TERRITÓRIOS EM DISPUTA: CONFLITOS E VIOLÊNCIA NO OESTE DO
PARÁ1
Amadeu de Farias Cavalcante Júnior
Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA
[email protected]
Resumo
Atualmente, a discussão em torno do território levou a uma “nova disputa” pelos ribeirinhos,
indígenas, quilombolas, e, de modo especial, os trabalhadores rurais, em busca de seus direitos ao
território e a terra. O Governo Federal, através do Incra, tem estimulado o desmatamento, os
conflitos e a violência, por meio dos assentamentos, diante de um modo de ocupação da terra que
não tem rigor com o licenciamento ambiental. Este modelo veio se chocar com a ocupação humana
existente, nunca anteriormente contestada, cujo meio de produção tradicional está relacionado ao
uso das florestas e dos rios. O objetivo deste trabalho será analisar que, este processo sobre os
conflitos e violência no campo, especialmente pistolagem, estão relacionados a pressão das
madeireiras dentro dos assentamentos e o assédio financeiro às comunidades.
Palavras-chave: Território. Nova disputa. Conflitos. Violência.
A Amazônia como Fronteira de Expansão “Agromadeireira”
Desde o regime militar, a partir da década de 1960, a Amazônia foi colocada como parte de
um processo de modernização e ocupação territorial em que possuía mais de 90% de suas
terras originais, inexploradas em grande escala, e habitada majoritariamente por indígenas,
quilombolas e ribeirinhos. Ao longo desse processo, vieram os Grandes Projetos, como a
Hidrelétrica de Tucuruí, o projeto Carajás, a Alcoa e MRN, no Baixo Amazonas, entre
outros, como o projeto de construção da Transamazônica e a BR-163 (Santarém-Cuiabá).
Em torno destes, o modelo de ocupação se deu historicamente pela disponibilidade de terras
para expansão do capital, ao qual promoveu uma série de conflitos e violências em torno da
posse das terras. Isto gerou problemas com o modo de ocupação e sobrevivência tradicional
dos povos que ocuparam a Amazônia, que quase nada causaram impactos significativos nos
danos à floresta e seus rios. Para o modo tradicional de relação com a natureza, o homem
que aqui viveu por muito tempo tinha uma forma de produção que não era “mercadológica”
com a natureza, sendo esta forma de relação invertida logo depois pela lógica do capital e
do mercado em torno das terras em toda a Amazônia, desde o período da borracha.
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As mortes recentes da família Canuto, de Chico Mendes, da freira Dorothy, do casal José
Cláudio e Maria do Espírito Santo, estão profundamente ligados a uma lógica sistemática
produzida no contexto das regiões marcadas pela expansão do modelo econômico e político
do latifúndio, dos desmatamentos pelas madeireiras, e da expansão do agronegócio
(pecuária e soja). Todos os agentes marcados com ameaças de mortes ou mortos por
pistoleiros estavam diretamente ligados ao processo de defesa dos direitos humanos dos
“povos da floresta”, do território, como espaço social, cultural e meio de vida e memória
destes povos; ou denunciando as mazelas do processo de crimes ilegais contra o meio
ambiente ou contra a exploração do trabalho destes trabalhadores. O território é o espaço
que não se reduz à mera demarcação de terras (LITTLE, 2002).
O processo de expropriação do capital com a expansão do desmatamento pelas madeireiras
através dos assentamentos do Incra – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
– no Baixo Amazonas e no Sudeste do Pará, em nossa hipótese, se constitui em espaço de
lutas pela terra e o território, enquanto campo de “novas disputas” pelos direitos de
indígenas, quilombolas e ribeirinhos em defesa de seus territórios tradicionais como cultura
e relação com seu passado, tendo como atores deste processo madeireiras, o poder político
e econômico local interessados em justificar a lógica do “desenvolvimentismo” pela
“exploração” dos recursos naturais, como “única vocação” econômica da região. Neste
trabalho, queremos mostrar que o Incra, através dos projetos de assentamentos, tem
consolidado, embora não seja este seu discurso oficial, os desmatamentos ao longo dos
anos de 2000 a 2010, reforçando o êxito econômico das elites locais e do poder privado em
torno da propriedade privada da terra.
Neste aspecto, sob a justificativa de assentar o “agricultor”, a instituição do Governo
Federal tem estimulado também o desmatamento massivo, sem licenciamento ambiental,
provocando grande retirada de madeira de alto valor comercial. Assim, a terra aparece
como instrumento de disputa pelos atores, visto que este modelo de assentamento sem
licença ambiental tem sido forte indutor da ação dos agentes econômicos locais, que, ao
usarem várias táticas como a grilagem e os “testas de ferro”, conseguem, através do
“pequeno” agricultor, expandir as terras, inclusive sobre os territórios indígenas e
quilombolas, para atuarem sob a expropriação da floresta e da expansão da “agromadeira”,
gerando uma sistemática de conflitos e violências. Para respaldar nosso trabalho, utilizamos
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como metodologia os autos do processo dos documentos do Ministério Público Federal, em
ação
de
Inquérito
Civil
Público
contra
o
Incra,
mediante
protocolo
nº.
1.23.000.002382/2011-17 de 29 de junho de 2012.
A expansão do latifúndio e do setor madeireiro não tem encontrado também muitas
resistências políticas e ideológicas locais, a não ser daqueles que efetivamente lutam pela
terra com valor agregado a uma visão de território como campo de defesa dos direitos, da
história, da memória e da cultura tradicional de um modo de vida organizado para a
agricultura extrativista de pouco impacto ambiental (LITTLE, 2002). A facilidade na
obtenção da terra, sobre o pressuposto do “desenvolvimento produtivo” das áreas, tem
levado os agentes que representam o capital especulativo imobiliário expandir o domínio
das terras por longos territórios de assentamentos, justificando o critério de “produtividade”
das terras, com apoio de um agente fundamental neste processo, o “grileiro” que possui a
função de “legalizar” terras de domínio público pelo poder privado, promovendo a
violência proveniente dos conflitos pelo território na região (TAVARES, 2012, p.18). Deste
processo resulta a expulsão dos posseiros do campo, e os que resistem passam a enfrentar
de forma desigual as forças econômicas amparadas pelo Estado e as decisões do judiciário,
além do poder privado representado por empresários ligados ao setor agromadeireiro
(PINTO, 2012).
O setor madeireiro é importante na lógica da apropriação e consolidação da propriedade
privada pelos seguintes motivos: 1) há um processo histórico e ilícito de documentação pela
grilagem; 2) pela efetiva ocupação que se dá mediante o desmatamento, a retirada de
madeira comercial; 3) abertura para outros setores produtivos, como a pecuária extensiva e
a agricultura ligada ao agronegócio; 4) a utilização de extensões de terras e do território
pelo desmatamento simbolizam o êxito da atividade econômica (TAVARES, 2012, p.19). O
desmatamento não significa apenas a ocupação “produtiva” do assentamento liberado pelo
Incra sem o licenciamento ambiental, pois, de forma objetiva, significou a reprodução de
um modelo de ocupação das terras e do território pela prática importada do modelo
“sulista” de devastação de toda a floresta, deixando-a aberta a lógica do agronegócio. Deste
processo perverso, as populações tradicionais perdem seus territórios para o fazendeiro e
madeireiro, além da referência de seu modo de vida com a natureza e um modo de
produção local (CASTRO, 2008).
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O entorno da BR-163, na região oeste do Pará, que vem de Mato Grosso para Santarém,
onde se localiza o porto da Cargill, entreposto utilizado para escoar a soja da região, tem
sido marcado pela lógica do mercado de terras, e os assentamentos são também formas de
expandir o mercado das terras. Nessa dinâmica de novas terras, os mecanismos ilícitos pela
grilagem de terra são facilitados pela participação de cartórios e órgão públicos que,
apoiados em atos normativos e jurídicos tentam revestir de legalidade a aquisição de terras,
configurando a transferência para o poder privado territórios pertencentes aos povos
indígenas, quilombolas e moradores ribeirinhos (MPF, 18/06/2012). As estratégias de
expansão do setor agromadeireiro também são comumente reforçadas pelas ações do
governo do Estado, como o Zoneamento Econômico Ecológico, implantado pelo Governo
Ana Júlia do PT, para demarcar as áreas do território para o capital privado, sob o discurso
do “desenvolvimento sustentável”, zoneando as áreas públicas em que o setor privado não
pode ocupar, como terras indígenas. A expansão da soja na região, impulsionada pelos
madeireiros, tem provocado a violência contra agricultores familiares indígenas, povos e
comunidades tradicionais que são expropriados de seus territórios, e os problemas dos
conflitos são retratados pela ótica da “ordem pública” ou policial (SOLANGE COSTA,
2011, p.70).
Em processo recente do Ministério Público Federal, Processo nº 2003.39.02.001236-5 Justiça Federal em Santarém, de 2009, foi realizado a operação Faroeste, e ficou
caracterizado a participação de funcionários do Incra, políticos e empresários da região na
grilagem de terras. Tal prática vem constatar nossa hipótese de que os assentamentos foram
usados para a prática da grilagem das terras públicos e a relação com o poder privado,
expropriando os territórios que estão sendo reclamados por quilombolas, indígenas e
populações tradicionais. No Pará, as assentados sofrem pressão de grileiros e madeireiros,
para que deixem suas terras mediante estratégias utilizadas, como: legalizar os sindicatos
locais de agricultores, financiados pelo poder privado dos madeireiros, para futura
“concessão” de terras para exploração da madeira; e mediante aliciamento por propostas de
compras das terras dos assentados através do “convencimento” de sindicalistas, ou
representantes da comunidade, para serem “testas de ferro” na estratégia de venda dos lotes
(SOLANGE COUTO, 2011, p.80, PARRACHO, 14/12/2011; BRUM, 30/01/2012; PINTO,
2012).
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A imprensa local também registrou os conflitos que envolveram recentemente
manifestantes indígenas, sindicatos rurais, ribeirinhos e quilombolas, que detiveram a balsa
da madeireira Rondonbel por extração de madeira em território de demarcação dessas
comunidades da Gleba Nova Olinda, região de Santarém (SIMENEL, 24/10/2009). As
resistências das comunidades tradicionais simbolizam um processo de luta pelo território,
envolvendo o reconhecimento pelas identidades destas minorias étnicas, uma luta para sair
da invisibilidade social, econômica, cultural e política, buscando reafirmar seus tradicionais
valores, diante de um processo de legitimação da dominação econômica e institucional dos
atores em cena (EMMI, 2007, p.394).
Na região sudeste do Estado, o Incra também recentemente sofreu ação de processo pelo
Ministério Público Federal por estimular os conflitos e a reconcentração fundiária na região
devido a permissividade de vendas de lotes dos assentamentos, provavelmente para o setor
mais interessado na expansão das terras, os fazendeiros e madeireiros. Segundo o MPF do
Pará foram mais de 15 mil lotes vendidos apenas naquela região de forma ilegal. Isto indica
uma nova dinâmica em torno da concentração das terras e da violência (MPF, 19/06/2012).
Por fim, podemos definir os conflitos como resultados pela disputa e defesa do território ou
pelo direito a posse da terra, mas a violência deriva desta relação e é fruto da dinâmica
social e do modus operandi dos conflitos em torno do território pelas populações
tradicionais locais e trabalhadores diante do sistema do latifúndio e agromadeireiro.
Usamos a definição de violência caracterizada abaixo:
A violência pode ser direta ou indireta, ativa ou passiva. A violência direta é a
violência física empregada contra a pessoa, contra a ocupação e contra a posse
camponesa. Ela pode ser deflagrada por particulares ou pelo Estado e constitui
principalmente em assassinatos, tentativas de assassinato, ameaças de morte,
despejos da terra, expulsões da terra e outras formas que causem danos físicos ou
psicológicos aos trabalhadores rurais e camponeses ou a seus bens. As tentativas
de assassinato, ameaças de morte e expulsões da terra são formas de violência
privada contra os camponeses. Na violência direta e ativa o Estado age
principalmente com os despejos judiciais e com o uso da força policial no
cumprimento de ordens de despejo e na dissipação de manifestações, o que tem
como consequência mortes e ferimentos. A forma passiva da violência direta
ocorre com a omissão do Estado em relação à violência direta praticada por
particulares contra os camponeses. A violência indireta é uma prática simultânea
do Estado, fazendeiros e empresários. A ação política é a principal forma de
execução dessa violência. A criminalização da luta pela terra é outro exemplo de
violência indireta contra os camponeses, e que pode gerar formas de violência
direta no seu cumprimento. Essas ações contribuem para impedir o acesso à terra
por meio da reforma agrária (GIRARD, 2012).
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Quanto aos conflitos, estes podem adquirir várias dinâmicas que o caracterizam: “conflitos
por terra, conflitos pela água, conflitos trabalhistas, conflitos em tempos de seca, conflitos
em áreas de garimpo, e em anos anteriores foram registrados conflitos sindicais”
(CANUTO, 2012, p.10). Os conflitos por terra “são ações de resistência e enfrentamento
pela posse, uso e propriedade da terra e pelo acesso a seringais, babaçuais ou castanhais,
quando envolvem posseiros, assentados, quilombolas, geraizeiros, indígenas, pequenos
arrendatários, pequenos proprietários, ocupantes, sem terra, seringueiros, camponeses de
fundo de pasto, quebradeiras de coco babaçu, castanheiros, faxinalenses, etc” (Idem).
Enquanto defesa de modo de vida tradicional e desafiador ao modelo “desenvolvimentista”
vindo dos empreendimentos, os conflitos sinalizam que o território está sendo disputado em
defesa da existência de todo o bioma florestal e a sua sociobiodiversidade.
Cadeia Viciosa: Seringueiro entre a tradição e as intervenções do poder
A seguinte narrativa abaixo se parece mais com uma genealogia amazônica, que nos leva a
entender a relação homem local com o seringal, os agentes intervindo em seu espaço, e as
instituições do Estado interferindo no que se acostumou chamar de “indução” do
“progresso” pelas formas e intervenções de várias esferas de poder.
Pedro Gomes, morador do Projeto de Assentamento (Parque) Areia, em Trairão,
aos 69 anos é um exemplo vivo disso. Nasceu em um seringal onde hoje está
instalada a “fazenda” Passabem. Seu pai e também seu avô nasceram no mesmo
lugar. Eram seringueiros e caçadores.
Há cerca de quarenta anos, conta ele, começaram os problemas: “Chegaram.
Puseram os marcos de cimento. Disseram que a terra era deles”. Intimidado,
Pedro Gomes se muda para perto da cabeceira do rio Branco, na sua margem
direita. Começa do zero. Planta novo seringal e dele vive mais vinte anos, até que
a antiga cena se repete. Voltam: marcos de cimento, “guaxebas” [denominação
local de pistoleiros], ameaças... donos.
Nova expulsão. Pedro já não é jovem, mas procura outro recomeço. Essa busca é
mais difícil. Toda terra, agora, tem dono e ele aceita a “benevolência” da
madeireira J.B. de Lima (instalada, polemicamente, dentro do Areia, um
assentamento do Incra). A empresa se autoproclama dona das terras e permite a
Pedro ocupar um certo pedaço. Essa estada é mais curta: nova expropriação,
agora quem vem é o Incra.
A área que Pedro ocupava não estava em conformidade com os parâmetros do
assentamento que se instalava ali. O velho seringueiro é agora “beneficiário” de
um programa de reforma agrária. Retirado, mais uma vez, de sua morada, é
assentado num módulo de 80 hectares predeterminado.
Agora, “regularizado e amparado” pelo governo, Pedro Gomes passa a depender
dos favores do Incra e da madeireira. Ainda é forte, mas isso pouco lhe vale. Sua
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força de trabalho, seu modo de vida, sua tecnologia, tudo é condicionado à terra,
ao seu espaço. Ele não se reconhece no lote do Incra que lhe foi designado.
Ali não cabe o seu saber e o homem que por toda a vida sempre tirou da mata seu
sustento e o de sua família depende, hoje, das sobras de madeira da serraria
vizinha para manter em pé sua casa. Só uma coisa parece não ter mudado – assim
como seus antepassados, Pedro Gomes não tem o título da terra onde vive e se
sente ameaçado por um – sempre pendente – novo despejo.
Pedro confunde-se um pouco com datas e então sua mulher, sempre muito atenta,
o corrige. Não se queixa. Não tem mágoas. Gostaria apenas de poder ver e,
principalmente mostrar ao neto as seringueiras que plantou onde hoje é a fazenda
Degredo. Diz, muito lúcido: “Aquele seringal é a história dele, ele precisava ver”.
Sim. Precisava. Mas não pode. A entrada é proibida (TORRES, 2005, p.296-297).
Amazônia para “exportação”
De acordo com a definição acima de Girard (2012), a violência tem suas ramificações num
processo de intervenção sobre o corpo, pela barbárie, mas pode ser também compreendida
dentro de uma dinâmica em que se dá o atual modelo de Estado em concomitância aos
interesses de incentivos a exploração de empreendimentos e do capital no Pará. A questão
do mercado de terras está associada ao capital de commodities na Amazônia, que vincula a
exploração dos recursos ao “desenvolvimentismo”, incluindo nisto o PAC II do governo
Dilma, que, seguindo uma retórica econômica do “progresso”, visualiza a Amazônia apenas
a partir das mercadorias para exportação – celulose, minério, madeira e produtos
agropecuários, como carne e soja. Neste aspecto, as obras do PAC II, com a reconstrução da
BR-163 e Belo Monte, não visam beneficiar povos indígenas, quilombolas ou ribeirinhos,
nem o extrativismo, ou modo tradicional de ocupar a terra sem impactos. São esses setores
os que serão ainda mais beneficiados com os grandes projetos de infra-estrutura previstos
para serem executados na Amazônia.
A Amazônia é vista como espaço demográfico “vazio”. Esta é a lógica que prepondera na
reorganização dos grandes projetos na Amazônia. E para isto, se criou a idéia de
“excessão”, em que o governo se autoriza a ser infrator da OIT 169 e dos direitos humanos
dos povos tradicionais. Da mesma forma, as terras indígenas aguardam regularização, mas
os dados revelam que não há prioridades no processo, ou seja, “um pouco mais de um terço
do total das terras foi totalmente regularizado: 360 (36%). As categorias reservadas,
dominiais e com restrição somam 40 (4%). Outras 286 (28%) estão em alguma fase de
regularização. As demais terras, 322 (32%) estão sem providência. Ou seja, 605 terras
aguardam o início ou a finalização do processo regulatório” (CIMI, 2010, p.39). Muitos
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conflitos são decorrentes das reivindicações em torno desta questão, bem como as ameaças
e violências.
Segundo o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, apenas no Pará,
no ano de 2010, 40 empresas que atuam no Estado foram responsáveis por mais de 96% das
exportações brasileiras. Podemos citar apenas 20 casos: Vale S/A R$ 341.681.380 52,04;
Alunorte – Alumina do Norte do Brasil S.A. R$ 92.049.015 14,02; Albras – Alumínio
Brasileiro S.A. 26.568.002 4,05 Mineração Buritirama S.A. R$ 18.179.980 2,77; Kaiapos
Fabril e Exportadora Ltda R$ 16.491.360 2,51;Jari Celulose S/A 16.039.313 2,44; R$ Sidepar
– Siderúrgica do Pará S.A. R$ 12.435.800 1,89; Companhia Siderúrgica do Pará – Cosipar
R$ 11.245.800 1,7; Minerva S.A. R$10.951.341 1,67; Mineração Rio do Norte S.A. R$
9.979.899 1,52 ; Agroexport Ltda R$ 9.001.956 1,37; Cadam S.A. R$ 6.718.725 1,02; Rio
Capim Caulim S.A. R$ 6.629.274 1,01; Vale Manganes S.A.R$ 6.130.520 0,93; Bertin S.A.
R$ 6.018.777 0,92; Pará Pigmentos S.A. R$ 5.410.265 0,82; Dow Corning Metais do Pará
Ind. e Comércio R$ 4.796.050 0,73; Reinarda Mineração Ltda R$ 4.561.144 0,69 Usipar
Usina Siderúrgica do Pará R$ 3.420.000 0,52; R$ Sidenorte Siderurgia Ltda 3.072.763 0,47.
Do resultado destes números, verifica-se prioridade em estimular o setor de exportação, em
detrimento das questões territoriais, que implicam em afetar os agentes econômicos acima.
O modus operandi do desmatamento na visão do MPF
O processo instaurado pelo MPF acerca do desmatamento na Amazônia não tem levado em
consideração os fatores que apontam para os motivos do desmatamento, e as conclusões do
inquérito contra o Incra apontam um viés meramente preocupado com o licenciamento
ambiental. O nó górdio do desmatamento, que vai do processo da grilagem até a ação dos
agentes madeireiros e os empreendimentos do agronegócio na região não são manifestados
no processo, nem os crimes relativos a estes. Isto revela que o poder público não toca nas
questões como os direitos dos moradores de permanecerem em suas terras e territórios,
mesmo que estes tenham mais de 50 anos naquele local, o que se observa é que os grandes
proprietários é que são favorecidos pela posse das terras, mesmo no domínio de
assentamentos. A grilagem, associada aos mandonismos políticos locais com o poder
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privado, não são colocados como os agentes do desmatamento no processo do MPF,
quando, dentro de uma visão mais sistêmica, deveria-se questionar a seguinte estrutura:
Pode-se dizer que a atuação do poder público no combate à grilagem (e às suas
conseqüências imediatas, como trabalho escravo e desmatamento) foi
praticamente nula. Os fazendeiros da região valem-se da conivência das
autoridades locais – prefeitos, policiais – e vários contam com o reforço de
pistoleiros. Além disso, muitos usaram de influência junto a políticos estaduais e
federais, o que os mantém impunes. Já em novembro de 2003, jornais da região
anunciavam que: “Órgãos ligados aos direitos humanos e à problemática
fundiária alertam que a situação está no limite do suportável. Os colonos,
ameaçados por grileiros sojeiros e madeireiros, ameaçam ir às armas e partir para
um confronto armado. Cansados de esperar uma ação efetiva do Estado, eles
sentem a necessidade de defenderem o direito à terra” (TORRES, 2005, p.296).
O Novo Código Florestal, Lei nº 12.651/2012, ao estabelecer os percentuais mínimos de
reserva legal a serem observados, esclarece que o cálculo deve considerar toda a área do
imóvel, salientando que inclusive os assentamentos criados pelo Programa de Reforma Agrária
se submetem a esse critério. De acordo com o processo do MPF, instaurado a partir de estudos
do INPE (Manaus), as reservas legais de 80% não estão sendo obedecidas (MPF, 2012, p.19).
Abaixo, de acordo com o mapa, podemos perceber que os P.As (Projetos de Assentamentos)
estão próximos aquelas regiões também marcadas não só pelo crescimento urbano, como ao
crescimento do setor do agronegócio (soja, pecuária, madeira). De fato, a extração madeireira
coincide com a abertura da floresta para o pasto e a agricultura em grande escala. Estas áreas
são, no caso da região oeste e sudeste do Pará, territórios indígenas e quilombolas, bem como
de posse de trabalhadores rurais e moradores antigos que não possuem os títulos de terras.
Mapa 1 - assentamentos Incra até 2010
Fonte: MPF/Imazon, 2012, p.7.
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Da imagem é possível extrair a distribuição, ao longo da Amazônia, dos 764 assentamentos
cujos níveis de desmatamento enquadram-se no intervalo de 75-100%, os quais foram
responsáveis, até o ano de 2010, por desmates da ordem de 64.127 ha. Distribuem-se da
seguinte forma os P.As com maior nível de desmatamento da Amazônia: 287 no Estado do
Pará; 207 no Estado do Maranhão e 117 no Estado do Mato-Grosso. De acordo com a tabela
abaixo retirada do processo do MPF, tendo como instituição responsável pela pesquisa o
INPE, podemos verificar que o MPF busca se respaldar no marco temporal como foco de
análise do avanço do desmatamento na Amazônia. Neste aspecto, os resultados mostram que
o desmatamento em toda a região esteve relacionado ao número de P.As aprovados, o
percentual de desmatamento realizado antes dos P.As e após suas criações. Os resultados
apontam para a crescente atividade de desmatamentos realizados antes da criação dos P.As,
mas, mesmo após a aprovação dos assentamentos, os números tendem a crescer
drasticamente. Tomando-se como hipótese o argumento de que uma instituição foi criada para
promover o assentamento como forma também de contribuir na contenção do desmatamento;
além de retrair atividades ilícitas em torno dos territórios de conservação ambiental e reservas
indígenas/quilombolas, então podemos concluir que sua missão institucional tem sido falha, e
as políticas voltadas para a Amazônia estão sujeitas ao domínio do poder privado em
detrimento das questões públicas que os sustentam legalmente.
É preciso destacar que parte da explicação acerca do processo de desmatamento, que não
foi citado pelo MPF, pode ser explicado pela ação ilegal das madeireiras em áreas
dominadas pelas reservas ambientais, ou em territórios dos povos tradicionais (TORRES,
2007). Recentemente, o esquema denunciado pelo ambientalista João Chupel, morto
anunciadamente na região chamada “Terra do Meio”, - região oeste do Pará próximo a
Itaituba -, se desenvolve dentro dos limites da reserva, em sua porção oeste, perto da
Floresta Nacional Trairão, e no acesso ao Assentamento Areia, montado por uma empresa
há uma década para extrair madeira irregularmente. São muitos os interesses em jogo na
reserva de Riozinho, que vão de especulação imobiliária a venda de recursos naturais pela
madeira e lavagem de dinheiro (BRUM, 28/02/2012; PARRACHO, 20/06/2012).
Os dados do desmatamento foram elaborados e discriminados segundo pesquisa realizada
pelo INPE, a pedido do MPF, para subsídio de processo contra o Incra. Vamos citar apenas
alguns exemplos, dada a extensa lista. Os dados mostram que o P.A Federal teve 2.330
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projetos apresentado ao Incra, sendo aprovados apenas 1830 P.As, numa área total de
193.812,60 km², tendo desmatado uma área de 102,084,69 km², com percentual de
desmatamento de 53% da área total do projeto. Deste montante, 1401 projetos aprovados
tiveram com mais de 20% da área desmatada. O referido P.A teve 54% de suas áreas
desmatadas antes da sua criação, e no ano de sua criação a taxa subiu para 57%, enquanto
após os 5 anos de sua criação a taxa representava 80% de desmatamentos. O caso da P.A
floresta nacional teve sua área de 49.338 km² em 74% desmatada nos 5 anos antes de sua
criação, tendo aumentado para 92% no ano de sua criação, e para 96% o percentual de
desmatamento após 5 anos de sua criação. Outro exemplo é o da P.A agroextrativista
Federal, que teve 77% dos seus 91.276 km² reduzidos nos 5 anos antes de sua criação,
passando para 80% no ano de sua criação, e 91% após os 5 anos. Em relação ao P.A
Quilombola e reservas extrativistas, além de outros projetos de assentamentos, a mesma
lógica tem prevalecido em relação principalmente ao acréscimo do desmatamento. É o que
se pode perceber na representação feita pelo MPF no processo instaurado contra o Incra,
conforme verificamos nos autos do processo (MPF, 2012, p.24). O mais assustador é que de
2000 até 2010, cerca de 1.227 assentamentos foram responsáveis entre 75% e 100% dos
desmatamentos, de uma área total de 4.839.624 km².
Gráfico dos P.As que mais desmataram no Pará
Fonte: MPF/Imazon, 2012, p.29.
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Notamos apenas no exemplo acima grandes extensões de terras que sofreram
desmatamentos dentro dos P.As, o que nos leva a analisar que o processo do MPF contra o
Incra, até o momento, revela uma preocupação com a questão da legislação ambiental. O
gráfico não busca apontar a presença dos agentes que expropriam os colonos, visando ou
expulsá-los das terras e territórios, ou cotejados com as promessas de benefícios advindos
da reorganização produtiva pela exploração madeireira. Não verificamos até o momento,
além de um viés meramente preocupado com a questão legalista do desmatamento, uma
análise que venha identificar de forma sistemática os problemas do desmatamento, como
viemos apontado neste estudo, ou seja, a complexidade que envolve o conflito pelas terras
com a questão madeireira e a violência resultante deste processo contra aqueles que
buscaram barrar tal dinâmica de crimes ambientais. O processo do MPF também possui
versão parcial sobre o Incra, e busca deslocar a análise sistêmica do processo do
desmatamento para os trabalhadores assentados, o que se revela problemático, como
veremos adiante.
Um processo com visão institucional e parcial
Depois de fazer o levantamento cartográfico e estatístico, através de instituições de
pesquisas reconhecidas, o MPF apresenta parecer que termina deslocando a explicação
sistêmica da causa para o efeito, ou seja, responsabilizando grande parte deste
desmatamento pelos movimentos de trabalhadores rurais e populações tradicionais que
estão na posse das terras aguardando a regularização fundiária. A visão em torno do
desmatamento, ao invés de analisar a problemática dos incentivos do governo federal pela
ocupação de terras públicas e a grilagem, termina transferindo parte dos desmatamentos ao
que se chama de “invasor”, relegando a estes o episódio das formas “ilícitas” de
expropriação das terras, por não apresentarem a referida licença ambiental.
No fragmento abaixo retirado dos autos do processo instaurado pelo MPF busca-se como
argumento para a “causa” dos desmatamentos uma tautologia que tenta mostrar que é o
pequeno agricultor, com sua roça, que seria um dos responsáveis pelos fatos do
desmatamento nos assentamentos. É claro que o pequeno agricultor não necessita de
derrubar a floresta para plantar mandioca, mas é o que se constata no veredito a seguir:
12
Na abordagem, apenas um produtor foi localizado e se manifestou afirmando “se
não derrubar o INCRA faz a retomada da posse”, pois o mesmo é o quarto dono
desse lote, pois o primeiro e o segundo foi tomada a terra por não ter feito nada, e
o terceiro faleceu, e o atual foi 'intimado' para fazer algo na terra senão seria feita
a retomada da propriedade por não produzir'. Então o agricultor plantará sua roça
de milho e mandioca, uma vez que vive da roça” (2012, p.20).
Analisando a distribuição do total desmatado nos P.A., quanto à ocorrência 5 anos
antes de sua criação, no ano de sua criação, ou 5 anos depois de sua criação, o
INPE verificou a predominância de desmatamentos com datas mais antigas. Onde
foi possível analisar os dados de desmatamento, 5 anos antes da criação dos P.A.
66% deste desmatamento já existia, passando a 76% no ano da criação e
atingindo cerca de 82% anos depois da criação do P.A. (dados médios).
No desenvolvimento da investigação ministerial, o IBAMA encaminhou a esta
Procuradoria cópia de Relatório resultante de fiscalização realizada em área de
reserva legal de uma propriedade invadida, previamente à instalação de
assentamento pelo INCRA, por integrantes de movimentos de trabalhadores
rurais, no intuito de avaliar do cometimento de ilícitos ambientais, perpetrados
por ocasião da invasão, bem como no lapso que medeia entre o episódio em
questão e a implantação do assentamento.
O relatório em tela, que restou acostado às fls. 47-62 do procedimento, consiste
em um retrato perfeito do resultado verificado pelo IMAZON na análise das taxas
anuais de desmatamento nos períodos pré e pós-instalação dos assentamentos,
corroborando a informação já constante dos gráficos supra, no sentido de que
consiste em prática contumaz a promoção de desmatamento no interior de
assentamentos instalados pelo INCRA; Ora, não foi outra a conclusão a que
chegou o IMAZON quando da detecção de que nos dois anos anteriores à criação
dos assentamentos verifica-se um crescimento nos níveis de desmatamento da
área que sediará a implantação do projeto.
Uma leitura ainda que pouco acurada do trecho do Relatório acima transcrito
leva-nos à constatação de que os “procedimentos”, por assim dizer, preparatórios
à implantação de assentamentos pelo INCRA, e consistentes basicamente em
DESMATAMENTO pelos ora invasores, iniciam-se cerca de 2 ou 3 anos antes
dos atos que formalizam juridicamente o início do loteamento, concretizando-se
por intermédio da invasão da área a ser futuramente loteada.
Nesse período, o desmatamento já é promovido pelos invasores, futuros
assentados, e em níveis bastante consideráveis; níveis estes, no mais das vezes,
mais elevados do que aqueles verificados após efetiva instalação dos
assentamentos, na medida em que, nesse período prévio, as famílias que invadem
desmatam grandes porções do território no intuito de criar condições propícias
para sua instalação.
Pode-se afirmar que, antes da criação dos assentamentos, os invasores da área
degradam-na com dois fins, quais sejam: 1) a preparação da área para instalação
dos assentamentos e das culturas que lá desejam cultivar, e 2) a extração irregular
de madeira com o intuito de lucro, seja efetuando a venda da madeira
propriamente dita, ou do carvão resultante da sua queima, seja abrindo clarões
para cultivo de culturas de subsistência, dentre outras formas de exploração
predatória da terra e da vegetação.
Já posteriormente à instalação do assentamento, somente subsiste como ensejador
do desmatamento, promovido pelos agora assentados, o segundo dos motivos
supra elencados.
Essa redução de motivos, vamos dizer assim, conduz, no mais das vezes, à
verificação de uma pequena redução dos níveis de desmatamentos após início do
loteamento; redução essa, todavia, que não é capaz de promover a inserção da
13
exploração que os assentados realizam no interior dos assentamentos dentro de
limites mínimos da legalidade, conforme já demonstrado (MPF, 2012, p.25-26).
É claro que o processo levantado aqui pelo MPF não muda o problema da estrutura fundiária,
centrada na questão do mercado de terras, visto que a visão parcial se resume apenas a advertir o
órgão quanto ao fato de não exigir licenciamento ambiental. Isto não alteraria também o problema
na Amazônia Legal, visto que, como os dados mostraram aqui, as áreas de assentamentos com
expropriação madeireira e do agronegócio aumentaram, e as reservas dos territórios das
populações tradicionais vêm se retraindo. A questão, na Amazônia Legal, de fazer uma instituição
como o Incra exigir licenciamento ambiental, é parcial a um problema em que o valor das terras é
estimulado pelo grande margens de geração de lucros pela madeira que oferta, e pela capacidade
de se estender ao agronegócio. As terras, sendo públicas, passam, inclusive na lógica dos
assentamentos, a serem privadas, mesmo sem titulação:
Apesar de se tratar quase totalmente de terras públicas, nessa região não se encontra
porção livre da apropriação e, a despeito da destinação legal dessas terras, comumente
encontramos grandes fazendas. A ocupação camponesa – à qual se direcionava
legalmente as terras arrecadadas pelo Incra –, apesar de substantiva, é minoritária
comparada às porções griladas. O roubo de terras banalizou-se e, não raro, é tido como
ato heróico: a prova de espírito desbravador e bandeirante, do empreendedor que desafia
todas adversidades para levar à selva o “progresso” e o “desenvolvimento” (CUNHA et
al.,2011, p.4).
O desmatamento de amplas extensões de terras tem sido feito à margem legal e autorização do
Estado e Governo Federal, em função da política retórica do “desenvolvimentismo”, sob a ótica
da “produtividade sustentável”, transferindo terras públicas a grileiros, quase sempre aliados a
elites do setor madeireiro e do agronegócio. Na região oeste do Pará, o sindicato rural tem
conseguido ampliar a extensão de terras, sob esta lógica do produtivismo, no entanto, este
representa setores patronais do agronegócio que, na busca de estratégias, terminam conseguindo,
pelos assentamentos, o objetivo que precisam para ampliação de negócios. Neste sentido, cabe
dizer que os camponeses, não são os responsáveis, junto com indígenas e quilombolas ou
trabalhadores rurais locais, pela grande expropriação de terras, pois não necessitam de grandes
áreas para a agricultura comunitária. A lei do oeste é a determinada pelo capital imobiliário e
especulativo sobre as terras.
No oeste do Pará, a federalização de terras foi seguida de ações discriminatórias,
arrecadação e de registro de terras pela e para a União, nos termos da Lei n°
14
6.383/76. Por meio desse instrumento legal, a figura do “ocupante de terras
públicas” é reafirmada como sendo aquele que torna a terra produtiva com o seu
trabalho e o de sua família, que exerce morada permanente e cultura efetiva. Para
essas situações, a Lei 6.383/76 determinou ao Incra a “legitimação de posse”,
assegurada a preferência para a aquisição de áreas até 100 hectares.
Porém, esse dispositivo legal não impediu que outros grupos avançassem sobre
largas extensões de terras, buscando legitimação por meio de processos de
“regularização fundiária” instaurados junto ao Incra. O procedimento repetia a
receita já usada no Mato Grosso para a grilagem de terras: a grande apropriação era
fracionada em “n” processos de lotes inferiores ao limite constitucional, e para cada
um dos lotes abria-se um processo independente no Incra, com distintos “laranjas”
como requerentes. Esses diversos “testas de ferro”, na prática e muito
proximamente, encobriam um só grande grileiro. Não raro, a falsidade ideológica
praticada era pouco ou nada encoberta, como, por exemplo, nos casos em que
muitos dos “laranjas” interessados em lotes contíguos tinham o mesmo procurador
(CUNHA et al.,2011, p.6).
O fato recente da criação de uma “MP 458 cravou um novo marco para a aquisição de
terras públicas por particulares na Amazônia Legal. Um instrumento que permite alterar a
situação jurídica de 67 milhões de hectares é sem dúvida uma novidade de grandes
dimensões políticas” (CUNHA et al, 2011, p.19). O Governo Federal, mediante o Incra, tem
produzido, sob o mecanismo do “assentamento produtivo”, não só a permissão para a
expropriação das riquezas amazônicas, principalmente da madeira, como o processo de
desterritorialização contra as comunidades resistentes:
A instituição de um novo Código Florestal, os inúmeros ataques aos direitos
territoriais de populações indígenas e quilombolas, a redução de unidades de
conservação por meio de Medidas Provisórias ilustram um cenário de remoção de
todo um aparelho jurídico em favorecimento de novas estruturas econômicas e de
poder político.
O propósito conservador é rediscutir todos os territórios de comunidades
tradicionais: indígenas, quilombolas, faxinais, fundos de pasto, quebradeiras de
côco babaçu, ribeirinhos etc. Às vezes, são tantas as formas de pressão, no
judiciário, no executivo e no legislativo, e tantos são os meios para divulgá-las que
parece estarmos assistindo a uma campanha de des-territorialização. Trata-se de
uma maneira de criar uma nova estabilidade jurídica para a ampla territorialização
do capital.
O que se observa na Amazônia Legal é que há um controle das terras pelas grandes empresas.
As grandes propriedades com mais de mil hectares de terras ocupam área de 59% e
representam mais de 116 milhões de hectares, enquanto os pequenos produtores, com
minifúndios inferiores a 10 hectares, possuem apenas 600 mil hectares. No Pará e Maranhão,
a pequena propriedade representa apenas 208 mil hectares (MESQUITA, 2011, p.62). A
política de assentamento pelo Incra, substitutiva da reforma agrária, não foi capaz de alterar o
15
acesso a terra pelo agronegócio. Os estrategistas têm usado não só o discurso produtivista da
expansão do agronegócio, como também o discurso do “desenvolvimento sustentável”
ocupando terras até mesmo por meio de ONGs, criadas e usadas como “testas de ferro”.
Recentemente, um conflito se acentuou na região da Gleba Nova Olinda, rio Arapiuns,
afluente do Tapajós, próximo a Santarém, quando a população local protestou contra a
Empresa Madeireira Rondonbel. Depois de mais de dois meses de manifesto, a população
prendeu e queimou a balsa com a madeira. Estiveram presentes representantes do sindicato
dos agricultores, lideranças comunitárias, defensores dos direitos humanos. Houve
negociação com o Instituto de Desenvolvimento Florestal (Ideflor), a Secretaria de Meio
Ambiente do Pará (Sectam) e o ministério público federal de Santarém. A população,
formada de indígenas em sua maioria, reivindicava a regularização e titulação de seu
território. Apesar de reterem a madeira, como parte de seu patrimônio, a empresa
juridicamente estava requerendo indenização de mais de R$ 5 milhões de reais, por alegar
que tinha “comprado” as terras (SIMENEL, 2009).
Por outro lado, empreendimentos como o setor agromadeireiro, movidos pela madeira, a soja,
os minérios, Hidrelétrica de Belo Monte, e a pecuária extensiva, marcham em frentes
ostensivas, conseguindo amparo legal para o avanço. Desta dinâmica histórica se geram os
conflitos provenientes da desorganização e desarticulação das populações rurais,
estabelecidas de forma ancestral nestes territórios, secularmente vistos como espaços de
reprodução social. Outra consequência causada pelos empreendimentos econômicos e
políticos na região é o surgimento da concentração de terras e renda, expropriando o
“posseiro” para as periferias, concentrando renda e aumentando a desigualdade social
daqueles que viviam do extrativismo e agricultura. Deste processo, apenas tem restado as
parcas políticas compensatórias para estas minorias, sob a forma de programas e projetos
setoriais, reformativos pela superfície, amparados pelo Estado e a favor das grandes empresas
(MESQUITA, 2011, p.63).
Por fim, não são os pequenos lotes de assentamentos os verdadeiros responsáveis pelos
crimes ambientais. Há uma lógica comercial que privilegia no país a concentração de terras
nas mãos de poucos. Entre os anos de 1992 a 2011 a pequena propriedade cresceu 54,51%
em número de imóveis declarados, enquanto as médias e grandes propriedades obtiveram
um aumento de 56% e 25 % respectivamente. Ou seja, “Cabe frisar que destes, apenas 208
16
controlam o equivalente a aproximadamente 76 milhões de hectares, com propriedades de
100.000 hectares ou superior a isso. Ou seja, 208 pessoas e/ou empresas de capital
nacional/internacional detém o poder de usufruir, controlar e se beneficiar financeiramente
e politicamente de 759.343,90 km²” (NERA/DATALUTA, 2011, 2010, p.8). Desta estrutura
é que emergiu, no período de 1988-2010, 778 ocupações de famílias em toda região norte,
envolvendo 106.181 famílias, e 524 apenas no Pará com 80.875 mil famílias envolvidos em
conflitos no campo (NERA/DATALUTA, 2011, 2010, p.14).
A violência que se aflora e o judiciário
Em 2004, no município de Castelo dos Sonhos, entre a divisa do Mato Grosso e o
município de Novo Progresso, região oeste do Pará, os fazendeiros e grileiros mantinham a
ocupação de áreas através da vigilância de pistoleiros e grupos armados, expulsando os
“posseiros” de suas áreas, para ocuparem imensas terras, aos quais desmatam e abrem
caminho para as madeireiras e a pecuária. Abaixo, uma cena:
[...] um grupo de pistoleiros a serviço de grileiros está espalhando o terror entre
agricultores e assentados. É lá que fica o assentamento Brasília, na gleba
Gorotide, motivo de disputa entre posseiros e um grupo latifundiário, liderado
pelo senhor Niltom de Albuquerque Braga, conforme denúncias feitas por
pequenos agricultores. Lista de “Espera por terra”, há anos nas paredes do
Sindicato de Trabalhadores Rurais de Castelo dos Sonhos. O anúncio do
asfaltamento da rodovia e uma febril expectativa do avanço da soja matogrossense para o norte aquecem o mercado de terras e a violência nos processos
de ocupação. Há poucos dias, um dos posseiros denunciou que o bando armado
havia torturado trabalhadores na frente de suas esposas e filhos. A reportagem
teve acesso a um laudo pericial feito a pedido da polícia no hospital de Novo
Progresso, que confirma a tortura sofrida por um dos agricultores, que levou
coronhadas na cabeça, golpes de facão e pauladas. O agricultor não quis mais
retornar à sua terra. Sua casa ainda foi incendiada e os animais foram mortos
(TORRES, 2005, p.298-299).
Conforme verificamos nesta passagem acima, a violência na região é recrudescente e
recorrente, desde os anos 1980, quando a pistolagem, associada ao processo de torturas, era
usada como uma “pedagogia do medo”, visando causar a aniquilação das resistências
contra os crimes e a ação das empresas madeireiras. Podemos dizer que há uma tipologia
dos crimes de pistolagens no Pará. Aqui, os pistoleiros não visam os valores de honra e
vingança, como no nordeste (BARATA, 1995). A caracterização destes tipos de crimes está
fortemente marcada ao contexto pelo domínio das terras, como aos interesses das elites
17
locais ligadas ao setor madeireiro ou latifundiário. Nos anos 1990 e recentemente, a
barbárie continua recrudescente:
A instrumentalidade é outro aspecto da violência que ganha destaque nos
extermínios no campo. Os assassinatos manifestam-se com um processo racional
e calculado. De fato, não é a raiva ou a fúria que motiva as mortes coletivas. A
explosão das emoções, tão característica da sociedade brasileira rural do século
XIX, conforme descrição de Franco (1997), não está presente nas práticas de
extermínio no agrário paraense. Nestes crimes de mando há sempre um propósito,
uma ponderação entre meios e fins, entre custo e benefício. Os mandantes
almejam o controle sobre a posse da terra e os recursos naturais, enquanto os
pistoleiros veem no “serviço” contratado uma possibilidade de obtenção de
dinheiro (GUIMARÃES & BARP, 2011, p.122).
A violência no Pará também conta com a impunidade e invisibilidade dos casos no
judiciário, em que mandantes dificilmente são punidos pelas suas ações criminosas e onde
“é mais fácil contratar pistoleiro do que pegar um táxi” (MPF, 15/06/2012). A violência não
se dá de forma “desorganizada”, sem um propósito ou fim, e nem ocorre sem uma
explicação com o contexto local. Ela não é fortuita e tão fragmentada quanto se pensa. Os
extermínios promovidos pela violência, e a barbárie consequente disto, nos levam a busca
de que sua tipologia pode ser brevemente caracterizada da seguinte forma:
As chacinas, no Pará, assumem caráter ritualístico e sacrificial, ao
potencializarem o terror e o medo. Há registros de torturas, degolas e castigos
corporais pós-morte como parte do ritual do sacrifício humano, que podem ser
confirmados nos autos da chacina da fazenda Princesa, em 27 de setembro de
1995, que vitimou cinco trabalhadores. Segundo as informações, as vítimas foram
amarradas, torturadas e queimadas e os cadáveres jogados no Rio Itacaiúnas, que
banha a cidade de Marabá/PA.2 Assim, são comuns nos massacres tiros na nuca, a
queima-roupa mesmo com a vítima imobilizada, corte de orelhas, de mãos, entre
outros atos brutais (GUIMARÃES & BARP, idem).
Neste sentido, a violência produzida nos corpos destas vítimas buscam produzir uma
“pedagogia do medo”, que é disciplinar, pois visa estabelecer as formas estratégicas de
hierarquia social, mediante o autoritarismo das relações sociais, e conta com a impunidade
na justiça. Tal relação da pistolagem com as mortes pelo extermínio e a barbárie, instaura a
assimetria das relações de forças e poder, em que neste instante em que a violência atinge
seu ápice, aqueles que se sujeitam passam a ser estigmatizados como vítimas exemplares
necessárias para a canalização e eliminação das formas de resistências (FOUCAULT,
2004).
18
Deste processo de violência, é sintomático também que povos tradicionais sejam vistos
como “estranhos” a uma ordem social estabelecida, e que precisam ser “eliminados”. Em
2011, 322 terras indígenas no Brasil tiveram problemas com invasões de empreendimentos
comerciais diversos. A violência contra o patrimônio indígena se estende a outras áreas,
como os conflitos a direitos territoriais, relativos a invasões, desmatamentos, construção de
hidrelétricas. As invasões possessórias e invasões ilegais de recursos naturais são outra
forma de violência sofrida. Este último é incentivado pelas madeireiras que cotejam as
comunidades a acreditarem na capacidade de geração de renda pelas empresas, induzindo a
acreditarem que justificaria o desmatamento (CIMI, 2011, p.38-59).
Em todo o Brasil, a violência contra a pessoa, na forma de homicídios a indígenas, foi de
452 mortes relativas aos anos de 2003-2010; 27 tentativas de assassinatos e 153 ameaças de
mortes em 2010. Em 2010 foram 60 mortos em toda região amazônica, e o Mato Grosso do
Sul respondendo por 57% dos assassinatos, próximos aos eixos de atuação das áreas do
agronegócio. As causas estão relacionadas a pistolagem e espancamentos, além do
problema do racismo e discriminação étnico-racial, que tem estigmatizado os indígenas
como “atrasos” ao desenvolvimento” (CIMI, 2011, p.63-89). Do período que vai de 20022011 o registro de assassinatos por conflitos foi de 377, sem considerar os que não são
registrados; enquanto que o número total de conflitos no mesmo período foi de 14.395
(CANUTO, 2012, p.15). Disto se conclui que os conflitos e a violência não são pormenores
de uma sociedade que considera que estes são problemas de um passado que foi
“subsumido” pela “modernidade” do agronegócio.
Considerações finais
A partir da análise do Processo Inquérito Civil Público nº. 1.23.000.002382/2011-17, de
29/06/2012, pelo Ministério Público Federal contra o Incra, sob a alegação de que este foi
responsável pelo desmatamento nos últimos dez anos na Amazônia Legal, conforme vimos,
podemos verificar que os argumentos instaurados, mesmo a despeito das instituições
envolvidas e de notoriedades acadêmicas, demonstram uma visão parcial e institucional do
próprio MPF, que, ao denunciar, acaba reproduzindo a lógica daqueles interessados em
transferir os problemas em torno das terras e do território para aqueles que, sem força
19
diante das instituições públicas, são acusados de serem “invasores” ou de “atraso” ao
“desenvolvimento”. Tal argumento se encontra na explicação do MPF de que o
desmatamento se deve “1) a preparação da área para instalação dos assentamentos e das
culturas que lá desejam cultivar, e 2) a extração irregular de madeira com o intuito de lucro,
seja efetuando a venda da madeira propriamente dita, ou do carvão resultante da sua
queima, seja abrindo clarões para cultivo de culturas de subsistência, dentre outras formas
de exploração predatória da terra e da vegetação” (MPF, 2012, p.26). Entoa como
discriminação e pouca profundidade sociológica do MPF montar um inquérito que, ao
tentar ser um argumento de natureza “científica” promove a reprodução, por meio jurídico,
do discurso que produz e reproduz, tal como um modus operandi, a expropriação e
estigmatização dos sujeitos que reclamam seus direitos ao território, como segue nas frases
a seguir: “o desmatamento já é promovido pelos invasores”, ou ainda, “as famílias que
invadem desmatam grandes porções do território” (Idem).
Podemos, através deste trabalho, verificar que o papel dos assentamentos usados via
institucional pelo Governo Federal, através do Incra, continua a ser realizado como um dos
instrumentos para expansão do setor que chamamos “agromadeireiro” que, mediante as
práticas e estratégias de cotejo das famílias, muitas vezes pela grilagem de terras, vai
“abrindo” a floresta para expropriação medeireira, consequentemente para a soja, a
pecuária e outros. A agricultura de pequena propriedade, extrativista e de subsistência, ao
contrário do que mostra o MPF, não pode ser responsável pela derrubada de milhões de
hectares de floresta, justamente estes atores que resistem em seus territórios historicamente.
Os desmatamentos são estimulados sim pelo valor comercial da madeira e das commodities
do bioma florestal. Segundo Cálculo do valor de madeira comercial gerada pelo
desmatamento em assentamentos do Incra entre 2000 e 2010, elaborado pelo preço médio
SEFA do Estado do Pará, podemos verificar que os números assustam e explicam o por quê
de tamanha corrida pela posse de terras. Para se ter um exemplo, no Pará, 15.794 km² de
área devastada, equivalente a 1.579.300 hectares desmatados, custando R$ 576,76 m³,
equivalendo a 38m³ de volume explorado, sai por R$ 34.073.207.984,00 (trinta e quatro
bilhões, setenta e três milhões, duzentos e sete mil, novecentos e oitenta e quatro reais). É o
custo monetário quantificado do dano ambiental perpetrado que justifica a corrida e os
conflitos violentos na Amazônia (MPF, 2012, p.55).
20
Notas
___________
1
Este trabalho faz parte do projeto de pesquisa “Mapeamento da Violência, Conflitos Sociais e o Sistema
Social de Controle das Instituições de Segurança Pública na região Oeste do Estado do Pará”, com
financiamento de bolsa PIBIC/UFOPa, coordenado pelo Prof.Dr.Amadeu de Farias Cavalcante Jr, período
2011-2013. E-mail: [email protected].
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territórios em disputa: conflitos e violência no oeste do pará