
e daí passou a Alemanha (nova aparição da filiação entre hussitas e luteranos). Em 1523, Lutero
e Melanchthon publicaram um comentário ilustrado sobre dito prodígio a propósito de outro (o
bezerro-monge), em seu Significado de duas figuras espantosas (deutung der czwo grewlichen
Figurem). O êxito do comentário foi imenso, pois se publicaram nove edições das duas figuras e
cinco da Papa-burra sozinho, sem contar as traduções da citada obra ao francês, ao inglês e ao
holandês .
Juana entre as amazonas e os hermafroditas
Esta possante cristalização do prodigioso em torno de Roma terminou de satanizar a papisa, já
que o investimento sexual exacerbava o investimento religiosa (a Papa anticristo), que a sua vez
tematizaba a imaginária luterana. Conforme parece, durante o século XVI, o investimento dos
sexos cobrou um significado novo, poderoso e inquietante , presente em numerosos prodígios
resenhados pelo Polidoro Virgilio, Boaistuau ou Ambrosio Parei. Neste sentido, quando se
ocupam do travestismo sexual, os homens do Renascimento acrescentam a estigmatización
medieval da astúcia humana ou satânica o espanto ainda maior que produz um mistério natural ou
sobrenatural, cujo peso se deixa sentir como uma ameaça de instabilidade generalizada. O Jornal
de viagem do Montaigne nos proporciona um testemunho do expresso com a justaposição de
duas anedotas (assinalemos além disso, a respeito, que os relatos de sucessos são muito
estranhos no Jornal). A primeira anedota nos apresenta uma espécie de mudança voluntária e
eficaz do sexo; e a segunda descreve a virilidade virtual de qualquer mulher de ação: no Vitry-oFrançois, diz Montaigne (ou mas bem seu secretário anônimo), «inteiramo-nos de três histórias
memoráveis (a primeira se refere à extraordinária longevidade da duquesa de Guisa)... A outra,
que faz poucos dias tinha sido enforcado em um lugar chamado Montier-no Der, um vizinho
daquele, isto é, do Vitry, pelo seguinte sucesso: sete ou oito moças dos arredores do Chaumont
no Bassigny decidiram, faz alguns anos, vestir-se de varões e continuar assim sua vida pelo
mundo. Entre as demais, uma delas veio a este lugar do Vitry com o nome da Mary, ganhando
sua vida como tecedor, um jovem de boas condições e que se fazia amigo de todos. No dito lugar
do Vitry se fez noivo de uma mulher que ainda vive; mas, por causa de algum desacordo que
surgiu entre ambos, seu compromisso não passou daí. Depois se instalou no chamado lugar do
Montier-no Der, onde ganhava a vida com o mesmo ofício, e se enomoró de uma mulher, com a
que se casou, e viveu quatro ou cinco meses com ela felizmente conforme dizem; mas ao ser
reconhecido por alguém do chamado lugar do Chaumont, e levado o assunto ante a justiça, foi
condenada a ser enforcada, já que dizia que preferia sofrer a retornar a sua estado de mulher. Foi
enforcada por invenções ilícitas com as que quis suprir seu sexo.
«A outra história tem que ver com um homem que ainda vive e que se chama Germán, é de baixa
condição, carece de ofício, e foi mulher até a idade de vinte e dois anos, como lhe viram e
conhecido todos os habitantes do povo, entre quem chamava a atenção porque tinha um pouco
mais de pêlo ao redor do queixo que as demais moças, e por isso lhe chamavam María a
Barbuda. Um dia, com o esforço de dar um salto, manifestaram-se seus atributos viris, e o cardeal
do Lenoncourt, bispo à maturação do Châlons, deu-lhe o nome do Germán. Entretanto, não se
casou; tem uma grande barba bem povoada. Nós não pudemos lhe ver, porque estava no povo.
Existe ainda nesta cidade uma canção popular que cantam as moças, em que se guardam de não
dar grandes pernadas por medo a converter-se em varões, como María Germán. Dizem que
Ambrosio Parei incluiu este relato em seu livro de cirurgia, que é um relato muito certo, como
testemunharam ao senhor do Montaigne os oficiais mais destacados da cidade» .
A proximidade entre a história da Juana e as anedotas do Montaigne resulta menos gratuita ainda
se tivermos em conta que um jurista francês, Esteban do Forcadel, referiu-se, em seu Do
Gallorum império et philosophia, publicado em Paris em 1580, ao caso da Juana a propósito da
famosa «lei sálica», expondo a hipótese de que esta tivesse podido ser escolhida sendo homem,
e que tivesse trocado de sexo durante seu pontificado. Como apoio de dita hipótese, entrevista
um caso de mutação sexual na obra do Tito Livio. Não obstante, isso não altera a monstruosidade
da papisa, já que tanto Tito Livio como Montaigne falam de uma mudança que se produz no
sentido «natural», «ascendente», isto é, do feminino imperfeito ao masculino perfeito.
Frente a esta labilidade dos sexos, o luteranismo quis propor as certezas de uma partilha
sexual dos papéis apoiado na família, e proclamado publicamente a raiz do matrimônio do Lutero,
quem rechaçava assim a omnisexualidad sacerdotal, seus prestígios e seus perigos. Lutero nunca
deixou de reivindicar gloriosamente sua masculinidade, e basta citar como exemplo um de seus
famosos Bate-papos de sobremesa, a respeito dos eunucos do ascetismo, em que Lutero
confessa que antes deixaria que lhe enxertassem um segundo par de órgãos genitais que cortarse um («Ich wolde eher Mir zwey par lassen ansetzen dêem ein par lassen ausscheiden») .
Juana, figura anticrística e prototípica do investimento religiosa e sexual de Roma, encontrará,
pois, um lugar adequado na imaginária luterana. Mas como chego até o arsenal argumental do
Wittenberg?
Fontes da Juana Luterana
Por volta de 1520, a lembrança da Juana parece gozar de grande vitalidade na Sajonia, aonde
chega por distintas vias:
A) Via romana: em seus Bate-papos de sobremesa (Tischreden), Lutero diz ter visto a estátua
comemorativa da Juana, durante a viagem realizada a Roma para finais de 1510, por conta de
sua ordem (os agustinos): «Em Roma, em uma praça pública, existe um monumento em pedra
para comemorar a essa Papa que em realidade era uma mulher e que iluminou a um menino
nesse mesmo lugar. Eu mesmo vi esta pedra e me surpreende que as Papas tolerem sua
existência» .
B) Via editorial: dois textos impressos a finais do século XV difundiram ampliamente a história da
papisa (só mencionaremos aqui os êxitos editoriais contrastados; como já vimos, há numerosas
crônicas impressas a princípios do século XVI que mencionam a Juana). As mulheres
deslumbrantes, do Boccaccio, conheceram uma edição popular, iluminada com gravados em
madeira violentamente sugestivos, datada no Ulm em 1473; e, a Crônica do Hermán Schedel,
publicada em 1493 no NUREMBERG, continha ilustrações reproduzidas com freqüência,
concretamente pelos reformistas. André Chastel demonstrou que, para representar a destruição
de Babilônia em suas gravuras para o Novo Testamento do Lutero (setembro de 1522), Cranach
tinha utilizado a vista de Roma gravada a sua vez na Crônica do Schedel . A tradução latina
(apresenta anonimamente) de uma obra do protestante inglês John Cooke, titulada Johanna
papissa toti orbi manifesta e publicada no Oppenheim em 1616, utiliza outra gravura em madeira
do Schedel (uma encantada Juana com menino).
C) Via boêmia: a menção do nome do Inés no opúsculo do Martín Schrott confirma esta filiação,
contrastada pelo piedoso comentarista e recopilador do tema de sobremesa do Lutero, onde
também se menciona o nome do Inés. Os luteranos conheciam o tratado Sobre a Igreja do Juan
Hus, que fazia alusão a papisa como vimos no capítulo IV. O diálogo do Piccolomini no Tabor em
1451 demonstra que a história se transmitia. É certo que tinha perdido atualidade no momento da
busca do compromisso, depois da destruição do Tabor, e de fato, o professor Macek, perito em
textos hussitas, tentou encontrar para nós rastros tardios do Inés em ditos textos, sem achar
nenhuma. Mas não por isso podemos evitar a possibilidade de uma difusão oral; neste sentido,
em 1906 tirou o chapéu no Preuss um rastro tardio do episódio em uma obra hussita, que
comparava a eleição de uma Papa feminina a do apóstolo Mateo (Feitos dos apóstolos, 1,23).
D) Via bávara e turingia: a versão do Tegernsee que traduzimos no capítulo anterior formava parte
sem dúvida de um conjunto bastante rico e vigente; referimos a uma recuperação dessa tradição
autônoma em uma peça dramática de dietrich Schernberg, representada no Mulhausen na
Turingia por volta de 1480, e publicada por um luterano no Eisleben em 1565. No capítulo
seguinte nos ocuparemos dessa Fraw Jutta (notemos neste nome bávaro da Juana), da que se
fala em dito drama. Por outro lado, o resumo da lenda que nos brinda o comentarista-recopilador
do tema do Lutero nos devolve claramente à tradição bávara (embora o êxito provável da obra do
Schernberg difundisse os temas locais por toda a Alemanha).
E) Via alsaciana e renana: a história da Juana teve um importante eco na obra de um personagem
surpreendente, o franciscano alsaciano Tomam Murner (1476- por volta de 1537. Este frade
errante, que tinha ingressado muito em breve na ordem franciscana (1490), estudante universal
(estuda direito no Friburgo, artes e teologia em Paris, filosofia e matemática na Cracovia), poeta
do imperador Maximiliano I (1506), inventor na Cracovia em 1507 do Chartiluidum, jogo de cartas
pensado para ensinar lógica, e difusor assim como possível criador da famosa lenda do Till
Eulenspiegel, parecia avocado a um destino de humanista; entretanto, sua fidelidade franciscana
a uma certa veia popular com ressaibos medievais, e seu afeto pela língua alsaciana lhe
desviaram desse destino. Seu aperturismo às correntes utopistas e fideístas, tão ativas na Alsacia
de finais do século XV, perfeitamente legível nos textos próximos à inspiração do Sebastián Brant
(a Conjuración dos loucos, a Corporação dos pícaros, 1512, O moinho do Schwyndebzheim,
1515, etc.), tivesse devido lhe conduzir até o Lutero; entretanto, foi seu adversário resolvido, o
único possivelmente que respondeu à propaganda ilustrada do Lutero nos anos 1520-1535, já que
demonstrou seus excelentes condicione de desenhista ilustrando ele mesmo seu Grande louco
luterano, onde assume dialógicamente a cabeça de gato (por alusão a seu nome) depois da qual
se escondiam os panfletarios do Lutero, e se apresenta a si mesmo como devorador de ratos
luteranos .
Por outra parte, e em duas ocasiões distintas, Murner relatou a história da Juana. Em 1514,
publicou no Estrasburgo uma Viagem aos banhos (badenfahrt), que representa uma alegoria
termal da salvação cristã, em cujo capítulo XI, onde ordena arranhá-la pele («Die Hût kratzen» =
fazer penitência), oferece como ilustração a eleição da Juana, quem preferiu a vergonha terrestre
à condenação eterna. Murner apresentou uma narração mais circunstancial em seu Prado dos
lascivos (Die Gauchmatt), publicado na Basilea em 1519, no que com uma tonalidade mais
satírica e popular recupera o princípio da galeria de mulheres (já não deslumbrantes, a não ser
escandalosas); em dita obra, consagra a Juana («Johannes ein babst») seu capítulo vinte, não
longe do Putifar, Jezabel, Tailandeses ou Vênus (recordada em uma versão do Tannhauser) .
Outro franciscano alemão, Juan Pauli, menciona a Juana em uma recopilação tardia de
exempla, Schimpf und Ernst (1522), ao nos devolver aparentemente a uma cena do Fraw Jutta (a
negativa do diabo a deixar-se exorcizar por uma mulher desvela a argúcia da papisa).
Assinalemos que os franciscanos (Murner, Pauli, Rioche) foram os últimos católicos que
conservaram para a Juana esse apego que caracterizou a seus irmãos do século XIV. A lógica da
exclusão, analisada a partir do caso Piccolomini, carece de valor no universo populista e
truculento do Murner; a censura do século XIV não o afeta já, posto que pela via indireta do tema
da penitência (fruto da tradição bávara), o discurso franciscano, de uma vez arcaico e consonante
com seu próprio tempo, pode englobar ainda a história da papisa. Mas chegou Lutero.
A história da papisa se inscreveria, pois, de forma duradoura no patrimônio luterano, depois de
sua aparição ilustrada nas gravuras do Cranach e do Martín Schrott. R. W. Scribner localizou três
santinhos que narram a história da Juana nos anos 1540; e inclusive desde 1532 , o grande Hans
Sachs tinha composto uma canção sobre ela. Mas, curiosamente, a história propriamente textual
da Juana luterana começa muito tardiamente e fora do reduto saxão.
Primeira narração luterana: Juan Bala (1548)
Em 1548, o inglês Juan Bala, consagrou uma notícia a papisa no capítulo sobre as Papas ou
anticristos romanos de seu Catálogo dos escritores ilustres da Grã-Bretanha, publicado na Basilea
(reeditado em 1557). depois de uma estadia com os carmelitas do Norwich e de realizar estudos
em Cambridge, Juan Bala foi eleito bispo do Ossory na Irlanda, antes de aderir-se à causa
luterana (o que lhe levou a exilar-se na Alemanha) e de casar-se. Esta é sua versão da história:
«Juan VIII quem recebeu o apelido de Inglês de um inglês que a amou e era monge no
convento da Fulda; embora era mulher, ocupou como Papa, em Roma, a cadeira pontifícia
durante dois anos e seis meses. De origem alemã, nascida na Maguncia, chamava-se Gilberta;
fingindo ser um homem, chegou até Atenas com seu amante o monge. Ali, realizou grandes
progressos em todas as disciplinas e então, quando teve morrido seu amigo, partiu a Roma,
dissimulando sempre seu sexo feminino. Por causa de seu grande talento e de sua facilidade de
palavra, pôde sustentar debates difíceis e dar lições públicas provocando a admiração geral;
atraiu-se tanta simpatia que à morte de Leão IV, foi escolhida Papa. Ao exercer semelhante ofício,
segundo o costume papal, concedeu as sagradas ordens, criou sacerdotes e diáconos, promoveu
bispos, ordenou abades, celebrou missas, consagrou altares e Iglesias, administrou sacramentos,
ofereceu seus pés a beijar e exerceu todos outros ofícios pontifícios; e tudo que realizou na Igreja
foi totalmente válido» .
Como pode apreciar-se, Bala toma emprestada sua versão das diversas tradições: o nome da
Gilberta e a aventura amorosa e de estudo procedem do Boccaccio, mas o desvio por Atenas
pertence ao Martín o Polonês. Não obstante, aparece um novo detalhe: o amante é um monge da
Fulda, essa enorme e prestigiosa abadia que se encontra perto da Maguncia. Semelhante
acrescentado tem um aspecto muito luterano como para não ser a obra do próprio Bala, já que na
primeira época da propaganda luterana a sátira antimonástica registrou uma violência inaudita;
neste sentido, o amante se converte aqui em um dos numerosos expoentes do monge lúbrico,
ambicioso e equívoco. Neste contexto luterano, o afã da papisa pelo estudo, gabado sem
reservas pelo Boccaccio, apresenta um valor inverso; a apologética luterana põe no pelourinho a
ciência medieval: Tiram do Aquino, Aristóteles, Ockam, Duns Decoto aparecem com freqüência
entre os demônios e os monges perversos.
O comentário de Bala insiste contundentemente nos sacramentos válidos que reparte um
indivíduo canonicamente inepto; não obstante a maioria destes sacramentos, ou destes ritos
(ordenação, consagração do Iglesias, veneração da pessoa da Papa) eram rechaçados
violentamente pelo luteranismo, que indicava seu caráter blasfemo ou terrestre em sua
propaganda ilustrada. Neste sentido, o besapiés das Papas se apresentava como contraponto de
Cristo lavando os pés dos pobres na Paixão de Cristo e do Anticristo do Cranach e Lutero.
Continuando, Bala abarrota sua narração com considerações políticas sobre as relações entre
o Papado e os poderes laicos, fazendo funcionar o caráter sinótico das crônicas universais; o
modelo clássico, da época do Eusebio e do Jerónimo até o Martín o Polonês, apresentava em
duas colunas distintas a crônica dos pontífices e a dos imperadores (as crônicas locais
acrescentavam, em seu momento, uma coluna condal ou episcopal, ou inclusive abadial). Mas a
correspondência cronológica, de uma coluna a outra, não era prática comum. Bala sim o faz, por
afã de polêmica, anunciando dessa maneira o método dos centuriales do Magdeburgo, dirigidos
pelo Flaccius Illyricus, e que são os fundadores da historiografia reformista. Bala encontra, pois,
na história legendária dos soberanos laicos, correlações interessantes para as datas do
pontificado da papisa, que depositam nesta mulher anticrística a velha vinculação dos poderes
seculares com a Santa Sede e com a instituição vergonhosa do dízimo: «Durante seu pontificado,
o velho imperador Lotario vestiu o hábito monacal e Luis II, chegado a Roma, recebeu de suas
mãos o cetro e a coroa imperial com a bênção do Pedro. Com esse gesto, a Rameira de Babilônia
demonstrou ter o poder suficiente para sujeitar aos reis. Do mesmo modo, foi em seu tempo
quando o rei dos anglos Etalwulf, como o conta Howedehus, por sua vontade, como uma
mujercilla, concedeu a décima parte de seu reino aos clérigos e aos monges. Em todo isso, você
poderá ver, piedoso leitor, se na verdade a Igreja romana não pôde errar depois da missa do
Espírito Santo (= a que prepara a eleição da Papa por inspiração divina). Em realidade, este fato
preciso demonstra muito claramente que esta Igreja é a sede da Grande Rameira e a Mãe de
todas as fornicações, que nenhum Apele poderia pintar com suas verdadeiras cores». Desta
maneira, Juana adquiria a figura de fundadora mítica da perversão babilônica de Roma. Por
último, Bala se refere ao rito de verificação da virilidade das Papas e sua inutilidade atual à vista
da prolífica descendência que se asseguram os cardeais antes da eleição papal.
A papisa do Pedro Pablo Vergerio (1556)
O segundo historiógrafo luterano da Juana apresenta uma figura tão curiosa como interessante.
trata-se do Pedro Pablo Vergerio, nascido em 1498 no seio de uma família que já se ilustrou com
o huma-nista estritamente homônimo de nosso autor*. Vergerio foi consagrado bispo de sua
cidade natal da Capodistria pelo Paulo III, realizou importantes serviços diplomáticos por conta de
Clemente VII, Paulo III, e Julho III, e participou ativamente na preparação do concílio do Trento.
Em 1535, conheceu o Lutero no Wittenberg, e embora o encontro estava precedido por certa
atração, a entrevista pessoal que manteve com ele dissipou as expectativas. Vergerio viu no
Lutero a um «monstro», embora não pôde sustraerse de tudo à influência lenta mas segura do
luteranismo, e em 1549 evitou pelos cabelos ser detido pela Inquisição, fugindo a Suíça, e logo a
Alemanha, concretamente a Tubinga .
Desde seu refúgio da Tubinga, o novo luterano se apressou a publicar uma abundante produção
antipapista, entre a que encontramos em 1556 uma História da Papa Juan VIII que foi uma mulher
(História dava Papa Giovanni VIII che fu femmina), cujo título piorou ainda na reedição do seguinte
ano, com uma História da Papa Juan VIII que foi uma prostituta e uma feiticeira (História dava
Papa Giovanni VIII che fu meretrice e strega). A obra se editou de novo em 1562, traduziu-se ao
francês e ao alemão em 1557, ao latim em 1560 e ao inglês em 1584.
A contribuição do Vergerio, quem, sem dúvida, tinha lido a Bala, resulta ainda mais incisiva e
injuriosa que a de seu predecessor inglês. A ampla cultura do prelado italiano lhe permite além de
oferecer indicações histórico-polêmicas mais violentas: «De entre todas as más passadas que o
diabo jogou a estes miseráveis (os papistas), a mais solene foi esta: faz ao redor de setecentos
anos, em tempos do imperador Lotario, esse bufão que logo se fez monge (digo monge e não
irmano, porque nesse tempo ainda não se estendeu esta peste do mundo: os irmãos), o diabo
lhes deu como um digno chefe uma grande rameira para governar a sinagoga, para dizer as
missas solenes, para dar bênções e absolvições, para criar bispos e outros prelados (não digo
criar cardeais porque nesse tempo não se descoberto ainda esses Sardanápalos, essas bestas e
monstros sanguinários); hei aí, pois, a Sua Santidade grávida que iluminou em presença de todo o
clero e do povo romano. Vergonha, E onde estava a sucessão ordinária dos Apóstolos da que
tanto lhes orgulham? Nesta mulher necromántica ou feiticeira e prostituta (In quella femmina
nigromante ou strega e meretrice)? Criem que ela «consagrava» (como dizem vós) quando ela
dizia missa? vós criem que anulava os pecados quando absolvia? Quem imprimia seu famoso
sinal indelével naqueles que ordenava e ungia? Quem dava o Espírito Santo? Que formosa raça a
destes bispos e outros sacerdotes nascida desta emano necromántica! E é um fato que tudas as
Papas que lhe aconteceram resultam ser Fabricaciones e criaturas destas mãos graciosas, quer
dizer dos diabos que havia nela e a dirigiam. OH papistas miseráveis, ridículos e estúpidos...» .
depois deste amável prólogo, no que se mescla a invectiva com o argumento, de por si grave,
da interrupção da tradição petrina, Vergerio relata a história da Juana, seguindo muito de perto a
versão do Boccaccio (a papisa se chama Gilberta; vai a Inglaterra com seu amante; acontece a
Leão V; perde-lhe a luxúria), por isso não reproduzimos o texto; não obstante, deteremo-nos em
alguns comentários do pérfido e preciso Vergerio, como o que faz a propósito da eleição da
Gilberta pelo povo e o clero, ponto no que se abre o seguinte parêntese: «Estes (= o clero e o
povo) escolhiam então à Papa e não só os carnais ou carnavalescos, quem tem roubado esta
eleição, como roubaram a primazia [note o trocadilho ao que se emprestam por sua proximidade
semântica os vocábulos italianos «cardinali», «carnali» e «carnevali»].
Vergerio, decididamente cavalheiresco com a papisa, imputa-lhe de passagem prováveis
infanticídios: «Mas, por desgraça, Sua Beatitude ficou grávida (não devia ser a primeira vez, mas
as outras vezes, deveu matar aos meninos, aos não nATO e aos recém-nascidos)». Vergerio dá
ao filho da papisa o sexo masculino, mas sem explicitar o detalhe. Tivéssemos podido conceber
que o imaginativo luterano fizesse deste menino o Anticristo ou um Anticristo, que ao parecer
devia nascer do diabo e de uma rameira, dado que a Juana a trata explicitamente de rameira
(«meretrice»). Neste sentido, o polemista católico Florimondo do Raemondo mostrará seu
assombro ante esta lacuna luterana, embora é certo que o desenvolvimento de uma narração
mítica sobre a figura do Anticristo, situada em um contexto cronológico tão afastado, tivesse
entorpecido sem dúvida a dinâmica contemporânea da invectiva.
depois deste Boccaccio emendado, Vergerio indica os vestígios deixados pela papisa: embora
ignore a estátua que Lutero tinha visto em 1510, não deixa de mencionar o desvio e fala de um
«formoso relevo» na praça de Bolonha. Não dispomos de nenhum rastro desse recordo bolones e,
como muito, cabe referir-se a um busto da Juana em uma galeria das Papas que se encontra na
catedral de Siena. Vergerio tampouco esquece a tradição da verificação da virilidade das Papas,
da que dá conta com sua habitual crueldade: «mas porque não era possível que lhes fizessem
sofrer uma nova vergonha, de ter uma puta por chefe e uma mãe por pai, tomaram a precaução
de mandar fabricar em San Juan do Letrán uma cadeira de pedra viva, chamada estercolera,
porque tem a forma de latrina» [que nos perdoe nosso desejo de ser fiéis ao espírito e à letra do
Vergerio traduzindo tão expresivamente «cacaioio»]. A confusão entre a cadeira estercolera e os
assentos de pórfido tem sua origem sem dúvida em Platina, quem além disso figura entre as três
fontes mencionadas pelo Vergerio (a Crônica do Martín, a edição latina de Mulheres
deslumbrantes do Boccaccio, publicada na Berna em 1536, e Bartolomé Platina). P. P. Vergerio
aproveita a junta para arremeter violentamente contra Platina, «esse secuaz e esse adulador
(para seu grande proveito) do Papado» (apreciação surpreendente quando recordamos a Platina
nos calabouços do Paulo II, e inclusive surpreende ainda mais quando pensamos nas sutis
perfídias destiladas por Platina em seu capítulo sobre a Juana; não obstante, recorrendo a
historia-ficción poderíamos imaginar bastante bem a Platina, cinqüenta anos depois, no lugar do
Vergerio). O caso é que o historiógrafo luterano reprova ao humanista da Piádena duas
falsificações: em primeiro lugar descartou a hipótese da verificação de virilidade das Papas
fazendo da cadeira estercolera uma metáfora da fragilidade humana e natural da Papa («chi
bisogni cacare», diz Vergerio*); nosso neo-luterano, excelente conhecedor do ritual, como se verá,
demonstra que esta metáfora pueril era inútil, posto que o rito da estopa queimada em um cano
(«Pater sancte, sic transit glorifica mundi») era mais que suficiente para advertir ao tirano que era
um homem frágil.
O segundo engano de Platina, segundo Vergerio, consiste em uma modalización enganosa:
Platina tinha escrito que «Juan se deu procuração do Papado por arte de magia, conforme se
conta ("malis artibus-UT aiunt-pontificatum adeptus est")». Além disso, Vergerio pretende, contra a
veracidade mesma dos textos, que outros historiadores reconheceram que Juana só pôde tomar
posse do trono papal conjurando ao diabo; esta asseveração lhe permitia situar a Juana na larga
série de outros Papas necromantes, companheiros íntimos e como irmãos do diabo, tanto na
antigüidade como na época moderna», e encadear abundantes insultos contra Paulo III e a casa
Farnesio.
Juan Bala e Pedro Pablo Vergerio souberam, pois, conferir à história da Juana o comentário
ideológico que mais convinha às imagens do Cranach e do Schrott. Mas o caso surpreendente do
Vergerio em 1556, como anteriormente o do Piccolomini em 1451, expõe a questão da adesão
destes prelados sutis, humanistas e cultivados, a esquemas tão ásperos.
Baforadas de crença
Acreditava realmente Vergerio no diabolismo papal, ou lhe utilizava esta cobertura violenta e
retórica para envolver o furor religioso e/ou pessoal que animava seu animadversión contra
Roma? A segunda hipótese parece ser a boa se emprestarmos atenção a uma correlação
cronológica descoberta pelo Cesare d'Onofrio na obra do Vergerio . Em 1556, o mesmo ano de
seu primeira papisa, Vergerio tinha publicado na Tubinga, e com uma forma editorial muito
parecida, o Ordo do Cencio de 1192, editado por ele mesmo segundo o manuscrito atualmente
classificado com a assinatura Vat. lat. 2145 da Biblioteca Vaticano, sem alterar no mais mínimo
seu conteúdo. Como vimos no capítulo III, este texto menciona os assentos de pórfido e a cadeira
estercolera, inequivocamente, sem deixar sítio ao rito de verificação da virilidade das Papas. Mas
este Ordo benigno, que não oferecia arma alguma à argumentação luterana, está precedido de
uma gravura que representa a iluminação da papisa, de forma muito parecida com a gravura que
figura na História da Papa Juan VIII, assim como de uma carta de dedicatória, violentamente
antipapista, dirigida ao príncipe Alberto do Brandenburgo. Se Vergerio tivesse acreditado no
diabolismo papal, no sentido que chamamos «fantástico», tivesse interpretado de maneira
delirante o texto do Cencio, farejando e indicando Deus sabe que interpolação. Mas é evidente
que seu minuciosidad delirante e erudita só se desencadeia quando se trata de tomar partido
contra seus contemporâneos, como Paulo III ou os homens da cúria muito próximos ainda, como
Platina. Haveria, pois, que inventar uma quarta forma de crença na Juana (ou melhor dizendo uma
subforma da «crença» fantástica), ao falar de «baforadas de crença», no sentido no que se fala de
«baforadas delirantes» em psiquiatria: estas baforadas só afetam a certos âmbitos e em
determinadas circunstâncias importantes do ponto de vista afetivo.
Na propaganda luterana, a história da Juana oscila entre três estatutos: o da realidade histórica
(para Bala, a papisa de 855 fundou a tirania papal ao submeter aos soberanos), o de sinal
(anunciador e revelador, para o Vergerio, da anticristía romana) e o de metáfora (Juana serve de
emblema à realidade papista), mediante uma espécie de condensação da ignonimia romana; por
isso, Ciríaco Spangenberg escreve em 1562 que «os pontífices romanos só eram com freqüência,
embora exteriormente homens, nada mais que prostitutas» , enquanto que Lucas Osiander, no
polêmico escrito (Considerações sobre a necessidade do novo calendário para a cristandade) ,
que redigiu em 1583 com o propósito de atacar os projetos de reforma do calendário do Gregorio
XIII, serve-se de uma Juana metafórica: «O camelô Gregorio se ufana de ter vendido seus
calendários com tanto proveito como vendia antigamente as indulgências. iluminou o calendário
para não ficar estéril; antes dele, e pelo mesmo motivo, a Papa Juan VIII havia trazido para o
mundo um precioso garotinho.» Parece bastante difícil fazer uma partilha exata entre estes três
estatutos, e só a polisemia (ou a indeterminação) da imagem podia englobar as três formas.
depois destas violências primerizas, Juana recuperaria uma existência histórica mais tranqüila
(embora reprovada) ao passar aos grossos volúmenes da História eclesiástica luterana, redigida
pelos chamados centuriales do Magdeburgo, dado que construíam sua história século a século.
Estes centuriales se ocuparam da Juana no tomo V (novena centúria), publicado em 1565, no que
reuniram um amplo expediente com textos e testemunhos que provavam a existência da papisa .
Dito instaure se converteria a sua vez em referência constante das polêmicas que se
aconteceriam até o século XIX; o próprio J. Wolf, de quem falamos no primeiro capítulo, inspirouse no mesmo e o difundiu ampliamente.
Juana repudiada pelos seus: Onofrio Panvinio (1562)
Durante estes ásperos anos de expansão do luteranismo, o que dizia a Igreja católica da Juana?
Em um princípio, nada. Em términos gerais, o catolicismo (com a brilhante exceção de Tomam
Murner) não quis, não soube como, responder à polêmica luterana. André Chastel analisou esta
inadaptación com a apresentação das pinturas que decoram as Stanze do Vaticano, realizadas
entre 1520 e 1525, e que constituem uma resposta aos ataques protestantes (em especial a que
representa a Doação do Constantino). Em efeito, Ulrico von Hutten, o violento coroinha laico do
Lutero, tinha dado a conhecer mundo, em 1518-1519, a recusa da falsa Doação, redigida pelo
humanista Lorenzo Cerca por volta de 1440 e editada sem estrépito algum em 1506. As
conclusões do A. Chastel são as seguintes: «O antagonismo era tão profundo que se manifestava
em duas formas de discursos figurativos totalmente irreconciliáveis: por um lado, a tradição da
pintura monumental do Mediterrâneo na plenitude de sua projeção, e, por outro lado, a arte direta,
popular e rápido da imagem setentrional que se converte assim por primeira vez em uma força
maior da vida cultural e religiosa. Roma não utilizava as armas adequadas, os meios modernos, e
portanto não podia vencer» .
Mas além disso, o que se podia fazer com a Juana? Até então, a Igreja se acostumou bastante
bem a sua presença, mas agora sentia o mesmo desconforto que experimentasse Ns Silvio
Piccolomini em 1451. É certo que a argumentação de São Antonino de Florência em meados do
século XV tinha recusado já, adiantado, os temas mais discutíveis apresentados logo pelo Juan
Bala ou Pedro Pablo Vergerio; como recordaremos, Antonino havia sustenido que os atos
sacramentais da papisa, até sendo nulos, tinham recebido uma validez divina cheia de graça (ao
igual a em nosso direito público contemporâneo se pode legitimar um decreto ilegal mediante uma
lei de validez). Mas, em 1520, esta sutilidad florentina resultava perigosa, por quanto implicava
precisamente aquilo contra o que vociferava Lutero: a incapacidade do clero para receber a graça.
Pelo mesmo resultava igualmente perigoso expor a estrita linealidad da herança do Pedro,
liberada já da doação do Constantino.
A Igreja não queria, pois, comprometer-se mais com esta Juana, sem dúvida amável, mas
perigosamente familiar para os luteranos. Não obstante, adotar uma postura radicalmente oposta
parecia difícil, à vista da quantidade de textos que tinham institucionalizado sua existência, desde
o Martín o Polonês até Platina, e também a quantidade de costumes que lhe comemoravam. Por
isso, a Igreja não repudiou a Juana até 1562, e isto graças ao trabalho minucioso de um frade
agustino (a ordem do Lutero!) da Verona, Onofrio Panvinio. Panvinio respondeu publicamente aos
agustinos utilizando a via não do libelo, a não ser precisamente de uma reedição de Platina,
publicada em Veneza em 1562 (traduzida ao italiano em 1563). A cúria lhe tinha encarregado que
continuasse a vida das Papas de Platina, desde o Sixto IV até Pio IV, pontífice este último
contemporâneo do Panvinio, tarefa que realizou ao tempo que completou o texto de Platina com
notas eruditas . A eleição deste meio tinha sido cuidadosamente premeditada, pois o texto de
Platina, com seu estatuto quase oficial e seu estilo penetrante, não só tinha conhecido um êxito
enorme, mas também além fazia as delícias dos luteranos, como comprovamos a propósito do
Vergerio. Em três páginas, e com notas marginais no capítulo primitivo que reproduz
integralmente, Panvinio demonstra que o pontificado da Juana não se ajusta a nenhuma
realidade.
Começa com considerações de caráter geral sobre a verossimilhança psicológica e teológica;
por exemplo: os romanos não teriam sido tão estúpidos para escolher a um desconhecido de
origem incerta; Deus não tivesse permitido semelhante impostura. Depois Panvinio passa às
recusas filológico-históricas mais convincentes: retomando as cronografías papais, observa que
entre Leão IV e Benito III (localização tradicional do pontificado da Juana) a vacante não dura
mais de quinze dias. Por outro lado, assinala que Anastasio o Bibliotecário, a quem considera o
autor do Liber pontificalis, não menciona o pontificado da Juana, e adverte que o aplique que o
consigna é obra de uma mão diferente e tardia. Ampliando sua investigação, constata que
nenhum cronista tem feito alusão alguma a papisa até o 1250 aproximadamente (data que atribui
à redação da crônica do Polonês). Como pode apreciar-se, Panvinio dirigia com muita segurança
os textos, e, neste sentido, é pouco o que a investigação contemporânea pôde acrescentar.
Mas há ainda outro argumento, retomado recentemente pelo Mons. Maccarrone, que apresenta
certo interesse. Ao parecer, Panvinio assinala que em 1054 Leão IX tinha enviado uma carta ao
patriarca de Constantinopla, Miguel Cerulario, lhe reprovando que, segundo um rumor que
circulava pelo Ocidente, tinha promovido a elevados cargos sacerdotais a vários eunucos e a uma
mulher. Como tivesse cometido Leão IX a imprudência de lançar semelhante acusação se na
verdade tivesse tido lugar o pontificado da Juana dois séculos antes?
Continuando, Panvinio se ocupa da inverossimilhança institucional da história: a Igreja só
escolheu Papas que se formaram dentro de seu seio. Por último, sublinha o absurdo dos detalhes:
a dobro designação de origem («Maguntinus anglicus»), os estudos realizados em uma Atenas
virtualmente inexistente no século IX, ou o ensino público em Roma em uma época em que dita
prática estava em desuso. Ao fio do comentário do texto de Platina, Panvinio põe de relevo todas
as modalizaciones de sua narração («conforme dizem», etc.), antes de debulhar outras
circunstâncias igualmente inaceitáveis: impossibilidade de manter oculto um embaraço em um
ambiente de semelhante densidade humana, imprudência de sair em procissão em avançado
estado de gestação, duração inverossímil de travestismo, etc. depois desta crítica pontual dos
textos, em sua forma e em seu fundo, Panvinio propõe a sua vez um intento de reconstrução da
invenção legendária: por exemplo, explica o famoso desvio procesional com a topografia de
Roma, em uns términos que Cesare d'Onofrio, excelente conhecedor do espaço histórico romano,
logo que modificou; e, para ele, a fábula se referia à vida escandalosa do Juan XII († 962), quem
tinha entre seus numerosas amantes a uma chamada Juana, de maneira que a proximidade dos
homens e o rumor sobre o ascendente da sorte Juana, verdadeira «papisa», teriam engendrado o
relato. Esta explicação, retomada e modificada uma e outra vez até nossos dias, servia-se sem
dúvida de uma análise do cronista bávaro de começos do século XVI, Juan Thurmayr, chamado
«O Aventino» («Aventinus»), a causa do nome latino de sua vila natal do Abensberg. Em seus
Anais da Baviera, redigidos por volta de 1510, Thurmayr relata o Papado do Juan IX da seguinte
maneira: «Alberto, um príncipe muito rico da Etruria, governou sobre a Rávena, Bolonha e Roma.
Sua sogra Teodora, cortesã nobre e imperiosa, dominava em Roma; impôs seu amante Juan aos
boloñeses, depois aos da Rávena e finalmente aos romanos; fez-lhe nomear para o supremo
sacerdócio; esse é, acredito eu, a origem da fábula que se repetiu à ligeira, e segundo a qual se
acredita nestes tempos que uma mulher tinha ocupado o sacerdócio supremo com o nome da
Juana» .
Certamente, a análise do Thurmayr constitui um dos maiores mistérios que rodeiam a história
da Juana. Em primeiro lugar, não se trata da opinião de um escritor escuro e desdenhável, mas
sim do fundador da historiografia bávara moderna. Por outra parte, tampouco parece que
estivesse comprometido nesses debates eclesiológicos nos que Juana fazia carreira. Em terceiro
lugar, ao igual a em 1451, o eminente Piccolomini não pôde passar do desconforto ao rechaço,
durante mais de cem anos nenhuma voz católica se elevou para renegar da Juana; de maneira
que atrás do rechaço tardio do Panvinio advertimos a pressão curial, assim como o peso de uma
enorme erudição. Entretanto, Thurmayr não vacila, vai direito a sua certeza sobre a inexistência
da Juana, com a segurança de uma hipótese solvente sobre o nascimento da lenda. O Aventino
estava penetrado de um espírito erasmista que lhe permitia adotar uma atitude crítica frente a
qualquer fábula, à margem dos interesses partidistas. Mas, curiosamente, a Igreja não soube
apreciar seu juanoclastia, já que seu livro figurou no índice de 1564, entre os autores de primeira
classe (heréticos ou suspeitos de heresia).
A refutação católica do Panvinio, graças a sua extraordinária erudição e a seu notável
miniaturización, proporcionou virtualmente até o presente o modelo de todas as juanoclastias.
Entre 1562 e 1565, quer dizer entre o Panvinio e os centuriales, ficou selado o suceder polêmico
da Juana; por um lado, a rechaçava com argumentos sólidos, enquanto que por outro se
publicava o impressionante conjunto de textos medievais que provava, se não a existência mesma
da Juana, pelo menos sim sua prolongada familiaridade com a igreja católica. A controvérsia
subseqüente, muito densa como se verá, reitera até o infinito esse intercâmbio de argumentos
textuales.
A Igreja católica tinha determinado por fim sua posição e sua tática (a réplica erudita), do
momento em que os luteranos passaram da invectiva e da propaganda visual à polêmica
discursiva. Esta evolução, que coincide além com o esgotamento da produção iconográfica por
volta de 1550-1560, explica-se por três motivos: em primeiro lugar, em términos gerais (e fora do
âmbito religioso), a imagem sofre um retrocesso no campo editorial europeu de finais do século
XVI; em segundo lugar, o luteranismo, já instalado, e bem entrincheirado, preocupa-se mais de
cimentar sua instituição que de lançar vituperios contra Roma; e, por último, as novas
circunstâncias (Concílio do Trento, reformas calvinista e zwinglista) sugeriam a necessidade de
uma argumentação mais doutrinal e menos polêmica.
Jesuítas e devotos ao assalto da Juana
Os católicos souberam aproveitar rapidamente a erudição do Panvinio, e em 1584 aparecia
simultaneamente no Ingolstadt e em Viena a primeira obra completa de recusa da existência da
Juana, redigida em alemão pelo jesuíta Jorge Schérer, pregador do arquiduque Ernesto da
Austria: Grundlicher Bericht ob é wahr sey, dass auf ein Zeit ein Pabst zu ROM schwanger
gewesen und ein Kind gebohren há. Esta obra, que foi traduzida ao italiano em Veneza e em
Melam em 1586, sem contribuir nada novo à argumentação do Panvinio, apresentava não
obstante uma novidade dobro: em primeiro lugar, estava redigida em alemão e portanto se
projetava sobre o âmbito lingüístico do luteranismo; por outro lado, significava a chegada da
Companhia do Jesus ao terreno ideológico. A Companhia, além de estar melhor adaptada que as
antigas congregações para as novas lutas, não tinha que assumir a herança medieval dos
dominicanos e dos franciscanos, cuja ausência das controvérsias em torno de Juana desde
começos do mesmo século XVI não deixa de ser chamativa. Recordemos de novo a figura
claramente contemporânea do franciscano do Saint-Brieuc reescribiendo em 1586 uma crônica
universal em que aparece uma papisa ingênua. A idéia de uma retirada dominicana e franciscana
tampouco é de tudo exata, embora sua ação antiluterana conserva formas antigas e lentas (o
pesado trabalho inquisitorial no caso dos dominicanos, e a predicación popular no dos
franciscanos).
A entrada em campo de batalha dos jesuítas, que proporcionava um eco decisivo às investigações
do Panvinio, coroou-se em 1586 com a intervenção do membro mais eminente da Companhia,
São Roberto Bellarmino, quem afinou a demonstração do agustino em seu tratado De romano
pontífice .
Por aquelas mesmas datas, quer dizer em 1587, aparecia no Burdeos outra recusa católica, o
Engano popular da Papisa Juana, assinada pelo Florimondo do Raimundo, magistrado do
parlamento do Burdeos e amigo do Montaigne e do Monluc (a quem editou), quem cortejou
durante um tempo o calvinismo antes de converter-se em uma muito ativo propagandista católico
de tendência filojesuita (dizia-se que o jesuíta Richeome tinha inspirado o livro do Raimundo).
Esta obra, reeditada e aumentada constantemente (só entre 1587 e 1614 conheceu 12 edições
francesas e latinas em Paris, Burdeos, Lyon, Cambrai, Colônia e Amberes) , importa pela
amplitude extraordinária de sua erudição. Não nos deteremos na mesma por medo a fatigar ao
leitor, mas sim assinalaremos que o texto retoma e desenvolve a argumentação do Panvinio e
passa todos os aspectos da vida da Juana pela peneira (textos, contexto do 855, comemorações
diversas da papisa...). A verdade é que a demonstração do magistrado lhes borde resultava
menos convincente que a do agustino da Verona, sendo assim certo que o melhor está
acostumado a ser inimigo do bem; todos os textos que mencionam a papisa antes do Boccaccio
são atribuídos a malignidad de falsários luteranos ou cuasi luteranos. Frente a cada manuscrito
onde figura a papisa, Raimundo esgrime outro manuscrito sem papisa, e este procedimento não
deve entender-se como simplesmente delirante, já que, como vimos, os primeiros manuscritos da
crônica do Martín não contêm nenhuma papisa. Mas Florimondo do Raimondo se detém nesta via,
ao tomar consciência de que ele, a sua vez, está incorrendo na corrosiva tática luterana que
consiste em descobrir falsidades por toda parte (recordemos o grande trauma provocado pela
recusa da Doação do Constantino a cargo do Lorenzo Cerca e reavivado pelo Ulrico von Hutten).
A busca frenética das causas subjacentes na invenção da lenda situavam ao Raimundo ante
pistas interessantes: ao lado do mal-entendido que supõem o Aventino e Panvinio (teria tomado
ao pé da letra uma metáfora que chamava «papisa» a uma amante da Papa), sugere uma
perversa invenção alemã fabricada nos tempos da Luta das Investiduras. O furor polêmico confere
ao espírito escassamente iluminado do Raimundo vivacidades insuspeitadas, que se traduzem a
sua vez em formosos desenvolvimentos sobre os mecanismos culturais que impulsionam aos
autores a recopiarse mutuamente, por medo a passar por ignorantes, assim como sobre as
fascinações de caráter novelesco; neste sentido, Raimundo consegue esboçar uma descrição da
autonomia dos sistemas simbólicos. Se a isto acrescentamos que em suas especulações sobre as
diversas sucessões de Papas Leão-Benito exibe certa agilidade vizinha no estrutural, e se
ponderarmos o extraordinário esforço de avaliação filológica dos textos dirigidos, então
constatamos que a energia polêmica faz progredir a investigação histórica com maior rapidez que
qualquer outra força. Por último, advertimos igualmente que Raimundo tenta passar ao contraataque em duas frentes: no fronte anglicano, demonstra que a única usurpadora verdadeira de
uma fila pontifícia é a rainha Isabel da Inglaterra (a Jezabel da Liga Católica), quem depois do
cisma provocado pelo Enrique VIII, diz ser chefe da Igreja: «Como podemos, pois, batizar a que
diz ser o chefe da Igreja se não ser com o nome de papisa» ; e no fronte luterano, afirma que a
fábula, em boca de seus adversários, só serve para mascarar a novidade inaudita que comporta o
matrimônio dos sacerdotes.
Em seu texto, Raimundo descobre um dos rastros mais molestos da papisa, a quem em última
instância imortaliza quando o que pretende é eliminá-la. O episódio em questão é um claro
expoente desse labirinto de testemunhos sobre a Juana, no que se perde qualquer origem.
Segundo Raimundo, existia ainda em sua época um busto da Juana entre os que formavam a
galeria das Papas da catedral de Siena, esculpida no século XV. O cardeal Baronius, leitor do
Raimundo, alertou a Clemente VIII (1592-1605), quem mandou substituir o busto da Juana pelo
da Papa Zacarías. O próprio Raimundo se ecoa do êxito de sua denúncia nas últimas edições de
seu Engano, e o episódio é relatado pelo Pighi, editor e comentarista dos Annales do Baronius, e
pelo G. Gigli em seu Jornal Senese , em 1723, antes de entrar definitivamente na grande tradição
juanista.
A realidade que comporta a inquietação do Raimundo, do Baronius e de Clemente VIII não
implica em modo algum a autenticidade inicial do busto. A galeria, situada em uma cornija que
remata a alta nave da catedral, era dificilmente visível; por outro lado, os mesmos bustos,
escassamente diferenciables e etiquetados muito tardiamente, podiam emprestar-se a qualquer
atribuição, e a qualquer cômputo, dado que, evidentemente, a galeria não podia incluir à
totalidade das Papas. Acrescentemos que nos parece muito improvável que se omitisse em um
princípio ao Zacarías, essa grande Papa de sobra conhecido por seu diálogo político com Pepino
o Breve. Assim, e ao igual a acontece com o assunto do rito de verificação da virilidade das
Papas, não sabemos como delimitar o engano cometido de boa fé (no momento da execução dos
bustos?, como resultado de uma leitura tardia?), a malícia interpretativa, ou a obsessão
atemorizada.
Apesar de suas imperfeições, o trabalho do Raimundo conheceu certo eco de prestígio, na
Cronografía do Genebrardo e sobre tudo nos Anais Eclesiásticos do cardeal Baronius, texto
fundamental, já que constitui uma resposta católica às Centúrias do Magdeburgo.
Em 1630, e a pedido da cúria, o grande erudito italo-grego Leão Allacio (Allacci) sintetizou a
argumentação antijuanista em seu Confutatio fabulae Joannae Papissae, que se publicou em
Roma.
O fim da Juana: o desprezo calvinista e racionalista
Como era previsível, o contra-ataque católico desencadeou uma verdadeira proliferação de
publicações reformistas, cuja aparição registra uma grande regularidade; assim, as respostas às
recusas geram a sua vez recusas das respostas. pudemos localizar até 40 títulos de opúsculos
publicados entre 1548 e 1700 (38 protestantes e 8 católicos) consagrados exclusivamente a
papisa, excluindo as reedições e as traduções confessadas ou dissimuladas (com freqüência, uma
obra anônima reproduz um texto anterior). Se integrarmos a este lote as reedições e traduções,
assim como as obras que se perderam (ou que não se localizaram), mas das que temos notícia
graças às alusões na literatura que se conservou, então terá que multiplicar essa cifra pelo menos
por quatro, o que arroja uma média de uma obra por ano durante um século e médio, sem contar
os capítulos dedicados a Juana nas obras de caráter geral. Esta literatura não sempre é
acumulativa, embora com freqüência sim é repetitiva; isso pop, constitui mais uma resposta que
um adiantamento. O antagonismo dos reformistas se instala em uma guerra de trincheiras,
onerosa em esforços e em papel, mas parca em movimentos importantes.
Contentaremo-nos, pois, com uma cartografia rápida da guerra juanista, assinalando dois
períodos intensos, por volta de 1585-1600 e por volta de 1649-1690. O primeiro período
corresponde ao contra-ataque católico (Scherer, Bellarmino, Raimundo e Baronius), e se passa ao
lado reformista a partir do bastión luterano (Wittenberg, Dillingen, Eisleben) e do mesmo Londres,
onde o anglicano se calça as botas polêmicas dos luteranos. O segundo período, que se
desenvolve principalmente nos Países Baixos e na França, tem sua origem exata na publicação
no Amsterdam, em 1647, de uma obra que introduzia uma mutação capital na história da Juana.
Em efeito, um pastor calvinista chamado David Blondel publicou uma recusa da história da Juana,
que aos olhos de numerosos reformistas representava uma traição; trata-se do Esclarecimiento
familiar da questão de se uma mulher se sentou na sede papal de Roma entre Leão IV e Benito III
(reeditado em 1649, traduzido ao holandês em 1650 e ao latim em 1657). Alguns calvinistas
responderam airadamente ao Blondel: Nicolás Congnard redigiu um Tratado contra o
esclarecimiento proposto pelo Blondel (Saumur, 1655), e Samuel Dê Marets (Maresio), quem tinha
acusado ao Blondel de perceber uma pensão do superintendente Miguel Particelli d'Emery em
compensação por ter escrito sua recusa, publicou a sua vez uma lohanna Restituta (Groninga,
1658 e logo 1661). O jesuíta Felipe Labbé interveio nesse debate calvinista com seu Cenotafio da
Papisa (Cenotaphium Joannae Papissae, Paris, 1660), apogeu da erudição católica (citam-se
nada menos que 150 testemunhos textuales), ao que deu resposta em 1691 desde o Leiden
Federico Spanheim, membro de uma ilustre família calvinista, com sua obra monumental
Disquisitio historica de Papa foemina, muito popular entre o público francês graças à adaptação
do J. Lenfant (História da Papisa Juana, Colônia 1694, com numerosas reedições).
O giro que se produz em 1647 tem uma explicação singela: o calvinismo repudiou sempre o uso
das lendas e dos temas populares (principalmente os iconográficos, mas também os textuales). A
lista das publicações juanistas que aparecem a partir de 1548 reflete a chamativa ausência da
Suíça calvinista e zwinglista, apesar de que Genebra era já então um centro editorial muito
importante. Calvino se inclinava por enfrentar a católicos e luteranos no marco da superstição que
ambos compartilhavam: «em matéria do Papado, dizia, nada mais estendido e manido que a
chegada do futuro Anticristo.» Certamente, em 1647 David Blondel não tendia a mão
precisamente a catolicidad, e o propósito desdenhoso que animava suas palavras consistia em
dizer que Roma tinha suficientes crímenes e heresias atuais e constatables para reprovar-se para
acrescentar fábulas duvidosas a esse expediente tão pesado. Neste mesmo sentido se
manifestava um calvinista tão fanáticamente anticatólico como Jurieu, em sua História do papismo
de 1682 : «Penso que a forma em que se relatou esta história faz mais honra à sede romana do
que esta merece. diz-se que esta papisa tinha estudado bem, que era douta, hábil, eloqüente, que
seus talentos fizeram que Roma a admirasse... Eu digo que é fazer honra à sede de Roma, nesse
momento no que se situa a dita papisa, sendo a condição de amante de alguma dama romana o
único mérito que conduzia até o pontificado.»
Tinha passado já a hora das punhaladas alegres e sangrantes dos tempos do Lutero, desse
tempo da convivialidad agressiva no que os irmãos gêmeos de Roma e do Wittenberg
compartilhavam o mesmo gosto pelo teatro, pelo cenário, pela carne e pela escatologia
escatológica; pensemos neste sentido no rumor católico que designava como lugar da invenção
doutrinal do Lutero os privadas do Wartburgo, rumor ao que respondia como um eco essa imagem
da Descrição do Papado (Abbildung dê Bapstum) (Wittenberg, 1565) , em que podia ver-se a um
camponês luterano defecando na tiara derrubada da Papa. Mas o calvinismo, severo e
moralizados, não podia divertir-se no jogo da Juana.
Não obstante, é o calvinismo francês o que de uma maneira mais profunda, através da academia
do Saumur, e sob o impulso do pastor Moisés Amyraut, converge com a aparição do racionalismo
crítico; o pensamento jesuíta já tinha minado o chão apocalíptico da controvérsia com os famosos
comentários de Ribeira (1591) e de Fortaleza (1614) sobre ao Apocalipse. O ilustre arminiense
Grocio havia assinado essa negativa a fazer uma leitura milenarista do Apocalipse.
Alguns anos antes da publicação do opúsculos do Blondel, Gabriel Naudé tinha famoso com
bastante sagacidade e precisamente a propósito do Grocio, o nascimento de uma nova orientação
reformista; em uma carta que envia de Roma ao Jacobo Dupuy em 1641, escreve o seguinte:
«Prevejo que o senhor Grocio, com seus livrinhos, converterá-se insensivelmente em chefe de
uma terceira partida, que possivelmente não seja de escassa conseqüência para o bem da
cristandade» . Naudé aludia assim, entre outras coisas, a um comentário do Grocio, publicado em
1640, que provava que a Papa não podia ser o Anticristo. Uma vez mais, Juana vinculava sua
existência a do Papado, e algumas linhas mais adiante nos oferecem o julgamento do Naudé
sobre o livro do Saumaise De primatu Petri (publicado pouco depois, em 1645): «...Por isso se
refere a papisa, jamais deveu empenhar-se em sustentá-la, havida conta de que inclusive os
homens galantes de sua partida se mofam dela, e que ela mesma servirá para desacreditar a
outra proposição como se esta procedesse de um homem muito apaixonado» .
Terá que situar a obra do Blondel entre as Meditações de Descartes (1641) e o Leviatã do Hobbes
(1651); no caso de Descartes, a prática das idéias claras e distintas e da dúvida metódica limitava
a crença ao domínio exclusivamente divino (a existência de Deus), e inclusive, de maneira
subsidiária, mediante o descartes da prova a priori (o argumento ontológico) da existência de
Deus. Todo o resto é acessível ao tribunal da razão, onde as oportunidades da Juana, depois dos
progressos obtidas graças à instrução dirigida pelo Panvinio e os jesuítas, são francamente
escassas. Por outra parte, a epistemologia cartesiana e sua antropologia do engano, cujo eixo é o
indivíduo cognitivo, investia radicalmente a perspectiva medieval onde a tradição constituía a
paisagem mental primeiro e original, pelo que se deslocava, com bastante liberdade, o sujeito, até
as quatro esquinas do saber. O cavalheiro cartesiano, solo ante Deus e o Gênio Maligno, alivia
drasticamente sua bagagem e nos conduz até a quarta forma de crença, dominante após, e que é
a forma racionalista, que só subsume a alternativa estrita do verdadeiro e do falso sob a adesão
facultativa (mas desejada) a Deus ou a um Valor.
Nada representa melhor dita investimento, apesar da diferença entre os pensamentos respectivos,
que a construção do Leviatã do Hobbes em quatro partes: sobre o homem (I), sobre a
comunidade (II), sobre a comunidade cristã (III); a quarta parte, bastante parca, está consagrada
ao «reino da escuridão», e consiste em um repertório dos enganos do homem, no que vão caindo
como grandes tecidos as antigas crenças, repartidas a sua vez em quatro tipos: as interpretações
literais das Sagradas Escrituras, a demonologia, o espiritualismo filosófico e as tradições
fabulosas («fabulous Traditions»).
Apesar dos combates de retaguarda que se prolongaram até finais do século XIX, o livro do
Blondel põe fim à vida da Juana, da que já ninguém queria saber nada. O próprio Leibniz, quem
pouco depois do Cenotafio da papisa do Labbé, escreveu um volume muito elegante que titulou
Flores jogadas sobre a tumba da Papisa (Floresça spersi in tumulum Papissae), atribuiu uma nova
carreira a Juana: «Assombra-me que a papisa, digno argumento para um novelista, não tenha
encontrado ainda, quando tanto gostam das fábulas, seu escritor como aconteceu ao Argenis ou a
Clelia; esse escritor disporia de uma heroína e de uma amante, bem disposta para as desgraças;
hei aí a matéria de uma obra muito elegante. E, na verdade, esta mulher ilustre concerne aos
poetas e não aos historiadores.» A chamada do Leibniz foi atendida tardiamente, a finais do
século XVIII, quando Juana encontrou acolhida nos histriões, mas que já não eram os
«joculatores Dei» franciscanos que tanto a tinham amado, desde o Ockam até o Murner, a não ser
os literatos, amantes a sua vez da bufonería, da tragédia, ou simplesmente das antiguidades
góticas.
CAPITULO VII
Brasão literário da papisa
É bastante possível que, muito antes de que Labbé e Leibniz enviassem a papisa à tumba, o
germe da transfiguración literária da Juana estivesse já plantado na Turingia de meios do século
XVI. Esta hipótese tem seu fundamento em um título aparecido em 1565 no Eisleben, cidade natal
do Lutero: «Apoteose do Juan VIII, Pontífice Romano. Formosa peça sobre Dama Jutta que se
converteu em Papa em Roma, e que quando estava no trono de Roma, extraiu de seu scrinium
pectoris um recém-nascido. Escrita faz 80 anos mas recentemente achada e mandada imprimir
pelas razões que se indicam no prefácio. Apocalipse XVIII: lhe paguem com sua própria moeda,
lhe dêem o dobro de suas obras, já que diz em seu coração: Como reina estou sentada».
por que situamos aqui precisamente o começo da existência literária da papisa? Acaso o
término apoteose contém uma justificação suficiente? Certamente que não. É mais, se
pretendemos cercar o campo literário da papisa, arriscamo-nos seriamente a nos afundar nas
areias movediças das sutilezas sem fim, posto que ainda a finais do século XVI a aparição de uma
novelita sobre a Juana provoca um vivo debate no que o texto novelesco serve como elemento de
polêmica. Já no século XVI, o texto mesmo do Boccaccio se apresentou com um estatuto
ambíguo, e neste sentido sugerimos no capítulo V que a inclusão da vida da Juana na galeria das
Mulheres deslumbrantes conferia a papisa categoria de «personagem». Mas o uso do texto do
Boccaccio, fonte essencial no século XVI para a historiografia da Juana, devolvia a figura da
papisa ao estatuto verificável da crônica ou da biografia. Em conseqüência, a edição do Eisleben
assinala com maior firmeza a aparição da autonomia literária da papisa:
1) trata-se de uma peça de teatro que, por definição, suspende a adesão referencial; o jogo
esquematiza, representa, e em última instância se afasta da autenticidade literal postulada pela
biografia ou a crônica.
2) Seu uso explícito, em 1480, neutraliza os investimentos históricos do relato; como se
desprende de uma análise mais detida do texto, a aventura da Juana não expõe nenhuma
polêmica, posto que o único que importa é a salvação da alma da Juana. É certo que a edição de
1565, preparada pelos luteranos, forma parte do esforço propagandístico descrito no capítulo
anterior, pois como se advertiu, o título contém a alusão maliciosa ao famoso adágio do direito
canônico «a Papa leva seus arquivos no estojo de seu coração (in scrinio pectoris)». Mas o editor
Tilesio trata o drama como se fora um texto intangível, como um «monumento», e sua intervenção
se limita à escolta textual: título, entrevista do Apocalipse, e prefácio, já que a obra em si mesmo
não tem nada de antipapista.
3) A celebração literária, perceptível desde 1565 na atenção minuciosa que lhe dedica o editor,
tem uma continuação imediata. Apesar de que até o século XVIII sua difusão material foi bastante
escassa (o manuscrito que utilizou Tilesio, o editor de 1565, perdeu-se, e só se conservam duas
exemplares da edição do Eisleben, alguém se encontra no Berlim e outro no Dresden), Johann
Christian Gottsched, esse grande descobridor da literatura alemã do século XVIII, estimou que
Fraw Jutta era «o mais antigo texto trágico original impresso em alemão», e como tal o editou
cuidadosamente em seu Nöthiger Vorrath zur dê geschichte dê deutschen dramatischen
dichtkunst de 1765 . Por sua parte, Achim von Arnim conheceu o texto graças ao livro do
Gottsched e o transcreveu. Finalmente, a erudição contemporânea tomaria a substituição e a obra
ficaria incorporada na edição do Keller em 1853, na do Schröder em 1911, e na tese do Haage em
1891 . insistimos na acolhida dispensada ao Fraw Jutta porque, no fundo, não há melhor critério
de «literalidad» que o consenso da recepção; quer dizer, um texto é literário quando lhe trata
como tal.
Fraw Jutta (por volta de 1480)
Para conhecer as circunstâncias que rodearam a redação do Fraw Jutta, não temos mais
remedeio que confiar em prefácio do editor de 1565, Jerónimo Tilesio, da Silesia, e diretor além da
reforma luterana na cidade do Mulhausen, na Turingia. Segundo Tilesio, a obra foi escrita e
representada em 1480, e seu autor era um sacerdote («Mespfaffe», diz Tilesio), chamado Dietrich
Schernberg, natural de dita cidade imperial do Mulhausen. Ao parecer, Schernberg deixou um
manuscrito autógrafo da obra, que é o que logo utilizou o próprio Tilesio e a linguagem empregada
no Fraw Jutta confirma essa datação. Do mesmo modo, supõe-se que o drama formava parte
dessas peças teatrais que se representavam com motivo do carnaval cristão. De acordo com o
modelo medieval do mistério ou da moralidade dos personagens, o texto, bastante largo (1.724
versos), compõe-se de uma série de diálogos estáticos separados entre si por breves indicações
cênicas sobre os gestos, os acontecimentos e as mudanças de cenário.
O primeiro quadro apresenta o conselho do diabo; Lúcifer convoca a seus coroinhas: Vnversün
(transcrição do Universum, o Universo), Lillis (avó de Lúcifer), Satanás e Spiegelglanz. A seguir
aparecem diabos de segunda categoria: Fedderwisch, Nottir, Astrot e Krentzelein. Lúcifer recebe a
comemoração da Jutta (cuja história anterior e projeto desconhecemos). Depois, retornamos à
Terra para ver como Jutta arrasta a seu amante Clericus à aventura; disfarçada de homem, faráse chamar Johann von Engelland e ambos irão estudar a Paris. A ascensão da Jutta está
representada por uma cena breve que se desenvolve entre a Jutta, Clericus e um professor
(Magister); no curso de um diálogo rápido, abonam-se os emolumentos e se fixa o programa
(trata-se sempre de artes liberais, com especial atenção à lógica por quanto o domínio desta
última permite manipular e transformar a lei em benefício próprio); o lacaio do Magister viu os dois
amantes com o traje doutoral, ao objeto de que possam partir com as honras e com o dinheiro
(«mit soldem um ehren»). Ato seguido, Johann e Clericus oferecem seus serviços à cúria,
representada por quatro cardeais que lhes conduzem até a Papa Basilio; o pontífice recebe sua
comemoração e lhes outorga o cardenalato. Uma indicação cênica assinala a morte da Papa,
antes do diálogo-conclave que designará a Jutta como Papa. No seguinte quadro aparece um
senador («Rathsherr») romano que leva ante a nova Papa Johann a seu filho poseído pelo diabo,
para que o pontífice o exorcise. Jutta, assustada, tenta confiar a tarefa a seus cardeais, mas
Vnversün, que habita no corpo poseído, desvela à assembléia o segredo da Jutta: mulher, leva
um filho em seu seio («Nu hóret zu alie gleich / Die hier in diesem saal gesamelet sind! / Der Bapst
dá tragt fürwar ein Kind! / Er ist ein Weib ind nich ein Mann»). Esta cena reproduz a versão
franciscano-turingia da fórmula diabólica das seis P, analisada no capítulo IV, da que toma tanto a
declaração diabólica como o marco (ante uma assembléia de prelados). Esta extrapolação cênica
tem aqui sua importância, posto que indica a permanência de uma tradição turingia que se
remonta a sua vez à Crônica do Erfurt de finais do século XIII, à margem do desenvolvimento
europeu da lenda, quando tínhamos a impressão de ter perdido esse rastro a princípios do século
XIV, depois do Sigfrido do Balhusen, e das Flores temporum. De fato, a vida germânica da Juana
prosseguiu entre a Baviera, de onde provavelmente lhe vem o nome da Jutta, e Turingia, nessa
zona limítrofe da Boêmia hussita e da Sajonia que abraçará o luteranismo. Por outra parte, o
episódio reflete um processo de criação «literária» e/ou «popular», da fórmula à cena que lhe
confere sentido, de acordo com os mecanismos próprios da epopéia.
Mas retornemos rapidamente às aventuras da Juana. Deixando a Roma presa de uma comoção,
Schernberg nos translada ao Céu: Cristo («Salvator») comunica a sua mãe sua decisão de
recuperar a Juana. Então o anjo Gabriel propõe a Jutta a eleição entre a expiação imediata e a
condenação eterna. Encontramos aqui o segundo episódio da tradição germânica e/ou popular
(localizada na Baviera, mas também na Cataluña do século XIV, como recordaremos), que explica
o escândalo público da iluminação como confissão. O qual nos convida a meditar sobre as
correntes subterrâneas da religiosidade, pois o que triunfa nesta encenação do escândalo público
é o conceito da confissão não sacerdotal mas salvadora, que em seu momento será um dos
componentes essenciais do luteranismo.
depois da eleição da Jutta, chega a Morte e justifica a sentença, cujo objetivo principal concerne a
transgressão da partilha sexual dos papéis. Jutta invoca precedentes ilustres: Adão, Pedro,
Tomam, Pablo, Mateo, Teófilo, María Madalena e Longino traíram, renegado ou combatido a
Cristo antes de ser salvos por sua misericórdia. depois de invocar a María, Jutta ilumina a seu
filho e morre. Imediatamente, o diabo Vnversün leva sua alma ao inferno, onde, com o Nottir,
conduz-a ante o senhor do lugar, Lúcifer. A alma da Jutta se debate entre os diabos, enquanto
que em Roma, os cardeais, consternados, decidem mandar construir uma cadeira especial para
que, a partir de então, fique estabelecido que o candidato é uma galo e não uma galinha («Ob er
são ein hão oder ein henne»). O quadro seguinte nos mostra como Jutta, no inferno, e para poder
sair do Purgatório («Fegfewr»), invoca à Virgem e a São Nicolás, quem a sua vez imploram ao
Salvador. Esta dobro súplica tem êxito, e Jesus envia ao Miguel para que libere a Jutta, quem é
recebida filialmente no Céu pelo próprio Jesus («Bis wilkomen du liebste Tochter mein»)*.
Apesar do tardio de sua data, o texto do Schernberg nos remete ao milagre de corte medieval, e
seu mesmo tema nos recorda o Milagre do Teófilo (personagem chamado pela própria Jutta),
escrito pelo Rutebeuf no século XIII . A intervenção cíclica dos demônios, muito do gosto do
público medieval, assinala sorte continuidade, enquanto que o tom satírico resulta bastante
discreto (sobre os doutores e sobre a cúria), por não dizer que vizinho na estupidez (pensemos a
este propósito nos ataques antipapistas da obra Concílio da Basilea, representada em 1434). Não
obstante, a novidade que comporta Fraw Jutta (com independência da leitura luterana que sugere
Tilesio em seu prefácio) radica no deslocamento dos gêneros: a técnica teatral, muito popular, do
milagre ou da moralidade acolhia um tema de brincadeira ou de idiotice. Esta mescla de gêneros,
que integrava o tema da impostura romana na categoria mais religiosa do teatro, anunciava
transtornos ainda mais graves na vizinha Sajonia.
O purgatório literário da Juana (1480-1777)
Juana tivesse podido desenvolver sua carreira literária a partir da edição do texto do Schernberg
pelo Tilesio, e ocupar um lugar no grande florescimento do drama barroco alemão («Trauerspiel»)
que tanto prosperou no meio luterano. Mas a intervenção de um autor quase contemporâneo do
Tilesio foi decisiva. trata-se do grande polígrafo Juan Sachs (1494-1576), introdutor na Alemanha
da «tragédia», e que se ocupou da papisa em 1532 e em 1558, sucessivamente , com uma
narração que daria lugar não a uma elaboração dramática (tragédia, comédia, Trauerspiel), a não
ser a uma canção, e logo a uma singela «história» mais na linha do panfletario que do literário, em
que Juana aparece vinculada às Papas e aos prelados (Juan XII, Silvestre II, Udo do
Magdeburgo), objeto à maturação de brincadeira por parte do mesmo Sachs em outras
«histórias». Assim, entre 1480 e 1777, Juana só pôde viver no mundo da controvérsia. Podemos
entender que o repúdio romano expulsasse a Juana do panteão literário, mas o silêncio
protestante não resulta tão fácil de explicar e supomos que a violência dos debates em torno da
existência da papisa impediu que se produzira a distância suficiente, quer dizer a neutralização
necessária da figura, para a fabricação de um personagem. O sentido literal da vida da Juana
importava muito para favorecer crenças em sentido metafórico, o qual nos permite extrair uma lei
dos momentos descontínuos que balizam a vida literária da Juana (1360, Boccaccio; 1480,
Schernberg, e 1777, Borde): estes momentos correspondem a uma vazante dos investimentos
polêmicas (depois do uso franciscano da Juana, depois dos debates conciliar surtos do Grande
Cisma, e depois do abandono da papisa por parte dos protestantes, quem só a utilizou durante
algumas décadas depois do golpe calvinista atirado pelo Blondel). A «Apoteose» proclamada pelo
Tilesio deve, pois, reduzir-se a seu sentido polêmico e irônico, e não interpretar-se como o acesso
à glorificação literária, embora dito título nos recorde o universo do Trauerspiel. Em conseqüência,
apesar de sua sedução cronológica, a data de 1565 carece de importância, pois na verdade
Juana jamais conheceu Renascimento algum.
À vista do exposto, parece necessário saltar por cima de três séculos para seguir a Juana pela
literatura. A neutralização do tema de sua existência brindou a Juana muito tardiamente as
obrigado do jogo literário, sem dúvida porque a anedota adquiriu, durante o anticlerical século
XVIII, um estatuto sério, embora fora de segundo grau. Para os filósofos, o episódio se
apresentava como um objeto de disputa irrisória e grotesca entre dois fanatismos falsários (o
catolicismo e o protestantismo). A atitude filosófica se traduz, pois, em um desprezo dos efeitos
fáceis que proporciona a fábula, e em um enfrentamento dos adversários; qualquer uso sério ou
literário do relato tivesse abolido a superioridade adquirida mediante esse cepticismo desdenhoso.
A partir de então, a condescendência irônica e racionalista dos filósofos classificou a anedota
entre os contos supersticiosos. A Enciclopédia*, por exemplo, situa a história entre os chamados
contos de velha: «É depois de Leão IV, quem morreu no 855, onde se coloca à falsa Juana. No
Sonho do velho peregrino, escrito pelo Felipe do Mezières em 1385, reina-a Verdade conta no
capítulo 1j do livro I, que um dia uma velha lhe disse "Nesta corte de Roma eu vi reinar a uma
mulher que era da Inglaterra". A velha não soube explicar bem o resto de seu conto e a reina
Verdade não lhe deu crédito, como tampouco o deu a outro conto da mesma velha a respeito de
um bispo do Besançon quem, conforme dizia, foi transportado a Roma pelo diabo» .
Mas já Bayle, em seu Dicionário (1694-1696), tinha adiantado essa distância que os pensadores
ilustrados quiseram pôr entre o relato e seu uso. depois de uma análise dos argumentos que
sustentam a existência da papisa, Bayle demonstra que o uso do relato reveste maior importância
que seu conteúdo para a Razão, a qual, desde sua altura, pode entreter-se com as argúcias da
história e da controvérsia; de fato, os protestantes «tiveram que abandoná-la (a papisa) e não
utilizar toda sua indústria para prolongar a disputa, posto que com isso ensinavam a seus
adversários o método de criticar todos os fatos» .
Por sua parte, Voltaire, no «Catálogo dos imperadores e das Papas, etc.» (último expoente do
modelo Eusebio-Jerónimo), com o que conclui seu Ensaio sobre os costumes (1756), acrescentou
por mor do sorriso cético o prazer de uma explicação do engano, que toma a sua vez do Baronio.
Assim, e a propósito do assassinato do Juan VIII (882), Voltaire assinala: «Não é mais certo que a
história da papisa Juana. Lhe atribuiu o papel desta papisa porque os romanos diziam que não
tinha mostrado mais coragem que uma mulher contra Focio». Sem dúvida, esta postura vantajosa
dos filósofos é a que liberou a Juana de correr a mesma sorte funesta que recaiu sobre sua
virtuosa prima, Juana de Arco, a quem Voltaire trata com bastante grosseria (não isenta de graça),
em sua Donzela (1762). A fábula da papisa não pertencia à história, que se podia e devia
parodiar, a não ser à história da história, onde se encontra esses outros látegos (católicos e
protestantes) que fustigam a nossa Juana.
Por outro lado, dificilmente podia o relato encontrar seu sítio entre os gêneros do século XVIII, isto
é antes de que se inventasse a novela histórica, que derruba a fronteira entre o sério e a fantasia,
entre a autenticidade e a ficção. O conto necessitava mais liberdade, enquanto que o poema
burlesco requeria a sua vez uma matéria mais autêntica para a paródia. Entretanto, o gênero
dramático, imensamente variado, sim sabia manipular a invenção e a história, mas já conhecemos
os limites que a censura impunha a uma produção que não podia existir sem ser consumada
publicamente; assim, por exemplo, até a Revolução esteve proibido que o hábito eclesiástico
aparecesse em cena. Mas um desejo expresso pelo Voltaire em 1764 anunciava já o triunfo
próximo da Juana nas pranchas: «Sem dúvida chegará um dia no que tiraremos seus Atreos e
seus Teste com o propósito de fazê-los odiosos» . Nestas palavras advertimos com claridade que
a reserva condescendente e racionalista não poderia resistir durante muito tempo as diversas
feitas ondas do anticlericalismo, mescladas à antiga corrente do galicanismo, e inclusive
reforçadas com o exercício ritual que comporta o assassinato do Pai jesuíta...
A papisa clandestina do Carlos Borde (1777)
Mas antes da explosão revolucionária, a tentação burlesca que subjazia na tática ou na colocação
racionalista produziu a primeira Papisa Juana moderna da literatura, com o poema narrativo do
Carlos Borde, publicado anonimamente com dito título, sem lugar de edição, em 1777, e logo no
Leiden em 1778. Com este comprido poema cheio de picardia, que só conheceu uma difusão
clandestina na França, encontramo-nos na marginalidad da literatura das Luzes. Não obstante,
pudemos conhecer melhor as características dessas zonas culturais graças aos trabalhos do
Robert Darnton, quem demonstrou como, sob uma capa estabelecida de escritores consagrados,
o pensamento ilustrado engendrou uma classe de autores mais escuros, cuja situação ajudante e
desprezada lhes empurrou a expressar seu rechaço do Antigo Regime em términos violentos, e
com freqüência inclusive pornográficos .
Sua produção se mescla com as obras principais dos filósofos, nessa corrente difusora que tem
sua origem na Suíça e nos Países Baixos. Assim, encontramos bem situada a uma Papisa Juana
entre os livros encarregados pelo livreiro Mauvelain do Troyes, por volta de 1780, à Sociedade
Tipográfica do Neuchâtel, cuja lista conhecemos graças ao chamado R. Darnton . Esta Papisa só
pode ser a de Borde, a falta de outra conhecida. O passo do Leiden ao Neuchâtel não apresenta
nenhuma dificuldade. A Papisa figura na lista dos 48 livros mais pedidos pelo Mauvelain, com um
total de 44 exemplares encarregados em seis ocasiões, o que a situa no quarto posto de êxitos,
depois Dos Fastos do Luis XV (84 exemplares), As Musas do lar da ópera (46 exemplares) e a
Crônica escandalosa (45 exemplares), três títulos que correspondem a sua vez a três obras
pornográfico-políticas, que se situam em vendas muito por diante das escassas obras sérias
encarregadas pelo livreiro do Troyes (História filosófica do Reynal, 18 exemplares, e as Obras de
La Mettrie ou de Helvécio, 16 e 3 exemplares respectivamente).
A carreira farto escura de Borde confirma sua pertença a esse contingente de escritores violentos
e oportunistas que se desembrulham à sombra das Luzes. Carlos Borde (1711-1781), filósofo de
talha menor e provinciana (concretamente do Lyon), beneficiou-se da boa acolhida que JuanJacobo Rousseau dispensou a seu Branca do Borbón (1736), antes de lhe atacar com motivo dos
Discursos (1750-1762), e de aproximar-se do Voltaire, quem lhe fez uma visita em sua casa das
Delícias no Lyon, em 1765. A inspiração anticlerical de sua obra só aparece muito tardiamente,
como se o choque das táticas de aproximação do Rousseau e do Voltaire tivesse radicalizado a
Borde. De fato, isto é o que aconteceu a muitos autores que ficaram na soleira do templo das
Luzes. Em 1766, Borde inclui um Catecismo no Evangelho da Razão do Dulaurier, e em 1783,
dois anos depois de sua morte, apareceram seus Versos sobre o breve da Papa Clemente XIV
quem defende a castração em seus estados. Resulta compreensível, pois, que Borde não se
detivera ante as considerações enunciadas mais acima sobre a oportunidade de falar da papisa.
Por outra parte, um brilho de gênio lhe permite a Borde franquear as reticências deontológicas ou
táticas que tinham presidido a atuação do Voltaire. Ao tempo que se ocupa do episódio da Juana
com absoluta liberdade e abundância de licença literária, deixa cair, como quem não quer a coisa,
na parte inferior das páginas, algumas nota eruditas que dão a entender que, se esta fantasia
desbocada ressurge no âmbito da ficção, não por isso carece de fundamento; desta maneira, a
narração consegue atrair-se aos setores mais irredutíveis do protestantismo, sem entregar de tudo
a sua argumentação apologética. O recurso da nota devolve o episódio ao contexto equívoco no
que se manteve até o presente; quer dizer, que não há fumaça sem fogo. A história não é nem
verdadeira nem falsa, mas sim significativa, e sua origem poderia ser verídico; a Grande Rameira
de Babilônia se converte assim em uma mulher encantadora de vida alegre. O método de Borde
inaugura a entrada da Juana no mundo da ficção: uma fantasia envolta em uma malha de
veracidade. Por sua parte, Casti, Rhoides e Durrell imitarão esta forma de exposição.
O poema, em dez cantos, paganiza os costumes romanas, utilizando as formas do gênero
burlesco, como o fará, a finais do século, e com imenso talento, o cavalheiro do Parny em sua
Guerra dos deuses. Uma assembléia de Santos e de seres celestiales celebra conselho no
firmamento para remediar a triste situação pela que atravessa a Santa Sede, quando Leão IV
morre a conseqüência da sífilis, «Fruto muito amargo de um engano agradável». Miguel interpela
ao Pedro: «Até quando, nosso leal amigo Pedro / Suportará sentado em sua cadeira / Dos
pérfidos um montão de deslealdades.» despacha-se ao Rafael a Roma para a abertura do
conclave, enquanto que as santas mulheres deliberam por sua conta no céu, para reivindicar seu
acesso à a Santa Sede, já que, diz Mónica, «Não há... nem honra nem dignidade / Onde nossa
pretensão não seja de direito pleno.» O conselho se interessa então pela Juana, cuja carreira
canta o poeta: filha de sacerdote, apaixona-se pelo Renato Fulda, jovem monge com o que quer
compartilhar a vida, vestindo ela também o hábito de São Benito; no curso de suas peregrinações,
tem que separar-se do Renato, e, lhe acreditando morto, parte ao Tívoli, onde leva uma vida
retirada perto do sepulcro que levantou em memória de seu amante. Enquanto isso, as santas
mulheres enviaram uma embaixada a São Pedro, quem acessa a sua petição e sabe convencer a
sua vez ao conclave para que este recorra ao santo monge Juan. O conclave envia ao Tívoli ao
cardeal Marcelo, que não é outro que Renato Fulda; os amantes se reconhecem, e retornam a
Roma depois de ter consultado os oráculos. O conclave escolheu ao Juan, mas aplicou de novo a
«lei da poltrona», cadeira perfurada para a verificação da virilidade das Papas. Marcelo, bem
aconselhado pelas santas mulheres, recorreu a um expediente muito comum na literatura libertina:
«Nos conventos mais renomados / Para sua clausura e seus castos ferrolhos / Existe uma arte
que imita essas jóias / Frescas e vermelhas que sempre entre vós / Aos olhos do sexo mereceram
a maçã.» Assim, e graças ao artifício, Juana é proclamada Papa.
Como pode apreciar-se, Borde introduz uma mutação decisiva na narração, liberando à
anedota das restrições que impõe a história, ao objeto de utilizar o relato como mero pretexto para
confeccionar uma fantasia de vadios.
Esta narração encontra seu sítio em sua época; por uma parte porque, conforme acabamos de
ver, o recurso da fantasia picante se apresenta como campo literário substitutivo aos «Rousseau
du ruisseau»*; e, por outro lado, porque no século XVIII o gênero da ficção abunda em
personagens e cenários eclesiásticos (veja o Porteiro dos cartujos, e outras mil capuchinadas). A
história da Juana, cujo distanciamento no tempo está sublinhado pelas notas de Borde a pé de
página, permitia, como os contos licenciosos orientais, o prazer da transposição, do anacronismo
e do alotopismo a gosto do autor. Porque a história, como lhe ocorre ao estilo heróico, esfuminha
(quer dizer, vela e desvela) a crueldade das situações. Assim, com estas duas ancoragens
históricas da narração galante da Juana (isto é, a eleição ideológica e o gênero licencioso),
inaugura-se uma nova tradição.
Mais adiante teremos ocasião de nos deter nas congruências anticlericales e libertinas que
suscitou Juana durante a Revolução francesa, mas antes devemos atender a expansão européia
da papisa, à luz severo do Norte, e à luz cálida do Sul.
As luzes germânicas da Juana: Winkopp (1783)
Pouco tempo depois de Borde, em 1783, Pedro Adolfo Winkopp publica no Leipzig uma Papisa
Juana criada novelas, inspirada na polêmica narração do Egberto Grim {Pauselicke Heiligheid...),
que tinha aparecido em 1635 em holandês.
Winkopp (1759-1813), autor esquecido, teve uma trajetória vital interessante, bastante
representativa do impacto alcançado pelo movimento filosófico fora da França, e em uns
contextos onde a ambição iluminada podia desenvolver-se com maior amplitude que na própria a
França. Natural da Sajonia luterana, mas de origem católica, abandonou, sendo jovem ainda, seu
convento beneditino do Petersberg, perto do Erfurt, na Turingia, e entre 1780 e 1785 publicou uma
série de novelas {Serafina, Faustino, O prior Hartung e a Papisa Juana), cuja ação tinha lugar nos
odiosos e opressivos conventos. Estes textos produziram tal ruído, que desencadearam uma
pesquisa oficial sobre a vida nos monastérios. Continuando, Winkopp empreendeu a carreira de
publicitário, fundando um Observador Alemão (Der Deutsche Zuschauer), no Zurich (1785-1789).
Em 1786 foi detido por causa da virulência de seus escritos, e conduzido desde a Basilea até os
cárceres do arcebispo da Maguncia, cidade onde, apesar de sua situação, prosperou; depois de
um intento frustrado por converter-se em comerciante de livros, obteve cargos oficiais na mesma
corte da Maguncia. Em 1790, capa de novo no Zurich um periódico de estatísticas sobre a
Alemanha renana, e com motivo da invasão republicana da Renania se converte no observador e
propagandista da Confederação Renana até sua morte, em 1813 .
As luzes italianas da Juana: Casti (1804)
Juana, sempre brilhante, desfrutou no outro limite da Europa das cuidados literárias que lhe
dispensou um autor muito notável, o abate italiano João Batista Casti (1724-1803), personagem
equívoco e provocador, expoente ativo da Ilustração, que percorreu toda a Europa, desde Malte
até a Rússia, desde o Estambul até Paris, travando conhecimento com a Casanova, Goethe,
Napoleón Bonaparte, ao tempo que escrevia óperas para o Paisiello e Salieri, e foi
sucessivamente poeta pensionato pelos grandes duques da Toscana, membro do corpo
diplomático austríaco na corte da Catalina da Rússia, poeta na corte do Francisco II da Austria e
anfitrião dos irmãos Bonaparte em Paris, apesar de seu antibonapartismo virulento .
A Papisa do Casti apareceu em italiano em Paris, em 1804, um ano depois da morte do abate, em
uma recopilação de Novidades em verso, que recolhia e completava uma primeira edição
publicada em Roma, em 1790, confeccionada com textos redigidos desde 1766. A recopilação,
dedicada às mulheres que «sabem acompanhar à virtude com a razão», refere-se de uma parte à
antiga tradição do Boccaccio (neste caso como autor do Decamerón e não das Mulheres
deslumbrantes), e do Masuccio (relatos narrados em uma sociedade de mulheres, prazeres
furtivos, damas ardilosas, «frati bordellai», etc.), e de outra ao relato erótico-filosófico do século
XVIII, manifestando uma profunda hostilidade para o poder temporário das Papas (concretamente
na notícia sobre «A bula do Alejandro VI») e para a política jesuíta, ao tempo que exalta o
divórcio, a liberdade sexual e o prazer, contra a imposição religiosa. Como no caso de Borde,
encontramos aqui certo gosto pela transposição, presente já no Poema Tártaro (1783), onde a
evocação medieval da Rússia mongola encerra uma denúncia sobre a Catalina II.
A narração do Casti emprega os mesmos procedimentos burlescos que a de Borde, mas
conserva mais fidelidades para com a vulgata medieval, incluído o triste fim da Juana, apesar de
um aplique a esta última parte, que compreende uma pergunta cômica sobre o futuro da Juana no
inferno, onde lhe Dêem não a viu, e um pensamento «para a pobre pequena alma do pequeno
bastardo papal» («Alia povera animetta / Do picciol pontifício bastardello») .
Esta trama clássica está enriquecida com uma grande erudição não isenta de malícia por parte
do autor, tanto no que se refere aos contextos históricos como à própria historiografia da papisa,
erudição que se distribui com o passar do texto e também das abundantes nota. Este fundamento
erudito permite uma amplificação saborosa e satírica, esboçada sobre o modelo sério e polêmico
que distingue às versões do Spanheim e Lenfant: assim, o pai da Juana resulta ser um sacerdote
inglês que tinha vindo ao continente para evangelizar Sajonia, o que deu ao Casti a oportunidade
de referir-se indiretamente à sangrenta conversão empreendida pelo Carlomagno na região. Os
novelistas contemporâneos (Rhoides, Jarry, Durrell) copiaram a sua vez esta passagem. Desta
maneira, a genealogia da Juana multiplica a hilariante temática anticlerical, já que a mãe da Juana
seria uma tal Hildegarda, de origem irlandesa, que teria sido raptada a sua vez de sua terra natal
por um cenobita, antes de conhecer sacerdote inglês. A menção de Atenas como lugar de estudo,
que tanto incomodava aos historiadores, converte-se aqui, sutil e prerrománticamente, em uma
espécie de viagem de iniciação amorosa e artística, em uma peregrinação às ruínas da
antigüidade.
Mas o rasgo mais destacável do relato do Casti é a total secularização da Juana, quem se
apresenta com uma mescla da energia herdada do Boccaccio e do gosto vivo e alegre pelo
prazer. junto com seu amante Fulda, desfruta de uma existência singela, em que os dias de
estudo alternam com as noites de prazer, até que ambos se separam de mútuo acordo, sem
drama, para entregar-se cada um por sua conta a novos desejos e a novos descobrimentos. Fulda
se dirige ao Oriente e chega até o Bagdad; enquanto que Juana se volta para o Ocidente e
alcança Roma. Em última instância, a vida de ambos representa a própria existência do Casti,
dedicada ao prazer e a viajar. A chegada da Juana a Itália proporciona ao Casti a oportunidade
para deplorar a decadência de uma Itália que impacienta ao autor pelo arcaísmo que a invade,
quando na França se vive a Revolução e a chegada dos republicanos. À vista da cadeira de São
Pedro, Juana se dá conta de que constitui um objetivo digno de seus talentos, embora o êxito lhe
aborrece; assim, pois, toma por amante a um cardeal que a enche com seu vigor: «A câmara
então foi sacudida. / De acima caiu um Cristo que se rompeu em pedaços. / A uma Virgem grafite
lhe coloriram as bochechas. / O retrato de São Pedro se enegreceu. / Mas eles continuaram sua
carreira.» A iluminação final porá fim a esta dita romana, não sem que antes Fulda, que tinha
chegado a Roma, assumisse em sua condição de amante ciumento, a visão luterana da Juana:
«Certamente é de ti de quem fala o Apocalipse» .
Detivemo-nos um momento comprido na notícia do Casti porque, além de seu grande encanto,
constitui o protótipo da brincadeira erudita que, até nossos dias, feito-se cargo da papisa. Mas que
o leitor não se preocupe, pois não lhe fatigaremos com outros exemplos novelescos, entre outras
coisas porque quase todos copiam ao brilhante Casti, sem superá-lo e nem sequer sem igualá-lo.
Não obstante, o importante é que o passo de Borde ao Casti compreende um momento capital de
nossa genealogia literária, o da Revolução Francesa. Voltemos para ela.
Juana no anticlericalismo teatral (janeiro 1793)
Em menos de um mês (23 janeiro-22 fevereiro 1793), Juana emprestou seu nome e sua história a
três peças de teatro. A Revolução tinha liberado por completo à produção dramática, levantando a
censura e suprimindo os monopólios de repertórios (1791) ; os resultados foram aplastantes:
escreveram-se 1.500 obras. Só no ano 1792-1793, quando aparecem nossas três papisas,
representam-se entre 200 e 300 em uns quarenta teatros parisinos.
O anticlericalismo, tão enraizado nas consciências burguesas e populares, ajudou a esta nova
liberdade: o famoso Carlos IX do José Chénier pôde por fim representar a figura odiosa do cardeal
da Lorena. No momento da supressão das ordens monásticas e da Constituição civil do clero
(1790), o repertório teatral recebeu uma verdadeira avalanche de obras antirreligiosas. A antiga
fascinação erótica pelo claustro estalava ao tempo de sua abertura simultânea, como aparece no
canto do Silvio Maréchal em 1790: «Saiam, dancem, divertios / Divertios, jovens monjitas! /
Façamos juntos em voz baixa / O ofício do dia e da noite» . Em poucos meses, aparecem obras
como O convento (Laujon), Os Rigores do Claustro (Fiévée e Berton), As Religiosas, As
Religiosas Liberadas, As Irmãs do urinol, O convento ou os votos forçosos (Olimpio do Gouges), A
Comunidade de Copenhague (Bertín d'Andilly), durante 1790, e O marido diretor ou o
desalojamento do convento (Flins dê Oliviers), Os capuchinos, Amela ou o convento, As vítimas
enclausuradas (Monvel), durante 1791. «Todos os teatros pequenos ou grandes, conta o autor
Fleury, logo estimaram necessário dispor em seu figurino de casula, sobrepeliz, solideo e do
cordoncillo de São Francisco, entre outros trajes... Nós mesmos tivemos um cardeal no Carlos IX,
um cardeal no Luis XII, cartujos no Conde do Domminges, e um grupo de bonitas monjas no
Convento ou os frutos da educação».
Neste contexto, a história da Juana podia representar-se perfeitamente no cenário, embora é
importante decantar com a maior exatidão possível as razões precisas de sua apresentação em
público, pois se encontram na encruzilhada de dois processos determinantes: o da história política
e o da biografia social de seus autores. Uma vez mais, Juana nos permite entrar em um universo
histórico singular.
O momento da Juana
Em 1793, a história da papisa aparece como uma arma resgatada de mãos dos protestantes, no
combate contra o Papado. Em efeito, desde 1791-1792, a Papa se converteu em inimigo
declarado da República: Pio VI condenou a Constituição civil do clero, e agora alberga aos
sacerdotes refratários em seus Estados, enquanto que sem pertencer à Coalizão a assinava com
a garantia de seus breves. A anexação do Aviñón decantou a postura pontifica a favor dos tiranos,
e este alinhamento com os soberanos absolutos constitui o tema central da famosa obra do Silvio
Marechal, O Julgamento final dos reis, que se representou nove meses depois de nossas três
papisas, concretamente em 18 de outubro de 1793. Em dita obra, a Papa é deportada pelos «sãsculottes» a uma ilha, onde perece sob as cinzas de um vulcão, em companhia do imperador, dos
reis da Inglaterra, da Prusia, da Rússia, de Nápoles, etc. Entre as capuchinadas de 1790-1791 e a
violência do outono de 1793, nossas três papisas representam um término intermédio.
É possível que esta rajada de papisas se desencadeasse como resultado de uma circunstância
particular. Em 13 de janeiro de 1793, Juan do Bassvill, secretário da legação francesa em
Nápoles, dirige-se a Roma para exigir que a Papa admita os emblemas revolucionários sobre a
porta do consulado francês; mas no curso de uma revolta, cuja responsabilidade a opinião
francesa atribuiu ao cardeal Zelada, secretário de estado do Vaticano, Bassvil resulta morto; a
notícia chega rapidamente a Paris, onde a Convenção se indigna e a rua ruge. Um revolucionário
italiano, Vicente Monti, compõe imediatamente um comprido poema em quatro cantos, à memória
do mártir, titulado os Bassvilliana .
Em 26 de janeiro do mesmo ano, representa-se no teatro da rua Feydeau a primeira Papisa, a do
Léger, em uma época em que se compunha uma comédia breve em poucos dias. A introdução do
Defauconpret a sua própria papisa, impressa em janeiro de 1793, confirma sorte precipitação, pois
sustenta que seu papisa, escrita desde fazia algum tempo, tinha sido rechaçada por três teatros
(Feydeau, Teatro Francês Cômico e Lírico e Vaudeville), e que a publica porque ouviu falar de
outras duas obras sobre o mesmo tema. Defauconpret sustentará suas pretensões de
precedência, inclusive depois da representação que obteve finalmente no teatro Moer, em 23 de
fevereiro de 1793, titulando a segunda edição de seu texto com o alusivo A maior das papisas .
Juana na carreira de um autor-ator. Pedro Léger
Se tivermos em conta os conteúdos destas ficções dramáticas (pelo menos das duas que
chegaram até nós) e a posição social de seus autores, advertiremos que o antipapismo benigno
de janeiro de 1793 representa uma forma de compromisso cultural e político.
A obra do Pedro Léger evacúa qualquer lembrança turva de uma transexualidad e se situa no
paradigma das comédias ligeiras, nas que os amantes separados e disfarçados se encontram por
azar. Juana, prometida do Florello, teve que fugir disfarçada para escapar de um pretendente
desprezado. Florello a encontra no momento mesmo de sua eleição ao pontificado. Justo depois
da proclamação de seu acesso à a Santa Sede desvela publicamente seu segredo e declara seu
propósito de ser Papa e casar-se com o Florello. Coerente e revolucionária, Juana abole o
celibato dos sacerdotes e suprime os dízimos. Com um ligeiro tom burlesco, Léger se refere
amavelmente aos cardeais Gireplante, Rolando, Jejunio e Boivin, mas em realidade a hora
pertence sobre tudo ao feminismo e à exaltação da união dos corpos, na linha das capuchinadas
que presidiram a produção teatral de 1790-1791: «E se eu quiser hoje, diz Juana, em meu novo
estado / A meu sexo enoblecido dar um novo resplendor»... «O celibato é a fonte infinita do vício»
.
Pedro Léger (1760-1823), produto clássico da pequena burguesia (seu pai era cirurgião no
Barnay), levava durante o Antigo Regime a vida precária de um intelectual de segunda fila,
primeiro como abate de capa e logo como escritor. A Revolução lhe permitiu acessar à fila de
autor e de ator de êxito. Sensível a todas as tendências do momento, como se verá a seguir, foi
um dos primeiros em subir a um membro do clero à cena, no órfão e o pároco (1790). Esta peça
breve, dedicada a um sacerdote, não tem nada de um arrebatamento anticlerical, a não ser
justamente o contrário; apresenta a um valente pároco de aldeia que aceita de bom grau e sem
reservas a Constituição civil do clero, assim como o desaparecimento dos dízimos e dos
privilégios. O mau da obra é Antonio, o granjeiro, quem tenta abusar da generosidade ingênua de
Augusto, um jovem órfão criado pelo pároco, mas herdeiro virtual de uma fortuna. Augusto, por
pudor, dissimula um empréstimo que tem feito ao pároco, quem de repente se ficou sem recursos,
e a conseqüência de uma série de qui proquods Agustín passa por ladrão a olhos de seu rico
benfeitor, o senhor Dorval, ao tempo que empenha sua herança eventual com o Antonio, o
desenlace desmascara ao Antonio e reconcilia ao senhor Dorval com Augusto sob o olhar
bondoso do pároco.
Com o concurso de outros atores-autores, Léger criou em 1792 o teatro de opereta ou vodevil .
Tempo atrás, nos anos 1780, os diretores da empresa, o cavalheiro do Piis e o compositor
Gradeei tinham querido restaurar o gênero francês do vodevil, ilustrado pelo Favard e desprezado
a favor da ópera italiana. depois da liberação do teatro, Piis e Gradeei quiseram relançar a idéia
do vodevil com o antigo repertório, assim como com novos sainetes que dariam uma crônica
satírica da atualidade do momento. A municipalidade outorgou sua permissão e uma antiga sala
de baile perto do Louvre fez sítio ao «Vaudeville», que após se representou ali durante 46 anos. A
sala se converteu rapidamente em um dos teatros mais populares de Paris. Mas o governo
revolucionário suspeitou logo do quadro de atores, tanto pela sátira da que faziam ornamento
permanente, como pela situação pessoal de Gradeei, um de cujos irmãos servia nos guardas da
rainha.
Em 1792, Léger proporcionou aos revolucionários motivos mais concretos de acusação contra os
atores do teatro do vodevil. Em efeito, escreveu uma obra titulada O autor do momento em que se
mofava ferozmente do Palissot, e sobre tudo do José Chénier, autor predileto dos patriotas por
seu Recife Graco. Léger reincidiu imediatamente em seus alegações por escrito com um
manifesto, ao tempo que Gradeei anunciava a representação de outra obra incendiária, A
Revanche. A quarta velada do Autor de um momento se apresentou ante um público realista, que
tratou brutalmente aos escassos contestatarios jacobinos ali pressente; uma contramanifestación
de patriotas provocou a chegada do Dantón e do Pétion para restabelecer a ordem, e a
representação se saldou com a morte de três espectadores (um soldado confundido com um
jacobino e dois pajens da rainha). O resultado da velada se traduziu no restabelecimento da
censura, depois de mais de um ano de liberdade total nos teatros. Aos poucos dias do sucesso,
Gradeei teve que apresentar suas desculpas ao público e queimar o manuscrito da obra do Léger
.
Entretanto, Léger não tinha nada de ideólogo e continuou sua carreira no gênero da paródia
atacando, pouco depois do Autor de um momento, a um Lovelace representado no teatro da
Nação, com uma obrita titulada Gil Lovelace no mais puro estilo da sátira literária. O resto de sua
vida como autor-comediante reflete de uma vez seu oportunismo e sua fidelidade ao ofício que lhe
tinha facilitado a liberação revolucionária do teatro. Em 20 de setembro de 1793, Léger foi
encarcerado em companhia de Gradeei e do Piis por ter insistido em representar o Autor de um
momento, e foi posto em liberdade em janeiro de 1794. Compôs imediatamente, e em honra da
República, uma Apoteose do jovem Bara. Sempre dentro desta linha laudatória, escreveu com
Gradeei A década feliz, de corte muito revolucionário, e logo, com o mesmo Gradeei e Lecouppey
da Rosiére O surdo curado ou Os você e os você, comédia ligeira que elogia o tuteo republicano.
Em 1799 retomou com Pus o teatro Moer, sem conseguir muito êxito. Seguindo seu costume,
Léger saudava o novo dono da situação exaltando o golpe de estado do 18 brumario na Jornada
do Saint-Cloud, escrita com o Chazet e Gouffé, e representada no teatro dos Trovadores. Mas,
apesar de seu oportunismo recalcitrante (em 1814 compôs uma obra titulado Berço do Enrique
IV), padeceu o recesso registrado pelo teatro durante o Império e a Restauração, e teve que
recorrer a tarefas de menor categoria como professor, secretário de prefeitura e tabelião, antes de
fazer-se carrego do teatro do Nantes, onde permaneceu até sua morte em 1823. Com
independência do aleatório de sua carreira, o certo é que a revolução cultural de 1789-1790 tinha
conferido um estatuto insuspeitado de homem de teatro a este proletário da cultura do Antigo
Regime.
Em janeiro de 1793, no momento do assunto Bassvill, para um autor duvidoso, mas dúctil e
ambicioso, o anticlericalismo brincalhão e moral constituía uma forma fácil de integração em um
movimento político que de outro modo lhe superava.
Léger representou seu papisa não no Vaudeville, a não ser no teatro da rua Feydeau. Acaso foi
por prudência, isto é, para fazer esquecer o escândalo do Autor de um momento, cuja carreira
particular continuava? Nesse mesmo mês de janeiro de 1793, o quadro de atores tinha
representado a Casta Susana do Radet e Desfontaines. Além disso, contra toda previsão, o
Vaudeville tinha agravado seu caso: a obra, muito anódina, limitava-se o episódio bíblico, mas a
reputação adquirida pelo Vaudeville como resultado dos incidentes de 1792 a converteu em uma
obra reacionária. Os convencionalistas, auditório um tanto paranóico, tematizaron uma réplica que
interpretaram em términos políticos («fostes seus denunciantes, não saberiam ser seus juizes»);
os autores se apressaram a modificar a frase, mas o esforço foi em vão, e em 28 de janeiro
Hébert reclamou e obteve da Convenção que se proibisse a obra. Radet, Desfontaines e Gradeei
foram encarcerados.
Foi nesse momento quando se representou no Vaudeville a Papisa do Flins dê Oliviers. Acaso
os atores decapitados recorreram ao Flins, cujas obras alcançavam os maiores êxitos nos teatros
mais ilustres (a Comédia Francesa, o Richelieu), para restabelecer com seu concurso sua
situação financeira e ideológica? É que esta Papisa expulsou do cenário a do Léger? Ou
possivelmente se tratava de uma revanche contra um Léger que se apartou insolidariamente do
Vaudeville depois dos incidentes de 1792 e 1793? Não sabemos.
Léger apresentou, pois, seu Papisa em 26 de janeiro no teatro Feydeau, ao mesmo que um
ano mais tarde, quando saiu do cárcere, ofereceu sua obra republicana sobre a Bara. O Feydeau,
antigo teatro do Monsieur, rebatizado em 1791, estava muito longe de ser um antro revolucionário,
inclusive pode dizer-se que até finais de 1793 se manteve como único ponto de reunião dos
moderados. Não obstante, seu repertório lhe convertia em um dos teatros mais populares de
Paris, junto com o Vaudeville e o Favard. Por isso, e com independência de seus indefiniciones e
estupidezes, Léger se apresenta como um verdadeiro profissional do teatro, e seu Juana flutua no
ar do tempo, alegre e oportuna.
A papisa do Léger obteve um certo êxito, se tivermos que acreditar Os espetáculos de Paris,
onde se resenha o seguinte: «Feydeau, A Papisa Juana, comédia em um ato, em verso misturado
com vodevil pelo cidadão Léger em 26 de janeiro de 1793. Êxito.» Mais adiante lemos: «Os
aplausos que a cidadã Verneul obteve em sua estréia pelo papel da papisa Juana na obra deste
nome demonstraram a esta atriz que o público desejaria vê-la representando papéis mais
importantes». O fato de que Cailleau imprimisse duas edições da obra constitui uma prova mais
do êxito que teve.
A Juana do obstinado Defauconpret
A papisa do Defauconpret resulta mais difícil de classificar. Esta obra se desenvolve igualmente
no momento do conclave; mas ao preço de um recorte assombroso, junta com a trama da vulgata,
anunciando na última cena o parto da Juana. A singularidade da obra do Dafauconpret radica em
sua tonalidade política: dois clãs (o dos cardeais jovens e o dos cardeais velhos, chamados
«portadores de perucas») enfrentam-se em vão com motivo da eleição da Papa; um enviado do
povo anuncia que os cardeais permanecerão encerrados e sem provisões até que sua eleição
seja definitiva. O cardeal Morini insiste em que lhe encerrem com seu amante Juana, e a disfarça
de monge. Em contrapartida, Juan exige a sua vez que lhe apóie em sua candidatura à a Santa
Sede. Mafeo, o chefe dos cardeais jovens, está aceso da Juana e só obtém promessa de receber
seus favores em troca de seu voto. Juana resulta, pois, escolhida. Seria forçar as coisas ler neste
argumento uma sátira dos mecanismos de facção que naquela época rasgavam a Convenção?
Quem se disfarçava então para obter a unanimidade?
O tom dos vodeviles evidencia maior virulência que o dos textos do Léger (de fato,
Defauconpret titula seu papisa «opera brincadeira»), pois aos tons populares («gosta de rir, gosta
de beber», «quando vejo meu amante», etc.) incorpora uma canção (a do Saint Roch), e o final da
obra conclui com o «Isso partirá» republicano: «Quando sobre a frente da Juanita / A tiara brilhará
/ A nosso gosto, minha pombinha / A quem toda Roma aplaudirá / OH. OH. OH. OH. Ah. Ah. Ah.
Ah. A bonita Papa, aí está. / Perto da beleza que te adorna / Logo veremos eclipsar-se / O vão
fulgor da tiara / Ah, isso partirá, isso partirá, isso partirá».
É muito pouco o que sabemos a respeito da personalidade do Defauconpret (1767-1843). Autor
sem publicações, fez-se notário (1795-1815), e em 1799 publicou um Novo tabuada ou tabela de
redução das novas moedas e medidas análogas (curiosamente, este gosto pela cifra e pela Juana
lhe aproxima do Winkopp). Ao arruinar-se, translada-se a Inglaterra, onde se converte em tradutor
prolífico, chegando a traduzir até 600 títulos do inglês ao francês, entre os que se encontram os
das obras do Walter Scott e Fenimore Cooper.
Defauconpret e Léger pertencem ao mesmo paradigma social: ambos procedem da pequena
burguesia e ambos têm algo mais de vinte anos em 1789; a Revolução lhes permite (ou lhes
permite albergar esperanças) entrar na República das Letras, frente a esse imobilismo social que
destinava a um ao ensino fundamental e a outro ao notariado (neste último caso também na parte
mais baixa do escalão, já que Defauconpret se viu obrigado a exilar-se). Ambos não obtêm mais
que um êxito limitado em suas novas carreiras, vinculadas a uma nova indústria da cultura, que
resulta a sua vez do processo revolucionário; assim, enquanto um se beneficia da prodigiosa
expansão que registra o teatro depois de 1790, e consegue viver dela mal que bem até sua morte,
o outro vive a sua vez do desenvolvimento legal da livraria popular e da anglofilia romântica.
Já comentamos mais acima sua rivalidade de janeiro de 1793: a Papisa do Defauconpret foi
rechaçada por três teatros, dois dos quais (o Vaudeville e o Feydeau) estavam vinculados ao
Léger. No prefácio da segunda edição (o que indica certo êxito) de seu texto, titulado A maior das
papisas, Defauconpret explica a razão de ditos rechaços: «Eu pensava que um tom novidadeiro
poderia facilitar minha aceitação; mas ocorreu justamente o contrário. Me reprovou que o meu não
fora um gênero que pudesse representar-se em um teatro como o da rua Feydeau.» Não
obstante, a aparição da obra do Léger demonstra que esta razão não é válida. Se Léger não for
anterior ao Defauconpret, e se tampouco lhe copiou, então o episódio demonstra que era
necessário ser um autor conhecido no ambiente dos atores para que estes representassem suas
obras. No Vaudeville (onde se representou também a Papisa do Flins dê Oliviers, Defauconpret
recebe «as mesmas razões que tinham determinado o rechaço do [teatro] da rua Faydeau». O
terceiro teatro que rechaçou a obra, o Teatro Francês Cômico e Lírico, parece uma réplica dos do
Feydeau e Veadeville: baseado em junho de 1790, em uma pequena sala frente à Opera, na rua
Bondy, oferecia, sob os auspícios do Piis e Gradeei, vodeviles e obras de circunstância; colheu
seu primeiro êxito a partir de novembro de 1790. Em outubro, a obra anticlerical de Olimpo do
Gouges, O convento ou os votos forçosos, tinha conhecido um fracasso completo, mas a
representação do Nicodemo na lua, do Primo Jacobo, endireitou a situação, e foi representada
363 vezes até finais de 1793. Ao parecer, o êxito do Nicodemo se deve a uma mescla de fantasia
e de manifesto, sobre um fundo político moderado (o Primo Jacobo foi detido em 1793). Todo isso
nos permite apreciar com claridade em que ponto se situa então nossa papisa em razão de sua
figura real ou desejada, e este ponto não é outro que a encruzilhada que separa e une o
entretenimento e a atualidade, mas sem albergar grandes ambicione. Entretanto, para o
Defauconpret, o acesso da Juana ao vodevil ou opereta de circunstância resultava impraticável
por causa do Léger (Vaudeville, Feydeau) e do Primo Jacobo, inclusive apesar de que, para o
mesmo autor, o rechaço do Teatro Francês se devia à má gestão que provocou seu fechamento
em 1793, não obstante o êxito lhe esmaguem do Nicodemo: «Eu necessitava um traje que nunca
pôde adquirir-se com os recursos desse espetáculo, já em declive» . Mas o certo é que, inclusive
depois do aperturismo geral decretado em 1790, a carreira literária seguia sendo muito estreita
para acolher a tantos postulantes. Neste sentido, o Primo Jacobo representa uma variante no
paradigma social de nossos autores; em realidade se chamava Beffroy do Reigny e durante o
Antigo Regime se dedicou como Léger ao ensino, ao tempo que escrevia poemas burlescos de
tipo volteriano, chegando inclusive a fundar uma revista satírica titulada As Luas. lançou-se ao
teatro sem poder acessar à Comédia. Mas em 1790 conhece por fim o triunfo com obras ligeiras
de circunstância; logo passou brevemente pela revista patriótica antes de encontrar sua própria
medida com o Nicodemo.
Não obstante, Defauconpret conseguiu que se representasse seu Papisa em 23 de fevereiro de
1793 no teatro Moer, decantando-se assim por outra classe de público. Em efeito, em junho de
1791, J. F. Boursault Malherbe, deputado na Assembléia Nacional e homem de negócios, capa o
Teatro Nacional Moer com o propósito de representar espetáculos patrióticos e revolucionários de
grande virulência (A Liga dos fanáticos e dos tiranos, Luis XIV ou a máscara de ferro, o Conde
Oxtiern do Marquês do Sade), e durante a época do Terror o teatro tomou o nome de Teatro do
«Sãs-culotte». Mas este zelo patriótico e revolucionário não impediu que Robespierre suspeitasse
do Boursault, quem pôde livrar-se de um processo graças à amizade que unia ao Collot d'Herbois,
e a que aconteceu com a clandestinidade . Curiosamente, Léger e Piis se fizeram cargo do teatro
em 1799, com o nome de Teatro dos Trovadores.
Defauconpret tinha tentado, pois, passar da competência dramática (dentro do gênero do vodevil)
à competência política; a manobra só daria resultado no caso de que Léger se comprometesse.
Mas não foi assim, de maneira que perdemos o rastro do Defauconpret, quem depois de fracassar
em seu intento de ingressar na República das letras como dramaturgo, desaparece da cena até
conseguir seu passaporte vinte anos depois no guichê da tradução.
Em qualquer caso, o episódio das peripécias do Defauconpret nos serve para compreender que
não terá que dar muita importância ao conteúdo ideológico de nossas Papisas, embora
comportem alusões escuras que de algum modo refletem a natureza do combate cercado entre
elas mesmas; porque o que de verdade importa é a tática sutil e variada que emprega cada um
dos autores em questão, no sentido de que, uma vez mais, Juana resulta útil.
A papisa perdida do Flins dê Oliviers
Ainda temos que nos referir à terceira papisa em lide: a de Carvão Flins dê Oliviers.
Desgraçadamente, não se imprimiu o texto, e o manuscrito se perdeu. Tampouco encontramos
menção alguma sobre o mesmo. O único testemunho de sua representação em cena se encontra
em um periódico de notícias: «A Papisa Juana em um ato do cidadão Flins (sic). Tem espírito e
coplillas bonitas, mas o tema está mal estruturado. Pouco êxito.» É provável que esta falta de
êxito impedisse a impressão do texto. Entretanto, conhecemos bem ao Flins dê Oliviers, quem,
em um nível mais alto que o do Léger ou Defauconpret, representa a sua vez outra variante da
boêmia literária da Revolução. Em suas Memórias de ultratumba, Chateaubriand nos deixou um
retrato do Flins que confirma as análise do Robert Darnton: «Conheci em sua casa [= a do Delisle
de Sai, divulgador do pensamento das Luzes; estamos em 1787] a Carvão Flins dê Oliviers, quem
se apaixonou pelo Madame do Farcy irmana do Chateaubriand. Ela se burlava, e ele não levava a
mal, pois lhe adulava freqüentar boas companhias. Flins apresentou ao Fontanes, amigo dele,
quem se fez também meu.
»Filho de um proprietário dos Montes e rios da Reima, Flins recebeu uma educação
descuidada, embora sempre se manifestou como homem de espírito, às vezes de talento. Não
podia ver-se nada mais feio: baixo e gordo, com grandes olhos saltados, cabelo arrepiado, dente
sujos, e, apesar disso, seu aspecto não era muito ignóbil. Seu estilo de vida, que era o mesmo de
quase todas as gente de letras de Paris de então, merece ser contado.
»Flins ocupava um apartamento na rua Mazarine, bastante perto do do Laharpe, quem vivia a
sua vez na rua Guenégaud. Dois saboyanos, disfarçados de lacaios por magia de uma cascata de
librea, serviam-lhe: pela tarde lhe acompanhavam, e pelas manhãs introduziam as visitas. Flins
acudia com regularidade ao teatro Francês, que à maturação se encontrava na praça do Odeón, e
que destacava sobre tudo na comédia. Logo que terminava Brizard, que começava Taima; Larive,
Saint-Phal, Fleury, Mole, Dazincourt, Dugazon, Grandmesnil, e as senhoras Contat, Saint-Valha,
Desgarcins e Olivier estavam na plenitude de seu talento, à espera de que a senhorita Mares, filha
do Monvel, estivesse preparada para debutar no teatro Montensier. As atrizes protegiam aos
autores e muitas vezes facilitavam sua fortuna.
»Flins, que só dispunha de uma exígua pensão de sua família, vivia do crédito. Quando
começavam as férias do Parlamento, empenhava as libreas de seus saboyanos, seus dois
relógios, seus anéis e sua roupa branca, pagava com o empréstimo suas dívidas e partia ao
Reims durante três meses. De retorno a Paris, retirava o que tinha empenhado no Monte de
Piedade com o dinheiro que lhe dava seu pai, e reatava o ciclo dessa vida, sempre ditoso e bem
recebido» .
Mas temos que completar com outros dados este admirável retrato, para calibrar melhor o lugar
que ocupou Flins no âmbito cultural e social do janeiro de 1973. Flins (1757-1806) pertence a um
nível social muito mais alto que o do Léger e Defrauconpret, pois sua família procede da
burguesia latifundiário, e ele mesmo exerceu, durante o Antigo Regime (é dez anos maior que
seus rivais), uma carreira paralela; isto é: a de conselheiro no Tribunal de Contas e a de autor
oportunista. Sendo ainda muito jovem, e depois de ter assistido à consagração do Luis XVI em
sua cidade natal do Reims, publica uma Ode sobre a consagração do Luis XVI. Seguida em 1779
de uma Ode em honra do Voltaire, composta com ocasião da morte do filósofo em 1778. Ingressa
então na Loja maçônica das Nove Irmãs. Do qual se desprende que sua posição era mais
solvente do que diz Chateaubriand quem, também é certo, conheceu-lhe em 1787, quando Flins
vive em plena boêmia literária, muito próxima ao mundinho da Comédia. Em 25 de agosto de
1781, lê durante uma sessão pública da Academia Francesa um poema Sobre a servidão abolida
nos domínios do Rei. Sua posição social, as amizades contraídas graças à mesma, inclusive
durante a Revolução, falam-nos de uma situação e de uma segurança que contrastam com a
fragilidade do Léger e do Defauconpret. Por outro lado, o próprio Chateaubriand nos fala de sua
amizade com o Fontanes, coetáneo dele, futuro Grande Professor da Universidade com o
Napoleón, e igualmente vinculado a Harpe. Dita amizade não é sem dúvida alheia ao posto que
Flins ocupou durante o Império, até sua morte em 1806: o de procurador imperial no tribunal civil
do Vervins.
Flins, herdeiro do Século das Luzes, recebe com agrado a Revolução, embora esta lhe priva de
seu cargo de conselheiro (escassamente remunerado, é verdade, como indica Chateaubriand). Ao
longo de 1789-1790, publica seis entregas de um desses pequenos jornais que tanto proliferavam
então, As viagens da opinião nas quatro partes do mundo. As notícias chegam através da figura
alegórica da Opinião, quem se passeia pela Assembléia Nacional, por Bruxelas e pelos ambientes
da primeira emigração. Nestas páginas encontramos um tom predominante anticlerical, que
parece ser a característica do Flins a partir de então. Assim, por exemplo, os primeiros emigrados
chegam a Bruxelas disfarçados de sacerdotes, e lhes convida a dizer missa; seu anfitrião lhes
convence: «por que não teriam que celebrá-la como outro sacerdote qualquer? Acaso são mais
ateus que um bispo, mais ignorantes que um capuchino, mais glutões que um cônego, ou mais
libertinos que um abade comendador? E, entretanto, eles celebram a missa todos os dias.» Na
quarta entrega, Flins analisa o êxito do Cagliostro, oferecendo uma curiosa sociologia religiosa na
linha do Max Weber: «A religião estava próxima a sua queda; Baile (sic) e Fréret tinham
desarraigado a fé com provas e razões... Voltaire vai mais longe e a ridiculariza. Não obstante, a
curiosidade e a inquietação dos homens necessitam um alimento. E eu acreditei que era já hora
de que novas superstições substituíssem às antigas (é Cagliostro quem fala); os homens
enfastiados, as velhas e quão tolos não se emocionam com paixões doces precisam agitar-se
com paixões violentas; necessitam tanto o fanatismo, como os paladares gastos o água-forte... Na
Inglaterra..., o amor pelos negócios substituiu o amor pelas mulheres. Na França..., essa
inquietação que sobrevive às paixões da juventude se projeta de forma extraordinária nos temas
de religião: isto é o que produziu aos jesuítas, aos calvinistas, aos jansenistas, os molinismos...» .
Flins soube situar-se rapidamente como autor dramático importante: em 1790 deu à Comédia
Francesa (sabemos, graças ao Chateaubriand, que Flins tinha preparado este terreno com
antecedência a 1789) O despertar do Epiménides, que mostrava o despertar secular de um ser
imortal em 1789; Epiménides se assombra das mudanças que se produziram durante seu sonho,
com um verdadeiro catálogo laudatório dos primeiros lucros da Revolução. Ao fio de sua
recontagem, mofa-se de um abade que se lamenta da perda de seus privilégios. O êxito
desencadeou uma série de imitações (O jantar mágica, do Murville; o Epiménides francês, do
Riouf; O convalescente de qualidade, do Fabre d'Eglantine), e a obra se repôs no teatro do
Monsieur (o futuro Feydeau). As representações se interromperam em julho de 1790, por causa
de uma disputa entre a Taima e os amigos do José Chénier, quem queria impor Carlos IX no
repertório da Comédia Francesa.
Em fevereiro de 1791, Flins entrega à Comédia Francesa O marido diretor ou o desalojamento do
convento. Nesta obra, a Revolução abre as portas de um convento, e um delegado do Governo se
disfarça de superior para ouvir em confissão a sua mulher e a sua filha, quem reconhece seu
amor por um monge; o delegado seculariza à monge e o une a sua filha, e tudo conclui com uma
série de canções mordazes. Encontramos, por fim, no Flins um autor sinceramente entregue a
Juana, amante do disfarce e do cenário religioso. Flins desempenhou um papel importante na
temática teatral da Revolução, já que foi o primeiro em dar um tom alegremente licencioso a uma
obra antirreligiosa, quando por sua parte Léger se limitava a suscitar admiração para seu pároco
constitucional. Flins constinuó sua carreira com a Jovem anfitriã, adaptação da locandiera do
Goldoni, no teatro Richelieu; a obra sobreviveu a crise antes citada, posto que se repôs em 1821
no Teatro Francês (sucessor do Richelieu). Neste sentido, pode dizer-se que a Papisa do Flins
abriu um período de silêncio e de retiro para seu autor, coincidindo com o retraimento geral do
teatro iniciado em 1793: a Comédia Francesa estava dividida, e seus atores sofreram a repressão
desse ano de 1793; então o Richelieu se radicalizou. Em janeiro do mesmo ano, de 1793, o
Vaudeville, que atravessava uma situação precária a raiz do encarceramento de seus diretores,
oferecia uma solução de recâmbio ante o prudente silêncio do Flins. A função que desempenha
Juana nestas circunstâncias não pode ser mais clara: ante o frenesi antirreligioso que preside o
verão de 1793, e a volta à religiosidade em 1794, e durante uma período de fortes tensões, Juana
se converte na receptora de um anticlericalismo alegre e apto para o vodevil e as canções, de
maneira que sua figura podia interessar por igual e de uma vez a um oportunista do teatro, que a
um autor necessitado de uma cena, ou que a um dramaturgo consagrado e prudente.
Juana e a nostalgia revolucionária do Teodoro Desorgues (1801)
antes de abandonar a Revolução francesa, temos que nos referir a uma última papisa, mais tardia.
Nossa referência será breve, já que Michel Vovelle se encarregou de estudar exaustiva e
admiravelmente a carreira e a produção de seu autor, Teodoro Desorgues (1763-1808) .
Em 1801 se publicou A Papa e o muftí ou a reconciliação dos cultos, sem que se tivesse
representado. A data de publicação indica já que esta obra, ao contrário das papisas de 1793,
situa-se à margem das preocupações temporárias que presidem aquelas, pois o tema tem que ver
mas bem com a exaltação do gênio do cristianismo. A anedota logo que conserva nada da trama
antiga, e a ação se desenvolve na atualidade atemporal da ficção. Como vimos a propósito da
obra do Léger, a situação nasce do tema dos amantes separados: os turcos do muftí Alí assediam
Roma, mas resulta que a Papa é um tal Azémis, uma jovem turca disfarçada de homem para
poder viver com seu amante Aplainam (que chegou a cardeal), contra a vontade de seu pai, o
muito mesmo muftí Alí; ao mesmo tempo, na cidade se respira um ar de sublevação contra a
religião católica. O regedor de Roma, Penetranti, propõe à Papa que renuncie à continência:
«Devem lhes casar, infalível vigário / E merecer por fim o título de Santo Pai»". Os notáveis
romanos sugerem a sua vez chegar a um acerto com o muftí e com esse islã tão amigo dos
prazeres de Vênus. O muftí, que chegou com o propósito de ditar suas condições, depois de um
comprido debate sobre os méritos do islã e do cristianismo, reconhece a sua filha. Azémis e
Aplainam se casam, mas os romanos se negam a ficar sob seu domínio, e então Azémis e Alí se
encarregam de educar às moças ela e aos moços ele na tolerância que acabam de descobrir.
A obra do Desorgues, tão ágil e acalmada como as Papisas de 1793, comporta não obstante uma
carga anticristiana muito mais forte. Durante a larga controvérsia que se cerca entre o Alí e
Azémis, o muftí passa o cristianismo pela peneira da crítica, da que só damos a título de exemplo
uma declaração do Alí: «Esse Deus recopilador, para pregar a sabedoria / Traduz em um mal
grego aos sábios da Grécia / Pretende que se trata de algo novo; e sem seus formosos sermões /
Possivelmente não tivesse fatigado a seus pulmões. / De um ladrão, no cadafalso, faz um
proselitista; / Expira em público, em segredo ressuscita; / De filho de carpinteiro se converte em
filho de Deus: / O mundo teria sofrido menos se tivesse exercido seu ofício» .
Este anticristianismo tardio, fora de época, é o que distingue ao Desorgues de seus
companheiros. Michel Vovelle o interpreta a sua vez como uma espécie de fidelidade última e se
desesperada à Revolução perdida, e o final do Desorgues confirma dita análise: foi encerrado no
Charenton, junto com o marquês do Sade, desde 1803 até sua morte em 1808, por ter rechaçado,
segundo conta a tradição, um sorvete de limão no café da Rotonde, dizendo: «Eu não gosto da
casca.» Ao parecer, a gravidade do jogo de palavras tinha que ver com uma canção, que
começava assim: «Sim! O grande Napoleón é um camaleão» . A papisa do Desorgues brilhava,
pois, em um fogo de artifício terminal e sem esperança, sem poder prolongar a atividade de um
poeta da Revolução.
Mas como tinha chegado até aí? Desorgues, neto de um notário da região do Manosque e filho
de um advogado próspero e influente do Aix-no Provence, encontrava-se em uma trajetória
ascendente quando estalou a Revolução, apesar de que, por sua condição de filho menor e por
sua desgraça física (era jorobado), o grosso da grande fortuna paterna tivesse recaído em seu
irmão maior. Não sabemos nada de sua vida com antecedência a 1789, mas nos encontramos
isso em 1792 em companhia do abate Delille construindo versos galantes; e logo, de repente, em
1794 (ano II), os irmãos Desorgues, suspeitos a causa da ascensão nobre (ou quase nobre) de
seu pai, oferecem seus serviços ao Comitê de Instrução Pública. Pouco depois, Robespierre
escolheu ao Teodoro Desorgues para escrever o hino ao Ser Supremo, o 20 pradial ano II,
substituindo ao José Chénier. A partir de então, Desorgues se converte em um poeta importante
da Revolução, autor de numerosos hinos e odes; é certo que a veia anticristiana aparece muito
em breve em suas obras, concretamente em seu poema sobre os Trasteverinos ou os Sãscolottes do Tíber, publicado no Mercure Français de 11 de setembro de 1794, mas conta muito
pouco em uma inspiração republicana e roussoniana. O detonante que provoca um giro na vida
do Desorgues não se produz até os momentos finais da Revolução, no ano VII, com um estranho
poema prejuanista, Meu conclave. Juana já não serve, mas sim estorva, e em vez de unir, exclui.
Assim conclui a aventura revolucionária da Juana.
Desde 1777 até 1804, desde Borde até o Casti, Juana se tinha permitido toda classe de
liberdades e de licenças com a história; ela, que tinha vivido imersa nas tormentas da discórdia e
nos temores da carne, de agora em diante ofereceria ao mundo a possibilidade de um acordo fácil
e a alegria do corpo. Esta veia alegre não se esgotaria jamais, e percorremos rapidamente os
nivelamentos contemporâneos, que, a pesar do brilho dos autores, não contribuíram nada a
Juana, cujo cénit se encontra, como havemos dito, no texto do abate Casti. Mas antes de fechar
este capítulo no que nos ocupamos que ennumerar a seus cirurgiões, devemos ter em conta outra
versão da Juana, algo posterior a do Desorgues e a do próprio Casti, e que surge em um universo
muito diferente do daquelas, concretamente na Prusia romântica do Achim von Arnim.
Genealogia da papisa do Achim von Arnim (por volta de 1815)
A Papisa Juana do Arnim, última estação importante em nossa peregrinação literária, ocupará
nossa atenção durante um momento bastante largo; por um lado, porque se trata de uma versão
muito desenvolvida (465 páginas na edição póstuma realizada pelos irmãos Grimm), muito rica e
muito formosa, e por outra parte porque põe de manifesto com toda claridade o estatuto da papisa
no âmbito da literatura. Já no capítulo V demonstramos que Juana nasce à literatura com o
Boccaccio (1360), indicando um deslocamento: ao sair de seu marco pontifício, a papisa se
tematizaba em personagem mediante sua inserção em uma galeria de mulheres deslumbrantes; a
partir de então, Juana abandonava sua existência empírica, enigmática (existiu?, como influiu no
curso da história da igreja?), por uma vida metafórica (o que desvela esta papisa a respeito da
mulher, da sexualidade, da ambição?). A segunda epifanía literária da Juana aparece no texto do
Dietrich Schernberg; aqui, e de uma forma mais radical, passávamos do deslocamento à
condensação (sem conferir a estes dois términos seu valor exato no psicanálise). Schernberg
fazia convergir para a anedota papal todo um universo de angústia e de esperança (culpa e
remissão, purgatório, intercessão dos Santos e da Virgem); e ao transpor o milagre do Teófilo
anunciava o Trauerspiel sem preocupar-se, como tinha feito Boccaccio, de manter-se fiel ao
episódio juanista. A invenção do Boccaccio diferia, pois, por sua própria natureza das retificações
ou das manipulações dos historiadores da papisa, desde o Martín o Polonês até o Federico
Spanheim. As papisas das Luzes, embora às vezes conservavam o benefício da referência
histórica, perseguiam a sua vez e por outras vias (denúncia da impostura e do celibato, exaltação
alegre da carne) dita condensação. A versão do Arnim se desprende ainda mais da referência,
neutralizando-os temas polêmicos que até então tinham suscitado a invenção, a favor de novas
configurações, constitutivas de um universo próprio. Arnim não se ocupa em modo algum da
fascinação do Vaticano ou do convento. Para o Achim von Arnim (1781-1831), nascido no seio de
uma antiga aristocracia latifundiário e luterana, em um estado fortemente secularizado pelo
Federico II, longe da Renania onde prosperou Winkopp, a questão do clericalismo romano não se
expõe; como a maioria dos românticos alemães, experimenta uma certa atração estético-mística
pelo catolicismo, mas sem que isso lhe faça durar de seu luteranismo, componente essencial
dessa germanidad setentrional tão importante para ele. A temática feminina (temor ou revanche)
tampouco lhe importa muito. Neste sentido, a Alemanha romântica desfrutava de uma situação
muito favorável, resultante da simbiose que se produziu sem convulsões entre os princípios do
luteranismo e os da ilustração; baste recordar ao respeito algumas figura femininas, proeminentes
e respeitadas, do entorno familiar de escritores destacados: Bettina von Arnim, esposa do Achim e
irmã de Clemente Brentano; Cunegunda von Savigny, outra irmã do Brentano e companheira do
grande jurista Savigny, Carolina von Günderode, Herminia von Klencke, Raquel Varnhagen,
Enriqueta Vogel e tantas outras que participaram de pleno direito e muito diretamente o auge
cultural alemão dos anos 1800-1820.
A papisa chega até o Arnim como um objeto cultural já constituído, isto é como um elemento do
patrimônio cultural, pois em primeiro lugar Juana é a heroína do mais antigo drama alemão, Fraw
Jutta. Frente à dureza da ilustração prusiana, do desastre da invasão napoleônica, da
fragmentação da nação germânica, surgia a necessidade imperiosa de recuperar as raízes
culturais de uma unidade nacional. Desde esta perspectiva, o primeiro texto importante do Arnim,
fruto de sua colaboração com o Brentano, O corno mágico do menino (Dê knabenwunderhourn),
recopilação de canções populares reescritas, pretendia encontrar um rasgo comum que unisse às
classes e às tribos dispersas da Alemanha. Arnim conheceu muito em breve o texto do
Schernberg, como se desprende de uma carta datada em 2 de abril de 1805, em que aconselha
insistentemente ao Brentano a leitura da Revista Dramática do Gottsched, onde figurava,
conforme havemos dito antes, uma edição do Fraw Jutta . --A papisa aparece pela primeira vez na
obra do Arnim através de um fragmento e de um resumo que inclui na quarta parte de sua grande
novela Pobreza, riqueza, culpa e expiação da condessa Dolores (1810), uma obra professora tão
imensa como complexa, escassamente conhecida (como a maior parte da obra do Arnim), e que
aguarda ainda sua tradução ao francês . Na novela, a história da Juana reflete com claridade esse
aspecto popular e antigo que tanto importava ao Arnim: o conde e a condessa, heróis alemães da
novela, quem, como resultado de diversas peripécias, vivem com seus doze filhos na Sicilia,
dirigem-se o dia de Carnaval ao monastério de São Lorenzo ao objeto de assistir a uma
representação dramática; o cavalheiro Brülar, emigrado francês (a ação se situa ao dia seguinte
da Revolução Francesa) que faz as vezes de preceptor dos meninos, critica o projeto
argumentando que «não se pode levar aos meninos a ver semelhantes gracejos insensatos e sem
norma alguma» . O próprio prior do monastério tenta elevar o nível cultural da tradição, mas não
pode opor-se à vontade popular: «O prior se desculpou: não se pôde levar a efeito sua proposta
de representar uma obra italiana, nova e de qualidade, do Metastasio, porque o povo ("dá Volk")
tinha querido conservar a velha tradição da Papisa Juana» .
A representação acordada a consciência do jovem Juan (forma masculina da Juana, não o
esqueçamos), primogênito do matrimônio, e que tinha nascido um ano depois do adultério da
condessa, como primeiro testemunho de seu arrependimento. Juan identifica o paralelismo que
existe entre sua submissão ao domínio intelectual e cínico de seu professor Brülar e a sujeição da
Juana ao Spiegelglanz*, o filólogo delegado por Satã para a formação anticrística de uma papisa
que, a sua vez, está destinada a sacudir o trono de Roma. Assim começa o grande processo de
salvação da família que, depois de que a condessa pecadora morre em aroma de santidade,
recupera, com sua volta a Alemanha, suas raízes e sua participação na comunidade singela e
autêntica da nação. A papisa Juana serve, pois, como metáfora de uma renúncia à tentação da
«civilização», e como metonímia da nova e tradicional «cultura» convivencial, para recuperar
assim uma oposição de términos muito apreciada na ideologia nacional alemã de princípios do
século XIX, como demonstrou claramente Norbert Elias . É, pois, em um contexto novo onde
reencontramos a constelação (o povo-a mulher, o menino-a Santa ignorância) em que Juana
brilha do século XIV.
O processo de transmutação completa da Juana em personagem arnimiano foi lento: a formosa
cena que se desenvolve na Dolores aparece textualmente no drama do Arnim, embora na forma
resumida própria da novela, enquanto que o final da aventura se ajusta ao esquema do
Schernberg, herdeiro a sua vez da larga tradição juanista (o parto fatal que resulta da eleição do
castigo terrestre em troca da salvação eterna). A versão final modificará este esquema.
Arnim dedicou vários anos a sua elaboração, animado sem dúvida pela favorável acolhida que
tinha tido Dolores; em uma carta dirigida ao pintor Runge (junho 1810), Brentano fala dos
«magistrais» episódios dramáticos da novela (a Papisa, Hylos e o Anel). Por sua parte, e em uma
crônica do Heidelberger Jarhbücher (1810), Guillermo Grimm declara sua admiração pela cena
sublime da Juana no jardim, enquanto que seu irmão, Jacobo Grimm, escreve ao Arnim em 24 de
setembro de 1810 que dita cena é a parte mais formosa de quantos tem escrito: «É uma peça tão
importante como o Fausto do Goethe» . Arnim se entrega, pois, a sua tarefa, e em uma carta
dirigida aos irmãos Grimm, no mês de novembro de 1812, declara que logo concluirá seu drama e
se congratula dos constantes estímulos que recebeu que seu cunhado Savigny. Mas em uma
carta de 1813 ao Brentano anuncia que renúncia parcialmente à forma primitiva (uma tragédia de
em gambos rimados, construída sem dúvida sobre o patrão do Trauerspiel barroco, parecida com
o que faz seu admirado Gryphius) , ao objeto de poder incluir amplas partes de prosa. A
publicação do primeiro volume de teatro do Arnim (Schaubühne) em 1813 inclui outro fragmento
da papisa («a festa da primavera»), coro e diálogo em forma de cantata. Logo perdemos o rastro
do drama, do que nada novo sabemos à exceção de uma alusão rápida em uma carta aos irmãos
Grimm, datada em 1817. A obra ficou inédita à morte do Arnim em 1831; entretanto, apresentava
já uma forma concluída, e inclusive perfeitamente polida, e Bettina von Arnim a publicou em 1846,
no tomo 19 das Obras completas reunidas pelos irmãos Grimm. A partir de então, e se
excetuarmos os fragmentos antológicos editados pelo M. Jacobs em 1908 e pelo R. Steig em
1911, assim como dois breves estudos (H. Specken em 1903 e P. Merkens em 1933) , esta
grande papisa foi relegada ao mais completo e injusto dos esquecimentos. Semelhante infortúnio
exige, pelo menos, a reparação de um resumo, por outro lado de tudo necessário, para poder
apreciar no que vale a esta Juana prusiana e romântica, última creacción autêntica sobre a figura
da papisa.
A papisa do Arnim
A primeira parte começa na Islândia, berço paradisíaco da nação alemã antes de convertise no
refúgio sorvete de Lúcifer. Oculto em sua cova, o diabo se trabalha em excesso na fabricação de
um Anticristo para que destrua a obra do Filho de Deus. Mas Melancolia acaba de dar a luz a uma
menina quem, por ser filha de um pai terrestre, não pode aspirar a um lugar no reino
supraterrenal; sem que saiba Lúcifer, Melancolia deposita a sua filha debaixo de um sino de
cristal, para que o dono do lugar pense que é o feliz resultado de sua alquimia anticrística. Lúcifer
confia a educação da menina ao Spiegelglanz, «o mais terrível dos filólogos», com a promessa de
um emprego de profeta no futuro reino do Anticristo. Uma loba amamenta à criatura antes que
Spiegelglanz, professor da Universidade de Paris, a leve com ele; ali a mantém se separada dos
homens, em uma cova de gesso, para determinar, ao casaco de qualquer influência, a língua
original da humanidade. Quando fala, Juana o faz em alemão, e em vez de grasnar ao estilo
satânico, entoa um canto de louvor a Deus. Spiegelglanz decide então partir com a Johanna a
Alemanha, mas o principal adversário do filólogo, o estudante Rafael, consegue deixar sobre a
menina de três anos a estampagem de lhe irradiem espiritualidade.
O final da primeira parte e o conjuto da segunda se desenvolvem na Renania. Graças à ajuda
do gigante Oferus (o pai da Johanna), Siegelglanz se instala no castelo do conde palatino, onde
um ancião cavalheiro cuida do jovencísimo conde para proteger ao menino do ódio de seus pais.
O filólogo assume as funções de preceptor dos dois meninos, quem se ama meigamente apesar
de que ignoram seu sexo autêntico, já que de acordo com o plano luciferino Juana está vestida de
menino (Johannes), e o jovem conde palatino de menina, com o nome da Estefanía, para escapar
de seus pais. Spiegelglanz tem uma disputa com o ancião cavalheiro e se incorpora ao colégio
catedralicio do arcebispo da Maguncia. Spiegelglanz, vigiado a sua vez por Lúcifer, que se faz
passar pelo Crisolaras, um professor grego, dedica-se a desviar as tendências infantis do
Johannes-Johanna pela fantasia e o amor à natureza: inicia ao Johannes na fraude, compondo
em seu lugar o poema sobre a festa da primavera, apresentado na cerimônia que substitui ao
exame na escola episcopal, e Johannes se leva o prêmio, que consiste em uma bolsa de estudos
em Roma, aonde lhe leva Spiegelglanz.
O terceiro período do drama nos mostra a irresistível ascensão do Johannes quem, graças à
ajuda do Crisolaras-Lúcifer e do Spiegelglanz, converte-se em sacerdote; o estudo dos textos
antigos lhe afasta ainda mais do universo cristão. Él/ella recebe a influência de duas damas
romanas, a imperiosa Marzia e a paganista Reinera, quem adora em segredo a Vênus. Ao
encontrar-se de novo com o jovem conde palatino, que conserva ainda seu disfarce, Johannes se
sente irresistivelmente atraído pela jovem. Ao pressentir o perigo que dita atração entranha para a
execução de seu plano satânico, Spiegelglanz revela ao Johannes sua verdadeira condição
feminina. Johanna se afunda no desespero e deseja converter-se em homem no universo dos
deuses gregos; então participa de uma cerimônia em honra de Vênus. Mas nesse momento, o
conde palatino, informado também a respeito de seu verdadeiro sexo, abandona seu disfarce e
reaviva as esperanças amorosas da Johanna. Entretanto, Lúcifer consegue lhe dissuadir; com a
ajuda do Spiegelglanz, faz acreditar na Juana que, graças a seu nascimento supraterrenal,
desfruta de do poder de uma diosa/ Mas Juana começa a ter dúvidas a respeito de Lúcifer quando
constata o terror que lhe inspira o crucifixo. Então falece a Papa Anacleto, e Juana se deixa
empurrar ao trono pontifício, onde fica sob a crescente influencia do Spigelglanz, que se
converteu em médico papal.
O quarto período se refere ao pontificado da Johanna, quem tenta esquecer seu amor pelo conde
palatino dilapidando os bens da Igreja, e organizando festas e torneios. Durante uma visita ao
palácio da princesa Vênus, filha da Marozia, cai em um transe de delírio; essa mesma manhã, o
conde palatino chega ao palácio, onde desaparece, vítima da absorção de um filtro mágico. Ao
retornar do palácio, Johanna se encontra com um eremita, quem lhe libera de sua angústia e lhe
incita ao arrependimento. Mas, enquanto isso, Marozia e Vênus se apropriaram da corte pontifícia.
A quinta parte compreende o desenlace. O imperador alemão chega a Roma a restabelecer a
ordem e faz proclamar Papa ao gigante Oferus, pai da Johanna, quem se converteu com o nome
do Christophorus (Cristóbal). Por sua parte, Johanna encontra de novo ao conde palatino, e se
refugia com ele na montanha do eremita, antes de retornar da Alemanha. Por último, Spiegelglanz
perece no Tíber e Lúcifer volta para seu reino subterrâneo.
As liberdades que se tomou Arnim com a tradição juanista refletem o gosto do romantismo alemão
(Tieck, Brentano, Grimm) pela lenda popular, carregada de um significado poderoso e original. Em
altares deste gosto, Arnim introduz na trama principal vários relatos totalmente arrivistas: a história
do Cristóbal, o gigante que se passa do serviço de Satã ao de Deus, a lenda da morada
encantada de Vênus (Tannhaüser), a anedota dos meninos privados de todo contato com o
mundo humano para identificar o idioma original da humanidade (episódio relatado ao Federico II
Hohenstaufen na Idade Média), etc.
Embora os episódios romanos (a dominação da Marozia, a chegada do imperador alemão), ao
recordar à Papa Juan XII, suposto modelo da Juana, refletem um certo conhecimento por parte do
Arnim das controvérsias eruditas a propósito da papisa, entretanto é a obra do Schernberg o que
marca a pauta nesta interpretação da lenda. Arnim tira dele o esquema do plano satânico e o
desenlace feliz que transcreve, em términos seculares, a recuperação crística do arrependido. A
naturalização germânica da Juana, preparada por uma tradição cunhada das versões medievais
da Turingia e da Baviera até o Schernberg, Murner, Pauli e Sachs, recebe aqui um verdadeiro selo
nacional: o relato adquire as dimensões de um mito fundador da nação alemã fragmentada, e logo
reencontrada; encontramos aqui uma eleição (a língua original, a chegada salvadora do
imperador), um paraíso perdido (Islândia), um perambular (a vagabundagem da Juana por Paris,
Maguncia e Roma) e uma volta (a papisa volta para a Alemanha para casar-se ali com o conde
palatino). Hei aqui uma nova paradoxo da Juana: fruto do movimento comunal de Roma e da
universalidade católica se converte em uma figura da nação alemã.
Mas à margem desta determinação cultural, a lenda brindava ao Arnim um espaço idôneo de
cristalização para a temática essencial de sua obra, a do dobro. Juana, criatura manipulada que
acessa finalmente à humanidade, recorda as figuras de suas primas da mandragora e do golem
que encontramos nas notícias do Arnim («Isabel do Egito», «Meluk María Blainville») (1812); com
seu passado do serviço de Lúcifer ao de Deus, com sua dúvida interior entre o masculino e o
feminino, multiplicada com o disfarce inverso do conde palatino, com seus períodos de
consciência e de esquecimento, de culpa e de arrependimento, Juana ocupa um lugar entre esses
personagens do Arnim que, como a condessa Dolores, vivem-se não como indivíduos, mas sim
como campos de batalha. A conquista sempre difícil da humanidade contra o saber e o poder,
através da dor e do abandono ao destino e à reencontro, fazem dela, como soube vê-lo em seu
dia Jacobo Grimm, um novo Fausto. Por mediação do Schernberg, Juana encontrava sua força na
debilidade de sua alma.
Pequeno intermédio teórico
Uma vez que chegamos a estas alturas da mão última do Arnim, conviria deter a história
literária da papisa: o ano 1831, data da morte do Arnim e do Hegel, assinala o fim da filosofia, da
história e da Juana. Em términos acadêmicos, diríamos que a partir dessa data entramos na
história chamada com grande acerto «contemporânea».
Porque, após, o historiador já não domina nada, e deve ceder o sítio ao sociólogo. Entendamos
com eles que a literatura, a partir do romantismo, converte-se em um campo cultural autônomo,
com sua própria lógica. Nossas papisas de 1793 ainda gotejavam história, já que, embora em tom
burlesco, refletiam um acontecimento possível (o Papado da Juana), mentalidades (a da Boêmia
político-literária), ou a situação social de seus intérpretes (em vias de profesionalización, como
vimos). Com o Arnim, o episódio da papisa se converte em referência por si mesmo: a literatura se
faz com a literatura; a Juana do Arnim não é fruto do real (empírico ou mental), mas sim da
Revista Dramática do Gottsched, onde se encontra o texto do Schernberg, marcado já com o selo
literário («a primeira tragédia alemã»). Werner Kraft, o primeiro comentarista que produziu, em
1925, uma tese de análise literária sobre os motivos da lenda , tomou partido pela tecnicidad
literária, ao advertir que os dois teóricos rivais do drama alemão no século XVIII, Gottsched e
Lessing, ofereciam a seus êmulos duas versões distintas do tema da sedução (Jutta e Fausto):
uma a seguiu Arnim e a outra Goethe.
Esta situação põe fim a nossa tarefa, já que a produção literária sobre a Juana, muito
abundante ainda, fragmenta-se sem que o historiador possa, de verdade, pô-la em ordem. Em
efeito, até aqui ordenamos os repetidos embargos sofridos pela papisa, nos limitando a seguir seu
curso nos diversos sistemas de crença, sucessivos e/ou simultâneos; mas, a partir de agora, a
autonomia literária da Juana como personagem, ou sua solidariedade com conjuntos
especificamente culturais (o gosto gótico, o nacionalismo alemão, a novela histórica, a farsa
decadente, etc.) expulsam a Juana dos universos da crença que, por outra parte, encontram-se já
em plena recessão. Uma sociologia na linha da Pierre Bourdieu poderia levantar uma cartografia
dos âmbitos culturais pelos que se desdobrou então Juana, distinguindo assim três classes de
papisas: em primeiro lugar, as papisas autênticas e emblemáticas, que representam um acesso
ao conhecimento histórico; em segundo término, as papisas metafóricas que comportam uma
poderosa imposição cultural (o simbolismo como rasgo distintivo), e as papisas de terceiro grau
(as do Jarry ou do Bertolt Brecht, cuja grosseria afetada indica a liberação com respeito às normas
documentários ou à arte simbolista). Nossa incompetência na matéria nos impede de nos arriscar
a realizar uma análise nesse sentido, de maneira que nos contentaremos confeccionando,
brevemente, um inventário classificado das papisas contemporâneas.
Desde 1831 até nossos dias podemos distinguir três tratamentos, três leituras do episódio, que
não oferecem nenhuma novidade criatividade, apesar da extraordinária proliferação dos textos.
Leituras burlescas
Borde e Casti colocaram os alicerces da empresa, e o teatro da Revolução liberou sua invenção
do contrapeso malicioso de sua erudição anticlerical. Por outro lado, o século XIX reproduz com
bastante exatidão essa partilha das tarefas literárias: nosso ano simbólico de 1831 presença a
aparição do último vodevil, A Papisa Juana, «vodevil-anedota em um ato pelos senhores Simonnin
e Teodoro N. representada por primeira vez em Paris no teatro do Ambigu-Comique, na sábado
15 de janeiro de 1831». debaixo destes dois pseudônimos se escondem dois autores prolíficos,
Benjamim Antier (1787-1870), autor de famosos melodramas como A estalagem dos Adrets e
Roberto Macario (1823 e 1834), e Teodoro Nezel. Não imporemos ao leitor um novo resumo;
bastante assinalar que a acuidade antipapal se alimenta de brincadeiras atualizadas ao gosto da
Idade Média gótica (Juana é a esposa cabeça-de-vento de um cruzado), e do familiarismo próprio
do século XIX (o tema da adultera ardilosa tem sua precedência em uma larga tradição de teatro
guia de ruas). Frente a suas irmãs de 1793, a Juana de 1831 registra a distância que separa a
revolução de 1789 da de 1830.
dentro de um contexto muito distinto ao da Revolução, o anticlericalismo do século XIX serve de
ponto de reunião nesse amplo espaço entre Reação e Movimento que estrutura o campo político
europeu. Recordemos que a reação européia, depois de 1815, caracterizou-se pelo papismo e o
ultramontismo; pensemos neste sentido no José do Maistre em 1817 (Da Papa), e nesses filhos
de família que se fizeram zuavos pontifícios a finais do século, quando o Papado de Pio IX (18461878) defendeu o Patrimônio de São Pedro, ameaçado desde 1859, instituiu os dogmas da
Imaculada Concepção da Virgem (1854) e da infalibilidade papal (1870), e condenou o liberalismo
e o socialismo (com a Quanta cura e Syllabus de 1864). Por outro lado, o anticlericalismo
desempenhava o papel de uma formação de compromisso republicano, depois das grandes
rupturas de 1830, 1848 e 1870.
Uma versão criada novelas da papisa publicada por aquelas datas reflete muito bem essas
tensões e essas lembranças, ocupando assim um lugar desproporcionado com relação a sua
importância literária dentro da tradição juanista. Em 1866, o grego Emmanuel Rhoides (18401904) publica em Atenas uma Papisa Juana burlesca, que em grande medida é uma imitação da
larga notícia do abate Casti, incluindo suas também extensas disgresiones anticlericales. O fato,
por si mesmo, não tem nada de surpreendente: Grécia, independente desde 1830, vivia ainda sob
o domínio tradicionalista que tinha prevalecido na diáspora durante a época da dominação turca, e
que inspirava sonhos de um império helênico em torno de Constantinopla. A aparição desta
papisa manifesta, pois, uma espécie de ecumenismo anticlerical, pouco depois da queda do rei
bávaro da Grécia Otón I e da redação da Constituição de 1864. Rhoides se inteirou, sem dúvida,
do tema que logo lhe ocuparia em sua história durante sua estadia na Génova, onde seu pai
esteve de cônsul, ou durante sua etapa de estudante no Berlim. De fato, sua carreira de diretor da
Biblioteca Nacional de Atenas e de tradutor do Chateaubriand e do Macaulay evidenciam sua
abertura à cultura européia.
A novela do Rhoides conheceu um êxito considerável na Europa e foi traduzida ao alemão
(tradução do Georg Buvar, Leipzig 1875; tradução do Paul Friedrich, publicada também no Leipzig
em 1904), ao italiano (Atenas, 1876) e ao francês (Paris, 1878); esta última, isto é a tradução
francesa, provocou um escândalo. Barbey d'Aurevilly fez uma crítica indignada da obra no
Constitutionnel, a que seguiu outra do Charles Buet; ambos pensavam que se tratava de uma
falsificação, cuja responsabilidade atribuíram ao Edmond About ou ao Francisque Sarcey. O editor
respondeu às acusações incluindo na sétima edição de 1882 um retrato do Rhoides, um fac-símile
do frontispício da edição grega e uma réplica do Rhoides ao texto do Barbey, reproduzido
igualmente em sua integridade.
Curiosamente, esta novela, distanciada já dos textos do Casti e/ou Spanheim, suscitou a sua
vez outras duas adaptações que esfumavam a própria figura do Rhoides. Assim, Juana seguia
abandonando à sombra a seus mediadores sucessivos. Em efeito, por volta de 1905, o ilustre
Alfred Jarry empreendeu a tradução do Rhoides, ignorando, ao parecer, a tradução anterior de
1878. Em 1903, e com motivo da morte de Leão XIII, comunica ao músico Claude Terrasse seu
desejo de escrever uma opereta sobre o tema da papisa, em colaboração com o compositor
Demolder, e acrescenta:
«Como precedentes, houve dois "Papisa Juana", não bufa, uma durante a Revolução e outra
em meados do século»; o projeto teria que esperar, e em 1905 Jarry escreve ao editor Sansot, lhe
anunciando seu descobrimento do Rhoides: «recebi que a Grécia a obra original que tem feito ali
seu pequeno Quo Vadis e que nunca foi traduzida, "? ??????? ??????", A Papisa Juana» . Com a
ajuda de seu amigo o doutor Salta, Jarry empreende a tradução da obra, cuja publicação não
pôde conhecer antes de sua morte; Fasquelle e Charpentier a publicaram em 1908. Esta
tradução, bastante fiel ao texto original, não contribui nada a de 1878, e o gênio particular do Jarry
deve buscar-se no Mostacero da Papa (modificação do projeto de 1903, publicado em 1907).
Trata-se de uma farsa equívoca e delirante, que tira a palestra da crítica ao Jane of Eggs, papisa
com o nome do Juan VIII», ao grande mostacero Macaro, ao Man Forte de Custo, o coronel dos
zuavos pontifícios, aos «embaixadores, cardeais saludadores, muleteros, faroleiros, bastoneros,
gondoleiros, zuavos pontifícios, guardas escoceses, pequenos mostaceros da Capela Sixtina,
fiéis, balés de vírgenes prudentes e de vírgenes imprudentes, farmacêuticos indignados».
Outro tradutor célebre, o novelista inglês Lawrence Durrell, esmagou com seu prestígio ao
desgraçado Rhoides, pois a versão francesa (1974) de dita tradução inglesa (Londres, 1971) só
menciona o nome do Rhoides na página interior do título, apresentando como adaptação o que
em realidade é uma tradução bastante fiel.
Um episódio de história cultural alemã e inglesa (1890-1930)
A lógica pobre e aproximativa de nossa classificação das leituras contemporâneas da lenda
deveria nos induzir a incluir, dentro desta série burlesca de papisas, o esboço dramático realizado
em 1922 pelo Bertolt Brecht para a atriz Tilla Durieux . Nesta primeira fase de produção do grande
dramaturgo, a história da Juana se relata seguindo a fórmula expressionista, quer dizer com essa
afirmação paródica e rangente da individualidade em bruto que se desenvolve na primeira obra do
Brecht, Baal (1912-1922). Frente ao cálculo ambicioso do cardeal Matteo, promotor da papisa,
surge o cálculo terrestre, carnal e singelo da Juana quem, depois da iluminação pública,
«descansa em uma casita do Vaticano, adormecida, sossegada e tranqüila, perto de um berço de
madeira». A apresentação dos cardeais como negociantes de gado e estelionatários anuncia já a
Santa Juana dos matadouros (1930-1932) e a Resistible ascensão do Arturo Ui (1941).
Sem pretender aplicar pela força a este esboço de juventude o famoso término de «efeito de
estranheza» («Verfremdungeffekt», habitualmente traduzido como «distanciación», em detrimento
de seu verdadeiro parentesco com a operação teórica de «estranhamento», que à maturação
realizavam os formalistas russos) , observamos que na eleição do episódio está já presente essa
vontade do Brecht por tirar o mundo do poder, que é tema essencial de sua obra, fora de seu
marco habitual (para o mundo dos gánsters, no âmbito da cúria medieval, na China antiga, etc.),
para poder assim mostrar as molas contemporâneas do poder mesmo. Esta lógica singela e eficaz
do estranhamento explicaria sem dúvida o significado de numerosas papisas contemporâneas.
Mas ainda há outro fator determinante em jogo: Juana foi objeto de interesse preferencial para os
escritores alemães durante o período compreendido entre 1890 e 1920. O sinal de partida de dito
interesse parece ser a tese do Haage sobre a Fraw Jutta do Schernberg e a reedição de dito texto
a cargo do Schröeder em 1911 .
O «Kulturkampf» orquestrado pelo Bismarck, entre 1871 e 1878, contra o poderio da partida do
Zentrum tinha reavivado o interesse pela cultura luterana ou preluterana; de fato, na floração das
papisas de princípios do século XIX se adverte já a presença de versões neoluteranas e
misóginas, produzidas pelo obscuro Max Weitemeyer no Erfurt, em 1920, ou no Munich, em 1905,
e pelo Adolf Bartels (1862-1945), futuro grande mestre da crítica literária nazista, quem destacou
siniestramente por seus ataques anti-semitas contra a memória do Enrique Heine . A contagem
rápida das demais papisas da época demonstra até que ponto Juana tinha adquirido a ligeireza e
a variabilidade de um motivo literário disputado; assim, podemos ler em 1920 uma papisa Jutta
metafísica e simbolista na obra do Rudolf Borchardt (1877-1945), poeta e amigo do
Hoffmannstahl, e em 1920 Richard Alexander Edon publica uma versão criada novelas da história
da Juana; por último, em 1924 sai da pluma do Georg Reicke uma nova Jutta à antigo uso . Todos
estes textos se respondem e se respondem implicitamente.
A confirmação desta arbitrariedade no âmbito literário se encontra, por seu significado
contrário, na surpreendente ausência de papisas inglesas nas mesmas datas, quando entretanto
as circunstâncias pareciam ser favoráveis.
O catolicismo romano exercia uma grande atração nos ambientes de estetas ingleses próximos
ao Oscar Wilde; neste sentido, a feminilidade e a impostura da Juana tivesse podido oferecer a
esse grupo a imagem de uma suprasexualidad refinada e decorativa. Vem-nos à memória o caso
do Frederick Rolfe (o barão Curvo) (1886-1913), anglicano convertido ao catolicismo que quis ser
sacerdote e partiu a Roma em 1890, onde viveu enquanto aguardava em vão ser ordenado, e
antes de expressar sua fascinação e sua repugnância pela corte romana em suas Crônicas da
casa Borgia, Dom Tarquinio, e sobre tudo em sua obra professora, Adriano VII, onde se imagina a
eleição de uma Papa inglesa e homossexual. Poderíamos recordar deste modo ao Ronald Firbank
(1886-1926), amigo e admirador do Oscar Wilde, quem em sua última novela, As excentricidades
do Cardeal Pirelli (1926), encena sua interpretação da decadência da Igreja romana (batismo
católico de um cão, travestismo feminino do cardeal, etc.) .
Mas retornemos a nosso breve tipología das leituras da história da Juana.
Leituras novelescas
A princípios do século XIX, momento gélido na produção da novela histórica, o êxito da Juana
resulta bastante exíguo. Acaso a razão de semelhante contradição radica no caráter não gótico da
anedota, ou possivelmente na influência decisiva da leitura burlesca ou da controvérsia
permanentemente reaquecida? A única novela histórica verdadeira sobre a Juana é a do
Friederich Willhem Bruckbräu (A Papa em anáguas, Der Papst im Unterrocke, Stuttgart, 1832), um
autor prolífico em narrações históricas galantes, a metade de caminho entre o relato licencioso do
século XVIII e a novela histórica da época romântica. Bruckbräu se imagina a uma Juana viriloide,
a quem seus pais consideram como um ser masculino («A criatura parece destinada a algo
grande. É duvidoso que chegue a realizá-lo como menina»). Acontecem-se inumeráveis aventura,
com raptos, perseguições e disfarces; tudo acaba bem, já que Juana grávida consegue escapar
da fúria romana graças a seus dois cúmplices, Basilio o monge e Odón, corsário sarraceno
convertido.
Não nos deteremos no desenvolvimento fácil e livre do destino novelesco da Juana por parte de
Leão Taxil (Uma Papa fêmea, 1882) (o próprio Leão Taxil foi um personagem assombroso, que
vivia de uma verdadeira indústria da publicação anticlerical, antes de converter-se ao catolicismo
em 1885 e receber a absolvição do mesmo Leão XIII, para a seguir denunciar sua própria
conversão como uma mascarada, em 1887), e também do Ernesto Mezzabotta (A Papessa
Giovanna, Roma 1885), ou do Claude Pasteur (A Papesse Jeanne, Paris, 1983, seguida do
Manuscrito d'Anastase, 1986), já que o mero prazer de desvelar (os segredos do Vaticano) e do
travestismo carece de mistério e de profundidade.
Leituras metafóricas
Se a obra do Arnim não fora virtualmente desconhecida, poderíamos colocar ao poeta prusiano
à cabeça de uma linhagem de escritores que se interroga sobre o destino extraordinário da Juana,
interessando-se menos pela aventura eclesiástica, ambiciosa ou aventureira da papisa que pelo
mistério do travestismo ou do investimento das aparências.
Michelet tiver podido escrever um louvor da Juana; não o fez, e entretanto glorificou, bastante
rastreramente como certo, a outra disfarçada, Juana de Arco. Não obstante, achamos uma versão
micheletina da papisa em uma curiosa obra publicada na Marsella em 1878 (o mesmo ano do
escândalo do Rhoides), e redigida pelo J. P. Cansson, autor virtualmente desconhecido de uma
História da papisa Juana, senhorita Inés Alia Etelbert nascida na Inglaterra, ascensão ao trono
pontifício em 17 de julho do 855 com o nome do Juan VIII. A obra, dividida em artigos sobre a
mulher e as fadas, elogia a Juana, figura gloriosa do triunfo necessário da mulher; Cansson não
duvida em afirmar que «o cristianismo é o pontificado da mulher». A aventura da Juana,
desembaraçada de todas as escórias duvidosas e imorais, ilustra a trajetória radiante da mulher
para a humanização do gênero humano.
Mas, em vez de continuar com a descrição da vida metafórica da Juana (como as que nos
propõem Bartels ou Borchardt, por exemplo), preferimos concluir este retablo literário com a
projeção paradigmática da papisa através de duas obras contemporâneas, nas que, à margem da
letra da anedota, desenha-se poderosamente o espírito da Juana.
Yentl, ou a ambivalência
Isaac Bashevis Singer relata, em sua nova Yentl (1962) , a história de uma Juana nascida no seio
do judaismo polonês. Yentl, apaixonada pelo conhecimento talmúdico, renega de sua condição
feminina e se disfarça de homem jovem, com o nome do Anshel, ao objeto de seguir um ensino
judaico longe de seu povo natal. aloja-se na casa de um homem cuja filha, Hadass, acaba de
romper seu compormiso matrimonial com o Avagdor, companheiro de estudos do Anshel/Yentl, e
a quem él/ella ama. Empurrada por um escuro desejo, casa-se com o Hadass antes de abandonálo, e animar ao Avagdor a que se case a sua vez com ele, depois de obter um divórcio arrumado
de um lugar longínquo. O texto do Singer, tão próximo à lenda cristã, reproduz uma asíntota da
história: a nostalgia da androginia, imaginada através da vontade de saber.
Um Crime, ou a Mulher Cristo
Uma novela policíaca do Georges Bernanos, Um Creme (1935), mergulha-nos no coração
mesmo da fascinação que exerce Juana, longe dos temas papais, ao nos descrever a misteriosa
presença de uma mulher Cristo, tema essencial de um texto no que o autor só sacrifica à intriga
as últimas páginas da obra, necessárias para concluir o relato de ficção. Vejamos qual é a chave
que nos proporciona Berna-nos nessas cinco páginas finais: uma moça (sem nome), filha de uma
monja que teve que fugir do convento depois da iluminação, chega até a aldeia alpina onde vive
sua mãe em qualidade de governanta de uma anciã rica. Seu objetivo é assassinar à dama, para
assegurar que sua fortuna passe a sua neta, Evangelina, de quem ela mesma é senhorita de
companhia e amante, à espera de poder desfrutar da herança. Ao fugir do lugar do crime de noite
se encontra com o sacerdote que deve tomar posse de sua paróquia; e, posto que já o tinha
encontrado durante a viagem, pensa que deve eliminá-lo. A seguir decide substitui-lo e, vestindose sua batina, apresenta-se como o novo pároco.
O novo sacerdote chega, pois, em metade da noite, quando ninguém lhe aguarda já, e Celeste,
a criada do presbítero, acredita que se trata de uma aparição: «O rosto destacava com nitidez no
centro do halo luminoso... "chegastes", repetia mecanicamente, "chegastes"...». Esta aparição
estava anunciada e precedida de uma espécie de silêncio ruidoso: «O que ela (Celeste) acabava
de ouvir era apenas um ruído, já que não tivesse podido situá-lo em nenhum ponto do espaço e
entretanto parecia que dito ruído não tivesse cessado, já que seguia flutuando a seu redor (de
Celeste), muito perto. "Vá", disse em voz alta, "o vento cessou"».
Nessa aldeia esquecida de Deus, a espada do anjo (sua pistola) vai cortar o sonho pesado
para separar aos escolhidos (de Deus?, de Satã?). A primeira cena da obra anunciava já a
chegada do anjo com uma espécie de paródia, de falsa feminización, de esboço áspero, do
angelismo do pároco-mulher, nessa aldeia que Bernanos chama «Mégère». Celeste aguarda,
pois, temerosa, ao novo pároco, e em seu lugar chega Phémie a campanária (anunciadora) «sem
fazer mais ruído que uma doninha», personagem viril que cospe, bebe genebra, e que propõe a
Celeste lhe fazer companhia com a condição de que lhe permita fumar o «cachimbo do morto»,
isto é a do pároco cujo substituto aguardam.
O jovem pároco conquista Mégère e os aldeãos se advêm a seus desejos. Celeste é primeira
em entregar-se: «Nunca esqueceria esse sorriso que, com tanta rapidez, soube conquistar seu
coração e ganhar sua fidelidade para sempre.» Celeste entende que o neumatismo do pároco se
traduz em uma inspiração direta que convoca, sem ele desejá-lo, a imagem do Espírito Santo:
«Inclusive antes de que tenha aberto a boca seu pensamento já está dentro de ti, dentro de seu
peito, e saltou dentro do coração. E as palavras para lhe responder afluem igualmente, como se
só tivesse que lhes fazer um sinal, lhes chamar, já que tem a graça de encantar às pombas, como
o velho italiano que veio aqui o ano passado.» Logo lhe tocou à coroinha, ao «curilla», que
seguirá ao pároco passo a passo até sua morte, cair vítima de sua fascinação, quando o anjopároco lhe disse: «Quando Deus nos põe em presença de um professor, o futuro pode depender
de um primeiro olhar.»
Um pouco afastado do círculo presbiterial, o juiz de instrução encarregado do caso se faz
esperar. Mas a fascinação lhe reduz ao convencimento da inocência e, ante o assombro de suas
guardas, deixa partir ao pároco, à testemunha principal. Seu inspetor de polícia, que está
escutando detrás da porta, é testemunha a sua vez dessa mudança fulminante que faz que o juiz
acabe de confessar-se a sua testemunha: «É o mesmo que pretender escutar como cresce a
erva. Deixem, pois. Um magistrado que não tem nada que reprovar-se não fala como se fora uma
moça em confissão.» O juiz não reconhece ao anjo, já que só conserva dele uma vaga lembrança:
«O rosto do pároco do Mégère parecia surgir também das profundidades de sua memória. Era
toda sua imagem, ou alguma singularidade do olhar, da voz, do gesto?» E, quando o sacerdote
desapareceu já, o juiz, impaciente por esse véu («Aqui ninguém se resigna a ver como todo
mundo, com seus próprios olhos. conhece-se, encontrou-se em algum sítio, ouviu-se falar
vagamente com um terceiro quem ele... Voltarei-me louco, pardiez!...»), só dispõe da foto de uma
jovencita, que encontrou na carteira do pároco, e que contempla sem fim nem motivo.
O que devemos compreender deste sopro sobre o Mégère? Uma leitura plaina veria nesta
intrusão uma metáfora da graça violenta que sacode e investe, de acordo com o modelo
evangélico que evocamos mais acima. De fato, a nebulosa Celeste-o curilla-o idiota da aldeia (o
único que viu ao anjo de mulher, entre seus dois crímenes, em pleno ato de selvageria: «Uma
mulher de verdade, mas com um montão de pêlo. Tivesse-a tomado por uma besta») recorda-nos
a trilogia salvadora da mulher, do menino e do louco, que deve substituir à Papa malvada,
segundo os franciscanos espirituais do século XIV. Por sua parte, Celeste e Phémie relatam a
aparição da seguinte maneira: «Um pároco que chega acontecida já a meia-noite e no
calhambeque do idiota... E se fosse a justiça, amiga minha...»
Mas o fundamental de toda a história é que a capacidade sedutora do pároco resulta da
distância que ele mesmo estabelece, desse medo que lhe devora e que ele propaga como uma
infecção («Não há amor sem temor», escreve él/ella a Evangelina). Este terror (o do ex-terminador
ou o do Mesías) procuram-lhe a fidelidade do curilla e de Celeste («seu terror já não tinha objeto:
amarrava-lhe simplesmente ao suceder desse sacerdote desconhecido»), e desarma ao juiz, esse
novo São Pablo. Para estes escolhidos, o padre se apresenta como um ser chegado do exílio, de
alguma capital longínqua. Com o assassinato e a impostura (investimento ou restauração
verdadeira da Paixão), o pároco-mulher intervém em seu destino, forçando-o para a graça. El/ella
assume e dispersa a herança feminina (a fortuna de sua vítima e o atavismo materno), para extrair
assim a arma de uma suprasexualidad em que prepondera o feminino, de uma feminilidade
Angélica (revanche ou verdade de Deus) que esgrime contra suas paródias: a aldeã (Mégère), a
afetiva (o amor turvo pela Evangelina) e a clerical («tinha vivido com toda intensidade, embora
completamente acordada, um pesadelo sinistro, em que até os mais lúcidos tivessem reconhecido
uma por uma todas essas imagens aberrantes que eram fruto do remorso materno: essa
obsessão pela figura do sacerdote, por seus gestos, por sua linguagem, que durante tantos anos
tinha envenenado a consciência atormentada de antiga religiosa»).
A formosa novela do Bernanos coincide, ao cabo do tempo e em detrimento da anedota e da
história, com o estupor original do Juan do Mailly, ao tempo que nos convida a fechar este libero
com uma interrogante final sobre essa fascinação metódica que, em última instância, suportou
esta, já larga, pesquisa sobre a papisa. Temos, pois, que concluir.
Epílogos
CAPITULO VIII
primeiro epílogo: historiografia da papisa
Para a história da Juana, esta passageira das ambivalências, pensamos em dois epílogos
distintos, cujo caráter não concludente sublinharemos seguindo a numeração dos capítulos. A
retórica manida de uma certa repulsa por concluir não justifica por si só dita decisão. Mas, a quem
poderíamos reconhecer o direito de pronunciar a última palavra sobre a papisa? Até aqui, nossa
investigação situou a Juana no âmbito dos discursos e dos universos de crença ou nos campos
culturais que lhe conferiam uma função, ao tempo que lhe absorviam totalmente. Que lembrança
de sua figura nos permitiria pensar na papisa além dessas fraturas e dessas cristalizações
sucessivas e exclusivas? No melhor dos casos, corremos o risco de acrescentar novas versões ao
fio do comentário que oferecemos a seguir.
Não obstante, ambos os epílogos representam um intento de redução fenomenológica da
anedota, pondo entre parêntese toda a floração histórica da lenda, e tendo em conta só o ato
mesmo de relatar a história da Juana, reeditado na presente obra. Como sou o último, até a data,
dos fiéis da papisa, situarei minha própria versão ateniéndome a dois critérios: em primeiro lugar,
interrogando esse protocolo que me obriga a adotar uma posição concreta dentro da tradição
historiográfica sobre a Juana (epílogo 1); e, em segundo término, sopesando minha própria
participação nessa curiosidade continuada que suscita a papisa à margem das diversas
interpretações (epilogo 2).
Podemos isolar, legitimamente, uma historiografia da papisa? Certamente que não, se tivermos
em conta que, desde o Juan do Mailly, Juana constitui por si mesmo um tema de história. Por
isso, a historiografia se confunde com o conjunto dos discursos que suscitou Juana, raiando na
ficção (e, ainda assim, o aparelho erudito do Casti ou do Rhoides comporta uma descrição
histórica).
Ou terei que distribuir diplomas de historiador ao pôr o ponto final da verdade sobre a Juana,
assinalando que autores tomaram o caminho para esse ponto. Ao parecer, esta teleología
funcionou bastante bem em nossa época, já que o esforço histórico ficou virtualmente imobilizado
(excetuando o trabalho do Cesare d'Onofrio) em 1863 com o Döllinger, quem determinou a
verdade da Juana (sua inexistência) ao tempo que metia em um só pacote ao quadro de honra
historiográfica (a lista dos céticos) e ao cúmulo do engano (a lista dos crédulos). Juana não
existiu: este e não outro é o fato histórico. A história verdadeira começaria, pois, no século XVI
com o Panvinio, aperfeiçoando-se depois graças ao Blondel (crítica desinteressada), ao Leibniz
(crítica pormenorizada) e ao Döllinger (quem põe ao serviço da crítica os novos lucros da ciência
filológica alemã do século XIX).
É totalmente exato que, com toda probabilidade, a papisa não existiu jamais, como assim nos faz
isso ver o pensamento elegante e sóbrio do Leibniz em duas linhas que valem por volúmenes de
controvérsia: «dentro da ordem justa dos tempos, a série de acontecimentos e de pessoas não lhe
deixam sítio algum« («Cui in justo temporum ordene nullum relinquit serie rerum
personnarumque»). A erudição moderna e contemporânea não deixa subsistir nenhuma lacuna na
cronologia papal do século IX. Mas, por outro lado, nada proíbe a quem o deseje feminizar a tal ou
qual Papa, como se tem feito no caso do Homero ou do Shakespeare . Sabemos igualmente que
toda construção imaginária pode encontrar sua própria justificação.
Mas, neste sentido, só estamos ante uma verdade da Juana, a mais pobre, porque o fato de
acreditar na existência da papisa ou de rechaçar sorte crença constitui deste modo um tema
histórico. Por outro lado, essa verdade provável incitou o esforço de historiar, e não o contrário;
seria, pois, inútil procurar um método onde se utilizaram médios. Por isso, tentarei a minha vez
identificar algumas constantes na interpretação moderna e contemporânea da lenda, analisando
os dispositivos mentais que acompanham a decisão de te ocupar da Juana. Assim, referirei-me ao
caso de um homem honrado, que se enfrenta ao tema da papisa a princípios do século XIX, muito
depois das grandes controvérsias religiosas. Escutemos, pois, durante um momento, a esta última
testemunha, ao Stendhal, cuja eleição aqui não se deve a sua notoriedade, a não ser ao caráter
de uma vez insuspeitado e exemplar de seu encontro com a Juana:
«Quem poderia acreditar que ainda hoje existem em Roma pessoas que dão muita importância
à história da Juana? Um personagem de muita consideração, e que aspira ao cape-o, atacou-me
esta mesma tarde a propósito do Voltaire, quem, segundo ele, permitiu-se muitas impiedades ao
falar da papisa Juana. Parece-me que Voltaire jamais disse uma palavra sobre o particular. Por
não parecer desleal a meu hábito ( o pior dos defeitos a olhos de um italiano), hei sustenido a
existência da papisa, utilizando como melhor podia raciocínios que meu próprio adversário me
expor.
»Vários autores contemporâneos dizem que depois de Leão IV, no 853, uma mulher, alemã de
nacionalidade, ocupou a cadeira de São Pedro e teve por sucessor ao Benito III.
»Eu hei dito que não se devia pedir à história um gênero de certezas que não pode oferecer. A
existência do Tumbactú, por exemplo, é mais provável que a do imperador Vespasiano. Preferiria
acreditar na realidade das ruínas mais singulares que alguns viajantes dizem ter visto em meio da
Arábia, que na existência do rei Faramondo ou do rei Rómulo. Não seria raciocinar bem contra a
existência da papisa Juana dizer somente que a coisa parece pouco provável. Porque as proezas
da Donzela de Orleans se chocam contra todas as regras do sentido comum, e, entretanto, temos
mil provas delas.
»A existência da papisa Juana está comprovada por um extrato das crônicas do antigo monastério
do Canterbury (baseado pelo célebre Agustín, que tinha sido enviado a Inglaterra pelo Gregorio o
Magno). No catálogo dos bispos de Roma, e imediatamente depois do ano 853, a crônica (que eu
não vi) contém estas palavras: "Hic obiit Leio quartus, cujustamen anni usque ad Benedictum
tertium computantur eo quod mulier in papam fuit". E depois, o ano 853: "Johannes. Esteja non
computatur quia femina fuit. Benedictus tertius, etc.". Este monastério do Canterbury mantinha
relações freqüentes e íntimas com Roma; por outro lado, comprovou-se suficientemente que as
linhas que acabo de transcrever se escreveram no registro no mesmo tempo que indicam as
datas.
»Os escritores eclesiásticos que aguardam sua ascensão na corte de Roma acreditam que ainda
é útil estabelecer que o poder para redimir nossos pecados, e do que a Papa goza, foi-lhe
irradiado de Papa em Papa, pelos sucessores de São Pedro, quem a sua vez o tinha recebido do
Jesucristo. Dado que é essencial, não sei por que, que a Papa seja um homem, se entre o ano
853 e o 855 é uma mulher a que ocupou o trono papal, então se interrompeu a transmissão de
poder para redimir os pecados.
«Sessenta autores pelo menos, gregos, latinos e inclusive Santos, relatam a história da papisa
Juana. O famoso Esteban Pasquier diz que a imensa maioria desses autores não tinham
nenhuma animadversión contra a Santa Sede. O interesse de sua religião, o de sua própria
ascensão, e inclusive o medo a receber algum castigo, deveriam-lhes ter induzido, pelo contrário,
a manter oculta esta estranha aventura. Durante os séculos IX e X, as facções rasgavam Roma e
a desordem estava em seu apogeu. Mas as Papas não eram mais malvados que os príncipes de
sua época. Agapito foi eleita Papa antes de cumprir os 18 anos (946), Benito IX subiu ao trono
aos 10 anos e Juan XII aos 17. O próprio cardeal Baronius, o cronista oficial da corte de Roma,
está de acordo. Há muita diferença entre a figura de um homem jovem de 18 anos e a de algumas
mulheres de caráter decidido e audaz, como o que se precisava para aspirar ao Papado?
Atualmente, e apesar da intimidade que requer a vida militar, quantas mulheres disfarçadas de
soldado não receberam a cruz da Legião de Honra, e as da época do Napoleón?
»Dou-me conta que esta lembrança dos fatos incomoda muito a meu antagonista, quem extraía
suas razões de peso da improbabilidade, já que os textos históricos são terríveis. Mariano Decoto,
monge escocês morto em 1086, narra a história da papisa. Bellarmin, o escritor papista, diz dele:
"Diligenter scripsit". Anastario, chamado o Bibliotecário, abate romano, homem douto e de grande
mérito, contemporâneo da papisa, relata sua história. É certo que em muitos manuscritos do
Anastasio, os monges que os copiavam omitiram esta página escandalosa. Mas se provou mil
vezes que tinham por costume suprimir todo aquilo que estimavam contrário aos interesses de
Roma.
»O Sueur em sua História eclesiástica e Colomesius em suas Miscelâneas históricas citam a
um Anastasio da Biblioteca do Rei da França. Existiam dois Anastasios parecidos no Augsburgo e
em Melam. Saumaise e Freher lhes tinham visto. Anastasio dispunha de informação suficiente,
habitava em Roma e falava em qualidade de testemunha ocular. Tem escrito a Vida das Papas
até o Nicolás I, quem viveu depois do Benito III.
»Martín Polonus, arcebispo da Cosenza e penitenciário do Inocencio IV tem escrito a história
da papisa Juana.
»Esta mulher singular recebe às vezes o nome do Anglicus e outras o do Moguntinus.
Rolewinck, o autor das Flores Temporum, diz "Joannes Anglicus cognomine sede natione
Mogontinus". Na Vida do Carlos o Calvo, Mézeray diz que a existência da papisa Juana foi
recebida como uma verdade permanente durante quinhentos anos.
»E1 leitor poderá apreciar sem dificuldade, à vista do tom sério das páginas que acaba de ler, que
esta discussão que tinha começado nos salões do Embaixador de *** concluía na biblioteca
Barberini, onde me tinha chamado meu erudito antagonista. Um tal senhor Blondel, protestante,
mas que tinha vivido em Paris em tempos do Luis XIV, e que desejava progredir, compôs uma
dissertação pouco convincente contra a existência da papisa Juana, quem reinou provavelmente
entre o 853 e o 855.
»Mas o que importa a verdade desta anedota? Nunca chegará até a classe de homens que se faz
redimir seus pecados. Dêem o Código Civil a seus súditos, dizia-lhe eu a meu adversário, e
ninguém despertará seriamente a lembrança da jovem alemã que se situou intempestivamente
entre São Pedro e Leão XII. Era jovem, posto que tirou o chapéu seu sexo com uma iluminação
ocorrida em meio de uma procissão. Vimos no museu do Louvre uma cadeira de banho de pórfido
que está mesclada na história da papisa Juana. Mas eu não desejo me converter em
escandaloso» .
Esta cena romana reflete com claridade a natureza da historiografia da Juana: abunda a
impostura, como se a mutreta da Juana ricocheteasse sobre quem se aproxima a ela. De fato, o
texto do Stendhal copia a sua vez quase textualmente, e sem dizê-lo, duas cartas da Viagem a
Itália do Misson, publicado em 1694, e utilizando com freqüência pelos viajantes (entre eles Sade);
a entrevista mesma da biblioteca Barberini procede do Misson quem, para romper a monotonia de
sua dissertação sobre a Juana, passa a fazer uma descrição de dita biblioteca. A falsidade da
posta em cena inclui, além disso, a falsidade mesma dos argumentos: o futuro cardeal recrimina
equivocadamente ao Voltaire, um juanoclasta convencido, como vimos mais acima. Por outro
lado, a alusão ao Anastasio (considerado também erroneamente autor do Líber Pontificalis; e,
sabemos, do século XVI, que as menções da papisa foram acrescentadas ao Liber no século XIV)
remete a um escuro assunto que, a princípios do século XVII enfrentou aos jesuítas de Colônia e
aos protestantes: ao parecer, arrancou-se de um manuscrito emprestado a página que falava da
Juana. Nesta guerra de falsidades que se remonta ao século xVI, os historiadores da Juana não
cessam de copiar-se, saquear-se, deformar-se e acomodar-se mutuamente. Mas esta penetração
do falso não reflete uma psicologia particular asociable aos historiadores da Juana (embora em
ocasiões possamos advertir uma virulência singular por parte de alguns fugitivos, como Balo,
Vergerio ou Raemondo), mas sim sublinha o aspecto fundamentalmente agonístico da questão.
Stendhal ilustra perfeitamente dito aspecto, inventando a cena dos dois adversários, cuja
decisão polêmica tem que ver sua vez com uma situação tática: o juanoclasta, «personagem de
muita consideração», «aspira ao cape-o» (cardenalicio) e «ataca» a um representante do
anticlericalismo, compatriota do Voltaire. Por sua parte, o narrador juanista dá a cara por
solidariedade nacional e cultural («por não parecer desleal a meu hábito»). Os jogos, que aqui
resultam anódinos, embora estejam tratados com humor, têm sua precedência. Por outro lado, a
conversação ácida que se desenvolve entre o narrador e o prelado projeta bastante bem a vida da
Juana na controvérsia dos historiadores; isto é, um diálogo incessante que reitera
incansavelmente argumentos mais insuflados (inspirados e inchados) que maturados. Só daremos
um exemplo desta dialética repetitiva: em 1844 um erudito holandês, N. Kist, escreveu um novo
tratado favorável à existência da papisa, Do Pausin Joanna; ao ano seguinte, G. Wensing publica
uma resposta cuja agressividade contra Kist importa mais que o fundo mesmo do assunto (De
verhandung vão N. C. Kist). O ciclo continua com uma «palavra» (de vões dezenas de páginas) do
L. Tross (Een Woord an Wensing) dirigida ao Wensing; as principais revista históricas européias
dão conta da disputa Kist-Wensing-Tross, antes de que se inicie o século seguinte...
depois de tantas controvérsias, esta persistência tardia expõe a difícil questão da sobrevivência
de certas representações, que parecem estar dotadas de uma espécie de atemporalidad
indestrutível, inclusive quando os conteúdos variam e desaparecem. A recuperação do debate
que gera historiografia reflete um estranho autonomismo, à margem da razão, como se o homem
tivesse necessidade de um montão de perguntas já debatidas, sobre as que alberga a ilusão de
abrir um processo mau instruído, como se fora um juiz ou um fiscal.
Em efeito, esta rabia dialética, esta argumentação copiosa, este verbo infatigável definem qual foi
o tom da historiografia da Juana do século XVI: um tom judicial. Juana encontrou advogados e
fiscais, em ocasiões juizes, e estranha vez historiadores. Desde o Panvinio, e concretamente
desde que Juana importa como peça de um processo mais amplo, o procedimento, embora se
depurou, foi sempre idêntico.
A acusação (juanista) propõe dois tipos de médios: os testemunhos e a reconstrução narrativa
do crime; a defesa, a sua vez, responde com outros testemunhos e com a constituição de um álibi.
1) Os testemunhos: como vimos, a acusação acumula os testemunhos escritos desde o
Anastasio o Bibliotecário e Mariano Decoto; o princípio de acumulação prevalece como na justiça.
Spanheim e Lenfant chegam a reunir até 160 textos. Outro rasgo indica a influência judicial, pelo
menos no século XVI: contra toda lógica de método histórico, a acusação privilegia os
testemunhos recentes, contribuídos pelos historiadores contemporâneos, como se a qualidade
mesma da testemunha, garantida pela proximidade temporária, tivesse preferência frente à
antigüidade do rastro.
A defesa responde com contratestimonios estabelecendo largas listas de autores que
ignoraram a papisa. Por outra parte, recusa às testemunhas da acusação, assinalando a
falsidade, a interpolação ou as cópias sucessivas e ignorantes. Florimondo do Raemondo foi
muito longe neste sentido; de havê-lo seguido, nenhum autor, à exceção dos poetas, tivesse
falado da Juana.
Esta crítica do testemunho conduz, no caso dos autores mais sutis como Panvinio ou Allacio, a
uma verdadeira avaliação filológica dos textos, emprestando igualmente atenção à paleografia e
às filiações dos manuscritos. O ardor demonstrativo engendra a agilidade científica, e Bayle tinha
razão ao assinalar que, neste assunto, os protestantes havia tornado contra eles as armas que
tinham forjado para a destruição dos enganos católicos. Mas a filologia não podia triunfar, já que
suas vitórias abriam sem cessar novos campos de batalha, sempre além das tradições. O ácido
corrosivo da crítica textual arrasava o próprio pergaminho.
2) A narração: o modelo romano da advocacia, isto é, de defesa ilustrado pelo Cicerón e
perpetuado até nossos dias, utiliza como médio essencial a «narração», quer dizer a reconstrução
orientada e verossímil dos fatos («ex-facto oritur /mí»). Também aqui, Spanheim e Lenfant
proporcionam um exemplo perfeito, já que começam sua defesa a favor da existência da papisa
com um larguísimo relato que absorve todas as descreencias dos cronistas; por outro lado,
inserem a história nos contextos conhecidos e pouco discutíveis: assim, a origem inglesa da
Juana, uma geração ou duas depois da conversão da Sajonia, constitui uma lembrança das
missões monásticas britânicas. Ao igual a na narração judicial, pensa-se chegar à convicção
através do amálgama cuidadoso do que é certo, pelo que é falso e do que só é hipotético. Ao
emprestar-se a esta elaboração, Juana assinala as fissuras que gretam determinados painéis da
historiografia geral, levantados sua vez sobre os alicerces brandos das categorias narrativas (a
casualidade resultante da cronologia, do psicologismo e da confusão entre o verdadeiro e o
verossímil).
3) O álibi: frente ao relato verossímil, a defesa esgrime a linealidad cronológica do Papado que
não deixa sítio a um reinado supernumerário; mas este argumento não é suficiente em razão da
natureza vaporosa da temporalidad da Alta Idade Média, e da possibilidade de uma inscrição
masculina do Papado feminino. Em conseqüência, os defensores devem propor uma explicação
positiva da lenda: a papisa não se encontra na realidade da instituição, a não ser fora, na
imaginativa da metáfora.
Desde o Panvinio até nossos dias, a defesa aplica este álibi, reconstruindo o engano que teria
produzido uma crença errônea: a memória coletiva (? !) teria tomado ao pé da letra uma metáfora
insultante ou zombadora sobre as mulheres, mujercillas das Papas débeis ou libidinosas. Não
faltaram candidatos para este papel matriarcal: essa Papa feminizado maliciosamente foi Juan VII
para o H. G. Wouters (1870), Juan VIII para o Baronius, May e Hergenroether (1868) e Hefele
(1879); Juan XI, para o L. Weiland e A. Lapôtre (1895); Juan XII, para o Panvinio, Raemondo e
Moroni (1845); o conjunto de Papas com o nome do Juan no século IX, isto é desde o Juan X até
o Juan XIII, para o F. Vernet (1911), e o antipapa Anastasio o Bibliotecário para o G. Arnaldi
(1886) . Para outros autores, a lenda não reproduz uma injúria dirigida a uma Papa, a não ser a
denúncia irônica de uma mulher presunçosa: para o Allacio (1630) e Ciaconio (1677), trataria-se
da pseudoprofetisa Thiota, condenada no concílio da Maguncia no ano 847; para o bispo Suárez
(chamado pelo Reynaud em 1603), e contra a evidência cronológica, esta «papisa» seria Juana,
esposa do antipapa Nicolás V (1328); enquanto que para o F. Vernet, a famosa Marozia, mãe do
Juan XI, resultaria muito conveniente: o cronista Benito de São Andrés do Monte Soracte nos
indica que Roma se encontrava então sob o domínio de uma mulher .
Entretanto, tanto Bellarmin como Leibniz parecem dirigir o álibi com mais desenvoltura; ambos
despacham o assunto fora do campo pontifício sem explicá-lo. Por sua parte, o jesuíta vê na lenda
a derivação de uma fábula de Constantinopla sobre uma mulher patriarca, a que se refere a Papa
Leão IX em 1054, quando escreve ao patriarca Miguel Cerulario, o pontífice se nega a acreditar
em dita fábula, mas extrai da mesma o argumento que necessita para condenar o costume
bizantino que permite aos eunucos acessar ao Patriarcado . Leibniz, exercendo de pacificador lhe
reconciliem, propõe aceitar a lenda referida a um bispo qualquer, e que o acontecimento se teria
atribuído a seguir ao Papado mesmo.
Por último, alguns têm proposto como tema do decifração errôneo: um simbolismo teológico
(analisamos extensamente mais acima a hipótese do Cesare d'Onofrio sobre a metáfora
incomprendida da «Mater Ecclesia»); uma alegoria satírica (para o Blasco —1778— e A. F.
Gfoerer —1848—, a lenda procederia de uma personificação zombadora das Falsas lhes
Decrete); ou, por último, uma simples inscrição misteriosa, traduzida maliciosa ou ingenuamente
(já consideramos antes esta teoria do Döllinger) .
Mas terei que encontar aos culpados deste deslocamento; para muitos, a travessura maliciosa
do povo romano desempenhou um papel determinante, enquanto que para outros terei que olhar
em direção dos dominicanos, e em uma época muito mais tardia.
Não nos deteremos no aspecto aventuroso e aleatório destas hipótese, que por outro lado
explicam mal um silêncio de dois ou três séculos antes da eclosão narrativa do século XIII
(inclusive embora aceitássemos a proposta adiantada mais acima sobre um estado verbal e ritual
da lenda durante o século que precede a sua inclusão nos textos), porque, que memória oral e
tenaz teria podido conservar dito relato?
O procedimento judicial da controvérsia escapa ao controle do discurso histórico, multiplicando
os sujeitos ali onde a história só pode determinar agentes e sistemas. Ao situar a Juana no centro
de um processo em curso, lhe converte em um sujeito que deve responder de seus atos;
aproveitando a participação do Leibniz nesta historiografia, falaremos de uma verdadeira
juanodicea, tão premente como a teodicea do filósofo, que pretende atar a Deus ao banco de uma
valoração judicial do mal e do bem repartidos pelo mundo. A postulação da inexistência da papisa
se limita a substituir ao sujeito acusado por outros: o enganador, o fraudado, o ignorante, o peralta
e o fantasma errante portador de uma metáfora infamante; todos estes sujeitos, desprendidos de
seus tempos, procuram uma ancoragem aleatória (todos os que se chamam Juan resultam
convenientes) ou mítico (o povo, os gregos, os alemães, os dominicanos, etc.).
Por minha parte, e frente a essa ontologia judicial da papisa, tão sugestiva até nossos dias,
dadas as implicações ideológicas do episódio, quis propor uma antropologia histórica da Juana.
Rogo aos leitores que me perdoem este instante de ambição teórica, cujo objeto não é o de
celebrar a tarefa realizada, a não ser, pelo contrário, o de esboçar um projeto.
Animado por esse desejo, quis identificar os significados globais e sem dúvida capitalistas do
relato no âmbito das sociedades pelas que discorreu, evitando reduzir sorte interpretação ao
domínio exclusivo da história eclesiástica, do folclore, ou da curiosidade anedótica. A lenda, esta
lenda (junto com algumas outras), por seu poder de cristalização e de precipitação, e por sua
capacidade para organizar as mentalidades, constitui sem lugar a dúvidas um «fato histórico
total», tão importante (nem mais, nem menos) que o curso do trigo, ou que tal ou qual reforma
política. A referência anterior à «antropologia» pretende, pois, reivindicar para o historiador essa
virtude do «estranhamento», que induz ao antropólogo a considerar que a complexidade das
sociedades que estuda requer uma atenção tão cuidadosa dos conteúdos simbólicos, como a que
de fato disposta aos aspectos sociais ou econômicos.
À margem do verdadeiro afeto que lhe professo, a papisa me proporcionou uma entrada
cômoda em universos de crença muito longínquos, e esta comodidade não se reduz ao mero
interesse pelo estudo de um caso que a sua vez permita um domínio exaustivo da matéria. Juana
atravessa, quase sem variar, a seqüência dos tempos e dos contextos, graças a grande
estabilidade de sua história, unida à perenidade da instituição papal. Em conseqüência, a papisa,
utilizada como marco, detém em primeiro término (o metodológico) o estatuto de tema histórico.
Por outra parte, Juana constitui uma espécie de pólo fixo ao redor do qual se organizam
parcialmente os campos movediços da crença ; neste segundo sentido (o empírico) apresenta-se
como um tema de história.
O procedimento seguido aqui consistiu, pois, em historizar a lenda mediante uma
desconstrucción (rechaço do ponto de vista ontológico), uma contextualización múltiplo e uma
reconstrução funcional dentro de células significantes.
A tarefa que iniciamos aqui consistirá, em última instância, em percorrer, partindo de outros
pólos e de outras configurações parciais, esses conjuntos etéreos mas reais, que denomino
sistemas de crença. Na linguagem vulgar, o término de crença evoca por igual um conteúdo (tal
ou qual dogma, tal ou qual relato) como um ato (de adesão ou de captação). Mas mais que de um
ato ou de uma atividade, teria que falar, com o Habermas, de um atuar, isto é de uma disposição
orientada para a ação: condiciona-a e prescreve suas possibilidades, suas restrições e seus
limites. A crença, contemplada como dispositivo, distingue-se do aparelho (concreto, como a
paróquia, ou abstrato, como o sacramento) e da ideologia (como produto). Em soma, a crença
seria o instrumento, determinado concreta e historicamente, que vincula as capas profundas e
inertes das mentalidades (a tradição narrativa da papisa, por exemplo) à superfície manifesta da
ação (a conduta a seguir no momento do Grande Cisma, a condenação de Roma, etc.). Este atuar
não deve tomar-se aisladamente, posto que forma sistema com outras esferas, nas fronteiras da
atividade transitiva (a transformação do mundo) e da atividade de representação, ao lado, como
vimos, das práticas rituais, especulativos, estéticas e comunicativas. O sistema de crença se
recorta, pois, sem cessar e de maneira diferente segundo os tempos.
O estudo dos sistemas de crença contemplaria, pois, três elementos: o universo de crença,
formado com os conhecimentos e representações disponíveis historicamente, e balizados com
alguns pólos de organização; as diversas formas de crença, sucessivas e concomitantes de uma
vez, e, os agentes da crença (produtores e consumidores de crença, em permanente interação).
Minha proposta contempla todas as facilidades e todos os perigos do sistema, de maneira que
a abstração e a arbitrariedade espreitam. Por isso, abordo dito programa pela via indireta da
monografia, sonhando com uma cartografia futura dos universos de crença.
Mas seria muito triste abandonar a Juana com estas frite considerações de método, já que a
papisa atravessa os tempos e as apropriações com um corpo ligeiro e fugitivo. Sigásmola ainda
um pouco.
CAPITULO IX
segundo epílogo: o corpo da Juana
Ao término de nossa investigação, pergunta-a inicial segue aí: o que significa, em última
instância, esta história da papisa Juana? Por nossa parte, ocupamo-nos que ela por seu valor
verbal, isto é seguindo o célebre adágio do Wittgenstein: «Não procurem os significados,
procurem o uso». De fato, Juana serviu sobradamente como manequim para a brincadeira ou o
temor no século XIII, como caso de ratificação do direito ou da graça pelo fato para o Guillermo do
Ockam e os franciscanos do século XIV, como precedente de um pontificado supernumerário no
momento do Grande Cisma, como prova do Anticristo romano no século XVI luterano, como cargo
engraçado e zombador contra a catolicidad nas brincadeiras anticlericales da Revolução Francesa
e do século XIX e por último como metáfora das virtualidades femininas (exaltadas ou temidas),
ou da vertiginosa plasticidade humana em determinadas versões literárias, desde o Boccaccio até
o Achim von Arnim.
Mas todos estes usos não esgotam o ser da Juana. Que envoltório suficientemente amplo e
flexível conterá essas estoque díspares? Uma resposta indolente consistiria em colocar a história
da Juana entre as que a sua vez conformam o imenso receptáculo das «lendas». Mas isto seria
banalizar o tema, tratando o de pretexto. A operação historiográfica que realizamos aqui,
percorrendo os diversos usos que se feito da Juana, corresponde-se mas bem com a famosa
definição da tarefa de criar novelas, que Stendhal tomou emprestada do Saint Real: «Uma novela:
é um espelho que passeamos ao longo de um caminho.» Mas, além disso, resulta que o espelho
da Juana apresenta umas características farto singulares: é côncavo, de maneira que focaliza os
raios projetados para ele; e não reflete, mas sim concentra o calor e o brilho, de maneira que
produz a fusão ou a efusão. E esta neutralização terminológica evitaria a sua vez um dos
principais mesentérios desta história: o tema da crença. Como vimos, Juana conhece registros e
formas de crença muito diversos (distinguimos entre a crença verídica, a crença fantástica, a
crença racional e o contrato de adesão), de maneira que a normalização do episódio suspenderia
essa dinâmica que resulta essencial para a força desta narração. Por último, e sem mais
justificações, terá que afirmar que a talha da Juana é muito distinta a dos seres de papel que
povoam as «lendas».
Em conseqüência, Juana vive mais à frente ou mais para cá do que se há dito a seu propósito.
Mas qual é sua vida? Pergunta-a não é retórica, posto que interpela o resplendor que se mantém
aceso entre nossos contemporâneos, quem, pelo general, desconhecem a folha de serviços da
Juana. Quando aludia ou anunciava o presente trabalho, meu interlocutor não perguntava jamais
a razão de minha investigação (o que sim ocorreria se se tratasse do sacerdote Juan ou do Grog
e Magog); uma conivência imediata, zombadora ou calorosa, parecia indicar uma cumplicidade,
uma familiaridade recuperada com um ser um pouco esquecido mas sempre presente, como se
tivesse tirado de minha carteira a fotografia amarelada de uma prima comum, simpática e
escandalosa, vagamente extravagante e ligeiramente comprometedora.
Esta familiaridade etérea mas segura, que pode prescindir de um conhecimento, permitiria
possivelmente tratar a história da Juana como um mito. Brutalmente, e a título experimental,
atrevemo-nos a ver na Juana um eco cristão do Tiresias, tematizando, na história da papisa, a
trangresión da separação dos sexos. Semelhante decisão incomodará sem dúvida pela facilidade
que entranha, pois o leitor pode farejar na mesma a harmonia banal que resulta do desfile
conclusivo da papisa, à saída de sua igreja, para a praça maior, lugar comum onde tudo converge,
enquanto que, até aqui, a história da Juana e das configurações nas que preponderava não
deixava sítio para esse vibrato universalista. Mas lhe deixemos desenvolver-se por um instante
sem introduzir as dissonâncias da crítica.
Falemos, pois, do Tiresias. Recordemos a versão mais comum do mito grego. O tebano
Tiresias se passeava pelo monte Cileno, quando viu duas serpentes em transe de aparearse;
separou-as e, ao ponto, converteu-se em mulher. Sete anos depois, e nas mesmas paragens,
observou de novo um emparelhamento de serpentes; reiterou seu gesto e recuperou o sexo
masculino. Estas metamorfose lhe deram a conhecer, e Zeus e Fira recorreram a ele a propósito
de uma polêmica que lhes enfrentava: quem experimenta major goze no amor, o homem ou a
mulher? Só Tiresias podia dar testemunho. Deu-o sem duvidar dizendo que se se dividisse o
prazer sexual em dez partes, a mulher se levaria nove. Fira, furiosa ao ver insone o segredo do
sexo feminino, castigou ao Tiresias com a cegueira; em compensação, Zeus lhe concedeu o dom
da profecia e uma grande longevidade.
A história da Juana distribui de outra maneira os mesmos elementos: trânsito do feminino a
masculina e volta ao feminino (para a iluminação pública), privilégio único de uma superação da
divisão dos sexos (a do sacerdócio e a do Papado), e conexão entre um conhecimento superior (o
saber prodigioso da Juana) e uma cegueira sobre a evidência imediata (desconhecimento de seu
próprio corpo, que lhe leva a escândalo do parto). A proposta capital que comporta o mito do
Tiresias explicaria o interesse comum pela Juana, além de tudo os investimentos interessados
que permitiu. A conivência a que nos referimos mais acima se reduz, possivelmente, à irradiação
que emana dessa palavra de «papisa», uma palavra que põe em feminino um dos últimos
vocábulos da separação dos sexos no Ocidente.
Objetará-se sobre o estatuto menor do episódio da Juana, que forma parte das «curiosidades»
da história ocidental; mas é preciso tomar na plenitude de seu significado dita «curiosidade»:
Tiresias e Juana são seres curiosos (por um parte, são seres estranhos, únicos, ciumentos da
divindade, e por outro lado, são seres pragmáticos em sua vontade de saber); ambos expressam
a necessidade e a impossibilidade de percorrer o continente negro do outro sexo, e no âmbito da
curiosidade ambos representam de uma vez a realização e o castigo.
Mas há outra razão que deveria descartar a tematización da Juana em um Tiresias feminino:
Juana trocou que aparência, não de realidade sexual. De fato, só a picaresca do século XVII se
divertia semeando a confusão sexual.
Entretanto, se o que queremos é dar conta da unidade que engloba os usos tão díspares que
se feito do episódio, então terá que aceitar a idéia de que esta metástase de sentido (os usos)
produz-se a partir de um núcleo não diretamente significante (atreveríamo-nos a dizer
«inconsciente»?), constantemente presente no nome da papisa, mas jamais expresso. Dita
estrutura (núcleo ignorado e metástase de sentido) afasta-nos do mito, já que este é perfeitamente
explícito, um relato fundador e permanente, e reativado metaforicamente ao fio de seu significado
original (assim, por exemplo, Marcel Jouhandeau, ao descrever seu maravilhoso descobrimento,
sobre o tardio de sua idade e da sodomia, relata-nos sua própria experiência em um livro que
titula precisamente Tiresias). De acordo com nossa hipótese, a história da Juana carece de
significado intencional ou original. A arqueologia romana da Juana, apresentada nos três
primeiros capítulos, não reconstrói em modo algum uma primeira intenção, institucional, posto que
o jogo carnavalesco do investimento era já um costume perfeitamente constituído. O primeiro
texto, o do Juan do Mailly, falava do mero sobressalto; vinte anos mais tarde, Martín o Polonês
conferia a Juana um sentido jurisprudencial, com sua narração e seu comentário; por último,
outros relatos, como o do Boccaccio, substituíam outros sentidos, sem outra referência anterior
que o só acontecimento cristalizado pelo próprio nome (a papisa). Corremos o risco de ser
pontuados de realismo ingênuo, de afirmar a existência permanente de um núcleo ignorado
(Tiresias cristão); mas, entretanto, não pretendemos recuperar um significado oculto, encoberto,
mas sim mas bem o lugar geométrico dos efeitos de sentido.
Distingamos uma vez mais: o mito grego e sua apresentação metafórica, a fábula, têm um alcance
universal, unido a seu significado explícito. A história da Juana só tem valor dentro de um âmbito
simbólico particular, o do cristianismo (ou em âmbitos conexos), onde se percebe o estatuto
supraxesual com um dominante masculino da figura sacerdotal e papal. Além disso, o episódio,
como o resto das narrações cristãs, situa-se em meio dos homens e de sua história: Juana voltou
por volta do ano 854 (o qual incomodava bastante aos luteranos, quem tivesse desejado situá-la
na origem mítica do Anticristo romano). Esta inserção média é essencial; porque, como havemos
dito, Deus, ao encarnar-se, como homem e fora da Origem (a Gênese) obriga ao cristão a
debater-se com relatos muito humanos, dos que não se sabe onde começa o espírito e onde
termina a letra; a falta de autentificación canônica (e portanto de significado) obscurece ainda
mais os relatos postevangélicos (mas virtualmente sagrados, já que a Parusía se produzirá sem
anúncio prévio). Nestas condições, Juana adquire a fila de um desses seres literais que procuram
um espírito (recebemos sua existência, não seu significado) ao lado dos Santos, dos prodígios, do
Judas, do madeiro da cruz, etc. Na Juana, a letra escarlate (cor do cardenalato e da rameira de
Babilônia) sobre a carne cristã importa tanto por sua marca como pelos decifrações que exige,
sem fim.
Colocaremos, pois, sobre a história da Juana, a etiqueta de «objeto simbólico», querendo
significar assim que o âmbito da crença não é homogêneo, mas sim se apresenta fortemente
polarizado ao redor de pontos de atração; assim, o objeto simbólico se caracterizaria pela certeza
da existência de um sentido incerto. A força que conservou Juana (assim como outros muitos
objetos) permite supor que o laicismo do âmbito simbólico cristão não altera em modo algum nem
seus contornos nem seus pólos.
Mas como nos aproximar desse núcleo ignorado embora constantemente substituído pela
proliferação dos sentidos referidos? A versão contemporânea do Bernanos (analógica e não
literal), em sua novela policíaca Um creme, apresentada no sétimo capítulo, dará-nos uma
imagem, uma metáfora de dito núcleo. Esta narração investe as proporções da história da Juana:
o sentido (o uso) e o desenlace (indutor poderoso de significado) desaparecem na narrativa sob o
cômodo proteger-se no gênero da novela policíaca; por sua parte, o desenvolvimento novelesco
(favorecido uma vez mais pelas restrições literárias: a investigação deve ser larga e incerta) limitase a descrever o efeito da impostura: uma mulher-pároco antes do descobrimento; todos os
personagens ignoram até o final a identidade do pároco; o leitor só se inteira no último e curto
capítulo da novela; e a mulher-pároco imprime sua marca de uma maneira quase física em seu
entorno. Bernanos constrói uma fenomenología da papisa.
O último capítulo, o único que nos apresenta ao pároco de mulher, dá-nos a conhecer seu
testamento, em três versões sucessivas, dirigidas a Evangelina antes do suicídio. Estes três
textos, nenhum dos quais diz a última palavra sobre esta história, modulam o tema da chegada
crística e da traição do Judas-Evangelina, quem se desviou que Advento por um amor terrestre e
masculino. depois dela, e com um Mesías renegado, reina o vazio: «Para mim só sua espera, já
que a partir de agora já não esperarão a ninguém» (carta 1); entretanto, a Parusía ameaça: «Sua
vida fica aberta para mim: forçarei-a quando me agradar. Uma presa, digo-lhes isso eu, nada mais
que uma presa» (carta 2). A terceira carta é mais vã ainda: «Agrado-me muito só lhes deixando,
deixando em sua vida um ser tão parecido a mim, de uma raça tão próxima à minha, tão familiar
que lhe reconheci ao primeiro golpe de vista.»
O final do pároco-mulher, triturado sob as rodas de um trem, não conclui nada, como tampouco
conclui nada a Paixão de Cristo, mas, entretanto, deixa o mesmo temor da Ocasião desperdiçada,
a mesma espera da Volta. Bernanos integra na história da Juana a intuição medieval de uma
feminilidade divina (Deus, ou Jesus, ou o Espírito Santo em mulher); recorda a Guillermina,
Encarnação do Espírito Santo por volta do 1300, e também à fisiologia erótica do conhecimento
de Deus na Hildegarda do Bingen, assim como a veneração do Jesus como mãe por parte dos
cistercienses do século XII. Na versão negro batina do Bernanos, com maior dramatismo que nas
versões brancas ou escarlates sobre o pontificado, a tiresiada Juana, ao situar-se por um instante
no ponto humano de contato com o Espírito (a designação papal, a unção sacerdotal), deixa
planejar vagamente essa dúvida surda ou fulgurante que a Encarnação (a materialização carnal)
tem inscrito no centro da história humana: e se o esquecimento, ou o exílio, da feminilidade,
fechado tanto para as mulheres quanto para os homens, e entretanto absolutamente carnal, hic et
nunc, em um dia matricio de Deus (Deus nascido de uma mulher ou Deus mulher), fizesse-nos
perder os nove décimos do gozo e da salvação?
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A Papisa Juana