UMA ILUSÃO ITINERANTE Daniel Puglia* Resumo Este artigo analisa alguns aspectos do poema “A ilusão do migrante”, do livro Farewell, o último que Carlos Drummond de Andrade deixou preparado para publicação e que é visto por muitos críticos como uma espécie de testamento literário. Nos seus versos, vários dos temas e assuntos que marcaram presença nos trabalhos anteriores são agora retomados, oferecendo uma espécie de síntese precisa da aguda compreensão que o poeta demonstrava em relação à experiência humana. Palavras-chave: Drummond, Farewell, Interpretação. Abstract This article discusses some aspects of the poem “A ilusão do migrante”, from the volume Farewell. This is the last book prepared by Carlos Drummond de Andrade for publication, considered by many critics a sort of literary will. In its verses several themes and subjects that frequently appeared in the previous works are resumed, offering a precise synthesis of his acute understanding of the human experience. Key words: Drummond, Farewell, Interpretation. 1 Introdução ... se em vão e para sempre repetimos os mesmos sem roteiro tristes périplos. Carlos Drummond de Andrade, “A Máquina Do Mundo” Animum debes mutare, non caelum. Sêneca Numa das cartas ao seu amigo Lucilius, Sêneca cita uma observação de Sócrates: “Por que você se espanta de não serem as viagens uma solução para seus problemas? Você não vê que sempre viaja consigo mesmo? A razão de sua peregrinação está sempre em seus próprios calcanhares”. Esta reflexão, quem sabe, talvez possa auxiliar nossa aproximação do poema “A ilusão do migrante”, do livro Farewell, de Carlos Drummond de Andrade.1 Ao longo do poema, um eu-poético questiona o quanto saiu realmente de suas origens para se inserir no “mundo grande”, reflete sobre o que é a existência e a maneira como ela é vivenciada (na “pele de nossas almas”) e, ao final, reconhece estar em si mesmo a razão da “ilusão de ter saído”. Parece-nos, portanto, que o poema divide-se em três movimentos: o primeiro deles composto pelas três primeiras estrofes; o segundo, pela quarta e quinta estrofes; o terceiro, pela última estrofe. Feita essa divisão interna, propomos a análise de cada bloco. 2 Análise do Poema “A Ilusão do Migrante” 2.1 Embaciamento As três primeiras estrofes parecem compor um conjunto coeso, no qual somos apresentados às indagações e incertezas de alguém em busca de reconstruir um itinerário, um percurso que terá a memória como auxiliar e guia. Embaciamento, o título que escolhemos para esse bloco, nos ocorreu devido a duas instâncias diferentes em dois distintos momentos de leitura. O primeiro desses dois instantes, dessas duas impressões, surgiu quando do contato com as imagens um tanto quanto pouco delineadas, apenas sugeridas, que o poeta nos oferece. O rio que sussurra vagamente, os morros que estão empalidecidos no entrecerrar-se da tarde, o narrador – talvez não seja exagero esse termo – que entrevê no giro do mundo a ilusão à qual estava submetido, a ilusão da qual está, assim nos parece, procurando se (des)enganar. O segundo instante aconteceu por meio de uma observação mais atenta dos versos iniciais, logo na primeira estrofe, como também dos dois primeiros versos da terceira estrofe. Na primeira, o poeta afirma que veio de sua terra, porém imediatamente coloca essa possibilidade em xeque, duvida e sugere a hipótese de não ter vindo, de estar “morto por lá”. Nos versos da terceira estrofe, a pergunta adquire um caráter talvez até mais indeterminado, pois aquilo que era antes a sua terra se torna algo indefinido, um não-lugar. Mas qual seria a razão dessa percepção advinda em dois momentos, fincada numa dualidade em termos de apreensão do que estava sendo lido? Teria ela uma relação com a própria matéria narrada e poderia nos auxiliar no entendimento do poema? A resposta, ou possíveis respostas, encontramos a partir de uma das características mais marcantes da obra do poeta: a poesia de Drummond é um jogo permanente entre a apresentação de situações e o contexto que as determina, entre a evocação de paisagens e as memórias por elas emolduradas, entre a enumeração de eventos e sua significação mais profunda. Assim sendo, vê-se que há um intercâmbio constante entre afirmações, exposições abstratas afeitas ao domínio das idéias, e as imagens, as descrições. O rio, os morros, o giro do mundo são as imagens cúmplices e complementares das formulações em relação a ter vindo ou não da terra natal, à conseqüência de se ter lá nascido e à verificação de que “não se vai nem se volta/ de sítio algum a nenhum”. Desse modo, vemos que as idéias e as imagens oferecidas pelo poeta nessas três primeiras estrofes têm um caráter pouco preciso, estando tal imprecisão a serviço do estabelecimento de um certo tom que caracteriza a “ilusão do migrante”. Isso poderá ser percebido numa leitura mais detalhada de cada verso. “Quando vim da minha terra” introduz o leitor no universo da rememoração, da lembrança, e o convida a presenciar uma história de vida a ser contada. É dentro desse contexto que mencionamos anteriormente não nos parecer um exagero designar como narrador esse eu-poético que nos conta (e a si mesmo) a sua história. No entanto, é um narrador em dúvida, ou melhor, parece fazer da dúvida o instrumento com o qual irá se desvencilhar de sua ilusão: “se é que vim da minha terra/ (não estou morto por lá?)”. Estar morto em sua terra natal significaria, talvez, estabelecer um estatuto de falsidade a tudo o que tenha vindo depois de sua partida, ou ainda, de amortecimento em relação aos destinos percorridos após a partida. Todas as experiências advindas do caminho teriam parentesco com o devaneio, com a ilusão e o logro. De suas origens, o poeta que em tantos poemas ouviu a voz dos mortos irá agora ouvir a voz da correnteza do rio. Mas a sugestão dada pelo fluxo constante do rio, tão constante como o tempo, não é ouvida com clareza, pois ela é sussurrada vagamente, assemelhando-se mais a um murmúrio do que a um falar claro. A correnteza sugere que o poeta, um narrador biógrafo de si mesmo, “havia de quedar lá donde (se) despedia”. Essa imperativa queda soa como um vaticínio, um prenúncio do que seria o real destino do viajante, um destino de retorno interior ao ponto de onde partira (ou de onde jamais partira). Anunciam-se então os morros – quem sabe os morros de ferro de Itabira – dizer que todos os demais acontecimentos serão uma “conseqüência de um certo nascer ali”. Na atmosfera brumosa do território da memória e da ilusão, os morros estão “empalidecidos”. É a matéria, a natureza da terra natal que está sem lustro, amarelecida e sem brilho como num antigo quadro a exprimir as tantas verdades que os olhos têm dificuldade em discernir. Os morros “parecem” dizer: não há certeza nisso como não havia no sussurro “vago” da correnteza do rio. No crepúsculo do dia, “no entrecerrar-se da tarde”, tudo tem o caráter da incompletude, nada se realizou em sua inteireza e é nesse lusco-fusco que o migrante tenta adivinhar o que a natureza de suas origens “parece” lhe dizer – “não se pode voltar”, porque tudo foi vivido a partir dali, daquela referência que o migrante carregará sempre dentro de si. Temos, então, uma repetição (“Quando vim (…)”) e novamente a reiteração da dúvida (“(…) se é que vim/ de algum para outro lugar”), mas agora o migrante não rememora sua origem, e, sim, o momento de contato com o “mundo grande”. A terra de origem se transforma em “algum lugar”, uma vez que é o mundo agora que está sob o foco do migrante. Se antes eram o sussurro da correnteza e os morros empalidecidos que denotavam o tom embaciado, agora é a figura do próprio migrante que está sem brilho, a sua “baça pessoa”. O vasto mundo gira alheio ao sujeito, sujeito este cuja imagem é apenas uma mancha pouco nítida na tela desse mesmo mundo. Convém notar que se antes, ainda que de maneira pouco clara, os elementos da terra natal sussurravam e pareciam querer se comunicar com o sujeito, buscavam-no e lhe apresentavam proposições, agora, entretanto, o mundo lhe é indiferente, “alheio”. Caberá ao sujeito, portanto, “entrever” o que quer: ele observará o giro do mundo e dele tirará sua conclusão; uma conclusão, diga-se, que vai ao encontro das proposições anteriores da terra natal: “que não se vai nem se volta/ de sítio algum a nenhum”, pois se há de quedar lá onde se despede e tudo é conseqüência dessa origem. Vemos, desse modo, que, ao final desse primeiro bloco, o “embaciamento” começa a ser atenuado: o sujeito, por meio de sua observação, gera uma afirmação que se aproxima um pouco mais da certeza, embora o seu modo de ver carregue semelhança com o próprio meio de expressão de sua terra; lembremos que ele não vê com nitidez o giro do mundo, mas ele apenas “entrevê”, ou seja, vê de maneira confusa e imperfeita, no giro do mundo, os elementos que permitem sua conclusão. Preparamo-nos, assim, para uma nova etapa dentro do poema. 2.2 Cercas, Máscaras e Feridas Nas duas estrofes que compõem esse bloco, podemos observar uma tendência diversa em relação às três anteriores. Nas estrofes que abrem o poema, como já observamos, há um predomínio do tom vago, difuso, pouco definido, em que a dúvida do sujeito se desenvolve no próprio jogo do rememorar e em que, por outro lado, temos uma divisão mais nítida do diálogo permanente entre paisagens e memórias, descrições e explicações. Como contrapartida, na quarta e quinta estrofes, temos um tom muito mais afirmativo, resoluto, em que uma idéia é expressa e, entrelaçada a ela, surge uma imagem a fortalecê-la, fazendo com que os detalhes descritivos e a investigação de seu sentido sejam complementares, unindo-se num mesmo vetor, num golpe agudo e cortante. No conjunto da obra de Drummond, o livro Farewell parece marcar um registro mais amargo em relação aos seus predecessores, retomando certa tensão poética talvez abandonada a partir do ciclo de livros que se iniciara com Boitempo. A partir dessa constatação, talvez não seja exagero afirmar que essas quarta e quinta estrofes são as mais emblemáticas dentro do poema, de acento ácido e feroz que, por vezes, emerge de algumas páginas de Farewell. Como dissemos anteriormente, o bloco precedente alcança uma primeira conclusão mais nítida do migrante. Os primeiros versos desse segundo bloco são, por assim dizer, herdeiros dos versos finais do primeiro bloco (a bem da verdade, poderíamos sugerir que ambas as quarta e quinta estrofes poderiam ser consideradas, na totalidade, como um longo “discurso”, uma longa enumeração de conclusões a partir da “preparação” realizada durante as estrofes anteriores). Dessa maneira, o poeta nos oferece uma série de definições, definições estas, convém lembrar, provenientes a partir da observação do “giro do mundo”. “As coisas” são a “moldura da nossa vida”, uma “rígida cerca de arame”. O mundo dos objetos é entranhado na subjetividade e vai se tornando a moldura com a qual delimitamos nossa vida. Também a idéia do mundo exterior como limitador surge a partir da menção à “rígida cerca de arame”, uma imagem que nos remete às noções de aprisionamento e, pelos nós característicos do aço entrelaçado, de martírio. “Carregamos as coisas”, como um fardo que escolhemos e determinamos para nós mesmos, construindo uma moldura, um molde rígido que irá nos acompanhar, pois está entranhado “na mais anônima célula”. Em seguida, temos os versos: e um chão, um riso, uma voz ressoam incessantemente em nossas fundas paredes. Nesse ponto, o narrador biógrafo de si mesmo parece começar o processo de desdobrar das origens e do “mundo grande” a carga que anteriormente estabelecera, trazendo-a para um plano de reflexão interna. Parece-nos que o poeta começa a caminhar em direção à noção de que carrega dentro de si seu próprio espaço geográfico, sua própria atitude e seu estar no mundo. Verdades estas que “ressoam incessantemente”, nas profundezas de sua subjetividade aonde quer que esteja. Entretanto, o poeta desde o princípio dessa estrofe não fala somente a si mesmo, mas a todos os homens; suas definições têm a ambição do caráter generalizador: a primeira pessoa do plural passa a ser empregada e as palavras carregam a voz daquele que não mais se restringe ao particular e ao individual, elaborando formulações que possibilitam apreender algo que atinge a todos os migrantes. Nesse sentido, a quarta estrofe nos diz que temos fome, uma fome primitiva, e que somos iludidos pelos vários alimentos que nos são oferecidos: as “novas coisas” são uma ilusão em nosso caminho. Vemos, por conseguinte, que parecem ser formuladas respostas às sugestões feitas no primeiro bloco, quando ainda predominava o “embaciamento” – a pouca clareza acerca da ilusão. O poeta prossegue afirmando que “as descobertas são máscaras/ do mais obscuro real”. Os novos fatos, a nossa ilusão de contato com diferentes acontecimentos, são mascaramentos que tendem a nos separar do “obscuro real”. Iludidos, jogamo-nos no turbilhão do mundo e nos escapa o contato com nossa natureza mais profunda. A última definição desse bloco tentará justamente desenvolver a idéia desse “obscuro real”, que o poeta afirma ser a “ferida alastrada/ na pele de nossas almas”. O real é uma chaga que carregamos conosco, originária do nosso atrito com o “mundo grande”. Um atrito que talvez nos faça indagar, a partir dos versos do poema “Acordar, Viver”, também do livro Farewell: “Como proteger-me das feridas/ que rasgam em mim o acontecimento,/qualquer acontecimento/ que lembra a Terra e sua púrpura/ demente?”.2 2.3 Desengano Finalmente no último bloco, composto pela última estrofe, o poeta poderá afirmar algumas conclusões a que chegou a partir da preparação ao longo das estrofes anteriores. Das dúvidas iniciais durante a rememoração, passando pelo contato com o mundo, agora será o momento em que o poeta poderá dizer categoricamente não ter saído de sua terra, de si mesmo. Retoma o verso “Quando vim da minha terra”, mas agora para completar e responder que “não vim, perdime no espaço/ na ilusão de ter saído”. Ele concorda com o vaticínio feito pela correnteza do rio; jamais saiu (“não se pode voltar”), como lhe haviam dito os morros. Como dissesse para si mesmo, pobre de mim, coitado de mim, ingênuo que fui, pensando em ter saído do lugar em que sempre estive, o poeta declara: “Ai de mim, nunca saí.” Interrogara antes se não estaria morto “por lá”, na sua terra, e agora responde para si mesmo: “Lá estou eu, enterrado (…)” e numa sucessão de cinco versos iniciados com as palavras “por baixo”, enumera tudo o quanto lá está sobre ele, sempre esteve, aonde quer que vá: a fala mansa de Minas, as negras sombras dos espaços recônditos da memória (ou do que não deve ser lembrado), as lavras de ouro da família, e a própria família. Finalmente, por baixo de si mesmo. O narrador biógrafo de si mesmo faz todo um percurso de trazer a memória do passado, percorrer o mundo e chega até o próprio eu: “este vivente enganado, / enganoso”. Enganoso, nos ensinam os dicionários, é aquele que “engana, falaz, ilusório; que é artificioso, simulado”. É ele mesmo o motivo do engano, é o iludido que ilude a si mesmo (“(a) ferida que me inflijo/ a cada hora, algoz / do inocente que não sou (…)”, do poema “Acordar, Viver”, de Farewell). Juntamente com Sêneca, o poeta Drummond parece afirmar que de nada adianta mudarmos de céu, se não mudarmos nossa alma: seremos apenas uma ilusão itinerante. E, com Sócrates, parece nos dizer que a razão de nossa peregrinação está em nossos próprios calcanhares, uma vez que “para sempre repetimos os mesmos sem roteiro tristes périplos”. Notas 1 Ver no anexo o poema “A ilusão do migrante” transcrito (Andrade, 1997, p. 20-21). 2 A regência do verbo foi escolhida por Drummond, para enfatizar que é o acontecimento que rasga, que provoca as feridas; acrescentei os versos restantes para reforçar o sentido pretendido por Drummond. Referências ANDRADE, C. D. de. Farewell. Rio de Janeiro: Record, 1997. ______. A ilusão do migrante. In: ______. Farewell. Rio de Janeiro: Record, 1997. p. 20-21. CANDIDO, A. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970. CARPEAUX, O. M. Origens e fins. Rio de Janeiro: CEB, 1943. LIMA, L. C. Lira e antilira (Mário, Drummond, Cabral). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. MARTINS, H. A rima na poesia de Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1968. MERQUIOR, J. G. Verso universo em Drummond. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1975. SIMON, I. M. Drummond: uma poética do risco. São Paulo: Ática, 1978. TELES, G. M. Drummond – A estilística da repetição. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1970. Dados do autor: Daniel Puglia * Doutor em Letras Modernas – USP – e Professor de Teoria Literária – Universidade Paulista Endereço para contato: Universidade Paulista Rua Henry Dunant, 203 Santo Amaro 04709-110 São Paulo/SP – Brasil Endereço eletrônico: [email protected] Data de recebimento: 31 maio 2007 Data de aprovação: 6 set. 2007 ANEXO A ILUSÃO DO MIGRANTE Quando vim da minha terra, se é que vim da minha terra (não estou morto por lá?), a correnteza do rio me sussurrou vagamente que eu havia de quedar lá donde me despedia. Os morros, empalidecidos no entrecerrar-se da tarde, pareciam me dizer que não se pode voltar, porque tudo é conseqüência de um certo nascer ali. Quando vim, se é que vim de algum para outro lugar, o mundo girava, alheio à minha baça pessoa, e no seu giro entrevi que não se vai nem se volta de sítio algum a nenhum. Que carregamos as coisas, moldura da nossa vida, rígida cerca de arame, na mais anônima célula, e um chão, um riso, uma voz ressoam incessantemente em nossas fundas paredes. Novas coisas, sucedendo-se, iludem a nossa fome de primitivo alimento. As descobertas são máscaras do mais obscuro real, essa ferida alastrada na pele de nossas almas. Quando vim da minha terra, não vim, perdi-me no espaço, na ilusão de ter saído. Ai de mim, nunca saí. Lá estou eu, enterrado por baixo de falas mansas, por baixo de negras sombras, por baixo de lavras de ouro, por baixo de gerações, por baixo, eu sei, de mim mesmo, este vivente enganado, [enganoso.