Claudio Fragata
Em memória de Tatiana Belinky e Elisa de Oliveira.
P
edrina bateu à porta de nossa casa em certa manhã de um dia perdido no tempo.
Já não me recordo de onde Pedrina veio. De algum lugar muito afastado.
Era o começo de uma história que eu nunca, nunca mais, esqueceria. Histórias
Pessoas como ela sempre vêm de longe. Sobem e descem montanhas, passam
extraordinárias, dessas que grudam para sempre na memória, podem começar de
por precipícios, atravessam rios em balsas, viajam dias e noites dentro de ônibus
um jeito banal. Com alguém desdobrando o mapa-múndi, com um esbarrão na rua,
fedorentos, que cheiram a comida enrolada em guardanapo.
com um desconhecido que toca a campainha.
Pedrina não tocou a campainha, bateu palmas no portão. Minha mãe foi atender.
Deu com uma negra perto dos 70 anos, lenço amarrado à cabeça em forma de turbante,
rosto aberto num sorriso branco de bandeira da paz. Perguntou se precisavam de
cozinheira. Minha mãe precisava. Ela ficou.
Lembrando hoje, parece que saltou do nada para dentro de minha casa.
Pedrina não sabia ler nem escrever. Ria muito quando minha mãe
abria o livro de receitas. Precisa disso não, dona! Tá tudo aqui!
E batia com o indicador na testa.
Quando Pedrina desamarrava o lenço, a cabeça branca ficava à mostra.
Era o único sinal da idade. A disposição para tudo fazia com que ela
parecesse mais moça.
A alma de Pedrina morava em seus olhos. Eles transbordavam de
bondade. Com ela aprendi o sentido da palavra doçura, aquela que nem
sempre tem a ver com açúcar, mas no caso dela tinha também.
P
assei a frequentar a cozinha. Pedrina assava pastéis de nata só para mim.
Boa parte dos bolinhos de chuva, feitos para agradar as visitas, eu comia antes
que fossem levados à sala.
Parecia mágica. Ela punha sobre a mesa os ovos, o leite, o fubá, a farinha,
o açúcar, o coco ralado e outros ingredientes, como o gengibre, a erva-doce e
a canela, que eu experimentava com o dedo numa careta. Logo depois tudo
virava creme, biscoito, bolo e pudim. O melhor vinha no final, quando Pedrina
me dava a colher de pau para raspar o tacho.
Eu imaginava que aquele era o gosto das comidas servidas no céu.
Às seis da tarde, Pedrina ouvia rezas pelo rádio. Hora da ave-maria!, dizia. Largava às pressas
o que estava fazendo, fosse o que fosse. Fechava os olhos, repetia as palavras num cochicho,
fazia incontáveis pelos-sinais. Quando as rezas acabavam, desligava o rádio, sentava-se numa
Pedrina dormia num quarto no fundo da casa que cheirava a
alfazema e a capim-santo. Recendia também a azeite queimado
por causa da lamparina que ela mantinha acesa diante da imagem
de Nossa Senhora da Conceição.
Se fecho os olhos, ainda posso ver Pedrina ali, remexendo em
caixas e sacolas. Resmungava, falava sozinha, suspirava. Sempre
a dobrar panos muito alvos. Brancura que ela obtinha usando
pedrinhas azuis de anil.
Sobre o guarda-roupa, a velha mala que carregava no dia
em que chegou. Olhar para essa mala me dava sempre um
sobressalto. Malas vazias estão à espera de alguém que parta.
E eu não queria que Pedrina partisse nunca mais.
cadeira em frente à porta do quarto, picava fumo e acendia o cachimbo.
Sabia que esse era o momento das histórias, então me acomodava a seus pés. Ela falava do
tempo da escravidão. Sua mãe tinha sido escrava, assim como a avó. Pedrina escapou por pouco:
— Dona princesa me salvou da chibata, fio.
— Isabel?
— Isabé, sim sinhô.
Pedrina também me contava histórias que ouviu da mãe. Quase sempre aventuras
assustadoras, de mulas sem cabeça, assombrações e mortos-vivos, que me enchiam de medo
e roubavam meu sono.
No dia seguinte, eu queria mais, mesmo que fossem histórias repetidas. Pedrina contava.
Não era só receitas o que trazia na memória.
Um dia, vi Pedrina agradecendo à minha mãe. Soube depois a razão. Havia pedido
para buscar o neto. A filha andava muito doente e não podia cuidar dele. Minha mãe
consentiu, e ela agradeceu prometendo que voltava logo.
Cobriu os cabelos com um lenço, o mesmo que costumava usar para ir à missa,
e se foi. Antes de sair, acariciou minha cabeça e disse, franzindo a testa: É, fio, as coisas
acontecem sem pedir licença.
Duas semanas depois, voltou com Tunico.
— Pedrina é feminino de Pedro?
Ela sorria:
— Não, fio, onde eu nasci era lugar de pedra
miúda. Povoado de beira-rio. Minha mãe quis esse
nome para mim. Ah, pedrinhas da minha terra...
Branquinhas de doer nas vistas!
Download

o para sempre de pedrina e tunico