XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
EDUCAÇÃO FÍSICA: QUAL A ESPECIFICIDADE?
Valter Bracht
Universidade Federal do Espírito Santo
Resumo
Num primeiro momento apresentaremos a discussão do campo da Educação Física que
gira em torno da especificidade de seu conhecimento ou do conhecimento que é objeto
de seu ensino. A própria afirmação de que esse componente curricular possui um
conhecimento que deve ser objeto de ensino é muitas vezes recebida com estranhamento
pelo conjunto de agentes educacionais atuantes nas escolas (diretores, coordenadores
pedagógicos, outros professores), em função do seu histórico de componente curricular
com caráter de atividade, ainda hoje dominante na cultura escolar. Assim, trata-se de
delinear com clareza qual seria esse conhecimento e qual sua especificidade pedagógica,
apresentando, brevemente, as mais recentes tentativas de delineamento e sistematização
desse mesmo conhecimento. Discutiremos, também, as tensões decorrentes da “pressão”
para que a Educação Física assuma as características das disciplinas consideradas do
“núcleo duro” do currículo escolar. A seguir trata-se de analisar como a especificidade
desse conhecimento acaba por demandar também conhecimentos pedagógicos (com
destaque para os saberes docentes) específicos, para além daqueles que são comuns a
todos docentes. Nesse último aspecto nos apoiaremos especialmente na tese de
Doutorado de José Ângelo Gariglio (2004), que argumenta que ao invés de falarmos em
uma cultura docente, mais apropriado seria falar na existência de culturas profissionais
estruturadas por diversas condições de trabalho, como, por exemplo, ordens escolares,
setores de ensino, campos de ensino e estabelecimentos de ensino. Por fim, buscaremos
exemplificar como os conhecimentos específicos desse componente curricular e os
conhecimentos pedagógicos (específicos e comuns) são articulados na prática
pedagógica de uma professora de educação física.
Palavras-chave: Educação física. Saberes pedagógicos. Saberes específicos.
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Introdução – o debate em torno da especificidade da Educação Física
Para situar os colegas que não são do campo específico da Educação Física é
preciso fazer, muito brevemente, uma pequena digressão sobre a sua presença nos
currículos escolares.
A presença da Educação Física (EF) na escola foi apoiada historicamente pelo
campo médico a partir das políticas higienistas que, no caso brasileiro, tiveram seu
apogeu entre os anos 20 e 40 do século passado. O conhecimento fundamentador das
tecnologias corporais (a ginástica, principalmente) mobilizadas pela EF provinha
fundamentalmente de ciências como a Anatomia (Cinesiologia) e a Fisiologia. Seu
mandato na escola se orientava na promoção da aptidão física e na formação do caráter
que, nesse caso, significava moldar o comportamento do aluno, a partir de práticas
corporais de orientação higienista, para que o mesmo se adaptasse às exigências do
trabalho escolar, da disciplina escolar (corpo dócil). Chamo a atenção para duas
características: a) o corpo e os fundamentos da EF se encontram no plano da natureza,
consequência da hegemonia do modelo cartesiano de ciência a partir do qual o corpo é
considerado uma máquina; b) a EF, entendida como uma atividade que age sobre o
corpo e o seu comportamento, não seria responsável pela mediação de um
conhecimento (conceitual-teórico) – característica esta da maioria das disciplinas
escolares, entre elas as consideradas mais importantes como matemática, português e
ciências.
Nessa esteira construiu-se e cristalizou-se na cultura escolar um imaginário da
EF que a entendia como uma atividade. Mais recentemente, a EF passou a ser
confundida com o esporte escolar (as razões para tanto demandariam uma análise mais
demorada, espaço-tempo que não temos aqui)1. Ocorreu o que chamamos de
esportivização da EF: o sentido da EF na escola passa a ser ditado pela instituição
esportiva, bem como, e para tanto, o conteúdo da EF passam a ser, quase que
exclusivamente, as diferentes modalidades esportivas, particularmente, o futebol/futsal,
volibol, basquetebol e handebol. A esportivização da EF colaborou para construir e/ou
reforçar a idéia de que a EF é um componente curricular (e extra-curricular) que é capaz
de mobilizar e envolver a comunidade escolar em práticas que promovem na escola um
ambiente mais alegre e cheio de vitalidade (daí também a visão do professor de EF
como um sujeito dinâmico, divertido, alegre e capaz de mobilizar e lidar com grandes
grupos – levar os alunos ao cinema, ao teatro, organizar a festa junina, etc.). O
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importante a destacar (reforçando) é que o objeto da EF, nessa tradição, nunca foi
entendido como um conhecimento a ser transmitido, como um saber que exigiria uma
sistematização e organização: o importante é manter os alunos ocupados realizando
práticas corporais, principalmente praticando esportes.
É nesse contexto que vai se constituir um dos paradoxos da nossa escola que é o
fato de que as disciplinas ou os componentes curriculares dos quais os alunos mais
gostam (entre eles a EF) são aqueles aos quais eles atribuem menos importância.
Coloca-se imediatamente a pergunta se é possível a EF passar a ser reconhecida na
cultura escolar como uma disciplina importante sem perder o entusiasmo dos alunos por
ela? Parece que, ao considerarmos a cultura escolar dominante, a EF não pode ter as
duas coisas, ou seja, alunos entusiasmados e ao mesmo tempo a mesma estrutura e
“dignidade” das outras disciplinas.
Outro aspecto que gostaria de destacar é como a arquitetura (organização físicoespacial) da escola reflete e reforça uma divisão de trabalho interna à essa instituição. O
espaço escolar poderia ser dividido, no que diz respeito à sua função, em duas grandes
estruturas: a) espaço produtivo (do trabalho intelectual e da aprendizagem); b) espaço
não-produtivo (do divertimento ou do lazer, portanto da recuperação do desgaste do
trabalho). As salas de aula são o espaço do trabalho intelectual, da aprendizagem
conceitual, para o que se exige disciplina, concentração, silêncio, etc. (trabalho é
obrigação, é algo imposto). Por outro lado, o pátio e a “quadra esportiva” são o espaço
do divertimento, da recreação, do barulho, da recuperação psicológica para um novo
esforço intelectual (o lazer é voluntário, faz quem quer). A prática de algumas
professoras ou de alguns professores “de sala de aula” de ameaçarem os alunos de não
poderem “descer” para a aula de EF se não terminarem a tarefa ou não se comportarem
adequadamente, expressa claramente essa “organização funcional” da escola. Foi essa
uma das formas com que a escola equacionou aquilo que é entendido ainda na cultura
escolar como um problema, que são a corporeidade e a movimentalidade das crianças e
jovens.
De qualquer forma, pelo menos desde a década de 1980, no bojo do que foi
chamado Movimento Renovador da EF brasileira, vem se construindo uma concepção
de EF que entende que a mesma deve se caracterizar pela mediação de um
conhecimento, para o que cunha a expressão Cultura Corporal de Movimento. Ou seja, a
EF seria responsável por legar às futuras gerações um saber que foi construído
historicamente, a cultura corporal de movimento, e que compreende as manifestações
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dos esportes, da ginástica, das lutas, da dança e dos jogos. A especificidade pedagógica
desse conhecimento ou dessa dimensão da cultura é possuir um duplo caráter: a) ser um
saber fazer corporal e, b) ser um saber sobre esse fazer corporal. Esse movimento
desembocou hoje numa série de publicações e elaborações de Diretrizes/Referenciais
Curriculares2 (passando pelos PCNs) que apresentam uma organização e uma
sistematização do conhecimento a ser veiculado pela EF nos diferentes anos/séries
escolares nos diferentes níveis de ensino. Muitas vezes esse conhecimento é
sistematizado em três diferentes dimensões (como proposto pelos PCNs da EF):
procedimental, conceitual e atitudinal.
A EF entre os saberes pedagógicos gerais e específicos
Portanto, a partir dessa perspectiva se processa uma maior aproximação entre as
habilidades ou os saberes pedagógicos exigidos dos professores de EF em relação aos
professores das demais disciplinas do currículo escolar.
Isso não significa que aquelas habilidades pedagógicas atribuídas comumente ao
professor de EF (como sua marca registrada) como, por exemplo: capacidade de
mobilizar grupos, de envolver sujeitos coletivos, de promover o congraçamento e a
participação mais solidária e ampla das pessoas (GARIGLIO, 2002), devam ser
deixadas de lado, mas sim, que para além delas, outras, comumente atribuídas aos
professores das outras disciplinas (ou aos professores de uma maneira geral), também
são pertinentes ao professor de EF. Contextualizar historicamente um dado
conhecimento (no caso da EF, as práticas corporais que estão sendo tematizadas e
problematizar sua presença na vida do próprio aluno e no seu contexto imediato e
mediato de vida), são tarefas que exigem habilidades pedagógicas que podem ser
entendidas como comuns a todos os professores.
No entanto, se considerarmos algumas perspectivas teóricas, os saberes
pedagógicos que se manifestam na e sustentam a prática pedagógica dos professores
possuem características que os vinculam ao contexto, às especificidades disciplinares,
ao modo de inserção das diferentes disciplinas na dinâmica curricular das escolas, etc.
Gariglio (2006) desenvolveu pesquisa que visava compreender os modelos ou
tipos de ação desenvolvidos pelos professores de EF em função de sua inserção
profissional numa escola. O autor partiu do entendimento de que os saberes da EF
detém especificidades, como por exemplo, ser uma disciplina que se organiza na escola
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de forma a enfatizar o trabalho em grupo; dotada de um conhecimento que estabelece
relação mais direta e visceral com a vida, a cultura e o cotidiano; impregnada do sentir e
do relacionar-se e que se traduz num saber-fazer. Frente a essas características o autor
levantou as seguintes questões: a) os saberes da prática profissional de professores de
EF seriam dotados de características também singulares? Em função dos saberes que
ensinam, saberes esses impregnados do sentir e do relacionar-se, esses docentes seriam
reconhecidos
e
se
auto-reconhecem
competentes
em
que
perspectiva?
O
reconhecimento da potência pedagógica dos professores de EF na escola haveria de se
dar por qual tipo de capacidade pedagógica? Seriam esses professores mais habilidosos
no desenvolvimento de atividades coletivas? Seriam docentes mais atentos à educação
estética ou à sensibilidade? Quais são, segundo os próprios professores, suas principais
habilidades? Por que umas são mais importantes do que outras? De que forma essas
competências se relacionam com as interações com os alunos, com os outros atores
escolares e com as funções estabelecidas pelo todo social da escola?
Como se viu acima, Gariglio (2006) partiu da hipótese de que as interações
estabelecidas pelos professores da educação básica com a disciplina escolar que
ensinam, constituiriam espaço particular de interações sociais, de organização de
representações sociais sobre a profissão docente e de produção da identidade
profissional que seria capaz de influenciar a edificação de rotinas de trabalho, habitus,
de habilidades, de um saber-ser e de um saber-fazer pedagógico que seria específico a
cada componente disciplinar.
Uma das constatações feitas no estudo foi a de
(...) que os professores pesquisados, mesmo reconhecendo a
importância de se compreender e dominar os conteúdos
disciplinares, consideram que só esse conhecimento não é
suficiente para dar conta da difícil tarefa de ensinar. No esforço
de tornar os conhecimentos disciplinares não somente acessíveis
aos seus alunos, mas de forma a incorporar a centralidade dos
componentes formativos e estéticos que seriam “inerentes” ao
ensino da EF, nossos docentes acabam incorporando outros
saberes e conhecimentos às suas práticas. (GARIGLIO, 2006, p.
258)
E isso porque, as ricas e originais sincresias que amalgamavam os conteúdos de
ensino e a pedagogia, organizados e atualizados de forma a atender aos diversos
interesses e necessidades dos aprendizes, da instituição e dos próprios docentes, não
podem ser descoladas do objeto de ensino da EF (a cultura corporal de movimento).
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Ficou evidenciado nas práticas dos professores que é quase impossível separar o
conteúdo da pedagogia empregada ou o que é sabido de como ensiná-lo. Conteúdo e
pedagogia revelaram ser partes de um corpo indistinto de compreensão (SHULMAN,
1986). (GARIGLIO, 2006)
Entre os saberes pedagógicos tornados como centrais ao desempenho
pedagógico dos professores pesquisados, alguns mostraram-se relevantes, quais sejam: a
sensibilidade para saber-ver, saber-observar e saber-ouvir; as técnicas de supervisão
ativa; as tecnologias de comunicação e interação humana; a habilidade para usar
espaços e objetos didáticos; a capacidade de pensar e agir ao nível do estabelecimento
de ensino; as estratégias de sedução; o saber-ensinar levando-se em conta os saberes
sociais de referência; as rotinas de trabalho. (GARIGLIO, 2006)
Gariglio (2006) conclui, enfatizando o fato de que existem diferenças quanto aos
saberes profissionais que precisam ser reconhecidas e melhor compreendidas a partir de
pesquisas: diferenças entre os diferentes níveis de ensino, entre as disciplinas (entre
disciplinas profissionalizantes e não-profissionalizantes, etc .)
Para o autor, não há uma cultura docente comum ao conjunto dos professores,
mas, sim, culturas profissionais produzidas pelos professores no processo de interação
cotidiana, processo esse estruturado por diversas condições e contratos sistemáticos –
ordens escolares, setores de ensino, campos de ensino, estabelecimentos de ensino e
ambientes socioeconômicos da região, nos quais os docentes exercem sua profissão.
Portanto, há que fazer revelar as culturas docentes dos profissionais dos diversos
campos disciplinares, dos professores que militam com disciplinas profissionalizantes,
dos professores que trabalham com os portadores de necessidades especiais, dos professores universitários, dos educadores de jovens e adultos, da educação infantil, entre
outros profissionais que compõem o vasto espectro da educação escolar.
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Considerações finais
O dito anteriormente indica na direção de acentuar a importância da autonomia e
da autoria docentes. Os professores são instados a partir dos desafios colocados por seus
contextos (características dos alunos, estrutura da escola, dinâmicas curriculares
adotadas pelas escolas, hierarquia e inserção curricular das diferentes disciplinas, etc.) a
construir saberes e habilidades pedagógicas situadas.
Se levarmos a sério a idéia de que os professores são produtores de
conhecimento, cabe à universidade, à escola e aos professores de EF, como lembra
Gariglio (2006), agir para partilhar seus saberes profissionais, tirando-os do seu
anonimato conferindo aos mesmos, assim, significado social, cultural e político.
No caso específico dos professores de EF, os nossos estudos sobre inovação e
desinvestimento pedagógico (FARIA et al., 2010; MACHADO, et al., 2010) indicam
que os saberes pedagógicos e os saberes disciplinares podem ser positivamente
fecundados e potencializados por um bom acervo cultural, ou seja, indicam que o
acervo cultural do professor é fator importante para o enriquecimento das práticas
pedagógicas. O que se pode perceber nas pesquisas é que esse enriquecimento tanto se
dá no plano do conteúdo como no plano das estratégias de ensino, particularmente no
que diz respeito à produção e utilização de materiais didáticos alternativos e que vão
para além do chamado livro didático.
No caso específico da EF um outro fator tem exigido dos professores dessa
disciplina um esforço adicional. Trata-se da condição de “segunda classe” que vive essa
disciplina na escola (condição compartilhada em alguns casos com as disciplinas de
Artes e Inglês). Muitas são as ações e estratégias que precisam ser situativamente
elaboradas pelos professores para superar dificuldades que advém dessa condição. Tudo
isso reforça algo já sabido e conhecido que é a necessidade de gestar os processos de
formação inicial e continuada dos professores, no sentido de desenvolver a sua
capacidade de articular os saberes pedagógicos gerais com os específicos, mas sempre
em situação. Outro aspecto importante nesse processo é a superação das ações
atomizadas das disciplinas em favor de um trabalho efetivamente coletivo na escola.
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Referências Bibliográficas
GARIGLIO, J. A. Professores de educação física de uma escola profissionalizante e a
sua cultura docente: as interconexões entre os saberes da base profissional e o campo
disciplinar. Pensar a prática. Goiânia, v. 9, n. 2, p. 249-266, jul./dez. 2006.
______. Modelos de ação profissional de professores de educação física de uma escola
profissionalizante. Movimento. Porto Alegre, v. 16, n. 02, p. 167-191, abril/junho,
2010.
FARIA, B. et al. Inovação pedagógica na educação física: o que aprender com práticas
bem sucedidas? Ágora para la educación física y el deporte. Valladolid, v. 12, n.1, p.
11-28, 2010.
MACHADO, et al. As práticas de desinvestimento pedagógico na educação física
escolar. Movimento. Porto Alegre, v. 16, n. 2, p. 129-148, abr./jun. 2010.
1
Isso levou a se identificar, em muitos casos, a qualidade da EF e do trabalho realizado pelos professores
de EF a partir do sucesso das equipes esportivas das escolas nos Jogos Escolares.
2
Indicamos aqui o acesso, a título de exemplo, a duas dessas propostas curriculares elaboradas nos
últimos anos e que expressam essa nova visão da Educação Física, a do Estado do Rio Grande do Sul e a
do
Estão
de
São
Paulo:
http://www.educacao.rs.gov.br/dados/refer_curric_vol2.pdf
;
http://www.rededosaber.sp.gov.br/portais/Portals/18/arquivos/Prop_EDF_COMP_red_md_20_03.pdf
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