Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura “UMA UNIÃO SEXUAL PARA SEMPRE DIFERIDA”: para uma possibilidade de aproximação entre feminismo e desconstrução Aparecido Donizete Rossi1 Em uma entrevista concedida a Derek Attridge em 1989 e publicada em 1992 no livro Acts of Literature, Jacques Derrida é convidado, em dado momento, a responder uma questão que comporta, dentre outras arestas, problemáticas como o papel da crítica literária ante a solidariedade histórica entre a literatura e a tradição metafísica, o prazer obtido pelo leitor com tal solidariedade e a possibilidade da literatura estar compactuando, desse modo, com uma ética e política particulares (1992, p. 53 – 54). Como parte da resposta à pergunta tão complexa, Derrida deixa entrever uma possibilidade do que seria a experiência da Desconstrução, ou seja, do questionamento, da leitura ou da escrita desconstrucionistas, ao afirmar que “[t]oda vez que há ‘jouissance’ (mas o ‘há’ desse evento é em si extremamente enigmático), há ‘desconstrução’. Desconstrução efetiva. A desconstrução tem talvez o efeito, se não a missão, de liberar a jouissance proibida” (1992, p. 56). É bastante significativo que o “pai” do pensamento desconstrucionista tenha utilizado a palavra francesa jouissance como uma espécie de sinônimo para esse evento, a Desconstrução, que não pode ser transformado em episteme a partir de definições, visto que desarticula a metafísica de toda e qualquer episteme. Jouissance é um dos conceitos fundamentais do pensamento de Hélène Cixous, importante teórica do Feminismo ocidental, e uma das pedras angulares da escola feminista francesa. No teorizar de Cixous e no Feminismo francês, a jouissance tem “simultaneamente implicações sexuais, políticas e econômicas. Acesso total, participação total, bem como êxtase total, estão nela implicados” (WING, 1986, p. 165, grifo da autora). Portanto, seu entendimento vai muito além dos sentidos dicionarizados de “prazer”, “gozo” e “deleite” — todos 1 Doutor em Estudos Literários pela UNESP – Araraquara/SP. Professor de Literatura Inglesa na UNICASTELO – Descalvado/SP E-mail para contato: [email protected] Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura com conotações sexuais — comumente comportados pelo vocábulo, de modo a expressar o infinito e ilimitado que é o Feminino, infinito e ilimitado que desarticula toda forma de oposição e hierarquia, os dois aspectos que sustentam o pensamento e a sociedade ocidentais, ou o patriarcado per se. A jouissance é, assim, uma ameaça ao patriarcado à medida que, enquanto forma incontrolável de prazer (seja esse prazer físico, psíquico, espiritual ou discursivo), práxis política e meio de resistência, liberta das amarras corporais, mentais e espirituais às quais a sociedade ocidental relegou não apenas o Feminino, mas todas as diferenças. Esse gesto bastante significativo de Derrida gera um sintoma nem sempre acolhido com hospitalidade e generosidade por desconstrutores e por feministas, qual seja uma espécie de parentesco, a possibilidade de uma identificação, entre Feminismo e Desconstrução. Desse modo, há a possibilidade, incômoda para muitos, de que existam confluências e influências entre essas duas formas de pensar o diferir, de que exista um permear entre ambas, e “permear” deve ser entendido aqui enquanto tímpano, um “singular limite que não o é, que não separa mais o dentro do fora do que lhes assegura a permeável e transparente continuidade” (DERRIDA, 1991, p. 17); enquanto margem, algo que está “dentro e fora, simultaneamente a desigualdade dos seus espaçamentos internos e a regularidade da sua orla” (id., p. 26); ou hymen, “entre o dentro e o fora de uma mulher, e consequentemente entre desejo e satisfação. O hymen não é nem desejo e nem prazer, mas algo entre os dois. Nem futuro e nem presente, mas algo entre os dois” (DERRIDA, 1981, p. 213, grifo do autor). Em suma, o permear pode ser entendido como “o indecidível” (id., p. 211), e o indecidível parece ser a chave para uma possibilidade de aproximação entre Feminismo e Desconstrução. No entanto, emerge disso um problema epistemológico que merece reflexão: por seu próprio caráter questionador e desarticulador, a Desconstrução pode anular ou mesmo destruir o pensamento feminista. À medida que o Feminismo precisa de “conceitos tais como autonomia da razão, verdade objetiva e progresso benéfico através da descoberta científica”, “[acredita] que a razão triunfará”, articula-se em Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura posições como “[s]e não há base objetiva para se distinguir entre verdadeiras e falsas crenças, então parece que só o poder determinará o resultado da competição entre diferentes afirmações das verdades” (FLAX, 1991, p. 223), e que há uma tendência dos críticos e teóricos feministas a ignorar “as interações complexas e recíprocas da teoria feminista com a Teoria Crítica2” (KAUFFMAN, 1989, p. 2) normalmente justificada pelo fato da assim denominada Teoria Crítica ser feita por homens que utilizam “linguagens críticas obscuras” (SHOWALTER, 1983, p. 134); a Desconstrução, teoria crítica por excelência, revela-se uma ameaça às próprias bases fundadoras e fundamentadoras do Feminismo, pois coloca sob suspeita justamente concepções iluministas/positivistas como razão, progresso, bases objetivas e noções que construíram o pensamento, a cultura e a sociedade ocidentais como verdadeiro/falso, homem/mulher, bem/mal, luz/treva etc. Feminismo e Desconstrução são, aparentemente, excludentes entre si em termos epistemológicos. Porém, um olhar mais atento sobre alguns textos de Derrida e alguns textos de feministas revela que essa conclusão não é tão maniqueísta quanto pode parecer. Derrida publicou vários textos em que discute de modo específico questões relacionadas à mulher e ao Feminino em relação aos sistemas filosóficos ocidentais, marcadamente os criados por Nietzsche e Heidegger — “La Double Séance” [“The Double Session”, 1972]; Éperons [Spurs, 1978]; “La Loi du Genre” [“The Law of Genre”, 1980]; “Choreographies” (1982); “Geschlecht: Sexual Difference, Ontological Difference” (1983); “Women in the Beehive” (1984); Gêneses, Genealogias, Gêneros e o Gênio [Genèses, Généalogies, Genres et Le Génie, 2003], dentre outros —; enquanto críticos e teóricos feministas reconheceram algo de feminino na própria escrita derridiana — “não seria precisamente ‘o feminino’ nos escritos de Joyce e Derrida que me compelem [?]” (1991, 2 No texto de Linda Kauffman, de onde emerge esta nomenclatura e a concepção com a qual ela é utilizada no decorrer do presente estudo, bem como no texto de Elaine Showalter citado a seguir, Teoria Crítica é entendida como “as teorias — marxista, feminista e/ou pós-estruturalista — dedicadas a demolir [um] humanismo ossificado e dificilmente liberal” (KAUFFMAN, 1989, p. 3). Observe-se que esse entendimento do termo expande a abrangência clássica da sua compreensão enquanto sinônimo de Escola de Frankfurt. Uma discussão mais acurada sobre as relações do Feminismo com as outras Teorias Críticas é desenvolvida por Gayatry Spivak no ensaio “Feminism and Critical Theory” (1986). Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura p. 45), questiona-se Shari Benstock — ou dedicaram livros, periódicos e estudos vários às relações entre as teorias pós-estruturalistas de que fazem parte tanto o Feminismo quanto a Desconstrução — o volume 14 (1988) da revista Feminist Studies; Gender and Theory (1989), organizado por Linda Kauffman; Feminism/Postmodernism (1990), organizado por Linda Nicholson; Feminism and Deconstruction (1994), de Diane Elam; Derrida and Feminism (1997), organizado por Ellen Feder, Mary Rawlinson e Emily Zakin etc. Se Feminismo e Desconstrução são excludentes em termos epistêmicos, cabe perguntar por que há tantos estudos feministas publicados pelo “pai” da Desconstrução e tantos estudos desconstrucionistas publicados por feministas. Ou, para colocar a questão de maneira um pouco diferente: por que Jacques Derrida e Hélène Cixous escreveram estudos em conjunto — “Appendices” {em Photos de Racine [Rootprints, 1994]}, Voiles [Veils, 1998] — ou publicaram textos um sobre o outro — H. C. pour la vie, c’est à dire... [H. C. For Life, That Is to Say..., 2000], de Jacques Derrida; Portrait de Jacques Derrida en Jeune Saint Juif [Portrait of Jacques Derrida as a Young Jewish Saint, 2001], de Hélène Cixous? Como revelam os textos mencionados acima, é possível compor uma interface teórica que conjugue Feminismo e Desconstrução sem que ambos se excluam ou se anulem mutuamente. Para isso, é necessário que se promova “um diálogo entre Desconstrução e Feminismo” que seja “uma simultânea demarcação ou traçar de distâncias e uma justaposição dos momentos nos quais Desconstrução e Feminismo coincidem” (BARTKOWSKI, 1980, p. 70), que se tome a relação entre Feminismo e Desconstrução dentro da concepção de “uma união sexual para sempre diferida” (SPIVAK, 1976, p. LXVI) ou, em outras palavras, como indecidível. Dentro dessa perspectiva, como afirma Mary Poovey em um ensaio importante, “o Feminismo deve reescrever a Desconstrução de modo a incorporar suas estratégias dentro de um projeto político [,] e [...] esta re-escrita vai necessariamente transformar o Feminismo. Possivelmente, isso nos levará (em termos conceituais) ‘para além’ do Feminismo como um todo” (1988, p. 51). Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura Poovey esqueceu-se de mencionar que a mesma re-escrita desconstrucionista que transformará o Feminismo necessariamente transformará a Desconstrução, uma vez que ela é, em si, um fantasma — ou tudo que permeia e é permeável: tímpano, hymen, margem, véu —, “a vinda de um outro, e [...] a vinda do impossível e do imprevisível”, pois “[q]uanto mais a desconstrução for superada por algo imprevisível [o Feminismo, no caso], mais ela se mostrará correta” (CAPUTO, 2009, p. 178). É dessa forma que o pensamento desconstrucionista permanece vivo e ruma para o futuro, uma vez que Derrida, assim como Deus, Nietzsche, o autor e o romance, está morto: “a desconstrução tem um futuro. E, de fato, como possibilidade, como provocação, a desconstrução é o futuro, uma teoria do futuro e, por essa razão, ela é algo que pertence ao futuro da teoria” (id., ibid.), do mesmo modo que o Feminismo. A Desconstrução enquanto teoria tem, por característica definidora, a capacidade de acolher as diferenças, de se deixar permear por elas sem destruí-las, porém despindo-as dos ranços do preconceito que, por ventura, a elas ainda estejam atrelados; precisamente o que, há algum tempo, tem buscado o Feminismo e seus frutos, os Estudos de Gênero, os Estudos de Raça e Cor e os Queer Studies. Resta agora Feminismo e Desconstrução se acolherem mutuamente no diferir de suas estratégias. Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura Bibliografia BARTKOWSKI, Frances. Feminism and Deconstruction: “A Union Forever Deferred”. Enclitic, Los Angeles, CA: Enclitic, v. 4, n. 2, p. 70 – 77, Fall 1980. CAPUTO, John D. Após Jacques Derrida vem o futuro. Revista de Letras, São Paulo: UNESP, v. 49, n. 2, p. 173 – 179, jul. – dez. 2009. DERRIDA, Jacques. The Double Session. In: _____. Dissemination. Trad. Barbara Johnson. Chicago, IL: The University of Chicago Press, 1981. _____. “This Strange Institution Called Literature”: An Interview with Jacques Derrida. In: _____. Acts of Literature. Ed. Derek Attridge. New York; London: Routledge, 1992. _____. Tímpano. In: _____. Margens da Filosofia. Trad. Joaquim Torres Costa e António M. Magalhães. Campinas, SP: Papirus, 1991. FLAX, Jane. Pós-modernismo e relações de gênero na teoria feminista. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. KAUFFMAN, Linda. Introduction. In: _____ (ed.). Gender and Theory: Dialogues on Feminist Criticism. Oxford, UK; New York: Basil Blackwell, 1989. POOVEY, Mary. Feminism and Deconstruction. Feminist Studies, College Park, MD: Feminist Studies, Inc. – University of Maryland, v. 14, n. 1, p. 51 – 65, Spring 1988. SHOWALTER, Elaine. Critical Cross-Dressing: Male Feminists and The Woman of The Year. Raritan Review, New Brunswick, NJ: Raritan – Rutgers University, v. 3, n. 2, p. 130 – 149, Fall 1983. SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Translator’s Preface. In: DERRIDA, Jacques. Of Gramatology. Trad. Gayatri Chakravorty Spivak. Baltimore, MD; London: The Johns Hopkins University Press, 1976. WING, Betsy. Jouissance. In: CIXOUS, Hélène; CLÉMENT, Catherine. The Newly Born Woman. Trad. Betsy Wing. Minneapolis, MN; London: University of Minnesota Press, 1986 (Theory and History of Literature, 24).