ENERGIAS RENOVÁVEIS, MEIO AMBIENTE E POLÍTICAS PÚBLICAS DE
CIÊNCIA E TECNOLOGIA
Prof. Sergio Colle
LABSOLAR / NCTS - Departamento de Engenharia Mecânica
Universidade Federal de Santa Catarina
Introdução
A energia volta ao plano das prioridades nacionais em decorrência do déficit,
num cenário mundial de preocupação crescente sobre o impacto do consumo dos recursos
energéticos fósseis sobre o meio ambiente. O efeito estufa que era considerado uma hipótese
científica torna-se evidente, sobretudo diante da convergência das teses oriundas de
diferentes teorias, aparentemente não correlacionadas. Creio que a única lição que se possa
tirar das crises é saber as suas causas. As medidas emergenciais de minimização dos efeitos
das crises por si somente, não são suficientes para assegurar um futuro sem crises. É
precisamente o caso da energia. Mais que os argumentos extensivamente utilizados pela
classe científica para alertar o governo federal da necessidade de repensar com serenidade
uma política de ciência e tecnologia, a crise energética é a circunstância especial segundo a
qual esses argumentos tornam-se evidentes, enquanto que conquistam maior espaço na mídia
e na opinião pública. Em 1973 com a crise do petróleo, o governo militar de então
empreendeu um programa de C&T em energia. Esse programa foi fortemente induzido por
decisões de governo de países desenvolvidos, na direção de dotar as sociedades ocidentais de
maior flexibilidade perante o que se pensava ser uma economia do petróleo instável. As
decisões adotadas, sobretudo nos EUA e Europa Central, resultaram no desenvolvimento
industrial do setor energético e na emergência de novos mercados, no contexto dos quais a
competitividades desses países lhes garantam a hegemonia.
A experiência brasileira, mais por um fator cultural do que por não ser
considerada importante, foi abandonada a sua sorte, deixando como herança, uma
comunidade científica atuante e competente sobretudo em energia solar, que, na ausência
absoluta de uma política pública, dissolveu-se, antes que os resultados alcançados pudessem
reverter em benefícios para a economia nacional. Presentemente, o Brasil produz pouco mais
que 50% da produção alemã relativa a coletores solares para aquecimento d'água doméstico,
com o agravante de que as concepções de coletores solares fabricados no Brasil são fiéis
ainda, as primeiras concepções inventadas no primeiro quarto do século. O recurso solar da
Alemanha, na média regional e anual é da ordem da metade do recurso solar nacional.
Houvesse uma política pública consistente, nosso país seria certamente um dos detentores do
mercado mundial.
A crise energética
É opinião corrente de que a crise energética brasileira é o resultado da
conjunção de dois fatores independentes, quais sejam a inflexibilidade de sua matriz
energética decorrente do clima e a imprevidência do governo federal, mesmo diante das
exaustivas recomendações de especialistas quanto a inadequação da estrutura de geração e
das previsões de anomalias climáticas de grande escala. As questões macro-econômicas da
crise, tais como, o aumento da componente termoelétrica na matriz, assentada no gás natural,
serão resolvidas no contexto de um planejamento de governo, ponderando-se seriamente
sobre a adequação do modelo de privatização ao desenvolvimento nacional e administrando
competentemente a política econômica de sustentação e expansão do parque gerador. A
solução macro-econômica não resolverá a questão da inflexibilidade. Esta deverá ser
equacionada com soluções de longo prazo, explorando sobretudo as alternativas existentes ou
já diagnosticadas de complementaridade da geração nos períodos de estiagem. Neste
particular, a anti-correlação das energias renováveis em relação a oferta hidrelétrica é
parâmetro fundamental a ser considerado. Essa questão não poderá sequer ser bem
formulada, sem um ativo papel do governo federal, sobretudo na busca racional de um
modelo de gestão de C&T para o setor energético. Esse modelo exige a investigação de uma
arquitetura especial, cujo domínio de conhecimento é essencialmente acadêmico. A questão
da complementaridade é complexa, fortemente interdisciplinar e por conseguinte, deverá
exigir a articulação das instituições de pesquisa nacionais. A existência dos fundos setoriais
por si somente, configura apenas a condição inicial necessária, todavia mais que insuficiente
para equacionar racionalmente o papel das energias renováveis no desenvolvimento
econômico do país. O papel do meio acadêmico é essencial, na busca de um modelo de
gestão do fundo setorial de energia, particularmente para mobilizar o país na direção de
implementar a componente das energias renováveis na matriz energética nacional.
A energia e o meio ambiente
A quota de poluição mundial de CO2 atribuída ao Brasil é da ordem de 2%,
sendo ainda insignificante o peso decorrente da geração elétrica. A penetração do gás natural
na matriz energética nacional, mesmo para um parque tecnológico de 40.000 MW, não
produzirá acréscimo significante, em relação ao quadro internacional. O gás natural emite ao
redor de 70% de CO2 por kWh gerado em relação ao carvão betuminoso. A questão essencial
que se coloca, é se a geração termoelétrica plena (ciclos de potência) é a mais adequada para
maximizar o aproveitamento das reservas de gás natural e paralelamente, minimizar o
impacto ambiental. A cogeração distribuída (ciclos de potência e calor de processo e
refrigeração) com eficiência até 80% maior que a eficiência dos ciclos de potência, é a
solução macro-econômica tecnicamente mais racional para suprir a demanda projetada de
crescimento econômico do país. A geração distribuída teria a vantagem de induzir a expansão
da ancoragem do gás natural nos centros urbanos e por conseguinte, de abrir espaço no
mercado para bens e serviços, em benefício da economia nacional. Uma política de geração
distribuída racionalmente ponderada em seus aspectos de C&T, poderá, à longo prazo, mudar
a configuração da matriz de geração nacional, introduzindo a componente desejável de
contra-peso à geração centralizada, necessária para ampliar o papel das empresas de energia
ainda não privatizadas na consolidação de parcerias com o setor privado.
O contra-exemplo do álcool
O programa do álcool, planejado e implementado com inegável sucesso pelos
governos militares, foi considerado mundialmente como o mais robusto e bem sucedido
programa de energias renováveis da biomassa no planeta. Não há paralelo histórico. A
política de implementação do programa e a robusta estrutura de distribuição do álcool foram
consolidados em tempo recorde, através de ação executiva e planejamento centralizado, com
riscos comprovadamente minimizados. A tentativa de estender o programa para a produção
nacional de metanol, inteligente estratégia de produzir combustível líquido como alternativa
ao diesel no transporte de cargas e também para o então sinalizado mercado de turbinas de
gás estacionárias, foi neutralizada pelas forças produtivas do álcool etílico, com o notório e
maldoso argumento da toxidade. Nesse meio tempo, os EUA já comercializavam o metanol,
sem problemas de segurança. Presentemente, pesquisas realizadas nos EUA, tem
demonstrado a viabilidade econômica da produção de álcool etílico e sua viabilidade para
substituição de 50% da gasolina consumida naquele país, somente com a ocupação de terras
de pouca importância na economia agrícola, com produção de 15 toneladas de álcool por
hectare. Essa produção é viável com a utilização de tecnologias de fermentação celulósica da
biomassa, que permitem alcançar custos de produção da ordem de US$ 0,67 por galão
(presentemente R$ 0,41 por litro). Este último dado é importante para reflexão, na medida em
que já no final da próxima década os países desenvolvidos deverão capitanear a
implementação de medidas efetivas para substituição dos combustíveis fósseis para atenuar
potenciais efeitos devastadores do efeito estufa. No caso brasileiro, além da desmoralização
pública do programa, do lado da pesquisa, conseguiu-se paralelamente aniquilar as
promissoras iniciativas do passado de dotar o país de tecnologia competitiva para produção
de etanol e metanol.
O mercado nacional de energia solar
As tarifas praticadas no sudeste, presentemente referenciadas em torno de R$
450,00 por megawatt-hora, podem não servir de parâmetro para análise econômica de
sistemas solares para produção de eletricidade por tecnologia fotovoltaica ou refrigeração
termo-movida com ciclos conjugados híbridos ancorados no gás natural. Todavia, a persistir
o déficit energético, os custos praticados no mercado livre poderão ser comparáveis ao
número mencionado, circunstância segundo a qual, a geração fotovoltaica integrada à rede
pública de energia, bem como a refrigeração através de ciclos de absorção termo-movidos
por coletores solares planos e gás natural, mostram-se economicamente competitivos.
Contribuem desfavoravelmente para a penetração dessas alternativas no mercado, a
inadequação e até impropriedade da arquitetura praticada no país, a tradição da expansão
urbana não planejada e a falta de uma legislação sobre o direito ao uso da energia renovável,
sobretudo nos centros urbanos. As novas tecnologias de refrigeração baseadas no ciclo ejetor
vem recebendo atenção crescente na Europa, Ásia e Estados Unidos. Tais tecnologias
poderão competir com as tecnologias de ciclos de absorção, sobretudo nos países de maior
recurso energético solar, como é o caso do Brasil.
A produção industrial brasileira, está essencialmente assentada no segmento de
sistemas de aquecimento solar para uso doméstico. Presentemente esse segmento vem
recebendo um grande impulso, em decorrência da necessidade de deslocamento da demanda
dos chuveiros elétricos no horário de pico entre 18:00 e 21:00 horas. Pesquisas do
LABSOLAR - UFSC comprovam, para o caso mais desfavorável de oferta de energia solar
do país e para uma família de quatro usuários, que aproximadamente 82% dos dias do ano
demandam potência elétrica nos chuveiros de até 1200Watts. A freqüência de demanda nos
18% dos dias restantes, não descarta incidência considerável de demandas de potência
significantes nesse horário crítico. As medidas governamentais de incentivo a aquisição
desses sistemas deverão ter um impacto positivo na produção industrial, na mudança de
hábitos do consumidor e na redução da demanda anual de energia dos chuveiros. O perfil do
pico de demanda por outro lado, deverá permanecer virtualmente inalterado, em decorrência
da inflexibilidade do clima e por conseguinte, da freqüência inevitável de incidência de
demanda plena. A modificação deste perfil requer a intervenção externa sobre o controle dos
equipamentos, através da informação meteorológica, o que motivou o laboratório a
desenvolver novas concepções de controle dos equipamentos, que possibilitam a integração
do sistema de aquecimento ao sistema nacional de informação meteorológica de meso-escala.
C&T e a competitividade nacional no setor
Em relação ao papel da políticas de C&T para o setor de energia, devo registrar
que até o presente, o governo federal não tem sido bem sucedido, na formulação de um
modelo operacional para imprimir no país a mobilização requerida no setor, na direção de
produzir uma radical mudança de hábitos indesejáveis de a muito enraigados na cultura
nacional. Primeiramente, o número de doutores de engenharia mecânica formados
anualmente nas instituições de ensino superior credenciadas pela CAPES, não alcança meia
centena. Esse número é absolutamente insignificante, em relação a dimensão da nossa
economia no contexto mundial e insuficiente, para implementar a mobilização requerida. A
ausência de financiamento público federal para pesquisa na última década, desintegrou a
capacitação setorial existente e sucateou os laboratórios que dependiam exclusivamente do
fomento público. Esse quadro não é limitado apenas as engenharias. Os raros laboratórios
nacionais de boa reputação conseguiram sobreviver e até se desenvolver, graças a capacidade
de gestão institucional de buscar outras alternativas de financiamento, em contrapartida,
quando houve, ao financiamento público. No âmbito internacional, a imagem de
subdesenvolvimento que nosso país imprime no meio acadêmico tecnológico não é
compreensível, sobretudo porque é difícil correlacionar o subdesenvolvimento setorial com
os formidáveis recursos naturais renováveis do país e com a reconhecida capacidade de
mobilização do setor privado nacional, nas circunstâncias adversas da economia globalizada.
A publicação em revista indexada é um bom indicador da produção tecnológica. Neste
particular, o Brasil se situa muito aquém da Índia, Austrália, Egito, Israel, Coréia, China e
Taiwan. Claro está que o governo federal deve ter um papel fundamental para modificar a
situação existente. A participação ativa de segmentos representativos do setor privado na
formulação de políticas públicas para energia não pode ser desconsiderada. No segmento de
mercado das energias renováveis, a ALCA deverá constituir-se num marco de avaliação de
políticas de C&T implementadas no presente, na medida em que bens e serviços decorrentes
dos impactos dessas políticas no setor produtivo, deverão ser negociados sob os objetivos
denominadores de qualidade e custo. Certamente que nossas desvantagens de negociação
redundarão, por força das circunstâncias, na abertura de mercado para os produtos
estrangeiros, o que pode acarretar a rendição das empresas nacionais do setor, com riscos de
sua completa desnacionalização.
Referências
Colle, S., de Abreu, S. L. e Rüther, R., "Uncertainty in Economic Analysis of Solar Water
Heating and Photovoltaic Systems", Solar Energy, Elsevier Science, v.70, p.131-142, 2001.
Colle, S., de Abreu, S. L., e Rüther, R., "Economical Evaluation and Optimization of Hybrid
Diesel - Photovoltaic Plants Integrated to the Utility Grid", submetido a ISES 2001 International Solar Energy Society Meeting, Adelayde, Austrália, Novembro de 2001.
Colle, S. e Gutierréz, H. V.,"Upper Bounds for Economical Optimization of Thermally
Driven Cooling Cycles Assisted by Solar Energy", submetido a ISES 2001 - International
Solar Energy Society Meeting, Adelayde, Austrália, Novembro de 2001.
Anderson, D. e Ahmed, K., "The Case for Solar Energy Investments", World Bank Technical
Paper Number 279 / Energy Series, 1995.
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